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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DOUTORADO EM SOCIOLOGIA (In)Visibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência DOUTORANDA: Mione Apolinario Sales N° USP - 3247835 ORIENTADOR: Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu São Paulo 2004 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA DOUTORADO EM SOCIOLOGIA (In)Visibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Sociologia, sob a orientação do Professor Doutor Sérgio França Adorno de Abreu. São Paulo 2004 Banca Examinadora Título: (In)visibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência Autora: Mione Apolinario Sales Tese submetida ao corpo docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Sociologia, e defendida em sessão pública em 19 de abril de 2005. Aprovada por: ____________________________________ Prof. Doutor Sérgio França Adorno de Abreu ____________________________________ Profa. Doutora Esther Hamburguer ____________________________________ Profa. Doutora Maria Helena Oliva ____________________________________ Profa. Doutora Marília Pontes Sposito ____________________________________ Profa. Doutora Vera Silva Telles (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales Abstract Perverse (in)visibility: Juvenile offenders as a metaphore of violence This Sociology Doctorship’s thesis analyses theoretically visibilility as being a political and social human condition, compared to that one conquered by the poor teenagers in the public sphere, specially juvenile offenders. In virtual citizenship times, these teenagers, issued mainly from working classes, are described by the media as metaphores of violence. This research also points out nowadays that the Brazilian Government public agenda absorbs and faces the expressions of the Social Issue only when they are turned public by the mass media. Taking as sources some important youth violence cases focused by Brazilian media, respectivelly in 1999 and 2000, such as, FEBEM*’s rebellions, in the state of São Paulo, and a very known case: the hijacking of “bus 174”, in Rio de Janeiro, this thesis sustains the following hypothesis: 1st - teenagers like to be in evidence, in a deeply tuned in attitude of the cultural industry generation; 2nd - teenagers want to be seen associated to concepts and values, like beauty, irreverence, recognition and social prestige experienced by celebrities of the culture (music, theather, movies, etc.) and sport worlds; 3rd - facing the impossibility of an immediate gratification concerning consumption, pleasure, entertainment, social recognition (as the mass culture way of life demands), due to a very difficult access to social opportunities (education, job, good salaries, etc.), many teenagers say “yes” to crime callings, in their various forms: theft, mugging, traffic, etc.; 4th – juvenile offenders understand the power and strength of image which may associate them with rebelious behaviors, taking advantage of that; 5th - the society and the governmental institutions usually negociate and respect social rights in extreme situations only, which means that they act under pressure alone, or upon dealing with violent events, such as kidnapping, threat to someone’s life, etc., i.e., under the impact of violence itself. So, all these elements stress some of the main youth and human dramas of scant citizenship in Brazil today. Key-words: media, public sphere, violence, citizenship, juvenile offenders. * Institution that looks after adolescent offenders. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales Résumé L'(in)visibilité perverse: Les adolescents délinquants comme métaphore de la violence Cette thèse de doctorat en Sociologie se propose de confronter l’analyse théorique de la visibilité en tant que condition humaine, politique et sociale, avec l´image obtenue par les adolescents pauvres dans l’espace public, en particulier les jeunes qui ont commis des délits. En ces temps de citoyenneté virtuelle, ces adolescents, issus principalement des classes laborieuses, sont associés dans les médias comme des métaphores de la violence. Ce travail tente démontrer aussi que le programme public de l´État brésilien n’incorpore et ne fait face aux expressions de la question sociale contemporaine que lorsqu’elles sont divulguées par les moyens de communication de masse. En nous appuyant sur l´analyse de quelques situations concrètes - les rébellions de la FEBEM*, à São Paulo, et la prise d’otages de l´autobus 174, à Rio de Janeiro - nous avons établi les hypothèses suivantes: 1) Les adolescents aiment être vus , une attitude en accord avec la génération de l´industrie culturelle; 2) Les adolescents veulent être vus comme associés aux valeurs de beauté, d’irrévérence, de reconnaissance et de prestige social dont jouissent les icônes du monde culturel (musique, théâtre, cinéma...) et du sport; 3) Dans l´impossibilité d´une gratification immédiate en termes de consommation, plaisir, loisir, reconnaissance sociale (stimulés par la culture de masse), et ce, en raison des difficultés d´accès à chances offertes par la société (école, travail, rémunération, etc.), beaucoup de jeunes répondent aux appels de la criminalité dans toutes ses expressions: petits délits, vols à main armée, trafic de drogue et autres; 4) Les adolescents comprennent le pouvoir et la force de l´image qui les associe à la révolte, à des comportements transgressifs et à la violence, et ils en tirent parti ; 5) La société et les agences gouvernementales ont tendance à négocier et à reconnaître les droits que dans des situations limites, sous la pression de révoltes, enlèvements, menaces à la vie d´autrui, etc., c´est-à-dire sous l’impact de la violence proprement dite. Tous ces éléments composent l´état de pénurie de la citoyenneté au Brésil. Mots-clés: Médias, espace publique, violence, citoyenneté, jeunes délinquants. * Institution qui s’occupe des adolescents délinquants. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales Resumo (In)visibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência O presente trabalho é uma tese de Doutorado em Sociologia, a qual analisa teoricamente a visibilidade como uma condição humana, política e social, em contraste com aquela que é conquistada pelos adolescentes pobres na esfera pública, em especial os autores de ato infracional. Em tempos de cidadania virtual, tais adolescentes, oriundos em sua maioria das classes trabalhadoras, são projetados na mídia como metáforas da violência. O trabalho mostra ainda que a agenda pública do Estado brasileiro somente incorpora e enfrenta as expressões da questão social na contemporaneidade, quando estas são publicizadas pelos meios de comunicação de massa. Com base na análise de algumas situações concretas, a saber, as rebeliões da FEBEM - São Paulo e o conhecido caso doseqüestro do ônibus 174, no Rio de Janeiro, o trabalho reúne as seguintes hipóteses: 1- os adolescentes gostam de ser vistos – numa atitude bastante sintonizada com a geração da indústria cultural; 2- os adolescentes querem ser vistos associados à beleza, à irreverência e ao reconhecimento e prestígio social que ícones do mundo da cultura (música, teatro, cinema, etc.) e do esporte desfrutam; 3- na impossibilidade de gratificação imediata em termos de consumo, prazer, lazer, reconhecimento social (estimulados pela cultura de massas), devido às dificuldades de acesso a oportunidades sociais (escola, trabalho, remuneração digna, etc.), muitos jovens aderem aos apelos da criminalidade em seus diversos matizes: furtos, assaltos, tráfico, etc.; 4- os adolescentes compreendem o poder e a força da imagem que os associa à rebeldia, a comportamentos transgressores e à violência, e tiram partido dela; 5- a sociedade e as agências governamentais muitas vezes só negociam e atendem direitos em situações- limite, sob a pressão de rebeliões, seqüestros, ameaças à vida de terceiros, etc., ou seja, sob o impacto da violência propriamente dita. Todos esses elementos compõem, assim, o estado de cidadania escassa no Brasil. Palavras-chave: mídia, esfera pública, violência, cidadania, adolescentes autores de ato infracional. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 5 Sumário Introdução................................................................................................... 11 Capítulo I - Cidadania escassa: Juventude, direitos e violência no Brasil ... 28 1.1. Desigualdade e cultura de violência no Brasil: “conluio entre dois hemisférios” ................ .............. 38 1.2. Indesejáveis, perigosos e sem-direitos ................................................................................................. 49 1.3. Família, sociabilidade e pobreza......................................................................................................... 54 1.4. Da (in)visibilidade perversa à cidadania da infância e adolescência................................................. .69 Capítulo II – A visibilidade como condição humana .......................................... .80 2.1. Esfera pública, visibilidade e cidadania.................................................................... .86 2.2. Efêmera Aparência: indivíduo, cultura e visibilidade no Ocidente ....................................................... 95 2.2.1 “A juventude está nas ruas”: cultura de massa, consumo e democracia............................................. 101 2.2.2. O “nó no peito”: dilemas da condição de indivíduo no mundo moderno............... . 115 2.3 A crítica antivisual e seu duplo: a paixão pelo olhar ............................................................. .. ............ . 120 2.3.1 O olhar no foco da crítica........................................................................................ 123 2.3.2 O olhar feliz........................................................................................................................................ 125 2.3.3 De olhos vendados................................................................................................................................. 132 2.3.4 O olhar corpóreo.................................................................................................................................. 133 2.3.5 O olhar penal: do ethos visível da punição à disciplina dos corpos vigiados........................................ 137 2.3.6 Sob a luz do humanismo: suavidade e dissimulação da vontade de punir................ 141 2.3.7 Cultura imagética e barbárie: o eterno retorno do espetáculo punitivo.................... 149 Capítulo III - Cidadania virtual, cidadania denegada: Adolescentes infratores como metáfora da violência.................................................. 156 3.1. Lanterna dos desesperados: indústria cultural, imagem e semelhança................................................... 158 3.2. Da estética da guerra à guerra do discurso........................................................................ ................... 164 3.2.1. Laços de não-ser: violência e ritualização da morte............................................................................ 166 3.2.2. Dragão da maldade: indivíduo, crime e natureza .......................................................... ................... 173 3.2.3. A delinqüência como verdade jurídica............................................................................ .................. 178 3.2.4. Balas perdidas: adolescentes infratores na mira da imprensa brasileira............................................ 183 3.3. Política e Revolta: a violência como condição de aparecimento........................................................... 193 3.3.1.Juventude extraviada de direitos: uma crônica das rebeliões na FEBEM/SP....................................... 197 3.3.2. “Eu vi um Brasil na TV”: o seqüestro do ônibus 174.............................................. 222 Conclusão...................................................................................................... 254 Bibliografia.................................................................................................... 262 (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 6 Introdução Em 2000, demos início ao processo de doutoramento em Sociologia na USP, com o projeto de pesquisa: “Crianças e adolescentes no Brasil dos anos 90: entre uma cultura de violência e um novo paradigma ético-político”. Nesse ínterim, cursamos as disciplinas - Abordagens dos Meios de Comunicação de Massa (Profª. Esther Hamburguer), Legalidade e Construção Social Burguesa (Prof. Sérgio Adorno), e Conflitos Sociais, Direitos e Cidadania (Profª. M.ª Célia Paoli) - e o Seminário de Projeto (Prof. Reginaldo Prandi), que foram fundamentais para o desenvolvimento do tema em foco e para uma revisão bibliográfica atualizada e crítica. As novas interlocuções acadêmicas e o avanço em termos de consolidação do marco teórico tenderam, assim, a contribuir para a alteração do projeto original, em decorrência do envolvimento e subseqüente desenvolvimento pessoal e intelectual ligado à investigação de instigantes processos sócio-políticos e culturais. O movimento teórico-metodológico, portanto, que culminou na atualização e na delimitação mais precisa do objeto de estudo e do campo empírico da tese intitulada “(In)visibilidade perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência” será exposto ao longo dessa introdução. Há que se registrar, antes de tudo, que fomos impulsionadas para a pesquisa de tema afeto à área da criança e do adolescente em função da docência em Serviço Social1 e da experiência de representação política em entidades e órgãos dessa política setorial (Fórum Nacional DCA e CONANDA). Essa inserção profissional e política levou-nos a identificar a profunda relevância social da temática e – o mais significativo - a carência de estudos afins de maior fôlego teórico. Reconhecíamos, no entanto, a rica e massiva produção de estudos e sistematizações de experiências 1 Sou professora do Departamento de Política Social da Faculdade de Serviço Social da UERJ, onde pude desenvolver uma reflexão / produção no PIARJ (Programa de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Adolescência no Rio de Janeiro) nas áreas temáticas de ética, família, política social e direitos de crianças e adolescentes, violência e direitos humanos; e expandir uma interlocuçãopolítico-intelectual e profissional extra-muros (via representação no Conselho Federal de Serviço Social). (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 7 no campo das organizações governamentais e não-governamentais nas últimas duas décadas2. Esta, por sua vez, se acrescia, divulgava e socializava os direitos em tela, não continha a densidade que alguns dos seus desafios intelectuais e políticos demandavam. Além disso, havia uma grande parcela de produções teóricas e pesquisas científicas nesse campo temático, que, não obstante a sua contribuição para o desvendamento da realidade social da infância e adolescência no Brasil, possuíam ora um caráter histórico, ora um teor de legislação comentada, ou ainda um viés excessivamente particularizado, afeto a determinadas frentes de luta e pólos de denúncia social, a saber: violência e exploração sexual, trabalho infantil, adoção, adolescentes em conflito com a lei, crianças e adolescentes em situação de risco pessoal e social, dentre outros. Enfim, cabia fortalecer perspectivas e tendências de análises que propiciassem explicações em escala nacional e fizessem ilações teórico- críticas sobre a condição da infância e adolescência como expressão da questão social3 em articulação com os demais desafios societários do país, dando-lhe a centralidade e visibilidade devidas. Desde então, felizmente, a temática dos direitos das crianças e dos adolescentes - que se inscreve na agenda dos Direitos Humanos - vem se consolidando e se renovando como um objeto de estudo relevante pelas Ciências Sociais no Brasil (Bierrenbach et alii., 1987; Adorno, 1993; Martins, 1993; Alvim, 1994). Trata-se, porém, de uma área ainda a exigir esforços teóricos concentrados, à altura da grande rede de atores e processos envolvidos na implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.079 /90 - ECA), considerado um novo paradigma ético-político no que concerne aos direitos da infância e adolescência no Brasil. Infelizmente, apesar da ruptura ético-política com a menorização da infância e adolescência pobres como representação-chave nos Códigos de Menores (1927 e 2 Alguns títulos podem ser elencados como representativos do universo não-governamental referido: Revista Fórum DCA, Cadernos ABONG, Revista da ANCED, Revista CEAP, Subsídio INESC; mais apostilas, textos de discussão, relatórios de pesquisas e levantamentos de entidades como CECRIA, Save The Children, Projeto Roda-Viva, dentre outros. Na esfera governamental sobressai o investimento do Departamento da Criança e do Adolescente (antigo CBIA) do Ministério da Justiça no tema do adolescente em conflito com a lei; produções do Ministério da Saúde sobre saúde e sexualidade dos adolescentes; e mais recentemente da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento, etc. No Legislativo Federal conta-se com cartilhas, documentos, especialmente dos mandatos comprometidos com o tema. Há ainda o apoio substantivo a produções via agências de cooperação, como UNICEF, UNESCO, OIT, Pommar, etc. 3 Por questão social entende-se o conjunto das refrações produzidas pelo modo de produção capitalista que, para se produzir e reproduzir, destitui uma parcela majoritária da população do acesso à riqueza social. Portanto, trata- se de uma relação social marcada pela desigualdade, o que, na formação social brasileira, se transforma em (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 8 1979), tem-se ainda a prevalência da pobreza no cerne deste debate, em virtude do aprofundamento da desigualdade social, apesar dos novos preceitos legais e constitucionais pós-1988 (Londoño, 1992). Portanto, para um melhor balanço da questão social brasileira na contemporaneidade, avaliávamos e continuamos avaliando, é mister, por um lado, reconhecer a importância desse território de políticas sociais, práticas, valores e densidade ontológica; e por outro analisarmos as contradições e descompassos no processo de apropriação sócio-cultural e política quanto à implementação do ECA. Algo que qualificamos como cultura de violência, sobre o que discorreremos ao longo da tese - ligada ao processo de formação da sociedade brasileira e à nossa rarefeita cidadania, sobretudo no que diz respeito historicamente às classes trabalhadoras - interpunha-se na forma de uma resistência conservadora exercida por vários setores sociais ao ECA, a seus princípios democráticos e à perspectiva de uma reforma cultural - moral e intelectual - no país, o que certamente desborda a infância e a adolescência (Rolim, 1999; Gramsci, 1978; Sales, 1993). Mesmo quando tencionávamos tratar conjuntamente crianças e adolescentes e as expressões agudas da violência social4 por eles vivenciados, já insistíamos num processo de invisibilidade social (Soares, 2000) desse amplo segmento - conivente com a reprodução de condições sócio-econômicas geradoras e/ou perpetradoras de situações de iniqüidade social - somente rompido em momentos de crise, conflitos e violência extrema, sofrida ou praticada por eles. E muito embora um segmento dentro desse universo tenha pouco a pouco chamado a nossa atenção, continuamos pensando que problemas como trabalho infantil, exploração e violência sexual, ou ainda o abandono social de largas parcelas da infância brasileira e suas famílias, relegadas a um cotidiano de risco pessoal5 e múltiplas vulnerabilidades (Castel, 1998), exigem pesquisas macroscópicas e um enfrentamento político, econômico e sociológico de grande monta. Neste sentido, importa ressaltar, de um lado, que todos iniqüidade. A questão social passa a ser reconhecida e enfrentada em fins do século XIX, a partir do Estado, em função da organização política dos trabalhadores (Iamamoto e Carvalho, 1982). 4 A categoria violência social envolve questões como a desigualdade, o desemprego, a precarização do trabalho, a degradação das condições de vida, a incivilidade, a alienação no trabalho e nas relações, o menosprezo de valores e normas em função do lucro, o consumismo, o culto à força e o machismo, dentre outras (Minayo, 1994; e Telles, 2001). 5 A noção de risco é vista como a probabilidade da ocorrência de algum evento indesejável, interrelacionada a uma rede de fatores culturais, históricos, políticos, sócio-econômicos e ambientais. Neste sentido, o fato de (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 9 esses problemas, em sua particularidade ou genericidade, constituem expressões da questão social no Brasil; e de outro, que crianças e adolescentes pobres muitas vezes deslocam-se erraticamente de uma condição a outra, de uma experiência de violência e violação de seus direitos a outra. Não se trata, portanto, de algo estanque, embora se fale de sujeitos e situações de vida que implicam vínculos, práticas, lugares sociais e permanências. Logo, diferenças no amplo segmento de crianças e adolescentes (gênero, idade, raça/etnia, e condição social), seus problemas, mais as formas de reagir e/ou conviver com eles, se fazem notar e começaram a nos mobilizar criticamente cada vez mais. Foi possível perceber, por exemplo, que havia de parte da sociedade – civil e política - uma fratura ética, política e intelectual na acepção e relação com crianças e adolescentes. A encimar tal processo de diferenciação entre eles a presença e entrada em cena do adolescente autor de ato infracional,resultando em posturas que se estendem da resistência passiva ao repúdio explícito ao ECA. Neste sentido, é mister destacar que o ECA em si não suscita reações contrárias quando advoga os direitos de todas as crianças e adolescentes (Livro I, Título II), posto que, além disso, se refere a uma programática geral de possibilidades e intenções, de ações desejáveis para esse segmento, apesar dos obstáculos sociais, econômicos, políticos e culturais que se lhes interpõem. Mesmo sabendo-se da situação de cidadania escassa, ou de acesso precário e intermitente da maioria das crianças e adolescentes brasileiros aos direitos sociais, essa parte do ECA é vista como sendo dotada de positividade ética e jurídica, podendo até soar inverossímil em sua exigibilidade e garantia, mas, grosso modo, por não ferir crenças, valores e práticas sociais, não suscita disposições questionadoras e indignadas. Há, contudo, exceções quando o assunto é essa ênfase na dimensão dos direitos; exceções que se valem da retórica disciplinadora e conservadora - largamente difundida por juristas, políticos e setores da mídia que se opõem ou fazem restrições ao ECA -, a qual se detém em torno da necessidade também da estipulação dos deveres de crianças e adolescentes (Cavallieri, 1999). famílias com crianças e adolescentes das classes trabalhadoras depararem com circunstâncias especialmente difíceis para cuidar de seus filhos torna-os mais expostos ao sofrimento e à morte. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 10 Vale a pena, portanto, dar a conhecer alguns elementos que integram, ao nosso ver, o domínio das representações sociais6 pertinentes ao citado processo de diferenciação entre crianças e adolescentes, cujo mapeamento e significado contribuiu para reordenar, na forma e no conteúdo, o que veio a ser esta tese. São eles: - Há um largo consenso no país acerca da necessidade de proteção social da infância, muito embora haja um certo conformismo quanto a inúmeras tragédias sociais que acometem as crianças, desde a desnutrição e a mortalidade, ao trabalho infantil7. Males típicos de um país de capitalismo periférico e “em desenvolvimento”. Algo da ordem do Outro e dos “males necessários”, destituídos de responsabilização social; - Como conseqüência todos os esforços políticos, sociais e financeiros governamentais e não-governamentais são válidos, embora, já seja sabido e “assimilado”, nunca serão suficientes no sentido de extirpar pela raiz a pobreza e a miséria que corroem a infância brasileira. Este é um quadro social que mais gera pena do que revolta, pois, supostamente, é da ordem também do destino e da sorte de cada um. Isto é aceito, não obstante as estatísticas falarem de milhões de crianças, o que condiz, senão com um processo de invisibilidade, certamente com um fenômeno de opacidade social (Arendt, 1987); - Respostas individuais e familiares diante do desespero da precariedade das condições de vida e falta de opções para o grupo familiar, consubstanciadas no trabalho infantil, na exploração sexual e até no abandono dos filhos, ora são justificadas pelo senso comum como as alternativas possíveis, ora são veementemente condenadas, responsabilizando- se sobretudo os pais8 em atitude moralizadora e redutora à esfera privada de problemas de natureza pública; - Em suma: apesar da gravidade dessa realidade social, ela chega a ser tolerada, porque da ordem da vitimação (Saffioti, 1989), do sofrimento, do silêncio e da amargura social de 6 A noção de representações sociais será trabalhada na tese em apoio à discussão das questões afetas à produção simbólica e ao imaginário coletivo, em seu entrecruzamento com os discursos e narrativas veiculadas pela mídia. Não se pretende fazer um estudo exaustivo ou exclusivamente centrado nesta categoria metodológica, nem tampouco descolado dos processos sociais; estando ciente de que o contexto explica as representações e não o contrário (Marx e Engels, 1987). 7 A infância e a adolescência pobres, muitas vezes negra, têm sido privadas do direito à educação e encerradas no círculo vicioso do trabalho precoce. O Brasil conta, por exemplo, ainda com 1,1 milhão de jovens entre 12 e 17 anos analfabetos, isto é, que não sabem ler ou escrever, o que equivale a 5,2% da população nesta faixa etária. Além desses, 8 milhões de jovens entre 12 e 17 anos possuem baixa escolaridade, com apenas cinco anos de escolaridade formal; jovens provenientes de famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo (IBGE, 2000 e UNICEF, 2002). (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 11 amplos contingentes populacionais, de uma ponta a outra do país; algo que revela a universalização das necessidades e carências das camadas mais pauperizadas das classes trabalhadoras urbanas e rurais, tanto do passado quanto do presente; - Entre a realidade de vitimação e as respostas da alçada das políticas sociais, muitas vezes parece se erguer um fosso simbólico – cimentado ideologicamente -, deixando entrever, à moda estruturalista, a esfera da política e das ações públicas como algo intangível, de difícil alcance e interferência, de natureza e regulação próprias; - Crianças e adolescentes submetidos a esse tipo de violência social, até então, não têm aparecido na cena pública de forma coletiva, nem impactante9. Por exemplo: o peso da exploração do grupo familiar e o medo são tão grandes que, no Brasil, não se ouve falar em queima de canaviais ou algo semelhante nas minas de carvão, praticado por crianças, adolescentes e seus familiares, revoltados com as condições do trabalho infantil no campo ou mesmo na cidade. Predomina ao lado da fome, da miséria e da superexploração, a resignação10; - Meninas e adolescentes pobres, desde os rincões aos grandes centros urbanos do país, submetidas à exploração sexual são apanhadas por outras teias silenciadoras (Rocha- Coutinho, 1994), na medida em que o comércio do corpo e do prazer sofre diversas sanções: pela religião, pela moral sexual familiar e pela lei. Assim, são múltiplas as interdições num tal ambiente cultural historicamente repressivo, permeado por toda uma sorte de outras violências de gênero no cotidiano, o que contribui para a dissimulação por parte daquelas que são coagidas pela família ou por terceiros, ou pelas que são tentadas individualmente a sobreviver por meio desse artifício, em razão do medo da punição. Já a sociedade responde aos dados da exploração sexual de meninas e adolescentes pobres de maneira tão hipócrita quanto indiferente, quando moraliza as precoces “más” escolhas femininas ou as justifica diante da falta de recursos e opções sociais do grupo familiar, principalmente nas regiões mais empobrecidas do país; - Quando situações de violência social como as citadas acima se mesclam a outras de caráter familiar, isto é, quando a família deixa de ser suporte e guardiã dos elos de afetividade e sociabilidade, abstendo-se de suscitar a reciprocidade em termos de direitos e deveres entre os membros do grupo doméstico e, mais: abusa, maltrata, negligencia, 8 É importante, no entanto, ressaltar que muito além das expectativas burguesas do jeito ideal de criar e educar filhos as famílias das classes trabalhadoras desenvolveminúmeros esforços no sentido de realizar seu papel socializador. 9 A não ser sob a forma de imagens, no caso do trabalho infantil, capturadas pelos já lendários ensaios fotográficos de João Roberto Ripper e Sebastião Salgado, e por inúmeros documentários. 10 Não se quer com esta afirmação dizer que não há luta por melhores condições de vida e de trabalho no campo, vide a experiência organizativa do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e tantas outras (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 12 enfim, é cruel, tais crianças e adolescentes em geral fogem do convívio familiar pelas diversas portas da luta pela sobrevivência. São, porém, respostas individuais e, a princípio, de pouquíssima ou nenhuma visibilidade, as quais só vão ganhando alguma densidade quando começam a se metamorfosear em grupos com práticas lesivas ao patrimônio público - bandos e galeras de crianças e adolescentes que erram cidade e país afora no capitalismo periférico - e procedem à incômoda ocupação de ruas, praças e calçadas; - Enfim, as crianças e adolescentes vitimados, alvos de sucessivas violações de direitos sociais, não se manifestam, não perturbam a ordem, a menos quando, já pela condição fronteiriça de quem quer transpor a (in)visibilidade perversa11, tentam vender os seus chicletes nos bares e sinais, mas ainda assim, porque de forma pacífica, inspiram no máximo irritação e piedade. Seus apelos são individuais. Contam para dar voz e vulto às suas necessidades e reivindicações com uma série de agentes e entidades defensoras de direitos ou mesmo de organismos assistencialistas e filantrópicos, dentre outros. São os adultos que por meio de suas câmeras, microfones e redes de apoio vão dando corpo a esses sujeitos e suas trajetórias, marcados pela opacidade social, embora sejam milhões; - Já os adolescentes que perambulam pelas ruas, praticam pequenos roubos e até assassinatos, quando são mortos ou cooptados pelo tráfico de drogas; ou ainda quando se tornam vítimas da truculência do aparelho do Estado, e em função disso incendeiam unidades de internação, estão a conferir visibilidade ao estado degradado e aviltado da cidadania da infância e adolescência do país. Com a exibição de suas dores, misérias e falta de projetos de vida promovem discursos e encetam linguagens que rompem silêncios sociais cúmplices de violências domésticas, de atrocidades institucionais, da exploração do trabalho de crianças e adolescentes, dentre outros. Enfim, atraem a crítica e a condenação, mas também a sensibilização para sua situação específica e a das condições de vida das crianças e adolescentes brasileiros. São pessoas em desenvolvimento e, de acordo com a Constituição de 1988, prioridade absoluta, mas, na prática, essa condição é quase sempre sobrepujada por interesses de maior relevância econômica; - Neste sentido, é emblemática a discussão sobre a redução da idade penal, ponto de inflexão e encruzilhada ideológica do mais resistente conservadorismo, a qual tem sido o calcanhar de Aquiles dessa área. Apesar de uma nova concepção e prática política e historicamente existentes no país, mas acentuar a baixa capacidade de reação e indignação das famílias trabalhadoras rurais quanto ao trabalho infantil, quando em estado de isolamento político. 11 A adoção da categoria visibilidade perversa foi inspirada na argumentação e discussão feita por Sueli Carneiro em entrevista à Revista Caros Amigos (2000). (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 13 jurídica no trato com a infância e a adolescência proposta pelo ECA, nem ele tem conseguido aplacar a cultura punitiva da sociedade brasileira na relação com a questão dos adolescentes autores de ato infracional. Sabe-se, no entanto, que apenas 18,6% de homicídios (IPEA et alii., 2002) cometidos no Brasil podem ser atribuídos a menores de 18 anos. Não obstante, os apelos contidos nos projetos de lei do Código Penal, que antecipariam maioridade penal para 16 e até 14 anos, sugerem banimento, ocultação, evitação, enfim, a consumação do apartheid social. Tais adolescentes são elevados à condição de bárbaros e pré-humanos, pré-cidadãos, indignos de uma atenção social mais justa, que leve em conta os percalços sociais, econômicos e morais da vida que os conduziram ao delito (Adorno, 1993); - Por vezes, os ruídos produzidos por esses adolescentes, mesmo sem intencionalidade política a priori, terminam em sua contundência e efetividade por sacudir as aparências e forçar a discussão de assuntos públicos, vide a onda de rebeliões na FEBEM paulista, em 1999. Conseguiu-se uma atenção e respostas concretas (mesmo não de todo satisfatórias) para a agenda da implementação das medidas sócio-educativas e seu sistema operativo, que esforços locais e nacionais dos conselhos de direitos e diversos parceiros até aquele crack institucional não conseguiram. Isto porque o ajuste fiscal - um dos motes da política neoliberal encetada no Brasil nos últimos dez anos - dificulta ainda mais a capacidade de escuta do Estado, que adia o enfrentamento das expressões da questão social até o limite, no tocante à cobertura de novos problemas ou à resposta ao desgaste do aparato das políticas públicas. Em apoio às nossas preocupações teóricas, vale citar o último Censo do IBGE (2000) e várias outras pesquisas afins, os quais têm atestado o caráter masculino e metropolitano da violência e, conseqüentemente, de mortes por causas externas, com destaque para a faixa etária entre 15-24 anos (Bercovich; Dellasoppa e Arriaga, 1998). Dentre as mortes violentas, chamam atenção aquelas provocadas por armas de fogo e o caráter essencialmente urbano desse mapa de homicídio da juventude brasileira. Índice alarmante, mas encarado já de forma banalizada por alguns segmentos da sociedade, sejam aqueles comprometidos ou coniventes com as práticas de extermínio sejam os que se sentem acuados em suas casas e locais de trabalho pelo medo da violência: real ou imaginário. Esse sentimento difuso de medo, sobretudo da classe média e dos setores mais abastados socialmente, obscurece, inclusive, a realidade de que crianças, (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 14 adolescentes e suas famílias, que têm que conviver diariamente com a presença e força do narcotráfico nas favelas e periferias, também sentem medo. O contato com o mundo da criminalidade, sem dúvida, implica uma piora da qualidade de vida para o grupo doméstico como um todo. Um medo nada abstrato, porque também acrescido do risco das balas perdidas nas trocas de tiro entre polícia e bandidos, ou da simples limpeza étnico-social que negros, pardos e mulatos sofrem de grupos de justiceiros, exterminadores, policiais, dentre outros. Isso significa que o traço étnico-racial combina-se à exploração e à violência, significando mais um fator de vulnerabilidade em geral, e em particular dos adolescentes brasileiros. São discriminações que atualizam o drama da inexistência da cidadania dos tempos pré-republicanos. Esses são alguns elementos que apontam, de um lado, a invisibilidade do sofrimento e dor por que passam crianças e adolescentes nas suas áreas de moradia e socialização, não bastassem as privações materiais, culturais e, muitas vezes, até afetivas às quais são submetidos. De outro, sinalizam o tipo de malhas simbólicas e ideológicas que permitem a visibilidadedos adolescentes, uma visibilidade intensificada pelo preconceito e medo da violência, balizados apenas em características físicas, sociais e geográficas, supostamente reveladoras da periculosidade dos seus portadores (Alvim e Paim, 2000; e Machado, 2000). Trata- se, portanto, de uma condição de visibilidade perversa, seletiva e reprodutora de discriminações históricas contra os setores mais pauperizados e insubmissos das classes trabalhadoras urbanas. Justiça e democracia são, assim, profundamente marcadas pela cultura e pelas particularidades políticas e econômicas locais, muito embora sofram as influências e intempéries do cenário mundial. Integram o leque de desafios da sociabilidade e do pacto civilizatório no século XXI contra a barbárie capitalista, produtora de desemprego, misérias e violências. E no Brasil a impunidade e a corrupção - traços pérfidos da cultura política nacional -, de um lado, atualizam-se e se metamorfoseiam ante as novas relações produtivas, e, de outro, se expandem nos vazios de autoridade e de eficácia do sistema sócio-jurídico, no qual se incluem as entidades e a política de atendimento sócio-educativo a adolescentes autores de ato infracional, contribuindo para fazer desmoronar a confiança no Estado e na esfera (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 15 pública12 e em sua capacidade de regular os conflitos sociais. Configura-se, assim, uma situação que intensifica a crise ética em curso no país, acirrada pelos percalços políticos e econômicos dos governos da redemocratização. O abismo da desigualdade, pois, compromete a lógica da justiça numa sociedade como a brasileira, e demonstra o estado da garantia dos direitos civis – vida, integridade física, propriedade, segurança, liberdade -, considerados alicerces dos direitos políticos e sociais, uma vez que aqueles são dependentes do sistema policial e judiciário. Logo, encontram-se em condição bastante deficiente e precária (Carvalho, 1996). Os obstáculos sócio-históricos ao cumprimento das suas funções dizem, assim, tanto do grau de cidadania conquistado - a cidadania real - quanto das contradições de classe que atravessam a sociedade e sacodem as falsas crenças na impermeabilidade entre Direito e política, ou Direito e economia. O tema da penalização é, todavia, essencialmente conservador (Singer,1998). Além do componente punitivo que lhe é intrínseco e direcionado às classes perigosas, prevalecem muitas vezes, e até por isso, entre os operadores do direito a dissimulação e a despolitização dos conflitos. É mister reconhecer, portanto, a atitude e perfil reacionários da ideologia jurídica hegemônica, com seu viés positivista na interpretação e prática do direito, e presença do racismo nos encaminhamentos da justiça criminal. No entanto, vale destacar que a lei e o direito têm sido resignificados dentro de mais uma estratégia de luta pela democracia, invertendo-se a mão da justiça (tradicionalmente guardiã dos privilégios das camadas dominantes) em favor de minorias discriminadas e da maioria historicamente constituída. As conquistas e inovações nesse campo, porém, ainda são poucas diante de uma lógica milenar ora do direito positivista, ora da justiça do “olho por olho”. Cabe, no entanto, registrar a preocupação de Singer (1998) quanto à ascensão da penalização como recurso jurídico contemporâneo acionado largamente 12 A noção de esfera pública , segundo Raquel Raichelis (1998), remete à construção e ao aprofundamento da democracia pela via do fortalecimento do Estado e da sociedade civil, expresso fundamentalmente na inscrição dos interesses das maiorias nos processos de decisão política, a partir da criação e garantia de espaços de interlocução entre os diferentes sujeitos sociais. Logo, concebemos a esfera pública não como um espaço intermediário entre sociedade civil e Estado, ou inteiramente distinto. À maneira gramsciana, defendemos que ela se constitui e se realiza no âmbito do Estado, visto de forma ampliada. Na perspectiva de publicizar os interesses em disputa democrática, a esfera pública, para além da polarização estatal-privado, se afirma como comunidade politicamente organizada e baseada no reconhecimento do direito de todos à participação na vida pública. Ela é, (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 16 à direita e à esquerda, ainda que com propósitos políticos totalmente distintos13. Também como alertou Wacquant (2001a), diante do enfraquecimento do Estado caritativo ou de Bem-Estar Social, onde chegou a ser implementado, tem se erguido mais e mais o Estado penal-policial. O resultado das novas políticas punitivas, como a de tolerância zero, é bastante conhecido: abuso do expediente de encarceramento massivo e de criminalização da miséria. Pareceria démodée ou clássica esta alternativa, a recordar a severidade com que foi punido o personagem Jean Valjean, em Os Miseráveis de Victor Hugo, pelo roubo de um pão, não fosse o investimento contemporâneo na economia e indústria do controle do crime, em que os Estados Unidos são o exemplo neoliberal mais categórico e lamentável. Naquele país, a população carcerária atingiu a marca de dois milhões de presos. Além de ocultar o índice de desemprego, esse recurso constitui fonte de vultosos lucros para a iniciativa privada, com a construção e administração de presídios e fornecimento de equipamentos. A perversidade desse sistema draconiano de combate à violência é demonstrada pelo fato de hoje alguns estados americanos, como a Califórnia, investirem mais nos cuidados aos detentos do que em educação. E ainda mais se se considerar que as políticas punitivas das últimas décadas não produziram efeitos de limitação do comportamento criminoso e violento (Singer, 1998; Sekles, 1999 e Aith, 2000). Na América Latina e no Brasil, em particular, o Estado Penal-Policial tem já um longo lastro histórico: desde o Império ao entra-e-sai de ditaduras. Ele persiste hoje também nas democracias do continente. No caso brasileiro, aos problemas crônicos de uma cultura de corrupção e de brutalidade institucional, ou cultura de violência, de cariz social mais amplo, soma-se no âmbito da justiça, do sistema sócio-jurídico - sócio-educativo e penitenciário - um perfil de uma pobre política social para os pobres (Behring, 1997). Uma moldura institucional marcada, dentre outros, pelo exorbitante poder dos delegados e juízes, mais um treinamento de assim, por definição, arena privilegiada de debates e embates, lugar da visibilidade dos sujeitos sociais e dos temas fundamentais para a coletividade. 13 Neste sentido, vale a pena lembrar da “compulsão” legislativa no Brasil, vide a profusão de projetos de lei (PLs) e de emendas constitucionais (PECs), revelando tanto a tendência populista-normativa, disciplinadora e punitiva do Parlamento, em sintonia com múltiplos apelos da população quanto a historicamente baixa capacidade política reguladora da Constituição, à diferença do significado da experiência contratualista republicana em países como França, Inglaterra e Estados Unidos da América (Arendt, 1988; Novaes, 2003). (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 17 policiais, monitores de unidades de internação de adolescentes e agentes penitenciários freqüentemente inadequado. Assim, cabe desnudar o significado de propostasde redução da idade penal, ora para 16 ora para 14 anos, em face da subumana e nada educativa ou ressocializadora realidade prisional brasileira de 223 mil detentos (DEPEN, 2001), a qual atesta a natureza perversa, seletiva e opressora do sistema penal, em razão de: descaso oficial, superlotação de cadeias, presídios e penitenciárias, rebeliões, maus tratos, alimentação ruim, além da falta de assistência médica e jurídica (inclusive na fase de execução da pena, o que faz com que os pobres permaneçam mais tempo na prisão). A degradação é máxima no verão, quando os problemas de saúde proliferam: desidratação, febre, micoses e outras doenças da pele. Do ponto de vista da saúde pública, contudo, a disseminação da AIDS no sistema penitenciário é ainda mais grave, em decorrência da promiscuidade, falta de preservativos e reservas no seu uso. Em média, 68% dos presos têm menos de 25 anos, 89/% não têm atividade produtiva ou trabalho (do que eles muito se ressentem), 76% são analfabetos ou analfabetos funcionais, 2/3 da população carcerária são formados por negros e mulatos, e 85% é a taxa de reincidência no país. Outros dramas humanos que fazem parte do seu cotidiano são a ausência de vínculo familiar permanente, a supressão da atividade sexual regular, a solidão e a falta de projetos de vida. É mister destacar, contudo, que 72% dos processos penais devem-se a furtos e roubos; sendo os outros 28%, frutos de homicídios, lesão corporal, aborto, corrupção, estupro e tráfico de drogas. Sabe-se que existem leis que asseguram os direitos humanos, mas que são ignoradas na maioria das vezes, como, por exemplo, a lei que tipifica o crime de tortura, a qual, no entanto, não é adotada pela maioria dos juízes e promotores (Relatório da Comissão de Direitos Humanos da ONU - 2000, Apud. Agegge, 2001; e Leali e Melo, 2001). Ademais, com o passar dos anos e a complexificação da problemática urbana e da questão social, vem se aprofundando o enlace entre violência e mídia, na tentativa dos veículos de comunicação em dar respostas à população sobre as ações individuais e coletivas mais visíveis, diante da dificuldade de compreensão das bases societárias geradoras de uma incivilidade crescente (Telles, 2001). O dado novo é que, ao longo do século XX, a indústria cultural (Adorno e Horkheimer, 1985) cresceu e apareceu, contribuindo para aprimorar tendências de desenvolvimento (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 18 econômico e social nos terrenos da informação, da cultura e do divertimento, mas que contribuiu também para massificar, por meio do rádio, da imprensa e, mais tarde, da televisão, noções, valores e atitudes reificadores do senso comum, momento em que se unifica o conservador e o popularesco. O gosto pela notícia cor de sangue, construída em forma e conteúdo em ritmo de folhetim, tão ao agrado das massas, vem se somar à exploração imagética e às narrativas de personagens e casos emblemáticos de violência, ano após ano, conjuntura após conjuntura, governo após governo (Sales, 2002). Como pano de fundo de uma violência lida apenas em suas expressões singulares ou de forma abstrata e generalizada, tem-se a sociedade brasileira e suas dificuldades em se firmar como nação efetivamente democrática, em construir um aparato sócio-institucional e jurídico de esteio aos direitos civis, políticos e sociais (Carvalho, 2002), em garantir condições de vida dignas à população, por meio do acesso ao trabalho e à terra, dentre outros. Um paradoxo, porém, envolve o problema em análise. Não se trata, nesta tese, apenas de uma constatação acerca de como são vistos os adolescentes das classes trabalhadoras, tenham eles cometido ou não algum tipo de delito, tenham eles passagem pelo sistema sócio-educativo ou não. Não se trata de um discurso ou reflexão vitimista. Outros aspectos da (in)visibilidade perversa a que estamos nos referindo gozam ainda mais da nossa preocupação e curiosidade investigativa: - Os adolescentes gostam de ser vistos – numa atitude cultural bastante em sintonia com a geração da indústria cultural, isto é, a geração midiática; - Os adolescentes querem ser vistos associados à beleza, à irreverência e ao reconhecimento e prestígio social que ícones do mundo da cultura (música, teatro, cinema, etc.) e do esporte desfrutam; - Na impossibilidade de gratificação imediata em termos de consumo, prazer, lazer, reconhecimento social (estimulados pela cultura de massas), devido às dificuldades de acesso a oportunidades sociais (escola, trabalho, remuneração digna, etc.), muitos jovens aderem aos apelos da criminalidade em seus diversos matizes: furtos, assaltos, tráfico, etc.; - Os adolescentes compreendem o poder e a força da imagem que os associa à rebeldia, a comportamentos transgressores e à violência, e tiram partido dela; (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 19 - A sociedade e as agências governamentais muitas vezes só negociam e atendem direitos em situações-limite, sob a pressão de rebeliões, seqüestros, ameaças à vida de terceiros, etc., ou seja, da violência propriamente dita. Tudo isto demonstra o estado de cidadania escassa no Brasil - país em que é baixa a interlocução, a capacidade de negociação e de respeito à organização e à autonomia política das entidades civis e movimentos sociais. A força como medida do poder dos sujeitos envolvidos em disputas e litígios, típica de uma sociedade hierarquizada, centralizada e autoritária, traduz-se em leituras hoje pelos segmentos “subalternizados” urbanos14, em suas estratégias pessoais e coletivas de enfrentamento do status quo. Exemplo disto é o investimento cada vez mais ostensivo em armamentos pesados por parte do narcotráfico, com a demonstração de força e poderio numa guerra civil urbana, sem bandeiras e ideologias. Em tela apenas a resolução de conflitos, as disputas de territórios, a luta pela garantia da comercialização de drogas ilícitas, sob a égide da convicção numa sociedade sem lei e historicamente fomentadora de uma cultura de violência. A problemática da (in)visibilidade perversa e da associação de adolescentes infratores como metáfora da violência pela mídia e pelo senso comum torna-se complexa, à medida que se metamorfoseia em questões de natureza cultural e afetas à sociabilidade contemporânea, inclusive em escala mundial. É mister registrar que esse medo da juventude – real ou imaginário – tem par na Europa e também nos Estados Unidos. Num certo sentido, a crise do Estado de Bem-Estar Social em países como a França, somada às tensões da imigração (africana e árabe, em particular) e do processo de integração cultural daí decorrente, vem aguçar a discussão de temas tratados nos anos 50 e 60 pela sociologia da juventude norte-americana, o que significa, ao nosso ver, a retomada de uma onda intelectual, política e filosófica, em certa medida conservadora. Resguardada a especificidade da expressão contemporânea dos problemas juvenis europeus, vê-se que tanto lá como aqui eles podem ser relacionados às modificações no mundo do trabalho, à falta de 14 Já dista muito no tempo a idéia de que a violência armada era algo típico das relações sociais e culturais sertanejas no Nordeste (Zaluar, 1994), onde os conflitos interpessoais eram resolvidos ou provocados com armas brancas e de fogo: por cangaceiros, no passado, e mais tarde por jagunços, sempre a mando dos senhores proprietários de terras; ou algo imbuído de ideais políticos revolucionários, como as guerrilhas urbanas e rurais nas décadas de 60 e 70. (In)visibilidadePerversa Mione Apolinario Sales 20 perspectivas para as novas gerações, a padrões culturais, etc. Portanto, há que se ter cuidado com a tentação de dar respostas conservadoras para problemas novos. Tem-se lá uma era de incertezas diante do desmoronamento da seguridade social e do fim da era do “pleno emprego” keynesiano. Incertezas que pouco a pouco deixam de dizer respeito apenas às galeras das banlieues e se estendem como possibilidade concreta à juventude de modo geral. Do ponto de vista cultural e da subjetividade transgressora, alguns analistas vêm estudando o significado da ascensão de valores individualistas e narcisistas, nos moldes de um individualismo negativo (Fitoussi e Rosanvallon, 1996), ao lado da desconstrução de laços sociais e de referências hierarquizantes, representados por grupos como a família e a escola, dentre outros. Um olhar mais acurado para a performance violenta de alguns setores da juventude em seus vínculos e raízes societárias permite descobrir responsabilidades públicas e coletivas a médio e longo prazo. Não se trata apenas de uma psiqué rebelde, como já denunciava Lapassade (1968), mas de um conjunto sincronizado de fenômenos sociais, econômicos, culturais e políticos no âmbito do capitalismo. Em função destes e de outros elementos, vê-se que os adolescentes pobres e/ou autores de ato infracional estão no cerne do debate atual sobre a questão social, violência, sociabilidade, cultura, justiça e direitos humanos. Sua performance transgressora isolada ou coletiva é quase sempre geradora de reações, ações sociais, políticas, e há muito no Brasil vem sendo também incensada em termos de visibilidade e medo pela mídia. A centralidade e importância da problemática que hoje afeta sobretudo os adolescentes pobres, cooptados pelo narcotráfico em expansão na sociedade brasileira, têm contribuído para romper a falsa concepção dessa área temática como algo bastante específico e frágil do ponto de vista intelectual. Foi intenção deste estudo, portanto, contribuir para superar a cultura de “subtema” da política social e dos direitos de crianças e adolescentes, explicitando os vínculos dessa área com os desafios à consolidação da cidadania e de uma cultura pública e democrática no Brasil - país em que é patente a falta de tradição e de convicção nos direitos humanos. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 21 Tivemos a ousadia, portanto, de querer aprofundar: o Os paradoxos da violência ou a (in)visibilidade perversa dos adolescentes infratores no Brasil dos anos 90, em que aquela ora os estigmatiza, ora é um dos poucos recursos capazes de mobilizar a atenção da mídia, da sociedade política e da sociedade civil e, porquanto, de acionar orçamentos e políticas públicas; o O conhecimento teórico sobre os adolescentes autores de ato infracional e o papel regulador que sua imagem, atos e delitos desencadeiam junto à população (problemática hoje com variantes internacionais); o A relação entre o ser e o aparecer para os adolescentes (Novaes, 1992), isto é, quais são os esforços e custos para eles da ruptura com a (in)visibilidade perversa: significado pessoal e coletivo; o A responsabilidade da mídia em sua dimensão de esfera pública: entre o reforço da associação dos adolescentes autores de ato infracional como metáfora da violência, e o apoio à implementação do ECA, à construção do sistema de garantia de direitos e à interlocução com os agentes governamentais e não-governamentais afins (Ferreira, 2000; Hamburguer, 1998; ANDI, DCA/MJ e AMENCAR, 2001; e ANDI/IAS, 2001); o O polêmico debate sobre a violência como valor na contemporaneidade (Herschmann, 2000) e como condição de aparecimento para muitos jovens; o A correlação entre a “cidadania escassa”, a cultura de violência existente no Brasil e a política de atendimento a eles destinada; o Em suma, quis-se dar a conhecer as conseqüências para os adolescentes e para a sociedade da desigual equação entre direitos e violência, ainda em voga. Elegemos, portanto, dois episódios de larga divulgação na mídia para tratar empiricamente do tema acima. O primeiro - as rebeliões da FEBEM/SP, em1999 – possui uma expressão coletiva e toca no cerne das contradições da política social e respectivo aparato sócio-educativo oferecido aos adolescentes autores de ato infracional. Não obstante a existência do ECA há 14 anos, uma situação de precariedade e falta de qualidade nas instituições responsáveis pela medida de internação ainda se arrasta e reproduz Brasil afora. Logo, têm-se na FEBEM paulista e nos eventos das rebeliões, do lado da esfera governamental, a demonstração da cristalização de uma lógica conservadora, no limite meramente reformista de regulação dessa expressão da questão social; do outro lado, a catarse coletiva dos adolescentes, a exibir o esgotamento de uma forma superada de reeducação dos que cumprem medida de internação. A performance desses jovens em rebeliões sucessivas ao longo de 1999 teve uma importante repercussão política, demarcando um novo estágio do debate e da luta em torno das condições de atendimento ao adolescente autor de ato infracional no Brasil. Não importa as que vieram antes, nem as que virão depois, as rebeliões de 1999 fizeram história. Exigem, assim, uma (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 22 análise atenta do significado do recurso à violência como estratégia de denúncia- movimento por parte dos adolescentes, incluída aí a gratificação individual e coletiva momentânea do aparecimento como sujeito na cena pública e na mídia; e da capacidade de esse recurso extremo – sob a forma do litígio (Rancière, 1996a ) - fazer as coisas se moverem em termos de compromissos assumidos pelos gestores, com o subseqüente acionamento de recursos públicos e políticas sociais afins. O segundo – o seqüestro do ônibus 174 – plenamente inserido na ordem de um acontecimento , destituído de previsibilidade, tornou-se um exemplo paradigmático do percurso de um adolescente pobre que vai para as ruas, torna-se autor de ato infracional, tem passagem pelo sistema sócio-educativo e, na condição de reincidente, ingressa e foge diversas vezes do sistema penal. Mas a história de vida de Sandro do Nascimento ajuda a contar outras histórias, como a da Chacina da Candelária e respectivo destino dos seus sobreviventes. O episódio do seqüestro, fruto do acaso e, ao mesmo tempo, de um misto de coincidências históricas e de desresponsabilização social, é justamente o momento em que ele rompe com a invisibilidade a que sempre esteve subjugado e, diante das câmeras de TV, exercita toda a sua capacidade de aparecimento e visibilidade, consciente do jogo de forças, poderes e discursos envolvidos. Ruptura de um anonimato que teve um custo fatal pessoal já imaginado, e que ofereceu à história do Rio de Janeiro e à do país uma oportunidade de balanços simultâneos acerca do(a): conhecimento da performance de autoridades e instituições de segurança pública em face de um seqüestro de longa duração; ética da mídia no processo de transmissão da notícia ao vivo; relação da população com os direitos humanos em geral, e os direitos de crianças e adolescentes em particular, dentre outros. Embora Sandro já fosse maior de idade, a repercussão que o seqüestro obteve se deve sobretudo à sua figura e percurso individual emblemáticos e ao que ela pôs em evidência, para além da opacidade social, do destino virtual dos adolescentes autores de ato infracional. Adolescentes com passagens em um sistema sócio-educativoem crise, seja pelos desafios da ordem da cidadania e da democracia quanto ao oferecimento de um atendimento e serviços sociais de qualidade, seja pela dificuldade em assistir institucionalmente jovens socializados em meio à violência e profissionalizados pelo narcotráfico. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 23 Enfim, são dois casos que tiveram ampla cobertura da mídia escrita e televisiva15, repercussão nacional e internacional, acontecidos em territórios-chave do país – São Paulo e Rio de Janeiro. Um de natureza coletiva e outro paradigmático do ponto de vista de uma trajetória individual. Ambos revelam também o papel de esfera pública da mídia, na medida em que, não obstante os aspectos polêmicos da cobertura de ambos os eventos, ela contribuiu para gerar respostas, enquanto canal e passaporte da ruptura da (in)visibilidade perversa dos jovens envolvidos. Por tudo isso, entendemos que é desafiante aprofundar o significado e as controvérsias da (in)visibilidade perversa dos adolescentes autores de ato infracional - condição que os insere entre os principais artífices da violência na sociedade brasileira, ou simplesmente como sua metáfora. Como se pode ver, o objeto desta tese está atravessado pelo que Foucault chamava de inquietude da atualidade, frente à necessidade de pensar e se pôr questões sobre o presente. Não obstante, foi preciso fazer, no capítulo 1, um profundo balanço sócio-histórico sobre as raízes da violência na sociedade brasileira, perscrutando as diversas formas com que se teceu a nossa cidadania escassa, a qual encurta a vida e a perspectiva de liberdade de muitos, em particular da juventude das classes trabalhadoras. No capítulo 2, para dar conta do tema da visibilidade humana enquanto aspiração política e cultural legítima dos indivíduos desde a era clássica e mais do que nunca na contemporaneidade, quando se soma às possibilidades da tecnologia, sentamos deuses e diabos na mesma mesa para proceder a diálogos antes considerados blasfemos. Para tanto, recorremos a Hannah Arendt, com sua visão da política e da esfera pública, como lócus da vida ativa e da visibilidade na modernidade. Buscamos também a companhia do herético Gilles Lipovetsky, com sua defesa do mundo das aparências, da frivolidade do reino da moda e da apoteose individualista – valores mundanos indispensáveis para se conhecer por que um adolescente se arrisca e perde a vida nos tempos atuais, para poder exibir um tênis Mizuno16. Foucault aprofunda o caráter profano desse encontro, porque vem não coroar, mas justamente desconstruir o feixe de relações e de poderes que se ocultam 15 Privilegiamos a consulta a fontes secundárias , como jornais, revistas e Internet. Para tanto, reunimos vasto material empírico sobre os dois casos sugeridos para análise. Tivemos a sorte de contar, ainda, com o recurso do filme-documentário “Ônibus 174” (direção José Padilha, 2002), o qual possibilitou valiosas informações posteriores ao fato, e cuja linha de análise do evento do seqüestro, mais o destaque dado à história de vida de Sandro e aos seus vínculos institucionais, acha-se em estreita sintonia com a nossa pesquisa. (In)visibilidade Perversa Mione Apolinario Sales 24 por detrás do olhar, enquanto sentido soberano do conhecimento, da punição e disciplina modernas. No fundo do olho: o poder. Como o Brasil é mesmo o país da contradição, ele tem os pés fincados numa realidade de cidadania escassa, mas a cabeça a navegar pelas ondas magnéticas da cidadania virtual. Com uma modernidade pujante de um lado e uma miséria aviltante do outro, não é difícil que os dramas de muitos adolescentes das classes trabalhadoras transitem hoje entre o desejo de ser – visível – e o sofrimento de ser visto demais ou mal visto, ou seja, de gozar, enfim, de uma indesejada visibilidade perversa. Benjamin, Adorno e Horkheimer são companhias mais afinadas, que no capítulo 3 nos ajudam a enxergar criticamente em meio às luzes de um mundo próximo demais. Compelidos ao delito pelo afã fetichista do consumo, resta a muitos dos adolescentes autores de ato infracional, portanto, livrarem-se dos mitos e dos medos dos Outros, ou seja, do imaginário social da violência incensado pela mídia escrita e televisiva, que juntos podem condená-los de volta ao nada. Quando somente a revolta pode resgatá-los individual e coletivamente, ou senão, pelo menos ajudá-los a imprimir outros rumos e perspectivas - uma história de direitos para outros adolescentes, que, do contrário, virão e se deslumbrarão com as vitrines, e, não conformados, furtarão e recomeçarão toda uma história de riscos e violências. Foucault nos incita aí a pensar diferentemente, haja vista que conhecer é inserir algo no real e deformá-lo. Sugere ainda sermos, como intelectuais, mais jornalistas que profetas. Jornalistas de nós mesmos. Jornalistas do nosso tempo. Penso que o convite de ir além dos demônios das circunstâncias e da objetividade foi aceito e o estendo a você que vai ler esta tese. 16 Cf. o documentário “Noticias de uma guerra particular” (João Moreira Salles e Katia Lund, 1999). 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