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DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO , .Max , Limonad GILBERTO BERCOVICI é Pro- fessor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo* É Doutor em Direi- to do Estado pela mesma Uni- versidade* Tem diversos arti- gos publicados em perió- dicos especializados e em li- vros sobre federalismo, de- senvolvimento, Teoria da Constituição e Teoria do Esta- do no Brasil e no exterior» Gilberto Bercovici DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO Gilberto Bercovici DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO , . M d X . Limonad Copyright: Gilberto Bercovici Copyright da presente edição: Editora Max Limonad Moisés Limonad Capa: Luiza Macedo Editora Max Limonad São Paulo Fone: (0XX11) 3873-1615 www.maxlimonad.com.br E-mail: maxlimonad@maxlimonad.com.br ISBN: 85-7549-019-2 2003 "A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro..." João Guimarães Rosa Aos meus pais, Solly e Suely. Para Celso Furtado e Paulo Bonavides. SUMÁRIO A ENJEITADA Francisco cie Oliveira 13 PREFÁCIO Paulo Bonavides 17 ABREVIATURAS UTILIZADAS 23 AGRADECIMENTOS 27 INTRODUÇÃO 29 PARTE I PREMISSAS DA QUESTÃO REGIONAL Capítulo 1 - Estado e Desenvolvimento 1 .10 Desafio Furtadiano 35 1.2 Qual Teoria do Estado? 44 1.3 O Estado Social 50 1.4 O Estado Desenvolvimentista 54 1.5 Desenvolvimento, Desigualdades Regionais e a Importância do Estado 62 Capítulo 2 - A Dificuldade na Conceituação de Região 2.1 Jellinek e os "Fragmentos de Estado" 69 2.2 As Definições de Perroux e Boudeville 71 2.3 As Regões na Europa e no Brasil 73 2.4 A Utilidade do Conceito de Região: Regionalismo ou Regionalização? 75 Capítulo 3 - Fundamentos da Política Brasileira de Desenvolvimento Regional: O Relatório do GTDN 3.1 Antecedentes da SUDENE 83 3.1.1 Primeiras Experiências de Planejamento Regional 83 3.1.2 O Nordeste e a Questão Regional 90 3.2 Celso Furtado, a CEP AL e o Relatório do GTDN 95 3.3 O Conselho Deliberativo e a Renovação do Federalismo Brasileiro ... 106 10 GILBERTO BERC0V1CI 3.4 A SUDENE e as Reformas de Base 110 3.5 A Centralização e o Fim do Planejamento Regional 114 3.6 A Impossibilidade Histórica de uma Industrialização Regional Autônoma 124 3.7 Balanço da "Substituição de Importações Regional": Integração Produtiva e Permanência das Mazelas Sociais 130 3.7.1 Características dos Incentivos Fiscais 130 3.7.2 O "Sistema 34/18" e a Expansão dos Incentivos Fiscais 132 3.7.3 A Integração Produtiva 138 3.7.4 Permanência das Desigualdades Sociais e Regionais 140 PARTE II A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A SUPERAÇÃO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS Capítulo 4 - O Federalismo da Constituição de 1988 4.1 "Modelos" Federais 145 4.2 Coordenação, Cooperação e Competências Comuns 149 4.3 Estado Social e Federalismo: A Homogeneização dos Entes Federados 156 4.4 A Repartição de Rendas da Constituição de 1988 160 4.5 Alternativas ao Federalismo Cooperativo: Federalismo Assimétrico e Federalismo Neodualista 168 Capítulo 5 - A Prática do Federalismo no Brasil Pós-1988 5.1 A Nova Centralização Fiscal e a Crise Financeira da Federação 173 5.2 Descentralização de Políticas Sociais 178 5.3 A Guerra Fiscal 183 Capítulo 6 - Planejamento e Desenvolvimento Regional 6.1 A Necessidade do Planejamento para o Desenvolvimento 191 6.2 As Difíceis Relações entre Planejamento e Administração Pública: Tentativas de Planejamento Global no Brasil 194 6.3 Planejamento e Orçamento 205 6.4 Planejamento, Planejamento Regional e Federalismo Cooperativo: A Coordenação e Compatibilização do Desenvolvimento Nacional 209 Capítulo 7 - A Constitucionalização Administrativa das Regiões 7.1 Formas de Descentralização Política 217 7.2 Estado Integral, Estado Regional e Estado Autonômico 219 7.3 O Modelo das Autarquias Federais de Desenvolvimento Regional 225 DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 11 7.4 A Inocuidade das "Agências" de Desenvolvimento Regional 228 7.5 A Região Administrativa na Constituição: Inovação ou Retrocesso? 233 PARTE III DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO Capítulo 8 - Novos Fundamentos para a Política Brasileira de Desenvolvimento Regional 8.1 Federalismo Cooperativo, Princípio da Solidariedade e Igualação das Condições Sociais de Vida 239 8.2 A Região como Ente Federado: Articulação e Cooperação 244 8.3 A Heterogeneidade Intra-Regional: Necessidade de uma Nova Divisão Regional para o Brasil 251 8.4 Por um Fórum Federativo Adequado: o Conselho Nacional de Desenvolvimento Regional 254 8.5 A Questão Regional, a Crise do Estado e a "Fragmentação da Nação" 258 8.6 Política Nacional de Desenvolvimento Regional e Projeto Nacional de Desenvolvimento 267 Capítulo 9 - A Questão Regional e a Teoria da Constituição Constitucionalmente Adequada 9.1 Teoria do Estado, Teoria da Constituição e Teoria da Constituição Constitucionalmente Adequada 271 9.2 Qual Teoria da Constituição? 273 9.2.1 As Teorias Processuais da Constituição e a Legitimação pelo Procedimento 273 9.2.2 O Debate Norte-Americano: Ely e seus Críticos 275 9.2.3 Procedimentalização da Constituição 278 9.2.4 Constituição Material, Forças Reais de Poder e Decisão 281 9.2.5 A Constituição Material para Smend e Heller 284 9.2.6 Teoria Material da Constituição Constitucionalmente Adequada 287 9.3 O Artigo 3o da Constituição de 1988 291 9.3.1 Princípios Constitucionais Fundamentais 291 9.3.2 Fins do Estado 295 9.3.3 Parâmetro para a Interpretação Constitucional 298 9.4 Dilemas do Controle Judicial de Políticas Públicas 302 9.4.1 Instrumentos do Controle Judicial de Políticas Públicas 302 12 GILBERTO BERC0V1CI 9.4.2 Positivismo Jurisprudencial e Concretização Desconstitucionalizante 306 9.5 A Constituição de 1988, a Questão Regional e a Transformação Social 312 BIBLIOGRAFIA 317 A ENJEITADA Francisco de Oliveira As desigualdades regionais no Brasil foram tema muito freqüentado pela economia política do desenvolvimento entre as décadas de quarenta a sessenta do século passado, com uma clara filiação à teoria do subdesenvol- vimento, desenvolvido pela Cepal e, entre nós, sobretudo por Celso Furtado. Mas as ciências sociais não acompanharam a reflexão no mesmo diapasão e profundidade. A chamada "questão" regional ficou circunscrita ao Norte, Nordeste e seus pesquisadores e cientistas sociais. A rigor, era o tema da Federação que não freqüentava as preocupações no pólo dominante, vale dizer no Sudeste e, sobretudo, em São Paulo. Diferentemente dos primeiros quarenta anos do século passado, quando a questão da Federação dominava as proposições dos autoritários clássicos, como Oliveira Vianna, que a viam com desconfiança, apostando tudo em formas fortemente centralizadas, num Estado unitário, para resolver, para anular, as poderosas tendências centrífu- gas "bárbaras" das províncias. A expansão capitalista do ciclo da industrialização da segunda revolução industrial , com epicentro em São Paulo, só fez esgarçar, ainda mais, o já debilitado tecido federativo. Ampliou as desigualdades regionais até o ponto em que a questão do Nordeste explodiu, no período 1950-1960, . na forma da emergência das Ligas Camponesas e no desafio posto ao domí- nio oligárquico por governos de forte apelo e sustentação popular, de que o governo de Miguel Arraes em Pernambuco, entre 1963 e 1964, até o golpe de Estado de 1964, era o mais exemplar. O golpe foi, a seu modo, mais uma vez, a resolução "pelo alto" de uma crise do crescimento capitalista, tendo a questão regional atuado como espoleta dessa detonação. 1. Professor Titular de Sociologia do Departamentode Sociologia da FFLCH-USP. Coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania-CENEDIC, da mesma faculdade e universidade. Aposentado. 14 GILBERTO BERC0V1CI Um tanto paradoxalmente, uma política de desenvolvimento regio- nal, como forma do medo das classes dominantes e correspondendo à homogeneização do espaço do capital, foi implementada ao ponto de expe- rimentar-se, ineditamente, uma atenuação da desigualdade entre o pólo desenvolvido e a região menos desenvolvida, medida pelas taxas de crescimento econômico na década de 1970. Esse movimento foi detido a partir da década de 80, considerada "perdida" pela estagnação da própria economia nacional, e revertido a partir dos anos 90, quando as políticas neoliberais abriram o flanco para o processo da globalização do capital atuar não apenas pela sua própria dinâmica, mas poderosamente ajudados por um conjunto de políticas de desregulamentação. A política regional sofreu pesa- das perdas, que culminaram, já em nossos dias, com a total desativação das agências regionais de desenvolvimento. A globalização, por sua vez, desarticula uma política de expansão que tenha caráter federativo. Entre a desregulamentação globalizante e a nova reivindicação do local, as desigualdades regionais têm tudo para voltar a crescerem. Perde-se até a noção de região, com o que é possível dizer que a noção de Federação vai para o espaço de uma vez. Tudo se passou, no âmbito das ciências sociais e mesmo das do direito, como se a questão da Federação e das desigualdades regionais tivesse sido resolvida, de uma vez para sempre. Era um não-problema. A desarticulação globalizante pode ter o condão de fazer renascer preocupa- ções teóricas que tentem dar conta do que pode vir a ser uma nova Federa- ção. E neste movimento que se insere o trabalho de Gilberto Bercovici, sua tese de doutorado, de cuja banca tive a honra de fazer parte, em boa hora publicada agora em livro. Revendo a teoria da Federação, em âmbito inter- nacional, convocando as várias disciplinas das sociais e do direito para esse esforço, ele relança, com o auxílio da melhor bibliografia sobre um tema vasto e multifacetado, uma perspectiva crítica sobre a questão regional, Federação, Estado, planejamento econômico, que o predomínio do "pensa- mento único" havia enxotado para os desvãos de uma ciência menor. A dramaticidade da globalização é esta: fica-se sem a Federação, com todas as suas imperfeições, que são muitas, e que Gilberto examina detidamente neste belo livro; e não se ganha estatuto de cidadãs e cidadãos internacio- nais, mundiais. Pelo contrário, a perspectiva que se segue à perda da condi- ção de cidadãos nacionais, é menos que a vassalagem: é a de bárbaros aos olhos do novo império. Por isso, a tentativa de reexaminar as novas possibi- lidades e condições de um novo planejamento, democrático, de uma nova relação Estado-sociedade, de uma nova República e uma nova Federação, deve ser louvada e incentivada. Essa tentativa fica melhor ainda por se tratar de esforço que se faz a partir de São Paulo, cuja dívida para com a Federa- ção é imensa. Fica melhor ainda por surgir da Faculdade de Direito de São 14 GILBERTO BERC0V1CI Um tanto paradoxalmente, uma política de desenvolvimento regio- nal, como forma do medo das classes dominantes e correspondendo à homogeneização do espaço do capital, foi implementada ao ponto de expe- rimentar-se, ineditamente, uma atenuação da desigualdade entre o pólo desenvolvido e a região menos desenvolvida, medida pelas taxas de crescimento econômico na década de 1970. Esse movimento foi detido a partir da década de 80, considerada "perdida" pela estagnação da própria economia nacional, e revertido a partir dos anos 90, quando as políticas neoliberais abriram o flanco para o processo da globalização do capital atuar não apenas pela sua própria dinâmica, mas poderosamente ajudados por um conjunto de políticas de desregulamentação. A política regional sofreu pesa- das perdas, que culminaram, já em nossos dias, com a total desativação das agências regionais de desenvolvimento. A globalização, por sua vez, desarticula uma política de expansão que tenha caráter federativo. Entre a desregulamentação globalizante e a nova reivindicação do local, as desigualdades regionais têm tudo para voltar a crescerem. Perde-se até a noção de região, com o que é possível dizer que a noção de Federação vai para o espaço de uma vez. Tudo se passou, no âmbito das ciências sociais e mesmo das do direito, como se a questão da Federação e das desigualdades regionais tivesse sido resolvida, de uma vez para sempre. Era um não-problema. A desarticulação globalizante pode ter o condão de fazer renascer preocupa- ções teóricas que tentem dar conta do que pode vir a ser uma nova Federa- ção. E neste movimento que se insere o trabalho de Gilberto Bercovici, sua tese de doutorado, de cuja banca tive a honra de fazer parte, em boa hora publicada agora em livro. Revendo a teoria da Federação, em âmbito inter- nacional, convocando as várias disciplinas das sociais e do direito para esse esforço, ele relança, com o auxílio da melhor bibliografia sobre um tema vasto e multifacetado, uma perspectiva crítica sobre a questão regional, Federação, Estado, planejamento econômico, que o predomínio do "pensa- mento único" havia enxotado para os desvãos de uma ciência menor. A dramaticidade da globalização é esta: fica-se sem a Federação, com todas as suas imperfeições, que são muitas, e que Gilberto examina detidamente neste belo livro; e não se ganha estatuto de cidadãs e cidadãos internacio- nais, mundiais. Pelo contrário, a perspectiva que se segue à perda da condi- ção de cidadãos nacionais, é menos que a vassalagem: é a de bárbaros aos olhos do novo império. Por isso, a tentativa de reexaminar as novas possibi- lidades e condições de um novo planejamento, democrático, de uma nova relação Estado-sociedade, de uma nova República e uma nova Federação, deve ser louvada e incentivada. Essa tentativa fica melhor ainda por se tratar de esforço que se faz a partir de São Paulo, cuja dívida para com a Federa- ção é imensa. Fica melhor ainda por surgir da Faculdade de Direito de São DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 15 Paulo, lendárias arcadas do Largo de São Francisco, sem dúvida um lugar de produção da hegemonia; se a indiferença do Largo de São Francisco para com as desigualdades regionais e para com o destino da enjeitada, da Fede- ração, ceder lugar a um novo interesse, fica melhor para São Paulo, para os outros Estados e para o Brasil. Rima pobre: de enjeitada, quem sabe para amada. PREFÁCIO Paulo Bonavides A recente extinção da Sudene e da Sudam, por obra da corrupção que grassa nas mais altas esferas do Governo, representou um golpe mortal nos organismos regionais de desenvolvimento, criados há cerca de cinco décadas por uma malograda política do Governo Federal, volvida para a extinção dos desequilíbrios e disparidades que têm perpetuado o atraso, o subdesenvolvimento e a miséria em vastas regiões do País. O livro, objeto deste prefácio, é de autoria de Gilberto Bercovici, professor de Direito em São Paulo, e aparece em ocasião extremamente oportuna quando o debate acerca daqueles entes desperta o interesse da nação e mostra em cores sombrias a tragédia institucional da república federativa e presidencialista do Brasil encarada na sua dimensão regional. Com efeito, este ensaio sobre os desequilíbrios regionais que minam a estabilidade do sistema foi apresentado e defendido com brilho como tese de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Gilberto Bercovici faz nele profunda análise jurídico-institucional aos pro- blemas que afligem a comunhão federativa e para os quais o Estado brasi- leiro ainda não encontrou solução. E isto tem acontecido em virtude de erros, omissões, incúria, despreparo, descontinuidade das medidas aplicadas, incertezas na execução dos programas propostos, falta de firmeza e fragili- dade da política traçada; enfim, desorientação do Poder Central, que sempre se houve com uma visão estreita, ambígua e tecnocrática, jamais se capaci- tando nem se conscientizando da profundeza, do alcance, da extensão e da gravidade das desigualdades regionais e sociais do País. Se não as corrigir- mos, esta Nação não terá futuro, esta sociedade não se emancipará, este povo não fará valer o seu direito ao desenvolvimento. Ao redor de tão complicado nó problemático, revoluteiam pois as reflexões do autor da presente monografia, que ministra uma lição de per- cuciência, saber, crítica construtiva, e levantamento dos aspectos mais destacados e relevantes da questão regional, indubitavelmente aquela que decidirá, em sede política e econômica, o destino da associação de entes autônomos corporificados na República Federativa do Brasil. 18 GILBERTO BERC0V1CI Parte o Autor do trabalho em tela das premissas da questão regional numa investigação teórica e objetiva que põe em discussão os conceitos de Estado, desenvolvimento e região, até externar sua clara opção por um tra- tamento político e institucional da matéria. E o faz depois de assinalar a importância do contributo científico de Celso Furtado, inexcedível na esfera econômica ao mensurar, compreender, interpretar e elucidar, com sua pro- posta desenvolvimentista, radicada em organismos regionais, os problemas do País desigual, injusto e socialmente retardado que é o Brasil. O centro de gravidade do estudo de Bercovici passa em seguida para o exame da Constituição e para a face jurídica do problema da Federação na sua dimensão cooperativa e fiscal, cotejando, pelo aspecto cooperativo, os federalismos brasileiro e americano, e fazendo do mesmo passo um estudo que considera também as alternativas do federalismo assimétrico e do fede- ralismo neodualista, bem como a exegese da relação do Estado social com a natureza federativa do sistema. Tocante ao federalismo fiscal, os temas versados abrangem a repar- tição de rendas na Constituição de 1988, os fundos de participação, os incentivos fiscais, a crise financeira da Federação, as tendências neocentrali- zadoras do fisco, e, finalmente, assuntos como a guerra fiscal entre os Esta- dos, de máxima atualidade e que refletem a crise que percorre a presente época federativa. Na seqüência dessa excelente visão panorâmica dos problemas re- gionais, Gilberto Bercovici entra a ocupar-se também de assuntos de plane- jamento, desenvolvimento regional e constitucionalização administrativa das Regiões. Neste ponto o jovem publicista questiona se essa constitucionaliza- ção significou inovação ou retrocesso. A nosso ver, inovou, porque trouxe as Regiões para uma esfera superior no quadro do ordenamento jurídico, ou seja, lhes deu dimensão constitucional. O recuo unitarista havido e anotado por Bercovici e que prima facie reforça o aparelho administrativo da União, é bastantemente compensado pela inserção mesma, cuja importância se infere quando se formula com base na Constituição o juízo interpretativo de que doravante nenhum obstá- culo de ordem jurídica sobrerresta com que embargar amanhã o passo polí- tico-legislativo fundamental de criação de nova instância federativa - a das autonomias regionais. A via constitucional de sua instauração não padece objeção idônea nem tropeça em obstáculos sérios nem tampouco ocasiona lesão aos conteú- dos normativos do art. 60, que disciplinam o processo de Emenda e traçam limites materiais de alcance ao poder constituinte de segundo grau, designa- damente em seu parágrafo 4o. A seguir, na parte terceira e derradeira de seu trabalho, Gilberto Bercovici analisa com acuidade os desequilíbrios regionais em face do Estado e da Constituição. Disserta sobre o tema em dois capítulos bastante DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 19 significativos: o primeiro, pertinente a novos fundamentos de uma política nacional de desenvolvimento das regiões, e o segundo, volvido para um extenso exame dos laços que prendem a solução da questão regional à teoria da Constituição. Há, sem dúvida, clara unidade de posições do Autor desta admirável e erudita dissertação. Quem a lê com olhos de ver logo percebe, ao cabo da leitura, que no pensamento do professor paulista se acha implícito um elo lógico de íntima conexidade dos conceitos de Constituição dirigente, Cons- tituição aberta, teoria material da Constituição e Estado social; materiais de construção teórica que ele emprega com o intuito de firmar sobre sólidos alicerces o federalismo regional, fecho de suas reflexões críticas sobre o art. 3o da Constituição onde ficou insculpida a suma dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. São aqueles do inciso III, dos quais um é a alma da Federação: o que se cifra em reduzir as desigualdades sociais e regionais, e erradicar a pobreza e a marginalização. A concretização desse objetivo fundamental nos conduz, de necessi- dade, à Constituição dirigente de 1988, que unicamente fará vingar sua fórmula federativa se houver sacrifício, cooperação, solidariedade e frater- nidade de cidadania, de uma parte, e doutra, adoção de um projeto reformu- lador, o qual aliás já transparece nas locuções conclusivas do Autor desta monografia. Contempla esse projeto designadamente uma forma eventual de regeneração federativa pelos caminhos regionais. Ao tema da Constituição dirigente, que é a nossa, se prende outro, afim e complementar, a saber, o da Constituição aberta, que Bercovici adverte, com muita propriedade, não comportar abertura absoluta ou ilimi- tada, "pois a Constituição, especialmente por meio dos seus princípios fun- damentais, estabelece, de modo vinculante, o que não deve ficar aberto." Com efeito, Constituição aberta é Constituição confinada por prin- cípios; estes servem de delimitar a esfera do procedimento normativo a jui- zes e legisladores, quando, respectivamente , aplicam ou legislam a norma flexibilizada no interior do ordenamento regido pela Lei Fundamental. Nesta acepção de Constituição aberta não se corre o risco de dissol- ver valores substanciais e superiores que compõem a essência axiológica e normativa da Constituição, visto que tais valores, invioláveis, determinam a normatividade mesma do sistema em termos principiológicos. Traçam pre- cipuamente a fronteira e a base a toda uma criação positiva, até certo ponto independente e autônoma, porquanto, atada à materialidade, perdeu já gran- demente, sem sacrifício da natureza hierárquica das Cartas Magnas, o seu teor obstaculizante de rigidez e formalismo excessivos. Cultivados pelas escolas do normativismo puro, a rigidez e o forma- lismo desproporcionados são forçosamente incompatíveis em matéria cons- titucional com o emprego da Nova Hermenêutica e a sua metodologia de 20 GILBERTO BERC0V1CI princípio e ponderação de valores - indispensáveis ao estabelecimento, ob- servância e conservação de uma ordem constitucional aberta. O degrau seguinte dessa caminhada expositiva dos problemas regio- nais feita pelo publicista de São Paulo nos faz subir ao patamar das teorias materiais da Constituição, antecedidas de um breve estudo das doutrinas processuais da Lei Fundamental que, em rigor, são aliás a quinta essência da despolitização da legitimidade, alcançada pelas vias procedimentais. As teorias materiais vêm a significar, na substância, aquelas que efetivamente levantam com mais profundeza o problema, ainda por solver, da relação entre a Constituição e a realidade. Fora de uma teoria material, é de todo ininteligível, estéril e inapli- cável o modelo da chamada Constituição dirigente, contido, entre outras cláusulas, naquelas que em nossa Constituição dispõem sobre as desigual- dades regionais, tema central deste ensaio. Resta porém saber que teoria da Constituição, pelo prisma da mate- rialidade, dever-se-á sufragar. Gilberto Bercovici enfrenta esse problema teórico já posto por Lassalle na segunda metade do século XIX, mediante observações agudas, vazadas em linguagem cáustica e panfletária, tendo por continuador juristas do tomo de Carl Schmitt, Costantino Mortati, Rudolf Smend, de quem Konrad Hesse foi eminente discípulo e seguidor e Hermann Hei ler, este derradeiro, um dos melhores constitucionalistas da era de Weimar. Todos eles desfilam com suas idéias de Constituição material nos densos resumos e nítidos perfis do constitucionalista. Este se inclina, com toda razão, congruência e fidelidade, depois de fazer o balanço das concep- ções antecedentes, por uma teoria material de Constituição que seja também, desde as raizes, teoria democrática do poder e teoria da legitimidade, politi- zada sempre no interesse da Nação, do povo, da sociedade. E o que me foi dado inferir da leitura de páginas tão fluentes que educam para a liberdade, a cidadania e o Estado social; texto portanto que, sem perder seriedade, arrojo de pensamento e densidade científica, inculca valores de emancipação e justiça, fora dos quais jamais se resolverá a maté- ria do art. 3o da Constituição. As cláusulas estatuídas nesse artigo atamos o futuro da nossa República Federativa, porquanto esta passa, de necessidade, e necessidade desesperadora, pela solução do problema do desenvolvimento regional, que é, do mesmo passo, político, institucional e econômico. Pro- blema de teleologia de Governo e de Estado, de instituição, de reforma pro- funda de hábitos políticos e sociais e que, se nesta República se cumprisse a Constituição, já estaria resolvido. Enfim, o livro de Gilberto Bercovici opulenta a bibliografia de investigação do fenômeno federativo. Tal fenômeno, ele o investiga pelo prisma das bases regionais. E o prisma que ocupa cada vez mais a atenção DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 21 do meio científico das Universidades brasileiras, onde o caminho foi des- bravado nessa direção por Paulo Lopo Saraiva, em 1982, com o seu Federa- lismo Regional, tese defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bercovici e Lopo Saraiva são também arautos desse novo federa- lismo. ABREVIATURAS UTILIZADAS ADA - Agência de Desenvolvimento da Amazônia ADENE - Agência de Desenvolvimento do Nordeste ANPOCS - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais ANPUR - Associação Nacional de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional BASA - Banco da Amazônia SA BCA - Banco de Crédito da Amazônia BCB - Banco de Crédito da Borracha BNB - Banco do Nordeste do Brasil BNDE - Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico BNDES - Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social CEBRAP - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento CEDAM - Casa Editrice Dott. Amtonio Milani CDE - Conselho dc Desenvolvimento Econômico CEPAL - Comisión Econômica para América Latina Cf. - conforme CFCE - Conselho Federal de Comércio Exterior CHESF - Companhia Hidrelétrica do São Francisco Cia. Ed. Nacional - Companhia Editora Nacional CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CODECO - Comissão de Desenvolvimento do Centro-Oeste CODENO - Conselho de Desenvolvimento do Nordeste CODEVASF - Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (desde janeiro de 2000: Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) CONDEL/FCO - Conselho Deliberativo do Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste CONFAZ - Conselho Nacional de Política Fazendária coord. - coordenador C P M F - Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira CVSF - Comissão do Vale do São Francisco DASP - Departamento Administrativo do Serviço Público DNC - Departamento Nacional do Café DNOCS - Departamento Nacional de Obras Contra as Secas DRU - Desvinculação das Receitas da União ed. - edição Ed. FGV - Editora da Fundação Getúlio Vargas EDUC - Editora da Universidade Católica (São Paulo) EdUERJ - Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro EdUFMG - Editora da Universidade Federal de Minas Gerais EdUFPR - Editora da Universidade Federal do Paraná EdUNESP - Editora da Universidade Estadual Paulista 24 GILBERTO BERC0V1CI EdUNICAMP - Editora da Universidade Estadual de Campinas EDUSC - Editora da Universidade do Sagrado Coração (Bauru) EDUSP - Editora da Universidade de São Paulo ENAP - Fundação Escola Nacional de Administração Pública FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo FCO - Fundo Constitucional de Financiamento do Centro-Oeste FDUSP - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo FEF - Fundo de Estabilização Fiscal FFLCH - USP - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo FIDENE - Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste FINAM - Fundo de Investimentos da Amazônia FINOR - Fundo de Investimentos do Nordeste FNE - Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste FNO - Fundo Constitucional de Financiamento do Norte FPE - Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal FPM - Fundo de Participação dos Municípios FSE - Fundo Social de Emergência FUNDAP - Fundação do Desenvolvimento Administrativo do Estado de São Paulo FUNDEF - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério FUNRES - Fundo de Recuperação Econômica do Estado do Espírito Santo GTDN - Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool I B E S P - Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ICM - Imposto sobre Circulação de Mercadorias ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços IE - Imposto sobre Exportação IFOCS - Inspetoria Federal de Obras contra as Secas ILDIS - Instituto Latinoamericano de Investigaciones Sociales IMESP - Imprensa Oficial do Estado de São Paulo INPES - Instituto de Pesquisas IOCS - Inspetoria de Obras Contra as Secas IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados IPMF - Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira IPSA - International Political Science Association IPVA - Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores IR - Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros ITR - Imposto sobre Propriedade Territorial Rural IUPERJ - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IVAP - Instituto Vasco de Administración Pública L.G.D.J - Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence Mass. - Massachusetts (Estados Unidos) MEC - Ministério da Educação e Cultura MIT - Massachusetts Institute of Technology ONU - Organização das Nações Unidas Org. - organizador PIB - Produto Interno Bruto PIN - Programa de Integração Nacional PND - Plano Nacional de Desenvolvimento DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 25 POLAMAZÔNIA - Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia POLOCENTRO - Programa de Desenvolvimento dos Cerrados POLONORDESTE - Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas no Nordeste PRM - Partido Republicano Mineiro PROTERRA - Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste PROVALE - Programa Especial para o Vale do São Francisco PRP - Partido Republicano Paulista PRR - Partido Republicano Riograndense PSD - Partido Social Democrático PSP - Partido Social Progressista PTB - Partido Trabalhista Brasileiro PUC/SP - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUF - Presses Universitaires de France RBEP - Revista Brasileira de Estudos Políticos (Belo Horizonte) RDA - Revista de Direito Administrativo (Rio de Janeiro) RDCCP - Revista de Direito Constitucional e Ciência Política (Rio de Janeiro) RDP - Revista de Direito Público (São Paulo) reimpr. - reimpressão RIL - Revista de Informação Legislativa (Brasília) RPGE - Revista da Procuradoria-Geral do Estado (São Paulo) RT - Revista dos Tribunais (São Paulo) RT - CDCCP - Revista dos Tribunais - Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política (São Paulo) RTDP - Revista Trimestral de Direito Público (São Paulo) SEADE - Sistema Estadual de Análise de Dados SPVEA - Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia SUDAM - Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia SUDECO - Superintendência do Desenvolvimento da Região Centro-Oeste SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste SUDESUL - Superintendência do Desenvolvimento da Região Sul (até dezembro de 1967: Superintendência do Desenvolvimento da Fronteira Sudoeste) SUFRAM A - Superintendência da Zona Franca de Manaus SUPRA - Superintendência de Política Agrária SUS - Sistema Único de Saúde SUVALE - Superintendência do Vale do São Francisco TCU - Tribunal de Contas da União TVA - Tennessee Valley Authority UDN - União Democrática Nacional UNICAMP - IE - Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais USP - Universidade de São Paulo Vol. - volume ZFM - Zona Franca de Manaus AGRADECIMENTOS A primeira versão do presente trabalho foi apresentada como tese de doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Na sua elaboração, o apoio fundamental que recebi foi de meus pais, Solly e Suely Bercovici, e de minha irmã, Débora. Além de minha família, o meu orientador, Enrique Ricardo Lewan- dowski, exerceu papel crucial para o andamento desta pesquisa, e aproveito para agradecê-lo pela confiança. Sou grato também ao Professor Antonio Junqueira de Azevedo, cuja lealdade permitiu que a tese que originou este livro fosse elaborada. Tenho o privilégio de poder contar com a amizade de Eros Roberto Grau. Sua influência neste trabalho, e em minhas reflexões, é muito maior do que ele mesmo imagina. Outro "co-responsável" é o Professor Dalmo de Abreu Dallari, em cujas aulas, no primeiro ano de Faculdade, comecei a me interessar pelo Estado como objeto de estudo. Também foram de grande importância o estímulo e as indicações bibliográficas do Professor Fábio Konder Comparato, sem me esquecer da confiança e da amizade de João Manuel Cardoso de Mello. Agradeço, ainda, aos amigos Marcelo Neves e Martonio Mont'Alverne Barreto Lima, que, em nossas conversas, ao vivo ou por e- mail, contribuíram muito para este trabalho. Fundamentais, ainda, foram o entusiasmo e as sugestões de Paulo Lopo Saraiva e de Willis Santiago Guerra Filho, assim como o constante apoio da Professora Anna Maria Martins. José Reinaldo de Lima Lopes e Aírton Cerqueira Leite Seelaender, com quem tive a grata oportunidade de lecionar História do Direito, reitera- ram a minha já arraigada convicção de privilegiar o enfoque histórico no desenvolvimento desta pesquisa. Quero mencionar também a contribuição de Plínio de Arruda Sampaio Jr, cujas críticas foram incorporadas parcial- mente, e na medida do possível, a este livro, embora nossas discordâncias sobre inúmeros aspectos (como o conceito de região), continuem abertas, servindo de pretexto para novas discussões. Sou grato também à amiga Maria Paula Dallari Bucci, pelas críticas e sugestões (inclusive as divergências), bem como a André Ramos Tavares, 28 GILBERTO BERC0V1CI Cláudio Pereira de Souza Neto, Renan Aguiar, Márcio Augusto Vasconcelos Diniz, Fábio Ricardo Kalvan, Mário Aquino Alves e José Maurício Conti. Aos amigos José Maria Arruda de Andrade, Samuel Rodrigues Bar- bosa, Otávio Yazbek, Eduardo Modena Lacerda, Enéas de Oliveira Matos, Clarice Seixas Duarte, Mareio Soares Grandchamp, Mariana Mota Prado, Jean Paul Veiga Cabral da Rocha, José Paulo Marzagão, Nelcina Conceição de Oliveira Tropardi, Antonio Carlos Guidoni Filho, Beyla Esther Fellous, Candy Florencio Thome, Carlos Eduardo Batalha da Silva e Costa, Vera Lúcia Viegas, Yara Chaves Galdino Ramos, Carlos Abner de Oliveira Ro- drigues Filho, Marcelo Duarte Iezzi, José Rodrigo Rodriguez, Marcos Roberto Shiratori, Renato Pereira Brandão, Vinícius Marques de Carvalho e Carolina Gabas Stuchi, sou grato pelas nossas intermináveis conversas, quando falamos sobre tudo, até desta tese. A Francisco de Oliveira, devo um agradecimento especial pela gene- rosidade e disposição em discutir o tema das desigualdades regionais, bem como pela leitura e críticas a este trabalho. Finalmente, quero agradecer a Paulo Bonavides e a Celso Furtado, não apenas pela amizade e cordialidade com que me privilegiaram, mas, principalmente, pelo estímulo e exemplo na luta em favor do Brasil e dos brasileiros. A eles, e ao que representam, este livro também é dedicado. INTRODUÇÃO O objetivo deste trabalho é a análise da questão brasileira das desi- gualdades regionais pelo enfoque da Teoria do Estado, como parte da refle- xão sobre o Estado brasileiro, em busca da abertura do diálogo com outras ""A disciplinas. Desta forma, esperamos nos distanciar de boa parte da doutrina juspublicística e constitucional, hoje dominante, que se limita a analisar as polêmicas e complexas questões do Estado e da Constituição através da mera exegese da legislação positiva ou de decisões jurisprudenciais. O desenvolvimento é entendido aqui como uma questão também pertinente à Teoria do Estado, tendo em vista ser, histórica e institucional- mente, o Estado o principal promotor do desenvolvimento no Brasil. E, no entanto, apesar da sua importância, não existe uma análise sistemática sobre a questão institucional do Estado por parte dos estudiosos do desenvolvi- mentismo nacional, conforme veremos no capítulo 1 deste livro. Após algumas considerações sobre o conceito de região (capítulo 2), passamos à análise dos fundamentos da política brasileira de desenvolvi- mento regional (capítulo 3). No Brasil, questão regional tradicionalmente refere-se ao Nordeste. Após meio século de políticas fracassadas voltadas exclusivamente ao problema das secas, o economista Celso Furtado elabo- rou, em 1959, um novo diagnóstico e uma nova política para a região, no documento conhecido como Relatório do GTDN (Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste). Neste relatório, Furtado transferiu a teoria do desenvolvimento elaborada pela CEPAL (Comisión Econômica para América Latina), baseada nos conceitos de centro e periferia, vinculados à análise do comércio internacional, e na proposta de desenvolvimento através da industrialização substitutiva de importações, para a problemática nordes- tina, com acentuado enfoque para as reformas sociais, consubstanciado na criação do organismo de desenvolvimento regional SUDENE (Superinten- dência do Desenvolvimento do Nordeste). O Relatório do GTDN tornou-se o fundamento de praticamente todas as políticas de desenvolvimento regio- nal levadas a cabo no Brasil desde então. Com o golpe militar de 1964, o planejamento regional foi, aos poucos, sendo abandonado e o enfoque reformista das políticas de desenvol- vimento regional foi substituído pela ênfase exclusiva na industrialização 30 GILBERTO BERC0V1CI das regiões periféricas através de incentivos fiscais. As regiões menos desenvolvidas efetivamente sofreram um processo de industrialização, acentuado na década de 1970. No entanto, apesar da industrialização, as mazelas sociais persistem e as desigualdades regionais se perpetuam. Este foi o quadro encontrado pela Constituição de 1988. A nova Constituição teve uma preocupação efetiva com a questão regional. Dentre seus pontos positivos podemos destacar a restauração do federalismo, nos moldes do federalismo cooperativo, a repartição de rendas e a inclusão da superação das desigualdades sociais e regionais entre os objetivos da República, positivados no seu artigo 3o. Em relação ao federa- lismo cooperativo proposto no texto constitucional de 1988, inclusive, devemos ressaltar a possibilidade que foi aberta para a completa transforma- ção das estruturas do federalismo brasileiro, originariamente um pacto de oligarquias, no sentido da cooperação e coordenação das várias esferas governamentais para a homogeneização social da população, com a iguala- ção das condições sociais de vida e a igualdade perante os serviços públicos em todo o território nacional (capítulo 4). No entanto, podemos fazer também inúmeras críticas: o planeja- mento continuou centralizado na esfera federal (capítulo 6) e criou-se a Região administrativa (artigo 43), que não inova a estrutura federativa bra- sileira (capítulo 7). Isto, aliado à prática do federalismo no período posterior à promulgação da Constituição, com a tendência de centralização de receitas tributárias pela União e a guerra fiscal entre os Estados (capítulo 5), à falta de uma política de desenvolvimento regional e à falta de concretização de inúmeros dispositivos constitucionais, faz com que consideremos necessária a elaboração de novos fundamentos para a política brasileira de desenvolvi- mento regional. Neste trabalho, propomos a superação do diagnóstico exposto pelo Relatório do GTDN (capítulo 8). Defendemos que a fundamentação da polí- tica brasileira de desenvolvimento regional deve se dar através dos princí- pios do federalismo cooperativo e da solidariedade, visando a homogeneiza- ção das condições sociais de vida e a igualdade perante os serviços e políti- cas públicas em todo o país. Mas, o fundamental desta revisão da política brasileira de desenvolvimento regional é a constatação da falência do modelo de autarquias federais criadas nos moldes da SUDENE. Este modelo deve ser substituído pelo federalismo regional. A Região seria um ente fede- rado intermediário, entendida como um ente de articulação e cooperação entre União, Estados e Municípios. Além da adoção do federalismo regio- nal, o Brasil, diante dos desafios e ameaças à própria integridade nacional trazidos pela globalização, tem que elaborar uma efetiva política nacional de desenvolvimento regional, inserida dentro de um projeto nacional de desen- volvimento. DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 31 Concluímos este livro (capítulo 9), ao entender que as bases deste necessário projeto nacional de desenvolvimento já estão configuradas na Constituição de 1988. Para tanto, propomos a elaboração de uma teoria ma- terial da Constituição constitucionalmente adequada à Constituição de 1988, ressaltando o seu papel instrumentalizador da transformação das estruturas sociais brasileiras, inclusive a superação das desigualdades regionais. PARTE I PREMISSAS DA QUESTÃO REGIONAL Capítulo 1 ESTADO E DESENVOLVIMENTO 1.1. O Desafio Furtadiano Em seu livro Brasil: A Construção Interrompida, Celso Furtado trouxe, ao debate público, um importante desafio: "Na lógica da ordem econômica internacional emergente parece ser relativamente modesta a taxa de crescimento que corresponde ao Brasil. Sendo assim, o processo de formação de um sistema econômico já não se inscreve naturalmente em nosso destino nacional. O desafio que se coloca à presente geração é, portanto duplo: o de reformar as estruturas anacrôni- cas que pesam sobre a sociedade e comprometem sua estabilidade, e o de resistir às forças que operam no sentido de desarticulação do nosso sistema econômico, ameaçando a unidade nacional".2 Não pretendemos, obviamente, responder de modo completo e defi- nitivo a este desafio. Na realidade, a nossa pretensão é bem mais modesta: desejamos apenas analisar, sob o enfoque da Teoria do Estado, a problemá- tica dos desequilíbrios regionais (a Questão Regional), tão cara ao pen- samento furtadiano. E, acreditando que a Teoria do Estado efetivamente possa contribuir para superar o impasse colocado por Celso Furtado, inicia- mos nosso estudo definindo o que entendemos por desenvolvimento e quais suas relações com o Estado, a política e o direito. O Estado tem, nesta tese, um papel fundamental, como não poderia deixar de ser. A referência cons- tante será a obra de Celso Furtado, cuja importância se revela também pelo seu pensamento sobre o papel do Estado no Brasil, da qual todos somos devedores, como muito bem explicitou Francisco de Oliveira: "Furtado converte-se — é forte o termo - em demiurgo do Brasil. Ninguém, nestes anos, pensou o Brasil a não ser nos termos furtadiano s" .3 2. Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida, 2a ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 13. 3. Francisco de OLIVEIRA, "A Navegação Venturosa" in Francisco de OLIVEIRA (org.), Celso Furtado, coleção Os Grandes Cientistas Sociais, vol. 33, São Paulo, Ática, 1983, p. 13. Vide também Francisco de OLIVEIRA, "Viagem ao Olho do Furacão: Celso Furtado e o 36 GILBERTO BERC0V1CI A reflexão sobre o desenvolvimento, na opinião de Celso Furtado, é um ponto de convergência das várias ciências sociais, sendo este caráter interdisciplinar o responsável pela fecundidade dos estudos deste tema. Deve-se dar ênfase, no entanto, à dimensão política do que costuma ser apresentado como um problema exclusivamente econômico, entendendo a superação do subdesenvolvimento como um projeto político. Afinal, em última análise, são as estruturas de poder e a política que explicam a direção, efetividade e intensidade do desenvolvimento. Além do mais, a idéia de bem-estar contida no conceito de desenvolvimento traz à tona os aspectos ideológicos das políticas desenvolvimentistas.4 Esta importância da dimen- são política no estudo do desenvolvimento também foi enfatizada por Raúl Prebisch: "Los economistas se obstinan generalmente en eludir los problemas políticos porque escapan al âmbito de la teoria econômica. Y la misma asepsia doctrinaria les lleva a prescindir de otros elementos esenciales para comprender la dinâmica dei desarrollo. Empero, los fenômenos dei desarrollo no pueden explicarse solamente con una teoria econômica; hay que llegar a una teoria global que integre todos los elementos dei sistema mundial dei capitalismo. (...) Y mal podría entonces encerrarse el desarrollo en el estrecho cercado de una teoria econômica. Si razones metodológicas han llevado a los teóricos a examinar por separado los distintos elementos, animados a veces por un prurito explicable de especialización, se impone ahora abarcados en su intrincada complejidad y dilucidar sus mutuas relaciones. Y hay que hacerlo para aproximarse más a la realidad que se pretende transformar".5 Desafio do Pensamento Autoritário Brasileiro", Novos Estudos, n. 48, São Paulo, CEBRAP, julho de 1997, pp. 3-4 e 15-19 e Francisco de OLIVEIRA, "Celebração da Derrota e Saudade do Futuro" in Marcos FORMIGA & Ignacy SACHS (coords.), Celso Furtado, a SUDENE e o Futuro do Nordeste - Seminário Internacional, Recife, SUDENE, 2000, p. 108. 4. Celso FURTADO, Pequena Introdução ao Desenvolvimento: Enfoque Interdisciplinar, 2a ed, São Paulo, Cia Ed. Nacional, 1981, pp. 26-27 e 29-30; Osvaldo SUNKEL & Pedro PAZ, El SubdesarroUo Latinoamericano y la Teoria dei Desarrollo, 22a ed, México, Siglo Veintiuno, 1988, pp. 15 e 37-39 e Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., pp. 28-31. 5. Raúl PREBISCH, Capitalismo Periférico: Crisis y Transfortnación, reimpr., México, Fondo de Cultura Econômica, 1984, pp. 30-31. Sobre o caráter político do conceito de subde- senvolvimento elaborado por Celso Furtado, vide Maria Eugênia GUIMARÃES, Celso Furtado: A Utopia da Razão - Um Estudo sobre o Conceito de Subdesenvolvimento (1945- 1964), mimeo, São Paulo, Tese de Doutoramento (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), 1999, pp. 110-113. Devemos destacar, também, a crítica ao economi- cismo dos estudos do processo de desenvolvimento do Brasil, formulada por Francisco de Oliveira: "O 'economicismo' das análises que isolam as condições econômicas das políticas é um vício metodológico que anda de par com a recusa em reconhecer-se como ideologia" in Francisco de OLIVEIRA, A Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista, 5a ed, Petrópo- lis, Vozes, 1987, p. 9. DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 37 O desenvolvimento é um fenômeno com dimensão histórica: cada economia enfrenta problemas que lhe são específicos.6 Não existem fases de desenvolvimento pelas quais, necessariamente, passam todas as sociedades, seguindo os moldes da industrialização européia. O subdesenvolvimento é uma condição específica da periferia, não uma etapa necessária do processo de "evolução natural" da economia. O desenvolvimento e o subdesenvolvi- mento são processos simultâneos, que se condicionam e interagem mutua- mente, cuja expressão geográfica concreta se revela na dicotomia da CEP AL entre centro e periferia.7 Na concepção clássica de Celso Furtado: "O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autô- nomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento".* A economia subdesenvolvida não deve também ser considerada isoladamente do sistema de divisão internacional do trabalho em que está situada. A passagem do subdesenvolvimento para o desenvolvimento só pode ocorrer em processo de ruptura com o sistema, internamente e com o exterior, afinal, "em suas raízes, o subdesenvolvimento é um fenômeno de dominação, ou seja, de natureza cultural e política"!' Portanto, é necessária uma política deliberada de desenvolvimento, em que se garanta tanto o desenvolvimento econômico como o desenvolvimento social, dada a sua interdependência.1" Deste modo, o desenvolvimento só pode ocorrer com a transformação das estruturas sociais: "En síntesis, el concepto de desarrollo, concebido como proceso de cambio social, se refiere a un proceso deliberado que persigue como finalidad última la igualación de Ias oportunidades sociales, políticas y econômicas, tanto en el plano nacional como en relaciôn con sociedades que poseen patrones más elevados de bienestar material. Sin embargo, esto no significa que diclio proceso de cambio social tenga que seguir la misma trayectoria, ni deba conducir necesariamente a formas de organiz.aciôn 6. Celso FURTADO, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico, 10a ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000, p. 18 e Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., p. 38. 7. Celso FURTADO, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico cit., pp. 147-154 e 203; Osvaldo SUNKEL & Pedro PAZ, El Subdesarrollo Latinoamericano y la Teoria dei Desarrollo cit., pp. 6, 32-34 e 37; Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., pp. 40-41, 47-48 e 74-75 e Ricardo BIELSCHOWSKY, Pensamento Econômico Brasileiro: O Ciclo Ideológico do Desenvolvimentismo, 2a ed, Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, pp. 137-140. 8. Celso FURTADO, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico cit., p. 197. 9. Celso FURTADO, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico cit., p. 207. Vide também idem, pp. 254 e 303 e Octavio IANNI, Estado e Capitalismo, 2a ed, São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 204. 10. Angelos ANGELOPOULOS, Planisme et Progrès Social, Paris, L.G.D.J., 1953, p. 181 e Raúl PREBISCH, Dinâmica do Desenvolvimento Latino-Americano, 2a ed, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1968, pp. 20-22 e 28-31. 38 GILBERTO BERC0V1CI social y política similares a Ias que prevaleceu en los países actualmente industrializados o desarrollados de uno u otro tipo. La posición adoptada implica, en consecuencia, la necesidad de examinar y buscar en la propia realidad latinoamericana y en Ias influencias que ésta sufre, por el solo hecho de coexistir con sociedades desarrolladas, el proyecto de nación, Ias estratégias y políticas de desarrollo y Ias formas de organización que habrán de satisfacer Ias aspiraciones de los grupos en cuyo nombre se realiza la tarea de desarrollo"." Quando não ocorre nenhuma transformação, seja social, seja no sis- tema produtivo, não se está diante de um processo de desenvolvimento, mas da simples modernização. Com a modernização, mantém-se o subdesenvol- vimento, agravando a concentração de renda. Ocorre assimilação do pro- gresso técnico das sociedades desenvolvidas, mas limitada ao estilo de vida e aos padrões de consumo de uma minoria privilegiada. Embora possa haver taxas elevadas de crescimento econômico e aumentos de produtividade, a modernização não contribui para melhorar as condições de vida da maioria da população.'2 O crescimento sem desenvolvimento é aquele que ocorre com a mo- dernização, sem qualquer transformação nas estruturas econômicas e sociais. Assim, o conceito de desenvolvimento compreende a idéia de crescimento, superando-a." As teorias do crescimento econômico dão ênfase à ação deli- berada da política econômica do Estado para a manutenção de um ritmo expansivo que mantenha o pleno emprego. Contudo, suas preocupações são exclusivamente econômicas, não analisam as condições ou conseqüências políticas, institucionais, sociais ou culturais do crescimento econômico. Obstáculos institucionais não são analisados, afinal, são problemas políticos ou jurídicos, não econômicos. O objetivo propugnado pelas teorias do cres- cimento econômico é fazer com que os países subdesenvolvidos, cujo problema se limita, para estas teorias, a uma maior ou menor capacidade de acumulação, alcancem o mesmo sistema econômico dos desenvolvidos. Na realidade, trata-se de uma aplicação de teorias elaboradas para os países desenvolvidos (neoclássicas ou keynesianas) na realidade sócio-econômica completamente distinta dos países subdesenvolvidos.14 O grande desafio da superação do subdesenvolvimento é a transfor- mação das estruturas sócio-econômicas e institucionais para satisfazer as 11. Osvaldo SUNKEL & Pedro PAZ, El Subdesarrollo Latinoamericano y la Teoria dei Desarrollo cit., p. 39. 12. Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., pp. 41-45. 13. Cf. Celso FURTADO, Teoria e Política do Desenvolvimento Econômico cit., pp. 101- 104. 14. Albert O. HIRSCHMAN, La Estratégia dei Desarrollo Econômico, reimpr., México, Fondo de Cultura Econômica, 1973, pp. 39-43 e Osvaldo SUNKEL & Pedro PAZ, El Subdesarrollo Latinoamericano y la Teoria de! Desarrollo cit., pp. 24-25 e 29-32. DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 39 necessidades da sociedade nacional.15 Para a efetivação deste objetivo, segundo a proposta de Osvaldo Sunkel e Pedro Paz, é fundamental a partici- pação social, política e cultural dos grupos tradicionalmente considerados como "objeto" do desenvolvimento, que devem tornar-se "sujeito" deste processo.16 Podemos afirmar, então, que a democracia também é essencial para o desenvolvimento.17 Ao considerarmos a democracia como condição do desenvolvi- mento, podemos também analisá-lo com enfoque nos direitos fundamentais. , 0 objeto do desenvolvimento, assim, é bem mais amplo do que o simples crescimento do PIB, pois também leva em conta fatores sociais e políticos. O desenvolvimento deixa de ser um fim em si mesmo, mas seus fins e meios adquirem crucial importância, tendo como principal meio e fim do desen- volvimento a expansão da liberdade humana.1" Esta concepção, hoje, é con- sagrada na elaboração, pela Organização das Nações Unidas (ONU), do direito ao desenvolvimento. A definição de direito ao desenvolvimento passou por vários es- tágios nas discussões da ONU.1'' Do enfoque economicista inicial, chegou-se 15. Sobre os obstáculos existentes no capitalismo dependente para a satisfação das necessida- des das sociedades nacionais, vide Plínio de Arruda SAMPAIO Jr, Entre a Nação e a Barbá- rie: Os Dilemas do Capitalismo Dependente em Caio Prado, Florestem Fernandes e Celso Furtado, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 89-96 e 203-206. 16. Cf. Osvaldo SUNKEL & Pedro PAZ, El Subdesarrollo Latinoamericano y Ia Teoria dei Desarrollo cit., pp. 37-38. 17. Amartya SEN, Development as Freedom, New York, Alfred A. Knopf, 1999, pp. 146- 159. Para a importância da democracia na concepção de desenvolvimento desenvolvida por Celso Furtado, vide Maria Eugênia GUIMARÃES, Celso Furtado: A Utopia da Razão cit., pp. 160, 175-176, 182, 187, 199 e 219-222. A estratégia de desenvolvimento proposta pela CEPAL (Comisión Econômica para América Latina) também defendia a democracia como forma de coordenar as sociedades complexas da periferia. A integração econômica, física e social das sociedades nacionais era considerada como um requisito para o funcionamento da democracia plena. Ao mesmo tempo, uma organização política democrática era condição para a aplicação de estratégias orientadas para a eqüidade social. A democracia e a eqüidade, para a CEPAL, reforçavam-se mutuamente. Cf. Adolfo GURRIERI, "Vigência dei Estado Planificador en la Crisis Actual", Revista de la CEPAL n. 31, Santiago, CEPAL, abril de 1987, pp. 214-216. 18. Cf. Amartya SEN, Development as Freedom cit., pp. 3-5, 8-10, 14-15, 18-20, 33-41 e 51- 53. Vide também Kéba M'BAYE, "Le Droit au Développement comme un Droit de 1'Homme", Revue des Droits de l'Homme/Human Riglits Journal, vol. V, n. 2-3, Paris, A. Pedone, 1972, pp. 514-530 e Cláudia PERRONE-MOISÉS, "Direitos Humanos e Desenvol- vimento: A Contribuição das Nações Unidas" in Alberto do AMARAL Jr & Cláudia PERRONE-MOISÉS (orgs.), O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, São Paulo, EDUSP, 1999, pp. 192-193. 19. O primeiro a formular a idéia de direito ao desenvolvimento foi o senegalês Kéba M'Baye, na conferência "Le Droit au Développement comme un Droit de 1'Homme", publi- cada na Revue des Droits de l'Homme/Human Riglits Journal, vol. V, n. 2-3, Paris, A. Pedone, 1972, pp. 505-534. Para a evolução das concepções de direito ao desenvolvimento na ONU, vide Fábio Konder COMPARATO, "O Reconhecimento de Direitos Coletivos na Esfera Internacional", RTDP n. 23, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 7-8 e Cláudia 40 GILBERTO BERC0V1CI à concepção atual de direito ao desenvolvimento como um direito funda- mental, integrante dos direitos de solidariedade, cujo titular não é o indiví- duo, mas os povos.2" A proclamação do direito ao desenvolvimento foi efe- tuada pela resolução 41/128 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 4 de dezembro de 1986, e reafirmado no artigo 10 da Declaração da Confe- rência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, de 12 de julho de 1993: Artigo Io da Resolução 41/128 - "O direito ao desenvolvimento é um direito inalienável do homem em virtude do qual todo ser humano e todos os povos têm o direito de participar e contribuir para o desenvolvi- mento econômico, social, cultural e político no qual todos os direitos do homem e todas as liberdades fundamentais possam ser plenamente realiza- das, e beneficiar-se deste desenvolvimento". Artigo 10 da Declaração e Programa de Ação de Viena - "A Confe- rência Mundial sobre Direitos humanos reafirma o direito ao desenvolvi- mento, conforme estabelecido na Declaração sobre o Direito ao Desenvol- vimento, como um direito universal e inalienável e parte dos direitos hu- manos fundamentais. Como afirma a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, a pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento. Embora o desenvolvimento facilite a realização de todos os direitos huma- nos, a falta de desenvolvimento não poderá ser invocada como justificativa para se limitarem direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Os Estados devem cooperar uns com os outros para garantir o desenvolvi- mento e eliminar os obstáculos ao mesmo. A comunidade internacional deve promover uma cooperação internacional eficaz visando à realização do direito ao desenvolvimento. O progresso duradouro necessário à realização do direito ao desenvolvimento exige políticas efi.caz.es de desenvolvimento em nível nacional, bem como relações econômicas eqiiitativas e um am- biente econômico favorável em nível internacional".2' PERRONE-MOISÉS, "Direitos Humanos e Desenvolvimento: A Contribuição das Nações Unidas" cíí.,pp. 179-189. 20. Paulo BONAVIDES, "Federalismo das Regiões, Desenvolvimento e Direitos Humanos" in A Constituição Aberta: Temas Políticos e Constitucionais da Atualidade, com ênfase no Federalismo das Regiões, 2a ed, São Paulo, Malheiros, 1996, pp. 346-350 e Fábio Konder COMPARATO, "O Reconhecimento de Direitos Coletivos na Esfera Internacional" cit., pp. 9-11. 21. Apud Cláudia PERRONE-MOISÉS, "Direitos Humanos e Desenvolvimento: A Contri- buição das Nações Unidas" cit., pp. 187 e nota 20, pp. 187-188. O direito ao desenvolvimento está incluído entre os direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988 por força do seu artigo 5o, § 2o: "Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". Desta forma, o direito ao desenvolvimento está incorporado aos direitos fundamentais expressos no texto constitucional, tanto por ser decorrente do seu regime e princípios (como o artigo 3o, II, que institui o desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República), como pelo fato de estar previsto em DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 4 1 O desenvolvimento, portanto, também é um direito fundamental, que deve ser respeitado, garantido e promovido pelo Estado, que é o princi- pal formulador das políticas de desenvolvimento. O Estado introduz a dimensão política no cálculo econômico, buscando a constituição de um sistema econômico nacional.22 O processo de formação de políticas públi- cas,23 de acordo com Lourdes Sola, é o resultado de uma complexa e dinâ- mica interação de fatores econômicos, políticos e ideológicos. O papel polí- tico do Estado é central neste processo, contrariando a visão corrente da análise econômica que considera o Estado apenas uma categoria residual.24 tratados internacionais firmados pelo Brasil. Há, ainda, autores que propõem a criação de um ramo autônomo do direito, intitulado "direito do desenvolvimento". Em nossa opinião, o desenvolvimento, além de um direito fundamental, é um objetivo, um fim para o qual está voltado o Estado, como prescreve o artigo 3o, II da Constituição de 1988, e todo o ordena- mento por ele emanado. Não haveria, assim, necessidade de uma disciplina própria, autô- noma. Para a proposta favorável ao "direito do desenvolvimento", vide especialmente Roger GRANGER, "Pour un Droit du Développement dans le Pays Sous-Développés" in Dix Ans de Conférences d'Agrégation - Etudes de Droit Commercial offertes à Joseph Hamel, Paris, Dalloz, 1961, pp. 47-69. Para a diferenciação entre direito ao desenvolvimento e direito do desenvolvimento, vide Washington Peluso Albino de SOUZA, Primeiras Linhas de Direito Econômico, 3a ed, São Paulo, LTr, 1994, pp. 317-318. 22. Segundo Celso Furtado: "Um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez da lógica econômica na busca do bem-estar coletivo" in Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., p. 30. Vide também Plínio de Arruda SAMPAIO Jr, Entre a Nação e a Barbárie cit., pp. 64- 66, 86-87 e 203. 23. Na definição de Maria Paula Dallari Bucci: "Políticas públicas são os programas de ação governamental visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados" in Maria Paula Dallari BUCCI, Direito Administrativo e Políticas Públicas, mimeo, São Paulo, Tese de Doutoramento (Faculdade de Direito da USP), 2000, p. 236. Vide também idem, pp. 245-248; Maria Paula Dallari BUCCI, "As Políticas Públicas e o Direito Administrativo", RTDP n. 13, São Paulo, Malheiros, 1996, pp. 135-136 e 140; Fábio Konder COMPARATO, "Um Quadro Institucional para o Desenvolvimento Democrático" in Hélio JAGUARIBE; Francisco IGLÉSIAS; Wanderley Guilherme dos SANTOS; Vamireh CHACON & Fábio COMPARATO, Brasil, Sociedade Democrática, 2a ed, Rio de Janeiro, José Olympio, 1986, p. 408; José Reinaldo de Lima LOPES, "Direito Subjetivo e Direitos Sociais: O Dilema do Judiciário no Estado Social de Direito" in José Eduardo FARIA (org.), Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça, reimpr., São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 131-134; Fábio Konder COMPARATO, "Ensaio sobre o Juízo de Constitucionalidade de Políticas Públicas", RIL n. 108, Brasília, Senado Federal, abril/junho de 1998, pp. 44-5 e Manuel GARCÍA-PELAYO, Las Transformaciones dei Estado Contemporâneo, 2a ed, Madrid, Alianza Editorial, 1985, pp. 22-24 e 39. Sobre a dificuldade na conceituação de política pública, vide Pierre MULLER, Les Politiques Publiques, 4a ed, Paris, PUF, 2000, pp. 23-27. 24. Pierre Muller entende o estudo das políticas públicas como a "science de l'Etat en action". Cf. Pierre MULLER, Les Politiques Publiques cit., pp. 3-5. Vide também Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida cit., pp. 28-31; Lourdes SOLA, Idéias Eco- nômicas, Decisões Políticas: Desenvolvimento, Estabilidade e Populismo, São Paulo, EDUSP/FAPESP, 1998, pp. 36-39 e 422-426 e Eros Roberto GRAU, .4 Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 4a ed, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 28 e 266-268. Para Sônia Draibe, a atividade do Estado ocorre, concretamente, de modo finalís- 42 GILBERTO BERC0V1CI Para Lourdes Sola, um equívoco comum nas análises políticas é a incorporação do erro cometido pelos economistas, que atribuem o fracasso das políticas econômicas aos equívocos de teoria econômica em sua elabo- ração. Falta, em sua opinião, a inclusão de outra causalidade: a política e institucional (e jurídica, incluiríamos). Os resultados das políticas econômi- cas não dependem apenas de sua coerência econômica, mas também de sua viabilidade política e das opções institucionais. Isto ainda é mais facilmente perceptível no caso das políticas de desenvolvimento de longo prazo cujo objetivo seja a melhoria das condições sociais da população.2'1 E a análise do caso brasileiro revela que o processo de desenvolvimento funda-se em deci- sões políticas.2'' O próprio fundamento das políticas públicas é a necessidade de con- cretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado, sendo o desenvolvimento nacional a principal política pública, conformando e har- monizando todas as demais.27 O desenvolvimento econômico e social, com a tico. As políticas públicas são formadas pelos diferentes interesses sociais inseridos no apa- relho estatal, que estão sujeitos à hierarquização pela direção política do Estado. Ao serem generalizados e abstraídos, transformam-se em "interesses nacionais" e fundamento das políticas públicas. As políticas públicas refletem as relações e contradições sociais básicas, ao mesmo tempo que exprimem o papel do Estado como definidor e dirigente de um projeto social e econômico para a sociedade. Cf. Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses: Um Estudo sobre a Constituição do Estado e as Alternativas da Industrialização no Brasil, 1930- 1960, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, pp. 50-51, 61-62 e 83. Pierre Muller critica a redu- ção da análise das políticas públicas às fases de elaboração e decisão (decision making) e de implementação. Em sua opinião, fundamental também é o estudo do referencial de uma política pública, ou seja, a construção de uma representação da realidade sobre a qual a polí- tica pública irá atuar. O referencial da política pública dá sentido a um programa político, definindo seus critérios de escolha de meios e de objetivos. Cf. Pierre MULLER, Les Politiques Publiques cit., pp. 28-34 e 42-49. Sobre as dificuldades na conceituação de "interesse público", vide especialmente José Eduardo FARIA, Direito e Economia na Demo- cratização Brasileira, São Paulo, Malheiros, 1993, pp. 63-82. 25. Celso FURTADO, O Brasil Pós-"Milagre", T ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982, pp. 79-80 e Lourdes SOLA, Idéias Econômicas, Decisões Políticas cit., pp. 420-421. Vide também Nelson Mello e SOUZA, "O Planejamento Econômico no Brasil: Considerações Críticas", Revista de Administração Pública, vol. 18, n. 4, Rio de Janeiro, outubro/dezembro de 1984, pp. 68-69. 26. Octavio 1ANN1, Estado e Capitalismo cit., p. 214. Vide também Sônia DRAIBE, Rumos e Metamorfoses cit., pp. 19-20. Devemos, no entanto, destacar a seguinte afirmação de Pierre Muller: "II n'y a ni déterminisme ni volontarisme absolu: une politique publique n'est jamais le produit direct d 'une situation socio-économique puisque cette situation n 'existe qu 'en tant qu'elle est formulée et recodée en fonction de la grille cognitive des acteurs de la décision. Inversement, une politique publique ne peut méconnaitre au-delà d'une certaine limite la configuration des rapports de force à un moment donné. La marge de jeu des politiques publiques se situe donc exactement à Vintersection entre l'état des rapports sociaux et les représentations que s'en font les acteurs" in Pierre MULLER, Les Politiques Publiques cit., p. 67. 27. Fábio Konder COMPARATO, "A Organização Constitucional da Função Planejadora" in Ricardo Antônio Lucas CAMARGO (org.), Desenvolvimento Econômico e Intervenção do DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 43 eliminação das desigualdades, pode ser considerado como a síntese dos objetivos históricos nacionais.2* Podemos concluir com Francisco de Oli- veira: a questão nacional é, essencialmente, a questão colocada pelo con- ceito de subdesenvolvimento2'. Toda reflexão sobre a política de desenvolvimento exige que se refira ao Estado, inclusive para alterar as bases de sustentação deste Estado e modificar a orientação do desenvolvimento excludente, levado a cabo espe- cialmente após 1964™. E este é um dos grandes problemas dos estudos sobre o desenvolvimento brasileiro: a falta de uma. reflexão mais aprofundada sobre o Estado". De acordo com Francisco de Oliveira, a temática dos gran- des "pensadores do Brasil" da década de 1930, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr, é a formação da sociedade brasileira. O Estado é pouco estudado. O mesmo ocorre com os grupos políticos de direita e de esquerda das décadas de 1950 e 1960: ambos não tinham uma interpretação do Estado32. A preocupação com o Estado fez parte das obras dos autores autoritários da República Velha e década de 1930: Alberto Tor- res e Oliveira Vianna. Devemos ressaltar, no entanto que, embora eles, como Celso Furtado, tenham se preocupado com a disfuncionalidade do Estado brasileiro, não há nenhum cabimento em buscar-se alguma filiação entre o pensamento de Furtado e o dos autoritários da República Velha". Apesar da sua importância para o desenvolvimento, não existe uma análise sistemática sobre a questão institucional do Estado por parte dos teóricos desenvolvimentistas. A ênfase no papel do Estado é derivada de uma concepção da ação política em que a racionalidade técnica tinha um papel decisivo: o Estado formulava e concretizava a racionalidade mediante Estado na Ordem Constitucional - Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor Washington Peluso Albino de Souza, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Ed., 1995, pp. 78 e 82-83; Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 238-242 e Maria Paula Dallari BUCCI, "As Políticas Públicas e o Direito Administrativo" cit., p. 135. Vide também Pierre MULLER, Les Politiques Publiques cit., p. 25. 28. Cf. Fábio Konder COMPARATO, "Um Quadro Institucional para o Desenvolvimento Democrático" cit., p. 410. 29. Cf. Francisco de OLIVEIRA, "A Navegação Venturosa" cit., p. 27. Para uma análise da superação do subdesenvolvimento como o problema político essencial do Estado nacional no pensamento de Celso Furtado, vide Maria Eugênia GUIMARÃES, Celso Furtado: A Utopia da Razão cit., pp. 162-177. 30. Celso FURTADO, O Brasil Pós-"Milagre" cit., pp. 42 e 75-79. 31. Vide, especialmente, as críticas e sugestões para uma teoria latino-americana do Estado de José Luís FIORI, "Para uma Crítica da Teoria Latino-Americana do Estado" in Em Busca do Dissenso Perdido: Ensaios Críticos sobre a Festejada Crise do Estado, Rio de Janeiro, Insight, 1995, pp. 33-37. 32. Francisco de OLIVEIRA, "Viagem ao Olho do Furacão: Celso Furtado e o Desafio do Pensamento Autoritário Brasileiro" cit., pp. 4-6. 33. Francisco de OLIVEIRA, "Viagem ao Olho do Furacão: Celso Furtado e o Desafio do Pensamento Autoritário Brasileiro" cit., pp. 7-15. No mesmo sentido, vide Maria Eugênia GUIMARÃES, Celso Furtado: A Utopia da Razão cit., pp. 161-162 e 219-222. 44 GILBERTO BERC0V1CI o planejamento e a política de desenvolvimento34. Para tentar superar esta lacuna, precisamos definir qual Teoria do Estado vai ser adotada neste estudo. 1.2. Qual Teoria do Estado? O positivismo jurídico buscou, a partir do final do século XIX, a de- puração metodológica dos elementos políticos, sociais, históricos e filosófi- cos da Teoria do Estado35. Inspirados pela pandectística, os positivistas, como os alemães Carl Friedrich von Gerber e Paul Laband e o italiano Vittorio Emanuele Orlando, viam no Direito Privado o exemplo a ser seguido, buscando a adoção de uma metodologia "exclusivamente jurí- dica""'. Fundamentando sua argumentação em construções meramente con- ceituais, os teóricos positivistas retiraram a possibilidade de conhecimento do Estado concreto37. 34. Cf. Adolfo GURRIERI, "Vigência dei Estado Planificador en la Crisis Actual" cit., pp. 201-202 e 205-206 e José Luís FIOR1, "Para uma Crítica da Teoria Latino-Americana do Estado" cit., pp. 1, 22 e 35. 35. O italiano Vittorio Emanuele Orlando, em um texto de 1889, fez as seguintes considera- ções, que consideramos emblemáticas da proposta positivista: "Se noi lamentiano clie i cultori dei diritto pubblico sono troppo filosofi, troppo politici, troppo storici, troppo sociologisti e troppo poco giureconsulti, mentre soprattutto giureconsulti dovrebbero essere, qual modo migliore, piu sicuro e piu semplice potrà tenersi, perchè la transformazione avvenga, che uno studio profondo dei metodi proprii a quelle scuole che di iurisprudentia sono modello?" in Vittorio Emanuele ORLANDO, "I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica dei Diritto Pubblico" in Diritto Pubblico Generale - Scritti Varii (1881-1940) Coordinciti in Sistema, ristampa, Milano, Giuffrè, 1954, p. 6. Sobre as concepções de Orlando, vide Sebastião Botto de Barros TOJAL, Teoria Geral do Estado: Elementos de uma Nova Ciência Social, Rio de Janeiro, Forense, 1997, pp. 57-63. 36. Sobre o Direito Privado como modelo a ser seguido pelo Direito Público: "Cosi, dunque, quella nozione giuridica che nel campo dei diritto privato appare sempre acompagnata da una certezza obiettiva, nel diritto pubblico è indivisibile da una discussione che Ia circonda di controversie e di dubbi. E una questione tutta técnica, è un abito intellettuale, ma che há avuto questa influenza disastrosa, che, mentre Io studioso di diritto privato há finito col considerare i principii giuridici come esistenze reali, a noi cultori di diritto pubblico appaiono come creazioni deli'arbítrio, e, per naturale conseguenza, quella chiarezza, quella precisione, quella sicurezza che contraddistinguono Io studio di un rapporto di diritto privato, si mutano, nel campo dei diritto pubblico, in incertezza, in oscurità, in confusione" in Vittorio Emanuele ORLANDO, "I Criteri Tecnici per la Ricostruzione Giuridica dei Diritto Pubblico" cit., p. 14. 37. Heinrich TRIEPEL, Derecho Público y Política, 2a ed, Madrid, Editorial Civitas, 1986, pp. 37-41; Klaus STERN, Derecho dei Estado de la Republica Federal Atemana, Madrid, Centro de Estúdios Constitucionales, 1987, pp. 121-123; Pedro de Vega GARCÍA, "El Trânsito dei Positivismo Jurídico al Positivismo Jurisprudencial en la Doctrina Constitucional", Teoria y Realidad Constitucional n. 1, Madrid, Universidad Nacional de Educación a Distancia/Editorial Centro de Estúdios Ramón Areces, janeiro/junho de 1998, DESIGUALDADES REGIONAIS, ESTADO E CONSTITUIÇÃO 45 O primeiro autor a dar um tratamento sistemático ao Direito Pú- blico, sem se limitar a um comentário exegético ou a considerações filosófi- cas, foi Georg Jellinek, abrindo caminho a uma doutrina jurídica do Estado. Jellinek pretendeu criar um sistema de validade universal, à margem da história e da realidade. A teoria jurídica do Estado de Jellinek, segundo Pedro de Vega, está ligada a três pressupostos: a positividade do direito, o monopólio estatal da produção jurídica e a personalidade jurídica do Estado. O principal conceito é o do Estado como pessoa jurídica, conceito ligado à auto-limitação do Estado. Afinal, ao criar o direito, o Estado obriga-se a si mesmo e, submetendo-se ao direito, torna-se também sujeito de direitos e deveres38. Apesar de sua intenção em estabelecer e fundamentar uma teoria jurídica do Estado, Jellinek admitia a possibilidade da existência de uma teoria sociológica do Estado. Para ele, a Teoria Geral do Estado deveria se ater a dois aspectos básicos: o Estado é uma construção social e uma insti- tuição jurídica, havendo, portanto, a possibilidade de uma doutrina socioló- gica e uma doutrina jurídica do Estado. A doutrina sociológica teria por objeto de estudo o "ser" do Estado, por meio dos fatos, da história, em suma, um exame "naturalista" do Estado. Já a doutrina jurídica estudaria as normas que "devem ser", normas estas diferenciadas das afirmações do "ser" do Estado enquanto fenômeno social. Não seria possível, todavia, introduzir métodos de investigação estranhos ao campo jurídico na Teoria Geral do Estado: embora se proponha a completar a concepção social de Estado, a concepção jurídica não pode ser confundida com ela. Deste modo, como salientou Sebastião Botto de Barros Tojal, Jellinek não considera as concepções jurídica e sociológica do Estado complementares, mas opostas, privilegiando a doutrina jurídica3'. O ponto culminante do positivismo jurídico foi representado por Hans Kelsen, com sua Teoria Geral do Estado (Algemeine Staatslehre), de 1925, que pautou boa parte do debate juspublicista dos anos da República de Weimar (1918-1933). Este debate, travado entre figuras como Hans Kelsen, Carl Schmitt, Rudolf Smend e Hermann Heller, é, até os dias de hoje, de crucial importância para o estudo das concepções de Estado e Constituição. Ao normativismo positivista de Kelsen, opuseram-se várias doutrinas e con- cepções, cujo ponto comum era o desejo de introduzir o político na análise pp. 69-70 e Sebastião Botto de Barros TOJAL, Teoria Geral do Estado cit., pp. 33-44 e 55-57. 38. Cf. Georg JELLINEK, Allgemeine Staatslehre, reimpr., 3a ed, Bad Homburg vor der Hohe, Hermann Gentner Verlag, 1959, pp. 169-173, 182-183, 370-375 e 386-387. Vide também Pedro de Vega GARCÍA, "El Trânsito dei Positivismo Jurídico al Positivismo Jurisprudencial en ia Doctrina Constitucional" cit., pp. 65-67 e 70-72. 39. Georg
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