Prévia do material em texto
Psicologia: Pesquisa & Trânsito, v. 2, nº 1, p. 61-64, Jan./Jun. 2006 61 Sem medo de dirigir1 Driving without fear Sin miedo de conducir Renata da Rocha Campos Franco – Universidade São Francisco Bellina, C.C.O. (2005). Dirigir sem medo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 123p. A obra “Dirigir sem medo”, além ser um incentivo aos pacientes que têm medo ou fobia de dirigir, é um relato que valoriza a iniciativa de pessoas que resol- vem desafiar suas limitações. Descrito sem muitas palavras técnicas foi concebido a partir da experiên- cia clínica de Cecília Bellina, que há dez anos trabalha com pessoas que sofrem de medo ou fobia de dirigir. O livro relata o sofrimento de sete pacientes que, por motivos diferentes, desencadearam intensas crises de ansiedade diante da necessidade de dirigir. Os sete casos relatados, embora diferentes no tipo de sofri- mento, seguem o mesmo estilo de descrição, sendo o medo de dirigir um sintoma presente que interfere negativamente nas relações interpessoais, seja no ambiente de trabalho, seja no ambiente familiar. Ape- sar de cada paciente ter a sua história e seu motivo, todos eles venceram seu medo por meio da “Terapia do Volante”, a qual tem como objetivo ensinar o paci- ente a controlar sua ansiedade na presença de ele- mentos reais que permeiam a prática de dirigir. A principal estratégia utilizada na terapia do volan- te é a exposição ao vivo, que incentiva o cliente a desafiar as situações que lhe geram ansiedade. O trei- namento inicia com tarefas simples, como dar uma volta no quarteirão e, de forma gradativa, o grau de dificuldade é aumentado. Depois de superada essa fase, o indivíduo passa a dirigir em trechos de maior velocidade e com mais trânsito, até que o último pas- so do treinamento é deixá-lo sozinho em seu próprio carro. A autora começa o capítulo 1 com o relato de Elai- ne, com uma breve descrição sobre sua vida pessoal e profissional, insinuando que ela sempre foi uma mulher ativa, sonhadora e extremamente competente em seu trabalho, até que um dia, enquanto dirigia seu carro no caminho de volta do trabalho para casa, co- meçou a sentir sensações corpóreas desagradáveis dentre as quais o suor, enjôo, boca seca, tremedeira, taquicardia, sensação de perda de controle e iminên- cia de desmaio. Diante dessas reações corpóreas, Elaine suspeitou sofrer de algum tipo de colapso car- díaco, mas os exames não apontaram nenhuma dis- função no coração, sendo dado diagnóstico de estresse. A paciente tirou férias, mas as crises, ao invés de di- minuírem, ficaram bem mais freqüentes e a cada nova crise Elaine associava seu medo às situações que se encontrava, dentre elas o medo de dirigir. Deixou de dirigir em estradas, em passar por túneis ou pontes, parou de levar e buscar as filhas em diversas ativida- des e chegou até a mudar de emprego diante da aver- são ao trajeto que culminara sua primeira crise. A incompreensão de seus entes, que a insultavam, chamando-a de louca, a deixava cada vez mais an- gustiada, até que resolveu procurar um psiquiatra que definiu seu quadro como síndrome do pânico. Alivia- da por ter encontrado um nome a tudo o que sentia, decidiu iniciar o tratamento medicamentoso com o psiquiatra e enfrentar a ansiedade relacionada ao car- ro. Procurou a clínica-escola de Bellina e iniciou a terapia do volante. A confiança que a paciente sentia em sua terapeuta, somada às técnicas existentes na terapia comportamental para o tratamento do pânico, permitiu que a paciente retomasse as atividades que fazia antes da doença. No caso dessa paciente, as estratégias utilizadas pela psicóloga e instrutora de veículos Cecília Bellina foi a exposição ao vivo, relaxamento muscular com 1 Endereço para correspondência: E-mail: fran_re@yahoo.com.br 62 Renata da Rocha Campos Franco Psicologia: Pesquisa & Trânsito, v. 2, nº 1, p. 61-64, Jan./Jun. 2006 uma música escolhida pela própria paciente e a visua- lização de saídas. A terapia do volante foi iniciada com a paciente a dirigir no próprio bairro e à medida que a ansiedade era controlada, novos desafios eram colo- cados, como por exemplo, passar por túneis e pontes até que ela conseguisse dirigir nas estradas. Aos pou- cos a paciente começava a encontrar suas próprias saídas para controlar a ansiedade. Contava números para afastar os pensamentos negativos, pedia orien- tação de caminhos para algum pedestre e estaciona- va o carro, quando estava muito assustada. Gradualmente a paciente venceu seus medos e se fortaleceu. Hoje, Elaine parou de tomar os medica- mentos e dirige por toda a parte da cidade. O segundo caso é de Célia, uma paciente diagnos- ticada como perfeccionista patológica. A principal ca- racterística desse quadro é a intensa cobrança imposta a si mesmo na hora de desempenhar alguma função. Esse tipo de paciente confunde “o fazer o melhor que pode” com “o fazer o melhor que existe”. Suas idéias concentram-se exclusivamente em realizar sempre o máximo ou o perfeito, sendo seus pensamentos bas- tante distorcidos, pois o ser humano é falível e imper- feito. No caso do aprendizado para dirigir é natural cometer erros em grande freqüência, sendo este pro- cesso extremamente desgastante para um perfeccio- nista. Como era de se esperar, Célia sentia-se bastante angustiada quando deixava o carro morrer ou quando o instrutor apontava seus erros. Porém, mesmo dian- te dessa enorme ansiedade, ela conseguiu tirar a ha- bilitação. Infelizmente, no primeiro dia que ia sair da garagem com o novo carro, bateu no portão. Esse episódio foi o suficiente para que Célia entrasse em depressão. Sempre que se lembrava da batida sofria intensamente. Ao invés de tentar mais uma vez, afas- tou-se radicalmente da situação, pois considerava seu erro inadmissível, mesmo tendo a consciência que isso era irracional. Incentivada pela família buscou ajuda na clínica-escola que lhe sugeriu a terapia do volante e a participação no grupo de psicoterapia. A união desses dois tratamentos ensinou-lhe estratégias para controlar a ansiedade desencadeada por pensamen- tos perfeccionistas. No caso da exposição ao vivo, aprender a consultar uma planilha da cidade quando não conhecia o lugar em que precisava ir. Já, nas sessões de grupo a paciente teve a oportunidade de reconhecer o exagero em suas falas em relação ao grau de cobrança. Aos poucos, mesmo que ainda te- nha bastante limitação, Célia progrediu e já é capaz de dirigir sozinha. O relato seguinte conta a história de Emília, que aos oito anos de idade foi abandonada pela mãe. Quan- do partiu, de ônibus, com o pai para a cidade, enfren- tou uma longa viagem e sentiu, o tempo todo, um intenso medo. A partir desse episódio, toda vez que entrava em um ônibus ou carro tinha a impressão de que ia bater e chegou a assustar o motorista com gri- tos de pavor. Um dia, casou-se, teve filhos e surgiu a necessidade de dirigir. Decidiu procurar ajuda especi- alizada para enfrentar seu medo. A determinação de Emília foi tanta, que além de iniciar o processo para tirar a habilitação, começou a freqüentar o grupo psi- coterapêutico da clínica-escola. Lá, ao compartilhar suas histórias, recuperou a auto-estima que estava comprometida desde o trauma sofrido com o abando- no por parte da mãe. Após conquistar a carta de mo- torista iniciou o treinamento da terapia do volante. O processo de cura acelerou-se quando o marido iniciou um quadro de infarto e ela teve que levá-lo ao hospi- tal. Depois da situação controlada e o marido a salvo, Emília reconheceu que era capaz de vencer seus medos. O quarto relato é a história de Raquel, que desco- briu estar com um tumor maligno no músculo do pei- to. Muito assustada e revoltada com a peça que a vida lhe havia pregado, resolveu lutar por ela, com muita confiança na quimioterapia e consciente de que os pensamentos positivos eram imprescindíveis parao enfrentamento da doença. O tratamento foi um su- cesso absoluto, restando como seqüelas apenas a menopausa antecipada e fadiga crônica. Diante des- se renascimento Raquel resolveu retomar sua vida, sendo o carro indispensável para agilizar a retomada das atividades. No entanto, toda vez que pensava em pegar o carro sentia medo e uma crise de ansiedade dominava-lhe o corpo. Chateada com esses sinto- mas, pois os considerava pequenos perto do que pas- sara com o tumor, tentou superar sozinha, mas o medo crescia cada vez mais e pensamentos irreais domina- vam-lhe consciência, chegando ao ponto de não con- seguir andar de carro com mais ninguém. Sentiu necessidade de pedir ajuda. Com a mesma força com que lutou contra o câncer resolveu lutar contra a fo- bia por carro. Iniciou a terapia de volante e o treina- mento foi muito rápido, pois diante da experiência com Sem medo de dirigir 63 Psicologia: Pesquisa & Trânsito, v. 2, nº 1, p. 61-64, Jan./Jun. 2006 o câncer aprendeu a visualizar possibilidades de vitó- ria e tolerar sensações corpóreas desagradáveis. Outro caso é a história do adolescente Renato, que como todos os outros, esperou ansiosamente os 18 anos para poder dirigir. Assim que completou a maio- ridade tirou a carteira de motorista. Aos poucos foi adquirindo segurança e começou a enfrentar o trânsi- to da grande cidade, até que um dia, ao ver três mu- lheres na calçada esperando para atravessar a rua imaginou, então, que poderia ter atropelado uma de- las. Na mesma hora afugentou essa trágica idéia. Mas, por mais que tentasse lutar contra aquele ridículo pen- samento não conseguia eliminá-lo. Resolveu parar o carro, concluindo ser necessário voltar ao local em que tinha visto as três mulheres. Ao perceber que tudo estava tranqüilo voltou para casa e aos poucos a ansi- edade foi diminuindo. No entanto, esse tipo de pensa- mento ficava cada vez mais freqüente e sempre que Renato saía de carro imaginava cenas de atropela- mento, obrigando-se a voltar ao local imaginado para conferir se o fato havia se consumado. Sua obsessão era tão intensa que por várias vezes pensou em pro- curar os hospitais da redondeza e verificar se tinha alguma vitima de atropelamento, chegando ao extre- mo de pensar em se entregar à polícia para confessar que havia atropelado alguém. Depois de revelar à mãe seu sofrimento, Renato resolveu procurar a clíni- ca-escola e iniciar o treinamento da terapia do volan- te. Após várias sessões de exposição ao vivo e de ingressar no grupo psicoterapêutico, progrediu signifi- cativamente, voltou a dirigir e a necessidade de voltar à cena imaginada foi extinta, embora continue tendo os pensamentos negativos. O relato seguinte é a historia de Norma, que so- freu um grave acidente de carro. Além de ferir gra- vemente a perna, quase comprometeu a vida de seu neto. Após a completa recuperação física, desejou retomar suas atividades, mas notou diferenças acen- tuadas no próprio estado emocional. Sentia-se nervo- sa e agitada, e a ansiedade era tanta que sofria de insônia severa e engordou mais de vinte quilos. Esses sintomas sinalizavam a presença de um estresse pós- traumático que, como esperado, também incluía o in- tenso medo por carros. Estava claro que algo deveria ser feito para que conseguisse retomar o controle so- bre sua vida. O ato de dirigir para Norma havia sido uma grande conquista, sendo sua autonomia motivo de orgulho. Decidida a enfrentar o problema, procu- rou ajuda especializada na clínica-escola, sendo en- caminhada tanto para um grupo de psicoterapia quan- to para o treinamento de exposição ao vivo. No pri- meiro dia de treinamento, ao pegar o volante, Norma apresentou intensa ansiedade e chorou muito, mas tais sintomas melhoravam a cada novo treinamento. As sessões de psicoterapia foram extremamente impor- tantes para que ela pudesse elaborar a culpa que sen- tia por ter colocado em risco a vida de seu neto. O tratamento de Norma foi surpreendente, pois, além de voltar a dirigir sozinha e na companhia do neto, também voltou a pegar a mesma estrada em que ocor- reu o acidente. O último relato é sobre Gisele, que sofre de fobia social. Seu medo não era exatamente o de dirigir um carro e, sim, das situações possíveis que permeiam a prática do dirigir. Para Gisele, bater o carro era me- nos assustador do que se imaginar tendo que justificar para o motorista do outro carro o motivo da batida. Para ela uma blits era extremamente angustiante, pois tinha convicção de que ficaria nervosa só de mostrar os documentos ao policial. Diante dessas falsas cren- ças, mesmo tendo muita vontade de dirigir, Gisele adiou durante anos a decisão para tirar a habilitação, até que em 1997 resolveu enfrentar a situação por consi- derar o momento pertinente. Com a habilitação em mãos, Gisele resolveu enfrentar o medo que sentia de ter que interagir com condutores, pedestres ou polici- ais. Procurou a terapia do volante, talvez pelo fato de ser bastante focada no problema de dirigir. O impor- tante foi que, durante o treinamento, a confiança que sentia em sua terapeuta permitiu que ela enfrentasse outros aspectos da sua fobia, sendo encaminhada para uma terapia de grupo. Diante dessa oportunidade Gi- sele tem aprendido a relacionar-se com outras pesso- as e tem mostrado gradativo progresso em todos os campos da vida pessoal, mesmo tendo ainda dificul- dade. Observa-se durante todo o livro e de forma bas- tante explícita que o sucesso do tratamento só foi atin- gido devido a uma combinação de fatores. O mais importante é a disposição do cliente para entrar em contado com o seu verdadeiro problema. A partir do momento em que o cliente encara de frente suas an- gústias e aceita as orientações do terapeuta o pro- gresso e o fortalecimento psíquico torna-se mais evidente. Além da disposição do cliente, a atuação conjunta de profissionais competentes é fundamental para a obtenção de um diagnóstico correto, assim como, para direcionar o paciente a um adequado tratamen- 64 Renata da Rocha Campos Franco Psicologia: Pesquisa & Trânsito, v. 2, nº 1, p. 61-64, Jan./Jun. 2006 to. Como se pôde observar na maioria dos relatos, os clientes eram orientados a participar de um grupo psi- coterapêutico, e que este espaço era oportuno para aliviar as angústias vivenciadas durante o processo paralelo da terapia do volante. No que diz respeito aos resultados positivos alcan- çados por meio da terapia do volante, acredita-se que Sobre o autor: Renata da Rocha Campos Franco é psicóloga, doutoranda do Programa de avaliação psicológica da Universidade São Francisco e pesquisadora do Laboratório de Avaliação Psicológica em Saúde Mental da Universidade São Francisco (LAPSAM). Bolsista CAPES. Recebido em janeiro de 2006 Aprovado em março de 2006 só foram alcançados porque a psicóloga é também instrutora de veículos, sendo essa combinação bas- tante adequada às queixas dos clientes que a procu- ram. Recomenda-se este livro a todos aqueles que queiram aprofundar e tomar conhecimento sobre di- versas formas de superar os problemas relacionados ao medo de dirigir.