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http://www.fae.ufmg.br/portalmineiro Maria Madalena Silva de Assunção A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE FEMININA (MINAS GERAIS – 1920-1960) Belo Horizonte 2002 Maria Madalena Silva de Assunção A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE FEMININA (MINAS GERAIS – 1920-1960) Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutora em Educação. Linha de Pesquisa: Sociedade, Cultura e Educação Profª. Orient.: Drª. Eliane Marta Santos Teixeira Lopes Belo Horizonte 2002 Maria Madalena Silva de Assunção A PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA SUBJETIVIDADE FEMININA (MINAS GERAIS – 1920-1960) Tese defendida e aprovada, em Belo Horizonte no dia 28 de junho de 2002, pela banca examinadora constituída pelos(as) professores(as): ��������� ����� ������������� �������� ���� ����������� ���������� � ��� ����� �� �� ��� ���� ��� ����� ������� ��� � � ��� ���� ������������ ���� ���� ��� ���� �� ����� ������������������� � ���������������������� ������������� �� ����� ��������!������� ��������� ���� ������� ����������� �� �� ������� ��� "��� ������ #������������� �� � ���� ���� � ��������#��� � ��$�� ���� �� �� ��� ���� ��� �� ��� ���� ��� ��������������� �� �%��� � &� ������������ ����� �����'� �� � ����#�� � ������������ ��� �� (��������� ��� � �� �� ��� � ��)� �� ������ ��� ��������*�������� �� ��� ������������������+ ���'� ���,������ RESUMO Este estudo trata das relações entre a disciplina Psicologia da Educação, ministrada no Curso Normal, e a construção da subjetividade feminina. Para isso, tomei como local de referência o estado de Minas Gerais, e como período as décadas de 20 a 60 do século XX, por se tratar do momento de inserção, consolidação e sistematização do conhecimento psicológico. A subjetividade é aqui tratada como um processo em contínua constituição e que se dá no entrelaçamento da cultura, da história e das relações sociais, por meio da linguagem, da multiplicidade de discursos, experiências e mensagens, além de caracterizar-se como um projeto histórico para diferentes grupos, tais como: homens, mulheres, negros, pobres, ricos, etc. Como a noção de subjetividade perpassa diversas áreas do conhecimento, foi necessário buscar um arcabouço teórico que rompesse com as fronteiras do conhecimento. Assim, além da produção teórica oriunda da Historiografia, encontram-se presentes, de alguma forma, neste estudo, a Psicologia, a Psicanálise, a Antropologia, a Sociologia e a Filosofia. Como fontes para apreender o processo de construção da subjetividade feminina, foram utilizados livros didáticos de Psicologia da Educação; programas oficiais de ensino da disciplina Psicologia da Educação; a Revista do Ensino de Minas Gerais; revistas de entretenimento; legislação sobre o ensino; obras literárias; dentre outros materiais. O discurso psicológico presente no processo de escolarização, bem como o deslocamento desse discurso para materiais ‘não-pedagógicos’, trouxe, certamente, inúmeras contribuições para a fabricação e o engendramento da subjetividade feminina. Os discursos e mensagens veiculam um modelo, um imaginário e representações sobre a mulher, a mãe e a professora, ficando perceptível a invisibilidade das mulheres e o silenciamento sobre questões acerca da feminilidade, da masculinidade e da vivência da sexualidade. A mulher, a mãe e a professora são apenas faladas pelo outro. Elas não têm a fala, não se constituem como sujeitos de seus desejos e de suas expectativas. ABSTRACT This study deals with the relation between the school subject ‘The Psychology of Education’ taught at Curso Normal, a Teacher Training Course and the construction of feminine subjectivity. The schools selected for this research are located in the state of Minas Gerais and the time period chosen for analysis starts in the 1920’s and ends in the 1960’s. This particular time span has been focused on because it coincides with the consolidation and systematization of psychological studies. Subjectivity is viewed here as a continuous process, actualized in the interface of culture, history and social relations by the use of language, the multiplicity of discourses, experiences and messages. It is also characterized as a historical project by different groups, such as men, women, blacks, the poor, the rich and others. Since the notion of subjectivity permeates different areas of knowledge, it was necessary to search for a theoretical framework that went beyond the borders of scientific knowledge. Therefore, the present work has made use of the theoretical constructs devised by historians as well as theories used by such disciplines as psychology, psychoanalysis, anthropology, sociology and philosophy. In order to shed light on the mechanism of construction of feminine subjectivity, a wide variety of materials was used. These include text books on the psychology of education, the journal Revista do Ensino de Minas Gerais, laws and regulations on teaching, literary works and entertainment magazines. The psychological discourse present in the educational environment and the transference of this discourse to non-pedagogical materials have contributed significantly to the construction of feminine subjectivity. The discourses and messages portray a model, image and representation of women, mothers and teachers in which is perceptible the invisibility of women and the silence concerning questions about femininity, masculinity and the experiencing of sexuality. Women, mothers and teachers reveal themselves through the speech of other individuals. They do not have a voice and do not control their own desires and expectations. RÉSUMÉ Cette étude porte sur les rapports entre la Psychologie de l’Education, discipline ministrée au Cours ‘Normal’ (de formation d’instituteurs), et la construction de la subjectivité féminine. Pour ce faire, j’ai pris comme lieu de référence l’état de Minas Gerais et, comme période d’observation, les décennies de 1920 à 1960, moment d’insertion, de consolidation et de systématisation de la connaissance psychologique. La subjectivité est traitée ici comme un processus toujours en train de se constituer et qui a lieu au carrefour de la culture, de l’histoire et des rapports sociaux, par l’intermédiaire du langage, de la multiplicité des discours, des expériences et des messages, se caractérisant en plus comme un projet historique pour des différents groupes : les hommes, les femmes, les noirs, les pauvres, les riches, etc. Comme la notion de subjectivité travers différents domaines de la connaissance, il a fallu chercher une charpente théorique qui puisse rompre les frontières entre ces domaines. Ainsi, en dépassant la production historique qui provient de l’Historiographie, on trouve présents, d’une façon ou d’une autre, dans cette étude, des apports de la Psychologie, de la Psychanalyse, de l’Anthropologie, de la Sociologie et de la Philosophie. Comme corpus pour apréhender le processus de la construction de la subjectivité féminine, on a eu recours à des livres didactiques de Psychologie de l’Education, à des cursus officiels d’enseignement de cette même discipline, à la Revista do Ensino de Minas Gerais, à des magasines, à des oeuvres littéraires et à la législation portant sur l’enseignement, parmi d’autres documents de recherche. Le discours psychologique présent dansle processus de scolarisation, ainsi que le déplacement de ce discours vers des matériaux ‘non-pédagogiques’, a apporté, certainement, de nombreuses contributions pour la fabrication et l’engendrement de la subjetctivité féminine. Les discours et les messages véhiculent un modèle, un imaginaire ainsi que des représentations de la femme, de la mère et de l’institutrice, qui permettent qu’on se rende compte de l’invisibilié des femmes aussi bien que du silence autour des questions de féminité, de masculinité et e l’expérience de la sexualité. Cést toujours l’autre qui parle à la place de la femme, de la mère et de l’institutrice. Celles-ci n’ont jamais la parole, elles ne se constituent pas comme sujets de leurs désirs ni de leurs attentes. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 13 1.1. Da seleção à circunscrição do objeto................................................................................... 13 1.2. A Psicologia da Educação: questões atuais......................................................................... 16 1.3. Delimitando o objeto de pesquisa ........................................................................................ 24 1.4. O processo de escolarização e suas relações com a construção do sujeito ....................... 25 1.5. A subjetividade: uma leitura nas interfaces teóricas........................................................... 28 1.6. A fabricação da mulher/professora: intra e extra muros da escola .................................... 34 1.7. Uma disciplina escolar: a Psicologia da Educação ............................................................. 48 2. METODOLOGIA................................................................................................................. 55 2.1. Periodização e local da pesquisa .......................................................................................... 59 2.2. O processo de construção das fontes ................................................................................... 61 2.2.1. O livro didático...................................................................................................................... 64 2.2.2. Os programas de Psicologia da Educação........................................................................... 69 2.2.3. Produção teórica em Psicologia/Educação.......................................................................... 73 2.2.4. Fonte oral: entrevistas com ex-alunas e ex-professores(as) do Curso Normal ................. 74 2.2.5. Cadernos de anotações de aulas de Psicologia e trabalhos elaborados pelas alunas ........ 76 2.2.6. Revistas de entretenimento................................................................................................... 77 2.2.7. Memórias escritas de ex-professores(as) e ex-alunas do Curso Normal........................... 79 2.2.8. Fotografias, relatos de cerimônias: missas, festas de formatura, festas de despedida, cadernos de recordação......................................................................................................... 79 2.2.9. A Revista do Ensino de Minas Gerais ................................................................................. 79 3. PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO: OS DESAFIOS DE UMA RELAÇÃO ..................... 107 3.1. A modernidade e a influência no pensamento psicológico no Brasil.............................. 107 3.1.1. Em Minas Gerais................................................................................................................. 110 3.2. As idéias psicológicas no Brasil: origem e desenvolvimento .......................................... 112 3.2.1. As Escolas Normais e a Psicologia.................................................................................... 118 3.3. O cenário educacional no Brasil ........................................................................................ 121 3.4. Os fundamentos da Escola Nova e a Psicologia ............................................................... 123 3.5. O movimento reformista: o impacto em alguns estados brasileiros ................................ 128 3.5.1. Em Minas Gerais................................................................................................................. 130 3.6. Os primeiros movimentos da Psicologia no Brasil........................................................... 143 3.7. Os primeiros movimentos da Psicologia em Minas Gerais ............................................. 147 3.8. A criança: um enigma a ser decifrado ............................................................................... 157 4. AS VOZES DA PSICOLOGIA NA EDUCAÇÃO......................................................... 162 4.1. Os programas de ensino de Psicologia Educacional......................................................... 162 4.2. Os livros didáticos de Psicologia Educacional.................................................................. 183 4.2.1. O que é Psicologia............................................................................................................... 203 4.2.2. Paixão, prazer e dor............................................................................................................. 221 4.2.3. Personalidade, caráter e temperamento ............................................................................. 237 5. A PROFESSORA, A MÃE E A MULHER NA REVISTA DO ENSINO ................... 249 5.1. A professora na Revista do Ensino .................................................................................... 251 5.2. A mãe na Revista do Ensino .............................................................................................. 280 5.3. A mulher na Revista do Ensino.......................................................................................... 284 6. OUTROS DISCURSOS... MESMOS DISCURSOS ...................................................... 298 7. O ‘ETERNO RETORNO DO MESMO’.......................................................................... 358 BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................... 380 FONTES............................................................................................................................................. 396 ANEXOS ........................................................................................................................................... 415 Anexo n. 1 – Revista do Ensino de Minas Gerais – Quadro de publicação ............................... 416 Anexo n. 2 – Programa de Pedagogia, Psicologia Infantil e Higiene, aprovado pelo Decreto 6.832 de 20 de março de 1925 ................................................................................ 420 Anexo n. 3 – Programa de Psicologia Educacional – 1o ano do Curso de Aplicação – Decreto 8.225 de 11 de fevereiro de 1928............................................................................ 422 Anexo n. 4 – Programa de Psicologia Educacional – 2o ano do Curso de Aplicação – Decreto 8.225 de 11 de fevereiro de 1928............................................................................ 425 Anexo n. 5 – Programa de Psicologia Educacional para o Ensino Normal – 1o ano do Curso de Aplicação – 1934 ................................................................................................ 427 Anexo n. 6 – Programa de Psicologia Educacional para o Ensino Normal – 2o ano do Curso de Aplicação – 1934 ................................................................................................ 428 Anexo n. 7 – Programa de Noções de Psicologia Infantil – 3o ano – 1934............................... 429 Anexo n. 8 –Programa de Psicologia Educacional para as 3 (três) séries do Curso Normal – aprovado pelo Decreto 6.879 de 13 de março de 1963......................................... 431 Anexo n. 9 – Programa de Psicologia Educacional organizado por Iva Waisberg Bonow – 1968 .......................................................................................................................... 435 Anexo n. 10 – Quadro geral dos livros didáticos ........................................................................... 436 Anexo n. 11 – Quadros, por autor, dos conteúdos dos livros didáticos ........................................ 439 Anexo n. 11.1– Afro do Amaral Fontoura....................................................................................... 439 Anexo n. 11.2– Antônio de Sampaio Dória..................................................................................... 443 Anexo n. 11.3– Antônio Xavier Teles.............................................................................................. 444 Anexo n. 11.4– Guerino Casasanta .................................................................................................. 445 Anexo n. 11.5– Iago Victoriano Pimentel........................................................................................ 446 Anexo n. 11.6– Iva Waisberg Bonow .............................................................................................. 448 Anexo n. 11.7– Justino Mendes........................................................................................................ 449 Anexo n. 11.8– Manoel José do Bomfim......................................................................................... 450 Anexo n. 11.9– Noemy da Silveira Rudolfer................................................................................... 453 Anexo n. 11.10– Ruy de Ayres Bello............................................................................................... 455 Anexo n. 11.11– Theobaldo Miranda Santos .................................................................................. 456 Anexo n. 12 – Quadro dos livros didáticos de Psicologia Educacional por décadas................... 458 Anexo n. 13 – Artigos de Psicologia na Revista do Ensino de Minas Gerais – Década de 20 ... 459 Anexo n. 14 – Artigos de Psicologia na Revista do Ensino de Minas Gerais – Década de 30 ... 461 Anexo n. 15 – Artigos de Psicologia na Revista do Ensino de Minas Gerais – Década de 40 ... 467 Anexo n. 16 – Artigos de Psicologia na Revista do Ensino de Minas Gerais – Década de 50 ... 469 Anexo n. 17 – Artigos de Psicologia na Revista do Ensino de Minas Gerais – Década de 60 ... 470 Anexo n. 18 – Quadro de publicação da revista A Ordem............................................................. 471 Anexo n. 19 – Quadro de publicação da revista Cláudia .............................................................. 474 Anexo n. 20 – Quadro de publicação da revista O Cruzeiro ......................................................... 475 Anexo n. 21 – Quadro de publicação da revista Fon Fon ............................................................. 477 Anexo n. 22 – Quadro de publicação da revista Manchete ........................................................... 480 Anexo n. 23 – Quadro de publicação da revista Pais & Filhos..................................................... 482 Anexo n. 24 – Quadro de publicação da revista Realidade ........................................................... 483 1. INTRODUÇÃO Como no entender que uno de los campos de la historia de la educación es la historia de los procesos de conformación de la mente humana, la misma mente humana como producto socio- histórico? (Antônio Viñao Frago, 1995:66). A honestidade científica parece-me exigir que o historiador, por um esforço de tomada de consciência, defina a orientação do seu pensamento, explicite os seus postulados (na medida em que isso é possível); que se mostre em acção e nos faça assistir à génese da sua obra; por que motivo e como escolheu e delimitou o seu assunto; aquilo que procurava, aquilo que encontrou; que descreve o seu itinerário interior, porque toda a investigação histórica, se é verdadeiramente fecunda, implica um progresso na própria alma do seu autor: o ‘encontro de outrem’, de espantos em descobertas, enriquece-o, transformando-o (H. I. Marrou, 1975:214). 1.1. Da seleção à circunscrição do objeto Este estudo tem como objetivo central refletir sobre as possíveis influências da Psicologia da Educação, ensinada à aluna do Curso Normal, na constituição de sua subjetividade. O período abordado abrange as décadas de 20 a 60 do século XX, em Minas Gerais. Buscando, nesse período, as pistas, os fragmentos que possam ter contribuído, com maior intensidade, para a construção de um modelo do feminino. O interesse em realizar tal pesquisa ancora-se em duas situações complementares. A primeira, relacionada à possibilidade de aprofundar algumas das questões abordadas em minha dissertação de mestrado, e a segunda, relacionada às minhas experiências como professora de Psicologia da Educação. Nesta pesquisa, constatei que não havia como separar a prática profissional da mulher- professora de sua constituição, suas experiências e expectativas sociais em relação à função e ao papel “designado” socialmente à mulher. Pude também observar como sua prática docente e o cotidiano escolar encontram-se impregnados de um imaginário sobre seu papel profissional, e que este se encontra entrelaçado às representações sobre seu papel como mulher. Essas representações têm, na escola e no trabalho com crianças, um espaço e condições propícias para seu florescimento e sua materialização. Verifiquei também, junto às professoras primárias que participaram desta pesquisa, um interesse especial e uma certa idealização em relação ao conhecimento oriundo da Psicologia. Mas, paradoxalmente, parece que o expressivo interesse não se relaciona de imediato com a preparação para a docência, mas com a possibilidade de melhor lidar com as dimensões pessoais e afetivas relacionadas ao cotidiano da aluna-professora. Na pesquisa de mestrado, ao trabalhar com a categoria gênero, enfocando em especial a mulher, passei a trilhar novos caminhos, como também caminhos complementares, apontados pela Psicologia e pela História, para refletir a respeito da construção da subjetividade feminina. A segunda situação que me impulsionou a desenvolver esta pesquisa se relaciona com minhas experiências como professora de Psicologia da Educação. Ao iniciar a profissão de professora, trabalhei durante muitos anos no Curso de Magistério. Posteriormente, continuei a trabalhar com a mesma disciplina nos Cursos de Licenciaturas e de Pedagogia, o que faço até hoje. Trabalhando com formação de professores(as), em instituições públicas e privadas, mesmo em graus de ensino diferenciados, tive a oportunidade de conviver com as alunas do Curso de Magistério, bem como com as alunas do Curso de Pedagogia, o que me levou a determinadas indagações e me instigou, como professora e também como mulher, a ter um olhar mais atento a respeito da educação feminina. Ou seja, somente quando o presente está fortemente presente é que viabiliza pensar e ver outras coisas sobre o passado, mais do que o próprio passado podia ver em si mesmo. Fui observando, no decorrer deste tempo, certa recorrência no tipo de questões abordadas pelas alunas na sala de aula. Essas questões sempre foram insistentes e permanentemente perpetradas, na esperança de uma solução aos conflitos e dúvidas das mais diversas ordens por estas apresentadas. A partir da interação e das dúvidas das alunas, tudo indicava que a Psicologia era vista e entendida pelas mesmas para atender a uma outra demanda, a uma demanda da ordem do não- saber, que não se relacionadiretamente com a dimensão intelectual e cognitiva que a fundamentasse no projeto de se tornar professora. Que demanda é essa que a aluna faz à Psicologia? Seria realmente um saber sistematizado, construído teoricamente, que a habilitasse à docência? Ou seria o desejo de saber sobre si própria, sobre seus enigmas, sobre o que é ser feminino/masculino, sobre o que é ser desejada e desejar, sobre o que é ser mãe, sobre os enigmas do ser criança (muito mais sobre o(a) futuro(a) filho(a) do que o(a) futuro(a) aluno(a)), sobre o que é ser mulher? Essa demanda estaria relacionada à ‘habilitação’ para se tornar mãe/mulher/professora? Na teia das indagações e das expectativas, ela, a aluna, parece esperar a resposta da Psicologia, que, por outro lado, parece se propor responder. Anterior a tais demandas à Psicologia, existe, certamente, uma representação sobre essa área do conhecimento que sustenta e viabiliza tais solicitações. Essas representações parecem relacionar-se especificamente com a Psicologia, pois, do contrário, esse fato ocorreria com outras áreas do conhecimento presentes nos Cursos de Formação de Professores(as); no entanto, esse tipo de comportamento das alunas é recorrente apenas na Psicologia. De modo geral, as questões levantadas pelas alunas em sala de aula tangenciam o desenvolvimento infantil em suas dimensões física, cognitiva, afetiva e, principalmente, sexual; apresentam dúvidas a respeito de um sujeito determinado: o(a) filho(a), o(a) sobrinho(a), o(a) irmãzinho(a), o(a) afilhado(a)... etc. Se essas questões são feitas pelas mulheres à Psicologia, isso leva-nos a indagar sobre essa mulher e sobre essa Psicologia: Seria possível localizar o momento fundante de tais expectativas em relação ao saber psicológico? Por que as alunas continuam, insistentemente, fazendo as mesmas perguntas? A Psicologia daria a elas o saber sobre o que é ser mulher, sobre o que é ser mãe? E o saber para se tornar professora? A partir de tais indagações, somos levados a perguntar sobre a importância - talvez pouco explícita nas propostas ou pouco discutida por nós - da Psicologia na formação de professores(as). O encanto que a Psicologia exerce sobre as alunas parece, assim, não passar pelo discurso científico produzido por essa área do conhecimento, mas sim por um saber que responderia às dúvidas cotidianas e que orientaria a dimensão afetiva da aluna. Levando-nos a indagar sobre a produção das expectativas das alunas em relação à Psicologia, bem como sobre o que se produz teoricamente neste campo e o que se ensina nos Cursos de Formação. O ensino da Psicologia, a partir de sua implantação como disciplina do Curso Normal, apresenta algumas características que podem se relacionar com tais demandas das alunas. Resta-nos, portanto, entender a interpretação e/ou a reinterpretação desse saber. Sendo a Psicologia uma disciplina que, de acordo com as alunas, mais as influencia/ou em sua ‘formação’, será por essa razão que tais perguntas são feitas? Será este um fato que vem ocorrendo apenas nos últimos anos, ou será um fato presente desde os primórdios do ensino da Psicologia no Curso Normal? Será que essa influência se relaciona diretamente com a questão da profissionalização, ou, muito mais, com o saber psi? Se assim for, talvez possamos afirmar que, por ser a Psicologia, por excelência, a área do conhecimento que estuda o indivíduo que sente, que sofre, que pensa, que se frustra, que se alegra, etc., estará, portanto, mais próxima das questões relacionadas à subjetividade do indivíduo, contribuindo para o conhecimento de si próprio e do outro, o que poderia esclarecer o interesse e expectativa das alunas em relação a esse saber. Esse lugar que a Psicologia ocupa nos Cursos de Formação tem, certamente, uma história. Não apenas uma história que se restringe à carga horária, aos conteúdos programáticos, etc., mas, principalmente, uma história que diz do lugar que ela ocupou e ocupa no imaginário e nas expectativas das alunas. Repensar esse lugar da Psicologia, com o auxílio da história, trará, certamente, contribuições para que possamos compreender a constituição da subjetividade de gerações de mulheres, que educaram e educam outras e outras mulheres, e algumas vezes homens, perpetuando, de certo modo, um jeito de se ver, de se sentir, de se tratar, de se colocar como mulher e como professora e assim, como chave de entrada no passado, em busca de algum sinal que possa, juntamente com os sentimentos, afetos, gestos apreendidos no presente, montar todos esses fragmentos em busca de um outro entendimento que temos de nos haver com ele no presente (Eliane Marta Santos Teixeira Lopes, 1990:31). Em síntese, é a partir das experiências mencionadas que levanto a possibilidade de uma estreita relação entre o conhecimento oferecido pela Psicologia e a subjetividade feminina, tão presentes na prática pedagógica e na vida pessoal da mulher-professora. Em especial, busco compreender a importância da Psicologia da Educação, como disciplina cursada pelas alunas no Curso Normal, como um conhecimento que contribuiu para a formação da mulher. Entretanto, antes de prosseguir com a discussão sobre essas questões, julgo importante apresentar e refletir sobre as pesquisas atuais que tomaram como objeto de estudo a Psicologia Aplicada à Educação, enquanto uma disciplina escolar que compõe o currículo de formação de professores(as). 1.2. A Psicologia da Educação: questões atuais Em 27 de agosto de 1962, a Lei Federal n. 4.119, que regulamentava o exercício da profissão de psicólogo(a), fixava também as diretrizes para sua formação. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo em que foi aprovada a regulamentação legal da profissão do(a) psicólogo(a). É notório o estreito vínculo, historicamente estabelecido, entre Psicologia e Educação e, com a criação do Curso de Psicologia, em 1962, muitos dos(as) primeiros(as) professores(as) que ministravam aulas, nesses cursos, eram oriundos(as) da área educacional, o que leva a supor o estreitamento contínuo dos laços entre a Psicologia e a Educação. Entretanto, apesar das estreitas relações entre essas duas áreas, essa co-dependência nem sempre se deu de forma harmoniosa. Em função disso, a partir da década de 60 e, mais explicitamente, na década de 70 e nas que se sucedem, inúmeros questionamentos e críticas foram sendo elaborados, mais explicitamente, a respeito da aplicação da Psicologia à Educação. A tônica dos Cursos de Psicologia era, como atualmente ainda é, para o Bacharelado e não para a Licenciatura1, com uma grade curricular que não contempla as disciplinas pedagógicas, 1 Cf. Maria Madalena Silva de Assunção (1999). e seriam esses(as) profissionais que atuariam na área educacional. O(a) psicólogo(a), mesmo com uma formação quase exclusiva na área clínica, ocupou espaços na área da educação: seja como psicólogo(a) escolar, seja como professor(a) de Psicologia nos Cursos Normal/Magistério, Pedagogia e Licenciaturas. Talvez essa formação dos(as) professores(as) de Psicologia possa trazer pistas para um entendimento a respeito dos conteúdos abordados no ensino da Psicologia da Educação, bem como pistas sobre as representações acerca da Psicologia da Educação na atualidade. A Psicologia Aplicada à Educação, principalmente a Psicologia como uma disciplina escolar que faz parte, até certo ponto de modo privilegiado, do currículo de formação de professores(as), tem sido objeto de estudo de pesquisadores(as) que buscam um entendimento sobre as complexas relações existentes entre a Educação e a Psicologia. Os estudos recentes em torno da relação psicologia e pedagogia cessaram de revelar uma consensual confiança no papel edificante que a psicologia poderia exercer sobre a pedagogia. A própria temáticada criança alargou-se de tal modo para além da psicologia, e esta retalhou a tal ponto seu objeto, que, desde os anos 60, mal se ouve falar naquele promissor ramo da psicologia. Mas, se o otimismo de Baldwin e Claparède foi fraudado, isso se deveu menos à pouca presença normativa da psicologia na configuração do campo pedagógico do que ao seu grau de participação nos insucessos das pedagogias do século, de um lado e, de outro, na dose constrangedora de absenteísmo diante dos problemas crescentes da educação escolar (Marta Maria Chagas de Carvalho, 1997:307). Pesquisas atuais vêm privilegiando a relação entre Psicologia e Educação/Pedagogia e as tensões advindas dessa relação. Esses estudos, ainda que de natureza diversa e realizados em momentos e locais diferenciados, trazem em sua origem uma preocupação singular, que é a de investigar, conhecer e melhor configurar a aplicação da Psicologia na formação do(a) futuro(a) professor(a). De modo a situar tal produção, apresento aqui uma síntese de alguns desses estudos2. Maria do Socorro Cavalcanti (1982) desenvolveu seu estudo no estado de Alagoas, pesquisando tanto professores(as) de Psicologia da Educação como alunos(as) das Licenciaturas, buscando analisar as influências dessa disciplina nos(as) futuros(as) professores(as). Constatou que os(as) alunos(as) afirmam não sofrer nenhuma influência dessa disciplina e, segundo os(as) professores(as), há a necessidade de mudanças significativas na forma como é ministrada a Psicologia da Educação nos Cursos de Licenciatura. A pesquisa de Íris Barbosa Goulart (1985) analisa a trajetória da Psicologia da Educação em Minas Gerais (décadas de 20 a 80), utiliza depoimentos de profissionais que partilharam da construção da história da Psicologia Educacional em Belo Horizonte, e afirma que a Psicologia 2 Ainda outros trabalhos tratam desta questão: Manoel Feitosa Júnior (1991), Adil Margarete Visentini Kitahara (1992). consumida em Minas foi uma Psicologia importada da Europa e dos Estados Unidos. Eleusa Maria Montenegro (1987) discute a respeito da disciplina Psicologia da Educação, ministrada nas Licenciaturas no Estado de Goiás, tomando como referência as concepções teóricas dos(as) professores(as) que ministram essa disciplina. Finaliza sua pesquisa apontando para a ausência de consenso, quanto ao conteúdo a ser ensinado, entre os(as) professores(as), identificando uma tendência para a utilização da teoria piagetiana e uma outra, denominada pelos(as) professores(as) de “eclética”. Lisandre Maria Castelo Branco (1988) realiza, em São Paulo, um estudo sobre a Psicologia ensinada e sobre a Psicologia praticada em sala de aula e a proposta oficial apresentada para essa disciplina. Analisa programas e bibliografia de Psicologia Educacional dos Cursos de Magistério de 2° Grau, Pedagogia e Licenciaturas. A partir de suas investigações conclui que a Psicologia praticada pelo(a) professor(a) está muito mais próxima de uma percepção pessoal do que dos conhecimentos teóricos adquiridos na formação ou oriundos dessa área. Escolástica Fornari Puttini (1988) investiga sobre a prática pedagógica dos(as) professores(as) da disciplina Psicologia Aplicada à Educação no Curso Magistério, em São Paulo, e suas análises evidenciam que, da forma como esta disciplina é ministrada, não vem oferecendo contribuições significativas para a futura prática docente dos(as) professores(as) das classes iniciais. Sônia de C. Urt (1989) a partir das marcas históricas e epistemológicas investiga sobre a condição de ‘crise’ vivida pela Psicologia da Educação. Sua análise foi efetuada a partir de dados coletados com 5 (cinco) professores(as) especialistas em Psicologia da Educação, em São Paulo, que abordaram sobre a crise e as possibilidades da Psicologia da Educação. Aceli de Assis Magalhães Caparroz (1992) investiga em seu estudo a contribuição da Psicologia da Educação na formação de professores(as) em Cursos de Licenciatura de faculdades particulares da cidade de São Paulo. Conclui, por intermédio dos dados coletados, que a disciplina é desintegrada no que diz respeito a seus conteúdos, estratégias de aula e avaliação, bem como que a disciplina Psicologia é desarticulada de outras disciplinas que fazem parte do currículo da formação do(a) professor(a). Stela Maris da Silva Ióris (1993) realizou, no Paraná, um estudo junto a docentes da disciplina Psicologia da Educação, com o objetivo de verificar o pensamento dominante que direciona o ensino dessa disciplina no Curso de Formação de Professores(as). Concluiu que o ensino da Psicologia da Educação reproduz um discurso esvaziado, fragmentado, tornando-se mera cópia dos manuais didáticos. Os resultados a que essas pesquisas chegaram não mostram um quadro promissor da Psicologia da Educação, parece que, sob certos aspectos, frustrando as esperanças e as orientações contidas nas diretrizes de muitos(as) educadores(as) do período áureo da Escola Nova. Mas as construções históricas da psicologia, neste século, não ofertam respostas satisfatórias às perguntas sobre as razões pelas quais a psicologia operou no campo pedagógico não exatamente da forma preconizada pelos seus heróis-fundadores. De um lado, substituiu a filosofia na função normativa da educação, e não pautou as práticas pedagógicas nas práticas científicas (Marta Maria Chagas de Carvalho, 1997:307). Se por um lado a Psicologia, com suas produções, publicações, articulações e aplicações, em especial na educação, possibilitou e possibilita a construção de expectativas e interesses já mencionados, por outro, convive com uma série de críticas à sua aplicação no ensino. Críticas que se fundam no princípio de que a contribuição da Psicologia à formação de professores(as) seria a de fornecer os elementos necessários para a compreensão da subjetividade do indivíduo e dos aspectos relacionados à aprendizagem, ao desenvolvimento, à cognição, à afetividade e como estes se articulam na construção do conhecimento. Esses estudos, que têm como objeto o ensino da Psicologia da Educação no Curso de Magistério, Licenciaturas e Pedagogia, trazem reflexões e, principalmente, críticas, que não são poucas. Apesar das críticas, ou até mesmo devido a elas, conta-se com um rico material para a análise e para um repensar dessa disciplina. Como são inúmeras essas reflexões críticas, agrupei aqui as mais recorrentes: � Crítica à hegemonia da Psicologia nos Cursos de Formação de Professores(as), tornando a prática educativa direcionada por um psicologismo que pouco coincide com o conhecimento sistematizado dessa área. Esse tipo de crítica teve início, principalmente na década de 70, questionando a articulação entre a Psicologia e Pedagogia, como pode ser observado no texto de Ana Maria Poppovic (1971:2): [...] é de se lamentar [...] a falta de coordenação e entrosamento entre a Pedagogia e a Psicologia. Enquanto aquela raramente se preocupa em usar os dados proporcionados pelas pesquisas psicológicas, esta, com muita freqüência, permanece num campo teórico, sem chegar a conclusões práticas de utilidade para a psicologia. � Crítica ao papel da Psicologia por contribuir, a partir de sua prática, para a continuidade de uma ideologia dominante, para a continuidade da discriminação e estigmatização da classe popular. Isso, principalmente, devido a seus estudos sobre as diferenças individuais – Psicologia Diferencial –, que serviram para individualizar o fracasso escolar da classe popular, excluindo toda a contribuição dos fatores econômicos/sociais/culturais na produção desse fracasso, tornando particular o que é social. A conseqüência disso foi uma tendência de se ver a Psicologia como um conjunto de prescrições para a educação e para a solução dos problemas relacionados àaprendizagem3, principalmente à não-aprendizagem. � Críticas à Psicologia por seu caráter ideológico e psicologizante em sua utilização na Educação, bem como sua descontextualização e abstração ao abordar o indivíduo, fora de suas relações sociais. Ênfase na natureza individual do sujeito independentemente do meio social, de modo a ajustá-lo à sociedade. Parece que a Psicologia e o ensino dessa disciplina ainda se encontram fortemente impregnados da antinomia indivíduo versus sociedade4. � Críticas ao ensino da Psicologia por sua forma burocratizada de ser ministrada, sendo apresentada como um conjunto de pontos escolares a serem ensinados, procedentes de índices de livros, sem uma análise mais profunda sobre as contribuições efetivas que tal disciplina poderia oferecer à formação dos(as) futuros(as) profissionais da educação5. � Críticas à Psicologia da Educação por ser ministrada de forma desintegrada no que diz respeito a seus conteúdos, estratégias de aula e avaliação. O conteúdo e o ensino dessa disciplina são desarticulados de outras que compõem a formação do(a) professor(a). Além disso, a Psicologia praticada pelo(a) professor(a) se sustenta mais em uma percepção pessoal do que propriamente nos conhecimentos teóricos adquiridos em sua formação6. � Críticas aos(às) que ministram essa disciplina nos Cursos de Formação de Professores(as), por serem, em sua maioria, pedagogos(as) com um conhecimento limitado da área da Psicologia, dificultando, assim, as articulações necessárias entre Psicologia e Educação7. � Críticas aos conteúdos trabalhados pelos(as) professores(as), pois parece que estes(as), por não conhecerem os propósitos da disciplina, acabam por elencar um rol de temas e teorias, conforme a ordem de sua preferência e/ou conhecimento, gerando um ensino desarticulado a partir de temas/assuntos os mais variados. Essa diversidade de temas pode estar ligada à superficialidade dos conhecimentos daqueles(as) que atuam como professores(as) nesta disciplina. Assim, a Psicologia da Educação tem-se tornado um espaço livre ou de “perfumaria”, no qual os mais variados temas são tratados sem fidelidade aos conhecimentos produzidos no campo da Psicologia8. 3 Cf. Maria Helena Souza Patto (1984, 1990). 4 Cf. Stela Maria da Silva Ióris (1993), Antônio Flávio Barbosa Moreira (1997), Maria Helena Souza Patto (1984, 1990). 5 Cf. Escolástica Fornari Puttini (1988) e Conselho Regional de Psicologia – 6a Região / Sindicado de Psicólogos no Estado de São Paulo (1986). 6 Cf. Maria Madalena Silva de Assunção (1994), Lisandre Maria Castelo Branco (1988), Aceli de Assis Magalhães Caparroz (1992), Stela Maris da Silva Ióris (1993). 7 Cf. Aceli de Assis Magalhães Caparroz (1992), Stela Maris da Silva Ióris (1993). 8 Cf. Aceli de Assis Magalhães Caparroz (1992), Stela Maris da Silva Ióris (1993). Das pesquisas mais recentes sobre o ensino da Psicologia da Educação, é possível inferir que esta tem contribuído muito pouco, quando não tem sido usada até mesmo para justificar cientificamente a seletividade existente ou para fundamentar medidas paliativas e não transformadoras (Bernadete Angelina Gatti, 1995:15-16). A autora ainda questiona sobre o que se tem ensinado de Psicologia aos “milhares de alunos” dos Cursos de Magistério, Pedagogia, Psicologia e Licenciaturas. Questiona também sobre os materiais utilizados, que não passam de manuais, sendo a maioria deles tradicionais e traduzidos de originais antigos e repletos de erros. Além disso, ainda ensina-se uma Psicologia abstrata, modeladora, sem pontos de contato com a realidade escolar. Falta-nos construir as pontes entre os modelos explicativos e o concreto vivido. Este é o papel do ensino, e os profissionais de Psicologia da Educação parecem não ter se preocupado ou conseguido erguer essas pontes (Bernadete Angelina Gatti, 1995:16). Questões como essas, apontadas por Bernadete Angelina Gatti (1995), juntam-se a outras similares que vêm indagando sobre: a função e a efetiva contribuição do ensino da Psicologia para a prática do(a) professor(a); os conteúdos ministrados; a formação dos(as) professores(as) que ministram essa disciplina; as concepções psicológicas veiculadas nos cursos; as representações existentes acerca da Psicologia na formação de professores(as); as expectativas dos(as) alunos(as) e professores(as). Apesar de todas essas críticas dirigidas à Psicologia e à sua aplicação ao ensino, talvez tivéssemos que refletir sobre o que é constitutivo da Psicologia. Sua constituição como uma área do conhecimento tem como modelo uma perspectiva médica/clínica, ou seja, diagnóstica e curativa das ‘anormalidades e doenças’ psíquicas. Desse modo, somos levados a pensar que a aplicação desses conhecimentos na área da educação/ensino foi sempre marcada por uma tensão (pouco explícita), devido a essa transposição linear dos conhecimentos oriundos de seu campo de produção para o campo educativo. Marta Maria Chagas de Carvalho (1997:308) explica as dificuldades presentes na relação entre a Psicologia e a Educação, afirmando que se a questão que surgiu a partir da segunda metade do século XIX, que assegurava ser a criança o elo que articularia a Psicologia e a Pedagogia, não teve como efeito práticas pedagógicas mais proveitosas para a infância, o problema não deve ser procurado na lógica interna das relações entre aquelas disciplinas, mas sim na impossibilidade de ambas darem conta, porque são o seu próprio espelhamento, das condições sociais nas quais a sua infância é negada. Mediante o quadro apresentado da Psicologia da Educação, talvez tenhamos que, como Lucien Febvre (1986:224), indagar: o que entender da Psicologia? Aquela espécie de sabedoria um tanto sentenciosa, à base de provérbios antigos, de recordações literárias murchas, de prudências adquiridas ou herdadas que serve de guia aos nossos contemporâneos nas suas relações quotidianas com os seus semelhantes? Apesar de, e talvez pelas críticas, observamos que os Cursos de Formação de Professores(as) deram e continuam dando certa ênfase ao ensino da Psicologia. Esta continua tendo uma centralidade no currículo, nem tanto em sua carga horária, mas trata-se de uma disciplina que se destaca sob o ponto de vista dos(as) alunos(as). Ambiguamente, esse interesse em torno da Psicologia parece não corresponder a um conhecimento teórico a ser aplicado na vida profissional, mas sim às questões relacionadas aos inúmeros desejos e perguntas sobre o lugar do feminino/masculino. Esse mapa da Psicologia traz, contraditoriamente, um aspecto bastante positivo: a necessidade de se refletir sobre esses fatos. Verificamos que, só recentemente, as questões relacionadas ao ensino da Psicologia, principalmente nos Cursos de Formação de Professores(as), estão sendo investigadas nos trabalhos de pós-graduação9. Isso demonstra não só a preocupação com o tema, mas também uma mudança significativa na concepção entre os(as) profissionais da Psicologia, que viam (e talvez muitos ainda vejam!) a área e o(a) profissional do ensino como algo de menor prestígio e, assim, não investiam em estudos que trouxessem contribuições e perspectivas de mudanças para essa área. Paradoxalmente, a Psicologia, originária da Psicologia da Educação, não só não reconhece como vê como espúria tal origem. Por um lado, essas pesquisas evidenciam as dificuldades encontradas ao se fazer a passagem entre um conjunto de conhecimentos produzidos em uma área e sua aplicação ao ensino. Por outro, têm promovido, mesmo que embrionariamente, discussões com o intuito de se (re)construir a história da disciplina Psicologia da Educação, bem como o de apontar novos olhares10 para essa área do conhecimento. Essas iniciativas, bem como as pesquisas na área, mesmo sujeitasa críticas, propõem-se apresentar alternativas para as dificuldades encontradas ao ministrar essa disciplina. No entanto, é necessário refletir não só sobre as propostas, programas e/ou seleção dos conteúdos a serem ensinados, mas também sobre o hiato existente entre a assimilação de um programa elaborado por uma instância oficial (Estado, escola, grupo de coordenadores, etc.) e a recepção deste pelo(a) professor(a). Além disso, é preciso compreender a lacuna existente entre a transmissão dos conteúdos propostos no programa pelo(a) professor(a) e o quê desses conteúdos e o como são 9 Cf. Mirian JorgeWarde (1997). 10 Podemos citar como exemplo a proposta de programas de ensino para o Curso de Magistério elaborada em 1988 pela Séc. de Educação de MG, em convênio com a Faculdade de Educação/UFMG, estando incluído o programa de Psicologia da Educação. Outro trabalho é o elaborado pela Sec. de Educação de SP, em 1990, se propõe discutir os conteúdos específicos da Psicologia que devem ser ministrados no Curso de Magistério. Este documento, além do programa, apresenta diversos textos e uma ampla bibliografia a ser utilizada pelos(as) professores(as). recebidos pelos(as) alunos(as). Também é comum a imagem da Psicologia como ciência, e como disciplina escolar, estar associada ao senso comum: todos(as) têm a receita de como resolver um problema, todos(as) são psicólogos(as) natos(as) (alguns um pouco mais!). A Psicologia se transforma em tudo e nada ao mesmo tempo. A aluna quer saber sobre como resolver o problema do(a) filho(a), do marido, do(a) irmão(ã) e espera, em sala de aula, a resposta da Psicologia. Estaria sendo a Psicologia mais sugestiva do que desejou? Apesar da seriedade das pesquisas realizadas no campo da Psicologia, em algumas situações, como a de sala de aula, parece, pelos estudos aqui apresentados, que ela se transformou apenas em uma ‘sabedoria’ recheada de algumas citações bem escolhidas, de algumas máximas de efeito, revestida de belo estilo acadêmico [...]. A Psicologia: oiçamos Bouvard ou Pécuchet, robustecidos por uma experiência adquirida na convivência das modistas e dos negociantes do seu bairro e partindo daí para compor de tal modo os sentimentos de Agnès Sorel por Carlos VII ou de Luís XIV pela Montespan, que os seus pais e amigos exclamam quando os lêem: ‘É mesmo isto!’ Essa psicologia, é como o Childerico do abade Velly, que divertia o nosso bom mestre Camille Jullian: Childerico, diz Velly na sua História de França (1755), ‘Childerico foi um príncipe de grandes aventuras. Era o homem mais completo do seu reino. Tinha espírito, coragem. Tendo nascido com um coração terno, entregava-se demasiado ao amor: foi essa a razão da sua ruína [...]’ Ridículo (Lucien Febvre, 1986:224-5). Essas discussões e pesquisas só têm a contribuir com o campo e o ensino da Psicologia. Entretanto, mais que avaliar, julgar os avanços e/ou recuos trazidos pela Psicologia, torna-se imperiosa a compreensão das relações entre o que se estudou em Psicologia e as ressonâncias desses ensinamentos na vida dos(as) alunos(as). A Psicologia da Educação ensinada nos Cursos de Formação de Professores(as), independentemente de todas as críticas a ela atribuídas, ou talvez até mesmo pela forma como ela se desenvolveu, pode ter contribuído para que as alunas aprendessem e fossem construindo um certo modo de ser mulher, de ser mãe e de ser professora. Junto com o conteúdo ministrado, pelo modo como este foi ministrado, pelo material utilizado, pelo que o discurso psicológico oculta e revela simultaneamente, diria que essa disciplina também contribuiu para o disciplinamento das alunas/mulheres, futuras professoras, e para a formação do imaginário, de representações e subjetividades. A trajetória, a inserção, a consolidação e a utilização dos conhecimentos oriundos do campo da Psicologia compõem o quadro que fundamenta este estudo e que coloca como questão central a relação entre a constituição da subjetividade feminina e o ensino da Psicologia. Para tal, o pressuposto básico que sustenta esta pesquisa é o de que existe uma estreita relação entre os discursos e conceitos construídos e disseminados pela Psicologia e o processo de construção da subjetividade dos indivíduos, e, em especial, da subjetividade feminina, pois, composto pelas disciplinas escolares, o currículo é construído para ter efeito sobre os(as) alunos(as), e isso é um fato inegável. Inegável o efeito do currículo sobre os(as) alunos(as) mesmo que não tenhamos controle de seus ecos no futuro, nem possamos mensurar quais os efeitos do ponto de vista individual, mas também é inegável que convivemos com essas ressonâncias em sua dimensão social, cultural, ou seja, em sua dimensão coletiva. Buscar no passado, pistas de onde, de quem, de quando vem esse gesto ou essa expressão? (Eliane Marta Santos Teixeira Lopes, 1990:30), é o que poderá viabilizar a compreensão das possíveis imbricações existentes entre a Psicologia da Educação, disciplina do Curso Normal, e a constituição da subjetividade feminina. 1.3. Delimitando o objeto de pesquisa Apesar de já terem sido produzidos significativos trabalhos a respeito da Psicologia da Educação no Brasil e em Minas Gerais, sempre é possível fazer perguntas novas ao material antigo, e quiçá ao mesmo material já utilizado em outras pesquisas. Assim, este estudo foi desenvolvido como uma das tantas histórias que podem ser escritas sobre a Psicologia e a Educação em Minas Gerais no período enfocado; pois a escolha do tema e o seu tratamento dependem da adesão teórica e da vivência do pesquisador, o que o levará a percorrer trilhas diversas, levando-o, inevitavelmente, a resultados também diferentes. O pressuposto básico que orienta este estudo é o de que a Psicologia ensinada no Curso Normal nas décadas de 20 a 60 (século XX) contribuiu para a conformação de um determinado modelo de subjetividade feminina, pressuposto este que tem como origem minhas experiências com o ensino da Psicologia da Educação para alunas futuras professoras. Condição vivida com interrogações e perplexidades que me levou a indagar sobre o que ficou, sobre quais os rastros e lastros deixados pela Psicologia desse período, que até hoje sentimos sua presença na vida das alunas/mulheres de nossas escolas, confirmando que as mudanças de mentalidade são muito mais lentas do que as mudanças econômicas e sociais. De modo a lidar com questões que se instauram no campo do simbólico, este estudo analisa alguns dos artefatos culturais, dentre eles o saber escolarizado, existentes no período mencionado, que contribuíram para um determinado modo de pensar, de interpretar e interferir no mundo, conferindo-lhe significado e infundindo-lhe emoções e sentimentos, uma vez que os sujeitos são levados a pensar a partir e com o material que sua cultura lhes coloca à disposição. No entanto, se queremos apreender esse modo de pensar esses sentimentos precisamos começar com a idéia de captar a diferença. Traduzido em termos do ofício do historiador, isso talvez soe, simplesmente, como aquela familiar recomendação contra o anacronismo. Mas vale a pena repetir a afirmativa, porque nada é mais fácil do que deslizar para a confortável suposição de que os europeus pensavam e sentiam, há dois séculos, exatamente como o fazemos agora – acrescentando-se as perucas e sapatos de madeira. Precisamos ser constantemente alertados contra uma falsa impressão de familiaridade com o passado, de recebermos doses de choque cultural (Robert Darnton, 1986:XV). Sendo a Psicologia um dos campos discursivos no qual as alunas do Curso Normal, décadas de 20 a 60 do século XX em Minas Gerais, transitavam, podemos entender ser esse um dos conhecimentos, que juntamente com outros, contribuíram paraa tessitura de determinadas visões a respeito do ser mulher. A noção de subjetividade é aqui tratada como uma produção que abarca as relações singulares que estabelece com o campo social e material no qual determinadas formas culturais participam da regulação ou da impulsão dessa produção, e que compreende as maneiras pelas quais os indivíduos e grupos vivem sua existência. Ressaltando as múltiplas dimensões que compõem as subjetividades, minhas suposições articulam-se em torno da idéia de que se encontram inscritos, corporificados e introjetados nas subjetividades determinados modos de conhecer, de compreender, de interpretar, de significar a si próprio e suas múltiplas relações, bem como uma série de distinções, diferenciações e sensibilidades relacionadas ao ser mulher e à sexualidade enquanto realidades produzidas e experienciadas, também, no processo de escolarização. Assim, ser mulher, ou ser homem é um processo que se constrói e que é, também, perpassado pelo projeto escolar. De modo a compreender esse processo é que os discursos que circulavam na ação educativa, dentre eles o da Psicologia, bem como outros discursos presentes no momento, possibilitarão captar as múltiplas tramas que envolvem a construção da subjetividade. Assim, esta pesquisa coloca em cena a instituição escolar, que, mesmo não constituindo seu foco central, não pode ser negligenciada, por tratar-se de um espaço de produção e reprodução cultural, de formação intelectual e também de um espaço produtor e reprodutor de atitudes, de valores, das formas de se ver e de ver o mundo. A escola contribui para a construção de subjetividades masculina/feminina. E é no interior, e no cotidiano dessa escola que um currículo é colocado em ação, disciplinas são ministradas, compondo o processo de escolarização, e, de algum modo, contribuindo para que o universo feminino, que se entrelaça ao de ser professora, seja constituído. 1.4. O processo de escolarização e suas relações com a construção do sujeito O processo de escolarização produz, fundamentalmente, regulações, tanto quanto impõe demarcações sobre o que deve ser conhecido, como e quando. No núcleo dessa regulação, veicula a aprendizagem de determinadas maneiras de conhecer, interpretar e organizar visões do mundo, visões do eu, o que produz determinadas sensibilidades. Sob essa perspectiva, as escolas e os currículos contribuem também para o estabelecimento de rupturas nos sistemas de conhecimentos reguladores e disciplinadores dos sujeitos, possibilitando empreendimento e atribuição de novos sentidos às ações. A instrução foi organizada cientificamente para focalizar os processos sociais/psicológicos pelos quais os indivíduos adquirem disposições, sensibilidades e consciências, assim como a aprendizagem de ‘informações’ (Thomas S. Popkewitz, 1994:191). Mas, entre o primeiro e o segundo movimento, há sempre o que resta, o que permanece nos corpos dos sujeitos. O processo de escolarização é aqui abordado a partir de sua dimensão produtiva, que envolve mediações múltiplas, operando na produção de conhecimentos outros, que se encontram além dos conhecimentos formais, e que participa ativamente na fabricação de subjetividades. Essa afirmativa ancora-se no pressuposto de que os conhecimentos formais carregam uma carga de valores que expressam as expectativas e necessidades de seu tempo. Assim, não se incorpora apenas o conhecimento formal, mas tudo o que nele se encontra presente, uma vez que se configura em torno de significados maleáveis, transitórios, edificados em um determinado momento, em uma determinada dinâmica social que o construiu dessa e não de outra maneira. A escolarização, vista como um projeto produtivo, ancora-se na noção de que a escola, instituição presente por um longo período na vida da grande maioria das pessoas, encontra-se, de diferenciados modos, implicada na produção de subjetividades, que interagem, também, com os demais projetos e idéias oriundos de outras instituições e instâncias da vida cultural e social. Ao assumir essa noção de subjetividade, vista a partir de sua produção, evidenciamos as aproximações e os distanciamentos que empreendemos no conjunto das dinâmicas sociais ligadas ao gênero, à geração, à raça, à classe, à etnia, à religião, entre outras. A noção de escolarização demanda, portanto, que se considere as perspectivas históricas interessadas justamente na exposição de sua trama descontínua e produtiva, a partir das diferentes concepções sociais que nessa prática estão veiculadas, produzidas ou reformuladas. A ação pedagógica se estende para outras esferas além da escola, abarcando não apenas o que se encontra situado restritamente no âmbito das práticas escolares, mas nas múltiplas manifestações da prática social. Assim, o discurso da escola, e particularmente o da Psicologia da Educação, encontra-se disseminado nos diversos discursos e práticas que enredam a vida e o cotidiano e, conseqüentemente, o comportamento do sujeito. Admitida a prática da escolarização como um momento produtivo, inúmeros caminhos são abertos ao questionamento e à investigação. O que, efetivamente, a prática educativa produz em sua versão escolar? Discursos, habilidades, disposições, atitudes, percepções, esquemas de respostas, tradições culturais; nela articulam-se formas de poder, padrões hierarquizados de valores, normas, desejos, conhecimentos, rituais, saberes, disposições corporais, diferenciações com base na classe, na etnia, no gênero, na geração. A escola que herdamos da sociedade ocidental moderna nos ensinou a separar, como lembra Guacira Lopes Louro (1997c), adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela se instaurou distintamente para os pertencentes das classes sociais diferentes e cuidou imediatamente de separar, por questões morais e religiosas, os meninos das meninas. Assim, múltiplas formas corriqueiras na escola contribuíram e contribuem para a constituição dos sujeitos, lembrando também que, nesse processo, não é menor a importância da concepção pedagógica, da organização e do fazer cotidiano escolar que sustentam um longo e contínuo aprendizado, perpassado pelos discursos que traçam o perfil do homem e da mulher. A escolarização propicia um aprendizado eficaz, continuado, sutil e cadenciado, bem como um condicionamento físico e um determinado estilo que parecem penetrar nos sujeitos, que, ao mesmo tempo em que resistem, são envolvidos por tais estratégias e práticas, constituindo suas identidades “escolarizadas”. De tal modo que, como salienta Guacira Lopes Louro (1997c:61), gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por meninos e meninas, passando a fazer parte e a constituir não só a dimensão física de seus corpos, como também a dimensão simbólica. Na escola também se aprende a olhar e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a proferir. Todos os sentidos são treinados, fazendo com que cada um conheça os sons, os cheiros e os sabores ‘bons’ e decentes e rejeite os indecentes; aprenda o que, a quem e como tocar (ou, na maior parte das vezes, não tocar); fazendo com que tenha algumas habilidades e não outras [...] E todas essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também produzem diferença. (Guacira Lopes Louro, 1997c:61). A escola, historicamente, veio conquistando um lugar especial e se estabelecendo como vital dentre as demais instituições sociais formadoras/disciplinadoras dos sujeitos, e sabendo que essa instituição (como outras) abarca as concepções socioculturais relacionadas ao gênero, à etnia, à religião que atravessam a sociedade, torna-se inviável discutir sobre a escola sem que se atente para as construções ali promovidas, que incluem o ser masculino e o feminino, uma vez que esse espaço, por intermédio das normas, doscurrículos, dos regulamentos, dos programas, das falas e dos silêncios, é sempre atravessado pelas concepções de masculinidade e feminilidade circulantes em uma sociedade. Os mais antigos manuais já ensinavam aos mestres os cuidados que deveriam ter com os corpos e almas de seus alunos. O modo de sentar e andar, as formas de colocar cadernos e canetas, pés e mãos acabariam por produzir um corpo escolarizado, distinguindo o menino ou a menina que ‘passara pelos bancos escolares’ (Guacira Lopes Louro, 1997c:61). Reconhecemos que são múltiplas as práticas sociais, as instituições e os discursos que circundam e enredam os sujeitos, produzindo e reproduzindo modos de ser, produzindo e reproduzindo identidades, diferenças, distinções e desigualdades. Dessas instituições, a escola tem um lugar privilegiado, ao lidar, em seu processo de escolarização, com a produção e veiculação dos diversos tipos de conhecimento, e, nessa correnteza, lida também com a produção de sujeitos. Nesse processo de contínua produção, o currículo, como um dos componentes da escolarização, passa a exercer a função de mediador desse processamento diferencial de sujeitos e subjetividades. Tempo, lugar e espaço produzem diferentes discursos, e, assim, distintos modos de produzir e de compreender os currículos escolares. Mesmo entendendo o currículo como resultante de discursividades e intencionalidades distintas, de representações diversas específicas de uma sociedade, nem sempre encontraremos, explicitamente, tudo o que o currículo pode mostrar, significar ou produzir nos sujeitos. Essa visão radiográfica do currículo torna-se complexa, já que ele faz parte da ordem da representação simbólica, da transgressão, das rupturas, das permanências, dos jogos de poder, lugar de escolhas, inclusões e exclusões. O currículo é, portanto, resultado de uma lógica muitas vezes transparente, mas nem sempre apreensível, como também um artefato decorrente de uma lógica mais sutil, imperceptível em sua aparência, mas que não deixa de expressar uma dada sociedade. [...] a escola e o currículo estão longe de ser meros reflexos das condições sociais. A partir de múltiplas práticas cotidianas e banais, a partir de gestos e expressões pouco perceptíveis, pelo silêncio, pelo ocultamento ou pela fala, constroem-se, no espaço propriamente escolar, lugares e destinos sociais, produzem-se identidades de gênero e sexuais, identidades de classe e de etnia, marcadas pela diferenciação e pela hierarquia. Talvez essa dinâmica nos escape, tal a ‘naturalização’ de que esses processos estão revestidos [...] (Guacira Lopes Louro, 1998a:91-2). Na escola, não se educa apenas a cabeça, como muitos acreditam, mas também o corpo, o modo de ser, de sentir, de pensar e de agir. 1.5. A subjetividade: uma leitura nas interfaces teóricas [...] meio século depois de Michelet o ter afirmado, Freud observa que efectivamente os mortos ‘falam’. Já não, como acreditava Michelet, pela evocação do ‘adivinho’ que seria o historiador: ‘aquilo fala’, mas sem ele o saber, no seu trabalho e nos seus silêncios. Estas vozes cujo desaparecimento é o postulado de todo o historiador e as quais ele substitui pela sua escrita retomam o espaço donde elas estão excluídas e falam ainda no texto-túmulo que a erudição estabelece no seu lugar (Michel de Certeau, 1978:537). A subjetividade feminina pressupõe a construção de modelos (culturais, sociais, psicológicos, históricos) que compõem e possibilitam o surgimento de um certo padrão de comportamento para a mulher. Assim, podemos afirmar que a subjetividade é uma construção social, cultural e histórica. Para realizar este estudo, que tem a subjetividade como foco central, atravessei textos e conceitos de diversas áreas do conhecimento, de modo a tecer argumentos que o sustentem. Os argumentos se constroem incorporando a força do processo de escolarização, ressaltado como um processo ativo na produção de subjetividades, composto por um arsenal de relações, códigos, raciocínios, ênfases e ausências com os quais lida. Essa perspectiva permite afirmar que os rastros da escolarização são muito mais que lastros de memória, à medida que a escolarização opera sobre e através dos sujeitos, apontando para o envolvimento escolar na produção de subjetividades. Se a subjetividade, no caso, a subjetividade feminina, é construída a partir de multidimensões engendradas cotidianamente, apresento a premissa de que, sendo a subjetividade resultante do entrelaçamento dessas diversas formações discursivas e práticas disciplinares, a Psicologia da Educação, como uma das disciplinas escolares que fez parte do currículo do Curso Normal, também contribuiu para a construção de tal subjetividade. No período abordado neste estudo, assim como em outros, a mulher foi (e continua sendo) foco dessa configuração de discursos e procedimentos disciplinares. Disciplinarizadores porque prescreviam como os sujeitos pertencentes ao gênero feminino, em oposição ao masculino, deveriam ser, agir, pensar, reconhecer-se. Tais discursos, mesmo que dispersos na estrutura social, estabelecem conexões e pontos de contato que possibilitam a formação de uma rede discursiva sobre a mulher, inscrita na estratégia global de disciplinarização do gênero feminino. O caráter social da subjetividade é discutido por Félix Guatari (1996:133), ao afirmar que os indivíduos a assumem e a vivem em suas existências particulares, ressaltando que o modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. Contudo, a subjetividade não é apenas produto das condições e circunstâncias sociais, culturais, políticas, nela também é possível perceber um projeto histórico, implícito no desenvolvimento de nossa cultura. Projeto que difere quando se trata de grupos e categorias sociais distintas como: o homem, a mulher, o(a) negro(a), o(a) rico(a), o(a) pobre, entre outros. [...] a noção de subjetividade implica renunciar totalmente à idéia de que os fenômenos sociais são a resultante de um simples aglomerado de subjetividades individuais. Ao contrário, é a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies, sendo que um fato subjetivo é engendrado por um agenciamento de níveis semióticos homogêneos [...] (Tânia Mara Galli Fonseca, 1995:19). Não é recente a preocupação com o significado da subjetividade. Trata-se de uma noção que vem provocando discussões e reflexões nas diversas áreas do conhecimento. Paradoxalmente a este interesse, no campo da investigação educacional, a tematização sobre a produção de subjetividades constitui esforço que só recentemente vem sendo mais detidamente explorado. Essas discussões acabam tomando como ponto de partida seu par oposto: a objetividade. Desse modo, um estudo que aborde, ou que tenha como referência a subjetividade demanda uma reflexão sobre o tratamento dado pela ciência a esta questão, que nos deixou como herança uma visão dicotomizada de subjetividade e de objetividade, de sujeito e de objeto, acarretando uma dificuldade em lidarmos com esses conceitos. Ao utilizarmos o conceito subjetividade, enveredamos, inevitavelmente, pelas fronteiras do conhecimento que têm como objeto de estudo o homem em seu processo de humanização, quer seja na perspectiva social, cultural, psíquica ou histórica. Tentei apreender as possibilidades de entendimento e emprego desse conceito em áreas como a Filosofia11, a Antropologia12, a Sociologia13, a História14, a Psicologia Sócio-histórica15, a Psicologia Social16 e a Psicanálise17.No entanto, não apresentarei aqui uma discussão teórica que contemple separadamente essas áreas, o que acarretaria em uma longa, difícil e inconclusa discussão, mas as referências mencionadas encontram-se, de certo modo, dispersas no decorrer desta narrativa, até porque as idéias e noções apropriadas desses(as) autores(as) agora fazem parte da pesquisadora que sou, e é impossível não 11 Nessa área, alguns(mas) autores(as) foram tomados(as) como referência: Edgar Morin (1996); Félix Guatari (1992); Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, (1993); Marilena Chauí (1976); Olgária Matos (1990); René Descartes (1979); Rubens Rodrigues Torres Filho (1983); Walter Brugger (1962). 12 Em especial Clifford Geertz (1989). 13 Na Sociologia, os(as) autores(as) que tomei como referência foram, principalmente, Norbert Elias (1994); Henry Giroux e Peter McLaren (1993); Jean-Claude Fourquin (1995), Henry Giroux (1983), Peter Mclaren (1997), Stuart Hall (1997), Paul Willis (1991), Thomas S. Popkewitz (1994). 14 Nessa área do conhecimento, alguns autores foram tomados como referência: Jacques Le Goff (1976, 1996, 1998), Jacques Revel (1993), Lucien Febvre (1986), Michel Vovelle (1987), Philippe Ariès (1998), Roger Chartier (1990), Ronaldo Vainfas (1997), Theodor W. Adorno (1995), Walter Benjamin (1987). 15 Na Psicologia Sócio-histórica, tomei como referência os estudos de Lev Seminovich Vygotsky (1989, 1991), J. V. Wertsch (1988), Marta Kohl de Oliveira (1992), René Van Der Veer e Jaan Valsiner (1996), Ricardo Baquero (1998), Tânia Mara Galli Fonseca (1995), Yves de La Taille; Marta Kohl de Oliveira; Heloysa Dantas (1992). 16 Na área da Psicologia Social, as referências foram algumas das pesquisas realizadas no Programa de Estudos Pós- Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP e autores(as) como Félix Guatari (1992, 1996), Tânia Mara Gali Fonseca (1995), Suely Rolnik (1997). 17 Tomei como referência os(as) autores(as): Alain Badiou (1994), Antônio Quinet (2000), Maria Rita Kehl (1991, 1996, 1998), Mário Elkin Ramírez (1997). expressá-las na escrita. A necessidade de se trabalhar nas fronteiras do conhecimento amplia a probabilidade de entendimento do sujeito, o que nos permite afirmar que [...] as estruturas da psique humana, as estruturas da sociedade humana e as estruturas da história humana são indissociavelmente complementares, só podendo ser estudadas em conjunto. Elas não existem e se movem na realidade com o grau de isolamento presumido pelas pesquisas atuais (Norbert Elias, 1994:38). Se o entendimento da subjetividade demanda trilhar por diversas áreas do conhecimento, um estudo que tenha como eixo essa noção só poderá ser viabilizado nas próprias fronteiras das ciências: não na História, não na Psicologia, não na Antropologia, não na Sociologia, não na Psicanálise, mas em suas tênues fronteiras. A subjetividade encontra-se no ponto de tensão entre as áreas de conhecimento, uma vez que lida com as dimensões social e individual do sujeito, características pertinentes e presentes na construção da singularidade e na sustentação da idéia de que não existem sujeitos abstratos, mas animais que são chamados, em certas circunstâncias, a ornarem-se sujeitos18. Em busca de um entendimento desse conceito e na tentativa de romper com um modelo determinista, a subjetividade congrega o outro como categoria constitutiva do sujeito. Esse outro representa outras vozes que subjazem no discurso e em todos os espaços culturais e, assim sendo, o sujeito só pode ser construído na interação das múltiplas vozes que habitam e circulam o espaço cultural, social e histórico, essencialmente heterogêneo e contraditório, em que o indivíduo se encontra inserido. Freud, ocupado de pensar la frontera entre psicología individual y psicología social, postula que desde el psicoanálisis es inconcebible el sujeto aislado y reconoce la importancia del otro, del semejante para la constitución del ser humano. Otro como auxiliar, como modelo, como objeto o como enemigo. Esto es, que en el análisis histórico de un sujeto, es imposible pensarlo sin su medio social, sin los grupos en que participa; familia, escuela, ejército, correligionarios, pandilla, partido político, grupo literario o científico, etc. El psicoanálisis demuestra que la psicología individual es en el fondo psicología social y viceversa (Mário Elkin Ramírez, 1997:7). O indivíduo, em sua trajetória cotidiana e histórica, vai tecendo e construindo significados que sustentarão seus movimentos mais ousados, como também representarão suas amarras. Assim é a cultura, incansavelmente prenhe de projetos e de mutações e, paradoxalmente, essa mesma cultura, que agrega as aspirações do homem, o aprisiona e o controla, [...] o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, [...] a cultura como sendo essas teias [...] (Clifford Geertz, 1989:15). As amarras da cultura sobre as ações do indivíduo, na maioria das vezes, não se tornam 18 Sobre esta questão, ver Alain Badiou (1994:107-114). percebidas conscientemente, pois já passaram a fazer parte de uma certa configuração e de um certo mapa que direciona e regula os comportamentos dos sujeitos. Caso não fosse dirigido por padrões culturais – sistemas organizados de símbolos significantes –, o comportamento do sujeito seria ingovernável, um caos de ações sem nexo e de explosões emocionais. O indíviduo, em sua particularidade, apesar de pertencer a essa trama geral, não se confunde com ela, daí a necessidade de, além de reconhecer esse universo cultural ‘sem sangue’, voltar o olhar para a enorme diversidade do comportamento humano. A cultura, como índice norteador das ações do indivíduo, inclui os sentimentos, os afetos, os gestos e tudo que o constitui como humano. Nessa direção, a subjetividade feminina, por ter sido forjada no interior das diversas instâncias culturais, carrega consigo as marcas do tempo e do espaço em que foram tecidas, assim como expressa o proibido e o permitido, o dito e o silenciado, o aprendido e o esquecido. Concebendo o indivíduo e a construção de sua subjetividade enredada, inevitavelmente, à cultura, nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais – na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e, não obstante, manufaturados. [...] Os homens [...] até o último deles, são artefatos culturais (Clifford Geertz, 1989:62-3). A subjetividade consiste, portanto, naquilo que existe de mais cultural e que convive com o que existe de mais particular no ser humano. Ela fornece a conexão entre o que os indivíduos são capazes de se tornar e o que efetivamente se tornam, um por um. Sendo a construção da subjetividade um processo que não passa ao largo da cultura, as experiências escolares constituem um fator relevante nesse processo, em particular as informações apreendidas pelo discurso e mensagens ali veiculadas, e, por intermédio de tais ações, as mulheres, e também os homens, não aprenderam, como salienta Clifford Geertz (1989), apenas a respirar, mas a controlar a sua respiração; não apenas a falar, mas a emitir as palavras e frases apropriadas, nas situações sociais apropriadas, no tom de voz apropriado e de modo evasivo ou não. Não apenas a comer, mas a preferir certos alimentos, cozidos de certas maneiras; não apenas a sentir, mas a sentir certas emoções muito distintamente; não apenas a se tornar mulher, mas a se tornar uma mulher que se comporta e sente de determinada forma. Enfim, não apenas as idéias, mas as próprias emoções são artefatos culturais. Apesar da importância da instituição escolar
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