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Endocrinologia 92 Prática Hospitalar • Ano X • Nº 56 • Mar-Abr/2008 DIABETES MELLITUS Diabetes mellitus (DM) é uma doença crônica, heterogênea, caracterizada por anormalidades do metabolismo de glico- se, lipídeos e proteínas que podem desencadear inúmeras complicações crônicas. Considerada como uma pandemia de proporções crescentes, estima-se que em 2010 haverá 45 milhões de pessoas afetadas pela doença nas Américas.(1) As complicações crônicas do diabetes, con- seqüências do controle metabólico inadequado, ocupam espaço significativo em todos os servi- ços de saúde, e em particular as úlceras do pé diabético serão nosso objeto de discussão no presente artigo. O pé diabético é considerado a principal causa de amputações de membros inferiores em todo o mundo. É fundamental ressaltar que a úl- cera, em geral, é a complicação do pé diabético que funciona como o gatilho para desencadear a cascata de eventos que culmina com a am- putação do membro acometido.(2,3) O PÉ DIABÉTICO Definição e diagnóstico Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde): “o pé diabético é situação de infecção, ulceração ou também destruição dos tecidos profundos dos pés, associada a anormalidades neurológicas e vários graus de doença vascular periférica nos membros inferiores”.(4) Sua avaliação e diagnóstico são realizados através dos achados clínicos, que permitem a classificação em pé neuropático, isquêmico (ou vascular) e neuroisquêmico.(4) O diagnóstico clínico do pé neuropático é realizado através da pesquisa da sensibilidade protetora com o monofilamento de Semmes- Weinstein de 10 g e da sensibilidade vibratória com o diapasão de 128 Hz; enquanto o diagnós- tico de pé isquêmico baseia-se na palpação dos pulsos pediosos e tibiais posteriores, que podem estar presentes, diminuídos ou ausentes.(4) Úlceras em Pé Diabético Dra. Cândida Parisi1 • Profa. Dra. Denise Engelbrecht Zantut Wittmann2 Prof. Dr. Túlio Diniz Fernandes3 1 - Endocrinologista. Médica Assistente do Grupo de Diabetes do HC-FM/USP. Coordenadora do Ambulatório Multidisciplinar de Pé Diabético do HC-FM/USP. Coordenadora do Ambulatório Multidisciplinar de Pé Diabético do HC-Unicamp. 2 - Endocrinologista. Professora da Disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. 3 - Cirurgião Ortopedista. Professor da Faculdade de Medicina da USP. Chefe do Grupo de Pé IOT. Dra. Cândida Parisi (à esq.) Profa. Dra. Denise Engelbrecht Zantut Wittmann e Prof. Dr. Túlio Diniz Fernandes. 93Prática Hospitalar • Ano X • Nº 56 • Mar-Abr/2008 Fotos representativas da avaliação clínica diagnóstica (vide figuras 1 a 3). Conforme mencionado anteriormente, as úlceras são a mais importante e fre- qüente complicação associada à síndrome do pé diabético. Quanto mais precoce e adequada for a abordagem da úlcera, maiores serão as possibilidades de cicatri- zação e menores os riscos de amputação do membro acometido.(5,6) ÚLCERAS Diagnóstico e abordagem “passo a passo” O diagnóstico de pé diabético é o ponto inicial, pois permite definir, na grande maioria dos casos, se nos encontramos frente a uma úlcera neuropática, isquêmica ou neuroisquêmica, de acordo com a ava- liação diagnóstica prévia. A classificação inicial auxilia no planejamento estratégico, pois a presença de úlceras isquêmicas ou neuroisquêmicas indica que a abordagem deverá contar com a participação do cirur- gião vascular.(4) Esta etapa definida, o passo seguinte será a classificação de acordo com as características clínicas, utilizando-se algum sistema validado para abordagem de úlce- ras em pé diabético. Os sistemas de classificação dispo- níveis na literatura procuram valorizar: evolução, tempo de lesão, localização das úlceras, profundidade, presença de neu- ropatia, de infecção e de doença vascular periférica. Não existe consenso quanto ao melhor sistema a ser utilizado e todos têm por objetivo auxiliar no planejamento estratégico da abordagem terapêutica, prever chances de cicatrização e de complicações, visando reduzir o número de amputações.(5-7) Em nossos serviços, utilizamos o siste- ma Sepsis, Arteriopaty, Denervation S(AD) (UK),(8) que permite avaliação reprodutível e de fácil aplicação por vários profissionais da equipe de pé diabético (tabela 1). Ao mesmo tempo, auxilia no seguimento evolutivo com acurácia comprovada nos resultados preditivos de cicatrização das úlceras e do risco de amputação. Após a classificação e estadiamento da úlcera, torna-se obrigatória a avaliação ortopédica criteriosa dos pés, direcionada às alterações biomecânicas que mereçam abordagem específica, como por exemplo as deformidades em eqüino, as luxações Tabela 1. Sistema de classificação de úlceras S(AD) (Sepsis, Arteriopaty, Denervation) Grau Área Profundidade Infecção Vasculopatia Denervação 0 Pele íntegra Pele íntegra Sem Pulsos palpáveis Sensibilidade preservada 1 <1 cm Lesão superficial (até subcutâneo) Sem Pulsos reduzidos ou um ausente Sensibilidade reduzida 2 1-3 cm Tendão periósteo, até cápsula articular Celulite Ausência de ambos Sensibilidade ausente 3 >3 cm Osso ou articulação Osteomielite Gangrena “Charcot” Figuras 1 A e B. Palpação de pulsos: (A) Pedioso 1 (B) Tibial posterior. Figura 2. Pesquisa de sensibilidade com o monofilamento de 10 g (Semmes- Weistein) – locais: base do hálux e segundo dedo, projeção de cabeça de 1, 2 e 5 metatarsianos, cavo plantar e calcâneo (evitar áreas de hiperqueratose). Figura 3. Utilização do diapasão de 128 Hz para avaliar a região da articulação metatarsofalangiana. A B O diagnóstico de pé diabético é o ponto inicial, pois permite definir, na grande maioria dos casos, se nos encontramos frente a uma úlcera neuropática, isquêmica ou neuroisquêmica, de acordo com a avaliação diagnóstica prévia 94 Prática Hospitalar • Ano X • Nº 56 • Mar-Abr/2008 dos sesamóides do hálux, as alterações funcionais dos metatarsos, etc. Tais altera- ções freqüentemente não são percebidas; no entanto, são fatores de recidiva das ulcerações (fig. 4 A e B). Úlceras relacionadas a alterações biomecânicas As úlceras relacionadas a alterações biomecânicas são extremamente fre- qüentes no portador de pé diabético e a mais comum é a lesão tipo mal perfurante plantar (fig. 5). Excluindo-se o diagnóstico de osteomielite, a abordagem consiste em retirada da carga local, sendo o gesso de contato total o procedimento “padrão ouro” (fig. 6). Nossa experiência apresenta resultados que conferem com a literatura e comprovam a eficácia da terapêutica, assim como as vantagens de reproduti- bilidade e baixo custo.(9) É fundamental que o diagnóstico e o tipo de alteração biomecânica sejam evidenciados. Após a cicatrização da úlcera, avaliação meticu- losa deve ser realizada com o intuito de proceder à correção cirúrgica, pois caso contrário elevar-se-ão as chances de re- cidiva da lesão. Úlceras relacionadas a deformidades dos dedos fazem parte da rotina do especialista em pé diabético, e muitas vezes impossibilitam o uso de calçados convencionais, inclusive os calçados feitos sob medida. Similarmente, para a adequada conduta, a avaliação da defor- midade é necessária e, quando possível, sua correção. Úlceras isquêmicas Em cerca de 20% dos casos de úlce- ra em pé diabético elas são isquêmicas (fig. 7). A avaliação e a gradação da doença vascular periférica nestes casos são obri- gatórias e necessárias para definir quais procedimentos serão realizados. De ma- neira geral, as piores evoluções envolvem lesões isquêmicas, seja por lentidão ou ineficácia do processo cicatricial , seja por processos infecciosos de difícil controle. A manipulação destas lesões deveráser rea- lizada sob supervisão estrita do cirurgião vascular.(10) Além disso, em muitos casos a abordagem só poderá ser realizada após revascularização local. Osteomielite Cerca de dois terços das úlceras crônicas do pé diabético apresentam algum grau de acometimento infeccioso no osso,(11) tornando-se imprescindíveis os diagnósticos clínico e de imagem. À inspeção, avaliam-se as características clínicas sugestivas de osteomielite, como lesão extensa e profunda, tecido ósseo visível e alterações radiológicas tipo “saca-bocado”. A avaliação deverá definir a extensão do acometimento ósseo, que A B Figura 4. Figura 5. Figura 6. Seqüência de confecção de gesso de contato total. Figura 7. Úlcera isquêmica. Endocrinologia 95Prática Hospitalar • Ano X • Nº 56 • Mar-Abr/2008 direcionará o tratamento, seja ele cirúrgico, medicamentoso, ou ambos. Ressaltamos que durante a limpeza cirúrgica a coleta de tecido ósseo para cultura e antibiograma é obrigatória, e que o objetivo da abordagem cirúrgica será viabilizar a recuperação da capacidade de deambular (figs. 8 e 9). Cuidados locais Orientar e conscientizar o paciente sobre o significado de ser portador de úlcera e da importância da participação no processo terapêutico é peça-chave na abordagem inicial e nos resultados do tratamento. Lembramos que o controle glicêmico é fundamental e que a aborda- gem integrada entre os vários profissionais é obrigatória. A documentação detalhada deve ser realizada rotineiramente, utilizando-se o que estiver disponível em cada serviço. Limpeza, debridamento e retirada dos tecidos desvitalizados fazem parte da abordagem inicial rotineira das lesões não-isquêmicas. Segue-se com a manu- tenção do meio úmido no local da úlcera, o que facilita o processo cicatricial. Desde o soro fisiológico, às várias soluções e curativos (coberturas) adequados, são opções seguras e efetivas para este in- tuito. Fatores de crescimento e/ou terapia celular para úlceras que não apresentam qualquer resultado positivo após três se- manas de intervenção podem apresentar- se como coadjuvantes importantes. Em úlceras cirúrgicas extensas, com secreção abundante, o sistema “vacuum-assiste therapy” (VAC) comprovadamente reduz o tempo de cicatrização e internação. No entanto, lembramos que o princípio básico é a manutenção do meio úmido, e em lesões relacionadas à pressão, a retirada da carga no local será o fator mais importante.(12) Produtos secativos e pomadas com antibiótico tópico não têm indicação nestes casos. Prevenção Cuidados locais de higiene e calçados adequados permitem resultados satis- fatórios na prevenção, tanto de recidiva no local como na ocorrência de novas úlceras em outros locais dos pés. A alte- ração responsável pelo desenvolvimento da úlcera no indivíduo diabético, seja a alteração neuropática, seja a alteração isquêmica, persiste após a cicatrização e este conceito é fundamental para o planejamento estratégico da equipe no cuidado e seguimento dos portadores de pé diabético.(13) t REFERÊNCIAS 1. Wild S, Roglic G, Green A, Sicree R, King H. Global prevalence of diabetes: estimates for the year 2000 and projections for 2030. Diabetes Care 2004;27:1047-1053. 2. Reiber GE, Lipsky BA, Gibbons GW. The burden of diabetic foot ulcers. American Journal of Surgery 1998;176(2A Suppl): 5S-10S. 3. Frykberg RG. Diabetic foot ulcerations. In: The high risk foot in diabetes mellitus, 1s ed., 1991 51-195, edited by R Frykberg, New York, Churchill Livingstone. 4. Apelqvist J, Bakker K, Van Houtum WH, Nabuurs-Franssen MH, Schaper NC. Inter- national consensus and practical guidelines on the management and the prevention of the diabetic foot. International Working Group on the Diabetic Foot. Diabetes Me- tabolism 2000;S84-92. 5. Benotmane A, Mohammedi F, Ayad F, Kadi K, Azzouz A. Diabetic foot lesions: Etiologic and prognostic factors. Diabetes Metabolism 2000;26:113-117. 6. Van Houtum WH, Lavery LA, Harkless LB. The impact of diabetes related lower- extremity amputations in the Nether- lands. Journal of Diabetes Complications 1996;10:325-330. 7. Armstrong DG, Lavery LA, Harkless LB. Validation of a diabetic wound classification system: the contribution of depth, infection and vascular disease to the risk of ampu- tation. Diabetes Care 1998;21:855-859. 8. Treece KA, MacFarlane RM, Pound N, Ga- me FL, Jeffcoate WJ. Validation of a system of a foot ulcer classification in diabetes mellitus. Diabet Med 2004;21:987-91. 9. Armstrong DG, Lavery LA, Wu S, Boulton AJ. Evaluation of removable and irremova- ble cast walkers in the healing of diabetic foot wounds: a randomized controlled trial. Diabetes Care 2005;28:551-4. 10. Dalla Paola L, Faglia E. Treatment of dia- betic foot ulcer: an overview strategies for clinical approach. Curr Diabetes Rev 2006;2(4):431-47. 11. Frykberg RG, Wittmayer B, Zgonis T. Surgi- cal management of diabetic foot infections and osteomyelitis. Clin Pediatr Med Surg 2007;24(3):469-82. 12. Brem H, Sheehan P, Rosenberg HJ, Schnei der JS, Boulton AJ. Evidence-based protocol for diabetic foot ulcers. Plast Reconstr Surg 2006;117(7 Suppl):193S- 209S; discussion 210S-211S. 13. Jeffcoate WJ, Harding KG. Diabetic foot ulcers. Lancet 2003;3;361(9368): 1545-51. Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 7º andar - sala 7037 - CEP 05403-090 São Paulo - SP. Figura 9. Figura 8.
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