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88 A equidade na Filosofia do Direito: apontamentos sobre sua origem aristotélica Anderson Vichinkeski Teixeira* Resumo O presente artigo busca fazer uma breve análise do conceito de equidade na história do pensamento jurídico ocidental, concentrado a atenção especialmente na obra de Aristóteles. Pretende-se também demonstrar a forte vinculação da noção de equidade com a própria noção de justiça formal. Palavras-chave: filosofia do direito, aristotelismo, princípio de equidade. Abstract This paper aims to make a brief overview of the concept of fairness in the history of Western legal thought, focusing especially on the Aristotle’s works. We also intend to demonstrate the strong linkage between the notion of fairness and the very notion of formal justice. Key words: philosophy of law, aristotelianism, fairness principle. * ANDERSON VICHINKESKI TEIXEIRA é Doutor em Teoria e História do Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT), com estágio de pesquisa doutoral junto à Université Paris Descartes-Sorbonne. Pós-Doutor em Direito pela Università degli Studi di Firenze (IT). Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS. Professor Adjunto da Universidade Luterana do Brasil, exercendo a função de Coordenador do Curso de Direito da Unidade Gravataí/RS desde julho de 2009. Professor da Escola de Direito da Faculdade Meridional (IMED - Passo Fundo/RS). Advogado e consultor jurídico. Outros textos do autor encontram-se disponíveis em www.andersonteixeira.com 89 Introdução O estudo da equidade representa a abordagem de um tema cuja origem se confunde com a própria origem do Direito e da noção de Justiça no pensamento jurídico ocidental. Cientes disso, faremos uma análise da conceituação de equidade oferecida pela Filosofia do Direito e que remonta, inexoravelmente, ao pensamento aristotélico. Primeiramente, há de se registrar que a corrente linguagem da Teoria Geral do Direito convencionou definir equidade em três sentidos (SOARES, 2002, pp. 103-104): • como uma virtude própria dos sistemas normativos, inclusive o jurídico, que confere ao legislador ou aplicador da norma o dever de considerá-la, sempre tendo em vista sua finalidade da realização da justiça no caso concreto, conforme dito por Ulpiano: suum ciuque tribuere; • como uma faculdade concedida aos juízes e árbitros, os quais aplicam a norma jurídica e que devem resolver as controvérsias, de decidirem com base em elementos que não sejam os presentes no direito positivo; • como um subsistema da família dos direitos da common law que era utilizado pelo Chanceler do Rei para fazer justiça nos casos em que as pessoas recorressem ao Rei como última alternativa de conseguir justiça (ver DAVID; BLANC-JOUVAN, 2001). O Chanceler do Rei passou a fazer uso dessa jurisdição, denominada equity, a qual, diferentemente das Cortes do common law, era um processo inquisitório, escrito, desenvolvido com a casuística e sem a presença do Júri, este que é, por excelência, uma instituição típica do sistema de Common Law. (DAVID, 1997, p. 08) Por não se tratar de uma abordagem historiográfica do common law, deixaremos de lado esse terceiro sentido possível. Tendo como base a obra de Aristóteles, vamos nos concentrar, propriamente, na ideia de equidade como virtude e, por conseguinte, como instrumento de realização do justo político (politikón díkaion). 1. A equidade na Filosofia de Aristóteles Embora a expressão equidade tenha origens imemoriais e não possa ser atribuído a nenhum filósofo o surgimento desta noção, há de se reconhecer que Aristóteles foi o primeiro a oferecer uma contribuição marcante na história do pensamento filosófico ocidental, a partir da qual se costuma iniciar estudos que tenham por objetivo tratar do referido conceito. Assim, é na Ética a Nicômaco e na Retórica que encontramos as principais contribuições aristotélicas.1 Na Retórica, Aristóteles define equidade (epieíkeia) como uma forma de justiça que vai além da lei escrita. (ARISTOTELE, 1961, 1374 a-b) Ou seja, é o ponto em que há o mais e o menos numa proporção que permite as partes terem aquilo que lhes é proporcional em relação ao bem e em relação aos sujeitos envolvidos na ação. (ARISTÓTELES, 2002, p. 108) Pode-se dizer que a equidade é a busca pelo 1 Para um muito qualificado estudo sobre a ética aristotélica, recomendamos BITTAR, 2003. 90 ponto onde existe uma proporção em relação ao bem comum e ao bem individual entre os sujeitos envolvidos na ação. Ela se assemelha à igualdade e, sobretudo, à virtude da justiça (dikaiosyne), mas “a justiça e a equidade não parecem ser absolutamente idênticas, nem ser especificamente diferentes”. (ARISTÓTELES, 2002, p. 124) A distinção entre equidade e justiça surge no momento em que esta se divide em justo legal (nomikon díkaion) e justo natural (physikon díkaion, ou “justo absoluto”). Ambos os conceitos estão compreendidos na noção de justiça política (ARISTÓTELES, 2002, p. 117): A justiça política é em parte natural e em parte legal. A parte natural é aquela que tem a mesma força em todos os lugares e não existe por pensarem os homens deste ou daquele modo. A legal é o que de início pode ser determinado diferentemente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecido (por exemplo, que o resgate de um prisioneiro seja de uma mina, ou que deve ser sacrificado um bode e não duas ovelhas), e também todas as leis promulgadas para casos particulares (como a que mandava oferecer sacrifícios em honra de Brásidas), e as prescrições dos decretos. Deste modo, Aristóteles atribuiu à equidade a tarefa de fazer preponderar o justo absoluto nos casos em que o justo legal se demonstrar iníquo e incapaz de permitir a realização da justiça política. A equidade traz ao caso concreto a possibilidade de corrigir eventuais equívocos cometidos pelo legislador, ou preencher lacunas que sua atividade legislativa não conseguiu prever. Pode- se, assim, considerá-la como um elemento subsidiário à noção de justiça, mas que termina por lhe atribuir dinamismo quando o intérprete se encontra diante de um caso concreto cuja solução não foi prevista pela norma. Aristóteles (ARISTÓTELES, 2002, p. 125) expõe com clareza o funcionamento da relação entre justo legal, justo natural (absoluto) e equidade, na passagem em que afirma: o eqüitativo é justo e superior a uma espécie de justiça (justiça legal), embora não seja superior à justiça absoluta, e sim ao erro decorrente do caráter absoluto da disposição legal. Desse modo, a natureza do eqüitativo é uma correção da lei quando esta é deficiente em razão da sua universalidade. É por isso que nem todas as coisas são determinadas pela lei: é impossível estabelecer uma lei acerca de algumas delas, de tal modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando uma situação é indefinida, a regra também é indefinida, tal qual ocorre com a régua de chumbo usada pelos construtores de Lesbos para ajustar as molduras; a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, da mesma forma como o decreto se adapta aos fatos. No mesmo sentido, Chäim Perelman (PERELMAN, 1991, p. 61) definiu equidade com sendo “uma tendência a não tratar de modo demasiadamente desigual os seres que fazem parte de uma mesma categoria essencial”. Segundo o autor belga (PERELMAN, 1991, p. 65), a sociedade se encontra numa incessante oscilação entre justiça legal (“justiça formal”, nas palavrasde Perelman) e equidade. Nos socorremos nesta quando na elaboração de uma regra de direito positivo não foi levado em conta as características essenciais as quais importantes setores da população 91 (ou toda a população) atribuem algum valor, fazendo com que a aplicação da regra positiva torne-se dissonante com os axiomas e princípios de Direito vigentes no momento histórico em que a regra está para ser aplicada ao caso concreto. Segundo Perelman (PERELMAN, 1991, p. 37), ao elaborar uma regra positiva, o legislador tenderá a aplicar um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados do mesmo modo. Com isso, ele afirma que o legislador poderá optar por uma das seguintes fórmulas de justiça concreta abaixo arroladas: a) a cada um a mesma coisa; b) a cada um segundo seus méritos; c) a cada um segundo sua obra; d) a cada um segundo suas necessidades; e) a cada um segundo sua classe; f) a cada um segundo aquilo que a lei lhe atribui. Note-se que dentro das referidas fórmulas existe um forte senso de equidade que serve como ponto de partida para todo o desenvolvimento da fórmula. Isso é a busca pelo justo meio (mesótes) que Aristóteles referia estar presente em cada espécie de justo, pois sempre existe o ponto que representa o mais (excesso) e o ponto que representa o menos (deficiência). À equidade caberia a tarefa de dar proporcionalidade e equilíbrio entre os extremos que, por si mesmos, representam vícios, ao invés de virtudes. Todavia, quando o processo de aplicação da regra positiva ao caso concreto se demonstrar iníquo ou injusto, ainda que tal regra esteja sustentada por uma dessas fórmulas, deverá o intérprete optar por uma decisão que tenha como norte o senso de equidade que estava presente no animus legislatoris do legislador e que foi responsável pela sua atividade criadora de Direito, deixando de meramente aplicar ao caso a regra positiva. Para facilitar a tarefa do aplicador do Direito, Otfried Höffe (HÖFFE, 1991, p. 39) considera a equidade como sinônimo de imparcialidade, uma vez que “existem princípios de cuja justiça quase ninguém duvida; pense-se apenas no mandamento de, num caso de conflito, ouvir o outro lado (audiatur et altera pars) e a proibição de ser juiz em causa própria (nemo judex in sua causa). Tais princípios de procedimento são considerados justos pelo fato de servirem a um princípio de justiça superior que tampouco é controvertida, a imparcialidade (equidade).” O princípio da imparcialidade (que no dizer de Höffe corresponde à equidade) representa a vedação a qualquer espécie de vinculação entre aquele que julgará o caso – e, destarte, poderá aplicar a regra positiva ao caso concreto – com alguma das partes envolvidas no processo, permitindo que sua atividade intelectivo-racional não seja viciada por fisiologismos ou qualquer outra sorte de distorções decorrentes de um envolvimento subjetivo com o caso. Höffe (HÖFFE, 1991, p. 39) acrescenta que “a imparcialidade ainda se expressa na exigência de dirimir casos de conflito, ‘sem consideração de pessoas’, considerando-se como evidente que iustitia não é fortuna, que de sua cornucópia divide e reparte os dons, também sem consideração de pessoa, mas sem escolha. A justiça consiste na negação de tal arbítrio; uma condição 92 mínima de imparcialidade se designa por isso: proibição de arbítrio.” Acrescente-se, ainda, que por se tratar de algo superior a um tipo de justiça, qual seja, a justiça legal (nomikon díkaion), e utilizada como instrumento corretivo desta (epanothoma nomikon díkaion), a equidade é entendida no pensamento aristotélico como tendo origem na disposição de caráter que o homem equitativo possui. Ou seja, trata- se, também, de uma virtude (aretê). Segundo Aristóteles (ARISTÓTELES, 2002, p. 125), o homem equitativo tem como características fundamentais: escolher e praticar atos equitativos; e não se ater de forma intransigente aos seus direitos, tendendo a tomar menos do que lhe caberia, mesmo nas situações em que tenha a lei ao seu lado. Essa possível confusão conceitual acerca da natureza da equidade, uma vez que pode ser entendida tanto como uma virtude ou como uma espécie de justiça, perde relevância se considerarmos que, segundo o pensamento aristotélico, a racionalidade humana é essencialmente prática, ou seja, concentra-se na realização da potência em forma de ato concreto. Disso resulta ser inevitável conceber a equidade também como uma espécie de justiça, uma vez que ela se encontra acima do justo legal (nomikon díkaion) e abaixo do justo natural (physikon díkaion). Todavia, somente poderá ser exercida pelo homem virtuoso que é capaz de escolher e praticar atos equitativos. Em suma, a equidade pode ser compreendia na filosofia aristotélica como um instrumento de justiça formal, voltada a solucionar conflitos entre disposições normativas conflitantes, mas a sua concretização dependerá da existência de uma disposição de caráter no indivíduo que deve realizar o ato. Considerações finais Ao compreendermos equidade e justiça como conceitos que possuem uma forte identidade entre si, estamos trazendo a virtude da equidade para o centro da discussão em torno da ética. Já que as quatro virtudes cardeais de Platão – que foram incorporadas por Aristóteles em sua obra e acrescidas de outras – são Prudência (phronesis), Coragem (andreía), Verdade (sophrosyne, que muitos traduzem como Sabedoria, inclusive Höffe) e Justiça (dikaiosyne), percebe-se que para o pensamento filosófico desenvolvido na Antiga Grécia a equidade ia além de uma mera fonte de Direito ou simples instrumento de justiça formal, como atualmente concebida: constituía-se numa virtude de importância central para o desenvolvimento ético de um homem bom. Referências ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2002. _____. Retorica. Roma-Bari: Laterza, 1961. BITTAR, E. C. B. Curso de Ética Aristotélica. São Paulo: Manole, 2003. DAVID, R.; BLANC-JOUVAN, X. Le droit anglais. Paris: PUF, 2001. HÖFFE, O. Giustizia Política. Bologna: Il Mulino, 1995. PERELMAN, C. La Giustizia. Torino: Giappichelli, 1991 SOARES, G. F. S. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Atlas, 2002.
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