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1 FILOSOFIA JURÍDICA 2 SUMÁRIO I. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA JURÍDICA .................................................................... 3 II. CONCEITO DE DIREITO ............................................................................................... 7 III. JUSNATURALISMO: A BALANÇA DE ARISTÓTELES E A JUSTIÇA COMO IGUALDADE ......................................................................................................................... 13 IV. JUSNATURALISMO: A ESPADA DE HOBBES E A JUSTIÇA COMO ORDEM 17 V. JUSNATURALISMO: OS OLHOS VENDADOS DE KANT E A JUSTIÇA COMO LIBERDADE ......................................................................................................................... 22 VI. JUSPOSITIVISMO: KELSEN E A TEORIA PURA DO DIREITO ......................... 28 VII. PÓS-POSITIVISMO: DWORKIN: LEVANDO OS DIREITOS A SÉRIO ............ 34 VIII. FILOSOFIA E DIREITOS HUMANOS .................................................................... 38 IX. FILOSOFIA, BIOÉTICA E BIODIREITO .................................................................. 43 X. FUNÇÃO DO DIREITO EM FOUCAULT .................................................................... 48 XI. TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE EM RAWLS ...................................... 55 XII. DIREITO E DEMOCRACIA EM HABERMAS ........................................................ 60 XIII. RECONHECIMENTO E INTERSUBJETIVIDADE EM HONNETH ................. 65 XIV. TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO EM MIGUEL REALE ................... 68 3 I. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA JURÍDICA Cap. 2 (Sobre a Filosofia do Direito) da obra Filosofia do direito, de Mascaro A filosofia do direito nada mais é que a filosofia geral com um tema específico de análise, o direito. A filosofia do direito, sendo objeto da filosofia, não é, de modo algum, um método. O direito, sendo um tema, equipara-se ao rol de outros temas. Pode-se dizer então da filosofia política, da filosofia da religião, da filosofia da economia, da filosofia da estética, da filosofia do direito. Sendo a filosofia do direito a própria filosofia geral com um objeto especifico, a indagação que se põe preliminarmente diz respeito à própria localização do que seja jurídico, já que é isso que dá identidade à filosofia do direito. Para que na multiplicidade do pensamento se identifique a filosofia do direito, exige-se uma dupla especificidade: ela é um ramo especifico da filosofia geral e o máximo pensamento possível sobre o próprio direito. Distinguir a filosofia do direito tanto da filosofia geral quanto do pensamento jurídico comum é a tarefa inicial da sua identificação. 1. Filosofia do direito e filosofia A filosofia do direito, enquanto tema especifico da filosofia geral, é-lhe indistinta quanto aos métodos e seus grandes horizontes. Um kantiano enxerga a religião, a sociedade, a politica e o direito a partir de uma perspectiva geral que é o próprio kantismo. Sendo ainda filosofia, a filosofia do direito não é estranha à estrutura geral do pensamento filosófico, configurando-se apenas como o aprofundamento de uma temática especifica. Por conta disso, o problema inicial da filosofia do direito está na especificidade do que se possa considerar por direito. Para alguns, o fenômeno jurídico se circunscreve as normas estatais. Para outros, as apreciações sobre o justo também entram na composição do direito. Da parte da vida jurídica, essa não é uma resposta pronta. Mas também a filosofia do direito não se limita à resposta do jurista sobre o próprio direito, na medida em que se estende para além da compreensão media do operador do direito sobre si próprio e sua atividade. Assim, a filosofia do direito pode desvendar conexões íntimas entre o direito e a politica, o direito e a moral, o direito e o capitalismo, que escapam da visão mediana do jurista. Tais limites sobre o que é o jurídico da filosofia do direito são ainda variáveis a depender da visão filosófica que se adote para essa compreensão. Um kantiano trabalha com uma certa relação entre direito e moral, mas o foucaultiano trabalha essa relação de outro modo. Por essa razão, não se pode encerrar o jurídico da filosofia do direito em limites estreitos que não permitam dar conta da variedade de apreciação sobre tal fenômeno. Mas também não se pode perder de vista alguma referência mínima de diálogo entre as tantas apreciações sobre o que é direito, sob pena de se findar a possibilidade de uma mirada relacional e comparativa. Em muitos momentos a filosofia do direito deve se socorrer de outros objetos específicos da filosofia para sua compreensão e mesmo para sua diferenciação, se for o caso. Se no passado grego clássico, o direito era considerado uma manifestação política por excelência, a sua compreensão só pode ser dada em conjunto com as questões da filosofia politica clássica. Mas há de se lembrar que o direito era parte da paideia, da educação grega. Assim sendo, há até nexos entre uma filosofia do direito e uma lata filosofia da educação. 2. Filosofia do direito e direito A filosofia do direito deve ser especificada em relação ao próprio pensamento jurídico. É certo que não se chama o arrazoado de uma peticado inicial por filosofia do direito. Os 4 argumentos de um juiz ao prolatar uma sentença em geral são técnico normativos, não jusfilosóficos. Mas há um campo do conhecimento técnico jurídico que não é eminentemente casual, vinculado aos casos em disputa nos fóruns. Quando alguém transcende a análise de uma norma jurídica especifica do Código de Processo Civil e se pergunta sobre o que são as normas jurídicas em geral, está dando um salto de generalização de suas reflexões. Durante grande parte da história, com a indistinção do direito em relação à politica, à ética, à moral e à religião, os discursos mais amplos sobre o direito, que não era ainda eminentemente técnico, eram tidos por filosofia do direito. No entanto, com o capitalismo, a contar da modernidade, o direito adquire uma especificidade técnica. Ele passa a ser considerado a partir do conjunto das normas jurídicas estatais. A partir desse período, conseguiu-se construir uma espécie de pensamento que, não sendo estreitamente ligado a fatos ou normas ou casos isolados, mas sim tratando das normas, situações e técnicas jurídicas de modo mais geral, ainda assim está adstrito ao mundo técnico-normativo. Costuma-se chamar a essa espécie de alto pensamento jurídico por teoria geral do direito. A teoria geral do direito, que na verdade não é teoria geral de todo o fenômeno jurídico, mas sim das técnicas jurídicas estatais capitalistas consolidadas a partir da modernidade, pode de modo mais exato ser denominada por teoria geral das técnicas jurídicas, ou mesmo teoria geral da tecnologia jurídica. No entanto, ainda assim, a teoria geral do direito não salta um grau qualitativo distinto da própria lógica interna do afazer jurídico quotidiano. É verdade que a discussão sobre o conceito de ordenamento jurídico e a questão da teoria geral da relação jurídica são maiores do que a pergunta sobre o prazo para a interposição de um recurso no processo penal, mas ainda assim não logram alcançar a reflexão mais alta sobre o próprio direito em relação ao todo da historia e da sociedade. A filosofia do direito é um pensamento ainda mais alto e mais vigoroso que a teoria geral do direito. Enquanto a teoria geral do direito, a partir da multiplicidade das normas, indaga-se sobre o que é uma norma jurídica estatal, a filosofia do direito indaga a respeito da legitimidade do Estado em ditar normas. De certo modo, a teoria geral do direito para nos limites internos da construção jurídica técnica.Mas a filosofia do direito pega o todo do direito nas mãos. É verdade que os assuntos do direito, ao serem tratados pela teoria geral do direito, abeiram-se daquilo que possa ser a filosofia do direito. No entanto, enquanto aumento quantitativo e generalizaçaõ do labor técnico e empírico do jurista, estaõ ainda adstritos ao campo dessa teoria geral. Enquanto salto qualitativo, na superaçaõ do encerramento técnico e na relaçaõ com o todo histórico e social, inicia-se entaõ a filosofia do direito. Trata-se de uma distinçaõ bastante variável e difícil, que em geral é tomada pelo jurista como uma divisaõ de tarefas enciclopédica. Um assunto como o da norma jurídica é tomado, quase sempre, como assunto de teoria geral do direito – sendo ensinado, pois, na disciplina universitária da Introdução ao Direito. A reflexaõ sobre o justo, por sua vez, se a deixa reservada à disciplina universitária chamada por Filosofia Jurídica. Mas naõ se podem estudar as duas questões como isoladas e alheias entre si, academicamente bem instaladas em duas disciplinas específicas e insulares. Na verdade, a filosofia do direito, em retrospecto, é a própria alimentaçaõ geral da teoria geral do direito e dos ramos do direito em específico. Da mesma maneira que é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e os outros objetos filosóficos específicos, é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e o pensamento geral produzido pelos juristas sobre suas próprias técnicas. Nesse entrecruzamento do pensamento jurídico e do pensamento filosófico levanta-se a filosofia do direito. 5 3. Um pensamento de juristas ou filosófos? Sendo um objeto específico da filosofia, a filosofia do direito é uma disciplina de filósofos. Mas se dá com a filosofia do direito o mesmo que ocorre com as filosofias de objeto bastante específico. Em geral, o filósofo de formaçaõ ampla naõ se ocupa das questões da filosofia da música, da filosofia da educaçaõ, e muito dificilmente da filosofia da religiaõ. O artista filósofo é que se ocupa da filosofia da música, o religioso filósofo em geral é que se ocupa da filosofia da religiaõ e o educador filósofo é quase sempre o que cuida da filosofia da educaçaõ. O mesmo ocorre com a filosofia do direito. No mais das vezes, é o jurista filósofo que se ocupa da filosofia do direito. Quase sempre o filósofo generalista desconhece o direito. E o jurista, por sua vez, nunca se conformou em ser apenas um prático jurídico sem vislumbrar as razões maiores e últimas de sua atividade. Por isso, em várias ocasiões, a filosofia do direito acaba sendo um produto de juristas filósofos. O pensamento jurídico que transcende o nível de uma mera constataçaõ técnica quotidiana, e portanto alcance o porte da teoria geral do direito, é sempre um pensamento de juristas, na medida em que é o jurista o operador do direito e o conhecedor de suas engrenagens. Mas, para que o jurista possa alcançar uma reflexaõ mais alta sobre o próprio direito, necessita do ferramental filosófico, que naõ é o mesmo da racionalidade jurídica técnica. A filosofia do direito, assim, alimenta uma dúplice exigência: o conhecimento profundo do direito e o conhecimento profundo da filosofia. Desde a Idade Moderna, mas em especial a partir do século XIX, o direito tornou-se um ramo muito especializado e aprofundado do conhecimento. Por isso, às pessoas de formaçaõ geral, mesmo de boa formaçaõ universitária em outras áreas, escapa uma noçaõ suficiente do direito. Nas faculdades, o graduado em filosofia quase nunca recebe formaçaõ jurídica. Daí que a dúplice exigência da filosofia do direito acaba sendo estreitada pela especificidade do conhecimento jurídico. Um filósofo geral lê a filosofia do direito pelos olhos de um leigo, ou em geral pelos olhos de filósofo político que em geral é, mas um jurista que alcança a filosofia lê a filosofia do direito plenamente. Na realidade contemporânea, no entanto, a atividade jurídica e o pensamento conservador e positivista afastam do jurista uma formaçaõ profunda e ampla de filosofia. Em primeiro lugar, devido ao conservadorismo do jurista, homem em geral a serviço das elites, que naõ querem nenhuma contestaçaõ ao dado. Em segundo lugar, devido ao rebaixamento universitário que carreia o jurista à sobrecarga do mero conhecimento de técnicas, somando informações sem perfazer, em conjunto, sua formaçaõ. E, além disso, também pela estrutura mesquinha do afazer do jurista na sociedade capitalista, premido entre a atividade extenuante de seu ganha-paõ que não lhe permite galgar um pensamento mais alto do que o exigido para o quotidiano e a alma contabilista que enxerga o conhecimento como lucro e naõ como plenitude para situar-se no mundo e transformá-lo. Se a filosofia do direito acaba sendo produto do jurista filósofo, isso naõ se deve a um pretenso fato de que seu caráter jurídico fosse um pensar em separado. O separado é o objeto, mas o método de pensar é o geral, estabelecido na história da filosofia e em suas possibilidades. O jurista filósofo, ao fazer filosofia do direito, é filósofo. 4. A expressão máxima da verdade do direito A filosofia do direito exercita o papel de verdade máxima sobre o próprio direito. No afazer quotidiano do processualista, considera-se que a sentença é válida se prolatada por tribunal competente. Diz-se, entaõ, que a competência formal dá legitimidade ao mando jurisprudencial. Mas é justamente uma argumentaçaõ jusfilosófica sobre o que é legitimidade que revestirá com tal chancela de legítima a própria sentença judicial. 6 Nesse ponto, a filosofia do direito parece ser pouco distinta da própria teoria geral do direito. Ao sistematizar o todo do pensamento jurídico, a filosofia do direito esclarece o que é dado. Mas o direito naõ é dado apenas no seu aspecto interno, no seu afazer de juristas. Ele se manifesta socialmente, de modo histórico, a partir de determinadas estruturas e relações sociais. A filosofia do direito naõ é só a expressaõ máxima do afazer do jurista – tarefa que se costuma delegar à teoria geral do direito –, mas, sim, expressaõ máxima do próprio direito enquanto verdade social. A filosofia do direito se ocupa das relações sociais que saõ constituintes e constituídas pelo direito, e isso envolve também o campo da apreciaçaõ do direito enquanto manifestaçaõ do justo e do injusto na sociedade. O jurista positivista, no seu afazer quotidiano, afasta de suas reflexões a ocupaçaõ com o justo. Mas o justo é uma espécie de sombra do próprio direito, que o acompanha inexoravelmente, ainda que das formas mais distorcidas possíveis. De modo geral, o justo é a legitimaçaõ filosófica e ética do jurídico. Ocupar-se do justo, portanto, é uma espécie de tensaõ máxima à qual há de se conduzir a filosofia do direito. Dos mais altos interesses filosóficos do direito estaõ a relaçaõ estrutural do direito com o todo histórico e social e a preocupaçaõ com as apreciações do justo e do injusto. A pensar nos vários temas da filosofia, nos seus múltiplos ramos, como no caso da filosofia do direito, há um alto papel geral, que é o posicionamento político em face do mundo, do conhecimento, dos tempos e da estrutura da sociedade, mas há também um alto papel específico que se lhe acresce. Um jurista é um homem do senso comum, que age com diligência técnica mas reproduz um horizonte conservador. Um filósofo do direito que se limite a colecionar as várias visões sobre o direito é um pensador do direito, mas um homem ilustrado e ainda conformado aos limites do próprio tempo. O filósofo do direito pleno é aquele que, de posse do conhecimento filosófico, amplia os horizontes de seutempo. Virulento contra as injustiças, aponta para o justo que ainda não existe. Extraída do fundo do pensamento original e radical, crítico e transformador, a filosofia do direito é verdade jurídica maior que o próprio direito. Referência Bibliográfica MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 7 II. CONCEITO DE DIREITO Cap. 2 (O conceito de Direito) da obra Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito, de Abboud, Carnio e Oliveira 1. Definição Etimológica A proposta de definição etimológica será baseada no sentido histórico constitutivo do termo direito. A intenção é fazer uma ponte entre o conceito inicial apresentado e aqueles que serão expostos pelas escolas jurídicas. A melhor tratativa sobre este tema foi apresentada em forma monográfica por Sebastião Cruz, em texto intitulado: Ius. Derectum (Directum): Dereito (Derecho, Diritto, Droit, Direito, Recht, Right, etc.). O autor inicia sua exposição indicando que a palavra Ius, de origem muito antiga na língua latina, que entre nós é traduzida como direito, encerra uma séria de problemas. Na realidade, a palavra Ius, que remonta ao patrimônio linguístico indo-europeu, deduz-se de sua própria etimologia, encontrando uma séria dificuldade na sua significação básica. Ocorre que a dereito (e todas as outras palavras com o mesmo significado das várias línguas românicas) que traduz ius não vem de ius; procede do termo directum ou melhor derectum; e fato e que ius e derectum são palavras que se afiguram totalmente diferentes. O principal símbolo do direito tem como principal elemento, colocado de modo central, uma balança de dois pratos, no mesmo nível, com o fiel ao meio (quando existente), perfeitamente a prumo. Inicialmente, a balança não era o símbolo todo, mas apenas um elemento, na realidade o primeiro. O símbolo grego completo, indicado por volta do século XII-X a.C., era inicialmente constituído por Zeus, enquanto encarnação suprema da justiça, o Deus que tudo vê, segurando a balança. Foi somente posteriormente, mas ainda no tempo de Homero, que Zeus passa a ser substituído pela deusa Thémis, figura austera digna e triste que segurava a balança com os dois pratos ao mesmo nível, portanto iguais, a prescrever, a impor aos homens o que Zeus lhe inspirasse. Por fim, no tempo de Hesíodo é que surge, então, o símbolo que gozou de maior popularidade então, a deusa Díkê, filha de Zeus e Thémis, encarnando, mas, sobretudo, administrando a justiça, tendo na mão direita uma espada e na esquerda uma balança de dois pratos, porém sem fiel ao meio, e estando de pé e de olhos bem abertos. Mais tarde, já na época da república, à semelhança da Díkê grega, aparece a deusa romana Iustitia, a simbolizar, encarnar, mas, sobretudo, administrar a justiça, mediante o emprego da balança de dois pratos com o fiel ao meio que esta segura com as duas mãos, de pé, e de olhos vendados. A palavra Youes foi a primeira palavra grega para significar direito, enquanto a primeira palavra latina, youes, seguida de Ius, segunda palavra a representar a ideia de Direito. No decorrer dos séculos, pouco a pouco, a expressão Ius, passou a ser substituída por derectum, que seria a terceira palavra grega, e desde sua origem tem um significado moral e, principalmente, religioso, com sua proximidade com a deificação de justiça. Finalmente, a partir do século IX, a palavra derectum, consagrou-se, sendo usada para indicar o ordenamento jurídico ou uma norma jurídica em geral. 8 2. Definição Etnológica A pesquisa de material etnológico sobre o conceito de direito pode propor o desenvolvimento de uma concepção, completamente original, sobre a gênese do direito. Tal originalidade se destaca quando baseia na investigação antropológica das comunidades primitivas e, em especial, na ideia de que o estabelecimento organizacional de tais comunidades primitivas se dava pelas trocas entre os homens e as autoridades sobre-humanas. Estas trocas eram representadas na forma de um fenômeno jurídico, pois determinavam uma obrigação, a de receber e retribuir o que se trocava. A tese central da definição etnológica proposta se encontra exatamente nos termos indicados: relações de troca, escambo (relação de débito e crédito) nas comunidades primitivas e suas implicações no conceito tradicional do direito e na teoria do pacto social do Estado. 2.1 A gênese da sociedade e do direito nas comunidades primitivas: a interpretação primitiva da natureza intrínseca a sociedade. O pensamento das comunidades primitivas era dominado por uma tendência emocional normativa. A psiquê do homem primitivo se caracterizava pela predominância do componente emocional sobre o racional, e essa sensibilidade emocional nascia do sentimento e da volição dos homens primitivos. A atitude emocional era a estrutura que dirigia a sociedade, que era regida por normas que surgiam a partir dessa experiência. Na verdade, o homem primitivo não tinha, obviamente, o fim de entender e explicar os fenômenos naturais, ele reagia a eles como resposta do que sentia. O princípio do convívio nestas comunidades era a embalada pelo chamado princípio da retribuição, que consistia numa regra obrigatória em que tudo o que era dado em troca – presenteado – deveria ser obrigatoriamente recebido e retribuído. Cabe notar, portanto, que toda a estrutura social era baseada no misticismo envolvendo o respeito, a crença e o medo, na ideia mágica que permeia o princípio da retribuição. A ideia de que as qualidades morais e jurídicas são substancias levava à crença de que o mal, como a doença, era contagioso. Assim, a ofensa cometida por um indivíduo tem caráter coletivo, pois estende-se ao demais que estejam pertos e que se relacionem, sendo essa a grande razão da responsabilidade coletiva ser tão significativa na ordem jurídica primitiva. 2.2 O conceito de magia e sua importância sobre a estrutura organizacional da comunidade primitiva James G. Frazer estabelece que a magia é um sistema espúrio de lei natural, um guia enganoso do comportamento, sendo tanto uma falsa ciência, como uma arte abortiva. Considerando-a como um sistema de regras que determina a sequência dos acontecimentos em todo o mundo, pode ser chamada de magia teórica; já, quando um sistema de regras determina a sequência dos acontecimentos em todo o mundo; já, quando considerada como uma coleção de preceitos observados por seres humanos com o fim de conseguir seus objetivos, pode ser chamada de magia prática. Há dois princípios lógicos na magia simpática: o primeiro afirma que o semelhante produz o semelhante, ou que o efeito se assemelha a sua causa. Este princípio, parece ser baseado no sentido muito forte nas sociedades primitivas, o princípio da retribuição. E o segundo asserta que as coisas que estiverem em contato continuam a agir umas sobre as outras, mesmo à distância, mesmo depois de rompido o contato físico. Esta ideia se relaciona com o princípio da retribuição. 9 Ainda existe a magia pública, ou seja, a feitiçaria praticada em favor de toda a comunidade. As características do animismo, do coletivismo e da homogeneização são evidentes ao se considerar o mago como uma autoridade que mantém o bem-estar de toda a tribo. A proposta de Mauss é relevante, pois para ele a magia é um fenômeno social e na sua origem pode se encontrar a forma primeira de representações coletivas que se tornaram depois os fundamentos dos entendimentos individuais. Ainda, segundo o autor, a magia é por definição, objeto de crença, e as manifestações mágicas podem assim ser consideradas se forem realmente para toda a sociedade, e não apenas para parte dela. Surge um aspecto relacional entre a religião e a magia, pois, enquanto a magia envolveoperações que se revestem de um caráter coercitivo para com os espíritos, que agem, de acordo com o indicado pelo praticante dos atos mágicos, na religião é estabelecido uma espécie de aliança para impedir a arbitrariedade na ação divina. Surge disso, um relacionamento entre homens e divindades, revestido de um vínculo jurídico. Ao atribuir a culpa, responsabilidade a uma pessoa real ou imaginaria, o homem primitivo imputa a esses seres todos os fatos positivos e negativos da natureza. Essa conduta se baseia sob um ponto de vista normativo. A sanções são instituídas pelas autoridades sobre- humanas e garantem a ordem social, estabelecendo os deveres sociais dos indivíduos, isto é, os seres pessoais imaginados nos fatos da natureza é que representam a autoridade social. A habitual interpretação de que o homem primitivo é um homem no estado de natureza é totalmente desprovido de sentido e incoerente. O homem primitivo, portanto, não é um homem natural, é um homem social e o dualismo de um reino natural e outro social é um dualismo moderno. 2.3 Princípio da retribuição como condutor das relações sociais primitivas A significação da ideia de retribuição na vida primitiva aparece de várias formas. Há para o homem primitivo uma grande importância de socialização que tem, dentre várias funções, uma das mais importantes: a proteção da vida do grupo como um todo. A ideia nucleica, portanto, é a de que a conduta recíproca dos membros da comunidade, enquanto regulada pelo sistema social, desde seu despertar apresenta uma característica determinante, um vínculo jurídico. Esse vínculo jurídico realizado nas comunidades primitivas significa, ainda, que existia necessariamente uma coincidência entre direito e moral, obviamente que não no sentido de uma moral individualizada, que está muito além do desenvolvimento mental das sociedades primitivas, mas sim, uma moral retributiva. Toda a estrutura perpassa por uma relação de dar, receber e retribuir de forma obrigatória. Portanto, pode-se afirmar que a ideia de retribuição possui um caráter duplo, pois significa não só que uma desvantagem sofrida por outro deve ser retornada com a mesma desvantagem – primeiro plano da consciência primitiva exercida como reação a uma ofensa – mas também que uma vantagem recebida também deve ser retornada como a mesma vantagem. A retribuição, com efeito, não significa apenas castigo, mas também recompensa, isso inclusive, torna-a coerente diante da interpretação social da natureza pelo homem primitivo. O potlatch é bem mais que um fenômeno jurídico, ele é o sistema da dádiva das trocas que possui originalmente o sentido jurídico contratual da relação que ali se formava a partir de uma regra de direito, advinda do principio da retribuição. A tríplice obrigação era, de fato, algo definitivamente obrigacional. A essência dessa obrigação era seu início, dar, ao passo em que se dava e ao mesmo tempo na coisa se misturava o espírito da pessoa era preciso recebê-la, não se podendo recusá-la, para, então, retribuir. O retribuir era a essência do potlatch. Nota-se, assim, certa complexidade nessa relação que propicia a (sobre) vivencia dessa sociedade. O 10 mais interessante é que a relação social nelas não fluía segundo parâmetro do mercado ou do contrato. Na verdade o mais importante nessa produção de vida não era simplesmente a satisfação utilitária e efetiva dos membros da sociedade; o que importava, em primeiro lugar, era constituir o laço social. Essa era a afirmação do dom. A sociedade se estruturava pelo vínculo obrigacional da dádiva. A maneira ritual pela qual se formava a obrigação numa mistura inextrincável de interesse e desinteresse. Lévi-Strauss desconsidera o termo “povos primitivos”, pois, para o antropólogo, eles devem ser chamados de povos sem-escrita, sendo esta, a escrita, o verdadeiro fator discriminatório existente entre eles e a sociedade atual. Desse modo, opõe-se a Malinowski quando este considera que o pensamento primitivo é de qualidade mais grosseira do que o pensamento atual, pois acreditava que o pensamento dos povos sem escrita era ou é determinado inteiramente pelas necessidades básicas da vida. Isto é: ao identificar num povo suas necessidades substanciais, a satisfação de suas pulsões sexuais etc., estaria apto a explicar as instituições sociais, suas crenças, sua mitologia e tudo o mais que formou aquela comunidade. Tal concepção é usualmente denominada de funcionalista. 2.4 As organizações gentílicas e o banimento Como bem nota Albert Hermann Post, as organizações gentílicas eram comunidades na forma de gens e tribos, ou seja, formas de organização comunitária que deram origem aos primeiros ordenamentos sociais. Nas organizações gentílicas, encontra-se a figura de banimento (advinda do conceito de Bando, Bann, Bande), um conceito trabalhado no primitivo direito germânico, que, na realidade, demonstra uma transposição posterior da matriz de direito obrigacional de débito e crédito para o plano das comunidades e nas relações entre seus indivíduos. O banimento, nessas comunidades, corresponde a um desligamento, uma privação total, uma expulsão da comunidade. A perda da paz e o descumprimento da lei expõe o condenado à mercê da violência e do arbítrio de indivíduos ou de grupos. O indivíduo banido da comunidade passa a ser odiado como um inimigo, tal castigo é uma reprodução do castigo dado ao inimigo. Nessa ordem, os principais conceitos e as fundamentais estimações morais de valores são derivados da concepção originária do ambiente jurídico de débito e crédito, ao ponto de se verificar aqui a partir da polissemia a palavra culpa, isto é, que a noção moral de culpa é uma espiritualização do sentimento jurídico de ter dívidas. 3. Definição Jusnaturalista Toda ideia de direito natural professa um conceito segundo o qual se compreende por direito tudo aquilo que, no seio do convívio humano, acontece de acordo com uma ordem de coisas pressupostas (vale dizer: uma ordem de coisas naturais). Essa ordem deveria espelhar a harmonia e a perfeição encontrada em uma determinada natureza. Como afirma Bobbio, o termo natureza serve, orginalmente, para abranger, em uma mesma categoria, todas as coisas que não são produzidas pelo homem: toda a parte do mundo que, aos olhos de quem observa e procura entender a realidade não depende do fazer humano; todos os seres e eventos que, tendo “em si mesmo o principio do movimento” (Aristóteles), nascem, desenvolvem-se e morrem de acordo com leis que o homem não formulou nem pode alterar. Há, no interior do pensamento jusnaturalista, pelo menos três ideias distintas da natureza. Entre os gregos, a ideia de natureza que comandará o conceito de direito será a ordem cosmológica; entre os medievais, essa ordem natural será retida ao modo de ser perfeito: Deus. 11 Daí que, no segundo, teríamos um direito natural teológico; no terceiro, entre os modernos, o direito natural é antropológico (racionalista). Esse ponto é de suma importância: a ideia de um direito natural não exclui a existência de um direito positivo (positivo, aqui, quer significar posto pelo homem). O que é peculiar ao jusnaturalismo é submeter esse direito positivo, historicamente determinado e construído pelo homem, a uma ordem de justiça que fica num ambiente transcendente. 4. Definição Juspositivista Segundo Norberto Bobbio, a teoria do jusnaturalismo vem ao encontro de nossa exigência de mudar, de aperfeiçoar, ou, conforme o caso, de justificar o direito vigente; mas, como disse Gellner, é difícil acreditar nela. É mais fácil acreditar no positivismo jurídico, que pode oferecer-nos uma teoria coerente do fenômeno jurídico, construída racionalmente e controlada empiricamente. Não se pode, confundir o chamado positivismo jurídico com o direito positivo. O direito positivo pode ser definidocomo um conjunto de regras e normas que rege o convívio humano num determinado contexto histórico (temporal), social e territorial (espacial). As teorias do direito natural não excluem o conceito de direito positivo de seu âmbito de análises. Elas apenas submetem esse direito positivo a uma ordem transcendente, condicionando, assim, seu conteúdo a determinados princípios de justiça. Já o positivismo jurídico representa uma postura metodológica específica que estabelece determinados pressupostos de objetos e método para análise do fenômeno jurídico. O juspositivismo procura definir o direito a partir de uma separação com relação à moral. Para o positivismo jurídico, o direito vale independentemente do conteúdo que ele regulamenta. O que definirá sua validade é a sua adequação a determinados procedimentos formais previstos pelo próprio sistema ou ordenamento jurídico. O direito assume, assim um caráter de autorreferência – em contraposição ao jusnaturalismo que professava uma espécie de heterorreferência –, vale dizer, é o próprio direito que define aquilo que é ou não é direito. A definição juspositivista de direito pode ser apresentada, a princípio, da seguinte maneira: um conjunto de normas válidas que regem o convívio social em um peculiar momento histórico e espacial. Vale ressaltar que os critérios para aferição da validade dessas normas encontram-se estabelecidos pelo próprio ordenamento jurídico. 5. Definição Pós-positivista Podemos resumir a definição pós-positivista de direito como aquela em que o fenômeno jurídico é analisado a partir da perspectiva da concretização, sendo o conceito de direito um “conceito interpretativo”. Com efeito, a segunda metade do século XX representa para o direito uma revolução nos níveis teóricos e práticos. No nível teórico, a necessidade do reconhecimento de uma especificidade do direito frente à política – em face dos movimentos que levaram aos totalitarismo da primeira metade do século – desloca o foco metodológico em direção à decisão judicial que garante uma autonomia maior do que a velha postura formal decorrente de uma pura teoria da legislação, recorrente no imáginário jurídico desde os movimentos que sucederam a revolução francesa e o posterior período codificador. No nível prático, tento em vista o espaço de reflexão colocado no âmbito da decisão judicial, as questões sobre interpretação passaram a ocupar o centro das atenções. As posturas teóricas pós-positivistas procuram enfrentar elementos antropológicos a partir do desenvolvimento de teorias interpretativas do jurídico que possuem, no momento da decisão – portanto, no momento aplicativo – o seu ponto de estofo. Pode-se dizer, portanto, que 12 já uma espécie de radicalização hermenêutica por parte de diversas teorias que se desenvolvem no contexto cultural do pós-guerra e que atravessa toda segunda metade do século passado. Essa radicalização da hermenêutica traz consigo a necessidade de estudar, não apenas as peculiaridades da interpretação jurídica, mas também o próprio desenvolvimento da hermenêutica durante o século XX. Assim, nos quadros do chamado pós-positivismo, o conceito de direito é determinado a partir do inexorável elemento hermenêutico que acompanha a experiência jurídica. O que unifica as diversas posturas que podem ser chamadas de pós-positivistas é que o direito é analisado na perspectiva da sua interpretação ou da sua concretização. 6. Conclusões principais 1) Além do conteúdo polissêmico do direito, de forma original e com intenção de contribuir para o entendimento dos leitores de como o direito se apresenta em termos experienciais-sociais, apostamos na apresentação de definições sobre o conceito de direito não apenas como tradicionalmente se costuma fazer na doutrina. Dessa forma, exploramos alguns conceitos que contribuem de modo diferenciado para o entendimento dos fenômenos jurídicos. Ei-los: 2) Conceito etnológico: como este conceito trabalhamos com estudos antropológicos e sociológicos sobre o surgimento do direito desde os tempos mais remotos e identificamos a gênese do direito nas relações de débito e crédito ocorridas nas comunidades primitivas; 3) Conceito historicista-etimológico: foi abordado com o intuito de demonstrar como a palavra (termo) direito nasce na comunicação (linguagem) social da época antiga e como isso é determinante para tudo o que virá a ser referido como direito até os dias atuais; 4) Definições jusnaturalista, juspositivista e pós-positivista: com o escopo de demonstrar como o conceito de direito se desenvolveu historicamente e como o seu sentido foi sento aprofundado com o tempo, inclusive em termos científicos, e como está sendo pensado teoricamente nos dias atuais. 5) A proposta geral deste capítulo foi a de demonstrar como o direito é um fenômeno complexo e como ocorreu o sentido de sua existência para os homens e de que forma, a partir de conteúdo teórico e filosófico que foram surgindo historicamente, serviu para todo o desenvolvimento da civilização ocidental e como hoje trabalhamos com ele para resolver os problemas atuais que vivenciamos. Referência Bibliográfica ABBOUD, G; CARNIO, H. G; OLIVEIRA, R. T. Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. 13 III. JUSNATURALISMO: A BALANÇA DE ARISTÓTELES E A JUSTIÇA COMO IGUALDADE Prof. Mateus Salvadori 1. Justiça como disposição da alma A justiça é uma disposição da alma graças à qual as pessoas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo. O mesmo deve ser dito da injustiça, que nos faz cometer e querer atos injustos. A justiça é considerada a maior das virtudes. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente em relação a si mesmas como também em relação ao próximo. Somente a justiça é o bem do outro. A única diferença entre a excelência moral e a justiça está em suas essências: a justiça, praticada em relação ao próximo, quando é irrestrita é a excelência moral. Porém, quando a justiça é uma parte da excelência moral, denomina-se justiça no sentido restrito. 2. Justiça Universal e Particular A justiça pode ser tomada no sentido universal e no sentido particular. Na sua perspectiva universal, ela é tanto uma manifestação de vontade geral da virtude quanto uma apropriação do justo à lei que, no geral, é tida por justa. Para Aristóteles, a lei, produzida na pólis a partir de um princípio ético, é diretamente relacionada ao justo. Uma má lei não e lei. Na sua perspectiva particular, a regra de ouro é dar a cada um o que é seu. Aristóteles divide a justiça particular em: distributiva, corretiva e, como um caso especial, a reciprocidade. A justiça distributiva trata da distribuição de riquezas, benefícios e honrarias. A distribuição compreende sempre dois sujeitos em relação aos quais se avalia a justa distribuição dos bens. A distribuição compreende uma espécie de função matemática tal qual uma regra de três, uma proporção geométrica. O critério é o mérito: dar a cada um de acordo com seu mérito. Por exemplo, um professor, quando aplica uma prova será considerado justo em sua correção quando distribuir notas de acordo com uma proporção, tendo em vista o mérito. De uma prova com cinco questões valendo cada qual dois pontos, o aluno que acerta quatro merece nota oito e o aluno que acerta duas, merece nota quatro. A justiça corretiva é uma proporção aritmética. Ela visa a correção das transações entre os indivíduos. Nesta forma de justiça surge a necessidade da intervenção de uma terceira pessoa: o juiz. Ela se divide em: i) comutativa (voluntária): preside os contratos em geral: compra e venda, locação, empréstimo etc. Esse tipo de justiça é essencialmente preventiva, uma vez que a justiçaprévia iguala as prestações recíprocas antes mesmo de uma eventual transação; ii) reparativa (involuntária): visa reprimir a injustiça, a reparar ou indenizar o dano, estabelecendo, se for o caso, a punição. Por fim, Aristóteles trata da reciprocidade. A sua aplicação mais importante se dá no caso da produção. As trocas entre um sapateiro, um pedreiro, um médico e um fazendeiro, para serem consideradas justas, devem alcançar uma certa reciprocidade. Não se pode imaginar, por exemplo, que a produção de um sapato valha o mesmo que a construção de uma casa. Aristóteles aponta, para isso, que o dinheiro faz o papel de uma equivalência universal entre produtos e serviços. Ele possibilita a reciprocidade entre tais elementos. Aristóteles, que assumia o caráter dinâmico da natureza, reconhecia que o direito natural também podia mudar. 14 3. Justiça natural e legal: direito natural e direito positivo A justiça divide-se em natural e legal. A natural tem a mesma força em qualquer parte, independentemente de a aceitarmos ou não ou desta ou daquela opinião. A legal (positiva) é aquela que passa a viger depois de ser estabelecida a lei, ou seja, é legal aquilo que o princípio pode ser determinado indiferentemente de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente, mas obrigatório. É aquela que se pratica neste ou naquele país. 4. Justiça como meio-termo A justiça é um meio-termo e a injustiça relaciona-se com os extremos – o excesso ou a falta. A ação justa deve evitar os extremos, tanto o excesso quanto a falta, caracterizando-se assim pelo equilíbrio. A sabedoria prática (frónesis) consiste na capacidade de discernir essa medida. Quais traços de caráter fazem de alguém uma pessoa boa? Eis, abaixo, uma tabela de virtudes. Na coluna do meio, temos as virtudes; nas colunas da esquerda e direita, temos os vícios. Vício por deficiência - Virtude - Vício por excesso Covardia – Coragem – Temeridade Indiferença – Gentileza – Irascibilidade Insensibilidade – Temperança – Libertinagem Avareza – Liberalidade – Esbanjamento Vileza – Magnificência – Vulgaridade Modéstia – Respeito Próprio – Vaidade Moleza – Prudência – Ambição Descrédito Próprio – Veracidade – Orgulho Rusticidade – Agudeza de Espírito – Zombaria Enfado – Amizade – Condescendência Desavergonhado – Modéstia – Timidez Malevolência – Justa Indignação – Inveja 5. Justiça como ação Para Aristóteles, a justiça é ama ação. Não se trata de uma virtude contemplativa. A justiça não se revela um mero conhecimento sobre o justo. Acima de tudo, o justo é agir, tal qual todas as demais virtudes. Considera-se justo o ato que é feito deliberadamente com tal 15 finalidade. A justiça, assim sendo, é uma virtude que se revela não apenas pela sua potencialidade, mas sim pela sua concretude, pela sua ação. Um juiz que conhece o justo e não o aplica ao caso concreto não é justo. Justo é o seu julgamento que determina que seja dado ao credor o que lhe é devido. A coação e a ignorância não configuram a intenção de agir com justiça e injustiça. O desconhecimento ou as forças externas ao sujeito que pratica o ato, ainda que levem a resultados que possam ser apreciáveis objetivamente como justos ou não, por razão acidental, não constituem atos de justiça. 6. Justiça teleológica e honorífica Compreender o télos (finalidade) de uma prática significa, pelo menos em parte, compreender ou discutir as virtudes que ela deve honrar e recompensar. As teorias modernas de justiça tentam separar as questões de equidade e direitos das discussões sobre honra, virtude e mérito moral. Elas buscam princípios de justiça que sejam neutros, para que as pessoas possam escolher e buscar seus objetivos por conta própria. Aristóteles não acha que a justiça possa ser neutra, pois as discussões sobre justiça são, inevitavelmente, debates sobre a honra, a virtude (cumprir bem o télos) e o caráter. Justiça é dar às pessoas o que elas merecem, dando a cada um o que lhe é devido. Mas como saber qual é o mérito de cada um? Isso depende das “coisas” e das “pessoas” em que as coisas são destinadas. Qual é o télos da política? É formar um bom cidadão; é cultivar as virtudes dos cidadãos; é viver bem. Mas isso somente é possível na pólis, na política. O homem é um animal político (teoria naturalista, do Estado orgânico, do impulso associativo). 7. Justiça e equidade Segundo Aristóteles, a justiça e a equidade são a mesma coisa, embora a equidade seja melhor. O que cria este problema é o fato de o equitativo ser justo, mas não o justo segundo a lei, e sim um corretivo da justiça legal. A equidade corrige a lei. A razão é que toda lei é de ordem geral, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Por isso, o equitativo é justo e melhor que uma simples espécie de justiça, pois o equitativo é por natureza uma correção da lei onde esta é omissa devido à sua generalidade. Quem escolhe e pratica atos equitativos e não se atém aos seus direitos, mas se contenta com receber menos do que lhe caberia, embora a lei esteja ao seu lado, é uma pessoa equitativa. A norma jurídica é uma regra dotada de rigidez, que abstrai das circunstâncias a que ela considera irrelevante. A equidade é flexível, uma vez que considera determinadas circunstâncias que a norma jurídica despreza, ou não contempla, como, por exemplo, a força e a fraqueza das partes, as incidências sobre o seu estado de fortuna, etc., para chegar a uma solução que se adapta melhor ao caso concreto – mesmo que se afaste da solução normal, estabelecida pela lei. É pela equidade que o caso concreto se resolve; ademais, ela é um modo de revelação do direito, muito embora se refira a casos singulares. Assim, ela é um ato de decisão. Sob o prisma da legalidade constitucional, não se pode supor uma equidade desvencilhada do ordenamento jurídico; há que se tomar a equidade dentro da ordem jurídica, não podendo nunca contrastar com a mesma. Os critérios de decisão podem ser divididos em formais e materiais. A equidade é um dos critérios formais de decisão; não é normativa – a equidade não é formada por regras –, mas dita soluções aos casos que contenham determinadas peculiaridades; não implica elaboração de regras, pois não tem intuito generalizador; portanto não se projeta noutros casos, semelhantes embora. Assim, se a fonte é um modo de formação e de revelação de regras jurídicas, a equidade, que é um critério formal de decisão, não é fonte. Entretanto, pode ser revista a ideia de fonte, incluindo tudo aquilo que revele o direito; porém, 16 em sentido técnico, sabe-se que o estudo das fontes não se ocupa, por si, de critérios de decisão, mas de critérios de revelação do direito. A equidade se apresenta em tríplice função, quais sejam: i) método de integração de lacunas; ii) correção da lei (ex.: art. 16 do decreto 24. 150/1934: “O juiz apreciará, para proferir a sentença, além das regras do direito, os princípios de equidade, tendo, sobretudo, em vista, as circunstâncias especiais de cada caso concreto, para o que poderá converter o julgamento em diligência, a fim de melhor se elucidar”); iii) substituição de lei: ser um critério de decisão por afastar os discernimentos legais. A decisão com equidade será aquela de acordo com o direito, ou seja, num ideal supremo de justiça; decisão por equidade será aquela embasada na percepção de justiça do julgador, algumas vezes liberto das regras do direito positivo; decisão por equidade é aquela que busca equilibrar norma e realidade nas ocasiõesem que há lacuna. Por consistir na justiça do caso concreto, a aplicação da equidade teve maior desenvolvimento no common law, que é essencialmente direito casuístico. Hoje, a equidade pode ser parâmetro interpretativo da legislação, contudo, a lei somente poderá ser afastada do caso concreto, mediante o controle difuso de constitucionalidade, vale dizer, somente é lícito ao Judiciário decidir contra a lei, quando esta lei apresentar inconstitucionalidade no caso concreto, sempre precedida de larga e extensa motivação, nos termos do inc. IX, do art. 93 da CF/88. 8. Jusnaturalismo Romano e Medieval O direito romano empregou a mesma distinção de Aristóteles acerca de Direito Natural e Direito Positivo, reconhecendo a existência de uma razão da natureza que vincularia todos os animais. Além dos critérios (efeito e validade) empregados por Aristóteles para distinguir direito natural do positivo, o pensamento jurídico romano acresceu um terceiro critério: a imutabilidade. Com o avanço do cristianismo na Europa Medieval, ganha força o jusnaturalismo teológico. Afirma-se a existência de uma justiça imanente revelada por Deus e pelo Evangelho e que seria o princípio ordenador de todo o universo. 9. Jusnaturalismo Moderno Nos sécs. XVII e XVIII, com figuras como Hobbes, Locke, Pufendorf, Grócio, Kant etc., o jusnaturalismo caracteriza-se da seguinte forma: 1. A lei é cada vez menos medida objetiva e racional da ação e cada vez mais comando; 2. O direito (ius) é cada vez menos o justo, aquilo que é objetivamente imposto a todos em uma mesma relação pelo bem comum e cada vez mais as faculdades e liberdades que configuram o que hoje denominamos direitos subjetivos; 3. Um espaço maior é conferido ao poder do soberano de legislar; 4. Contudo, o pensamento jurídico continua a derivar a existência de alguns direitos de suposições sobre a natureza do homem e a tecer considerações axiológicas sobre como deve ser o direito para realizar o ideal de justiça. 17 IV. JUSNATURALISMO: A ESPADA DE HOBBES E A JUSTIÇA COMO ORDEM Prof. Mateus Salvadori 1. Filosofia Jurídica Moderna A Filosofia do Direito da Modernidade reflete as características do momento. A questão da tolerância e da liberdade religiosa tornam- se uma referência fundamental em um mundo em mudanças, com a consequente formação de sociedades pluralistas. A necessidade de um novo pacto em uma sociedade em que a monarquia absoluta entrou em declínio leva a teorias do contrato social entre indivíduos dotados de direitos naturais, como de Hobbes, Locke, Rousseau e Kant. Por outro lado, a necessidade de encontrar um novo modelo para a sociedade abre caminho para propostas de direitos políticos como a de Montesquieu, com a independência dos três poderes. Depois de Kant, a Filosofia do Direito foi ficando cada vez mais técnica, especializada e compartimentalizada. 2. De onde vem a justiça? De onde vem a justiça? Para Hobbes, ela deve ser entendida como a solução de um problema prático que surge para os seres humanos interessados em si mesmos. Todos nós queremos viver da melhor maneira possível, mas nenhum de nós pode prosperar a menos que tenhamos uma ordem social pacífica e cooperativa. E não podemos ter uma ordem social pacífica sem regras. As regras morais e jurídicas, portanto, são simplesmente as regras necessárias no caso de adquirirmos os benefícios da vida social. Como seria se não houvesse regras, leis, polícia, tribunal? O que você faria amanhã de manhã se acordasse e descobrisse que por causa de uma grande catástrofe o governo entrou em colapso e, portanto, as leis, a polícia ou o tribunal não estão funcionando? Ademais, as nações do mundo, sem uma lei internacional significativa, funcionam em relação umas às outras, como os indivíduos em seu “estado de natureza”, ameaçando constantemente “uns aos outros”, armados e desconfiados. Claramente, para escapar do “estado de natureza” deve-se encontrar alguma maneira de as pessoas cooperarem umas com as outras. Primeiro, deve haver garantias de que as pessoas não machucarão umas as outras – elas devem ser capazes de trabalhar juntas sem o medo de ataque, roubo ou traição. Segundo, as pessoas devem ser capazes de contar umas com as outras na manutenção de seus acordos. Com a fundação do direito, das leis e do Estado, o que a “voz da obrigação” exige que esse novo homem faça? Ela exige que ele coloque de lado suas “inclinações” privadas e autocentradas em detrimento de regras que promovam de uma forma imparcial o bem-estar de todos igualmente. Mas ele é capaz de fazer isso somente porque os outros concordaram em fazer a mesma coisa – esta é a essência do “contrato”. Assim, podemos resumir a concepção de contrato social da seguinte maneira: o direito consiste em um conjunto de regras que ditam como as pessoas devem tratar umas às outras, as quais as pessoas racionais concordarão em aceitar, pois há benefício mútuo, sob a condição de que os outros também aceitem as regras. 3. Quais regras somos obrigados a seguir e como essas regras são justificadas? 18 A ideia-chave é que as regras obrigatórias são aquelas necessárias para a vida social. É óbvio, por exemplo, que não poderíamos viver em conjunto muito bem se não aceitássemos regras proibindo o assassinato, o assalto, o roubo, a mentira, a quebra de promessas e coisas do tipo. Essas regras são justificadas simplesmente mostrando que elas são necessárias se quisermos preservar o bem-estar de todos. Por outro lado, algumas regras que são geralmente vistas como regras morais – tais como a proibição da prostituição e da promiscuidade sexual – não são obviamente justificadas dessa maneira. Como pode ser a vida social ameaçada por uma pessoa que se envolve em atividade sexual voluntária e privada com outra pessoa? Se essa conduta não nos ameaça de forma alguma, portanto, está fora do escopo do contrato social e não é da nossa conta. 4. Por que é razoável para nós que sigamos as regras? Concordamos em seguir as regras porque é para o nosso próprio benefício viver em uma sociedade em que as regras são aceitas. É claro que podemos algumas vezes nos beneficiar a curto prazo ao infringir as regras. Contudo, não é razoável para nós um acordo no qual as pessoas possam violar as regras quando for vantajoso para elas – o ponto principal do contrato social é que queremos contar com as pessoas na manutenção das regras, exceto talvez nas mais horríveis emergências. Somente assim podemos nos sentir seguros. A nossa própria firme obediência é o preço razoável que pagamos para assegurar a obediência dos outros. 5. Em quais circunstâncias é permitido infringir as regras? A ideia-chave aqui é a ideia de reciprocidade – concordamos em obedecer às regras na condição de que os outros também o façam. Mas há duas circunstâncias que nos permite infringir as regras, segundo o contratualismo. Ei-las: 1. Quando alguém viola a condição da reciprocidade, libera-nos, pelo menos em algum nível, de nossa obrigação para com ele. Suponha que uma pessoa se recuse a ajudá-lo, numa circunstância na qual claramente deveria fazê-lo. Portanto, se posteriormente ela precisa da sua ajuda, você pode certamente sentir que possui uma obrigação menor de ajudá-la. O mesmo ponto básico explica por que é permitido punir aqueles que infringem a lei criminal. Os infratores são tratados de uma forma diferente dos cidadãos normais – ao puni-los, nós os tratamos de maneiras que normalmente não são permitidas. Como isso pode ser justificado? O propósito do Estado é reforçar as regras primárias básicas para a vida social. Se quisermos viver em conjunto sem medo, não se pode deixar para a ponderação do indivíduo se ele atacará, roubará ou fará outras coisas do mesmo tipo com as outras pessoas ou não. Anexar sanções para as violaçõesdessas regras é o único meio viável de torná-las efetivas. Precisamos da punição. Mas por que é permitido punir? A resposta é que o criminoso violou a condição fundamental da reciprocidade: reconhecemos as regras da vida social como limitantes do que podemos fazer somente na condição de que os outros aceitem as mesmas restrições em suas ações. Dessa forma, ao violar as regras que nos dizem respeito, os criminosos nos liberam de nossa obrigação em relação a eles e se expõem a retaliação. 2. Existe uma circunstância ainda mais dramática na qual se pode violar as regras morais. Em circunstâncias normais, a justiça exige que sejamos imparciais, ou seja, que não atribuamos um peso maior aos nossos próprios interesses em detrimento aos dos outros. Mas imagina uma situação em que tenha de escolher entre a sua própria morte e a morte de outras cinco pessoas. Imparcialmente, parece que a exigência é sobre a sua própria morte, afinal há cinco pessoas e apenas você. Você é moralmente obrigado a sacrificar a si mesmo? Os filósofos sempre se sentiram incomodados com esse tipo de exemplo; eles instintivamente sentiam que 19 existe, de alguma forma, limites sobre o que a justiça pode demandar de nós. Dessa forma, é uma tradição eles afirmarem que ações heróicas como esta estão além da obrigação. São ações admiráveis quando ocorrem, mas não exigidas. Se a justiça demanda decisões imparciais, e a decisão imparcial decreta que é melhor que uma pessoa morra do que cinco, por que não se exige dela que se sacrifique? A teoria do Contrato Social tem uma explicação. É racional aceitar o contrato social porque é para o nosso próprio benefício. Nós desistimos de nossa liberdade incondicional, mas, em contrapartida, conseguimos os benefícios da vida em sociedade. Contudo, se o contrato requer que desistamos de nossas vidas, não estamos melhores do que estávamos no “estado de natureza”; portanto, não temos mais razão alguma para obedecer ao contrato. Assim, existe um limite natural na quantidade de auto-sacrifício que pode ser esperado por qualquer pessoa: podemos não exigir um sacrifício tão profundo que negue o próprio princípio do contrato (interesse e conservação da vida). 6. A justiça possui uma base objetiva? Existe Direito Natural? Há muito tempo desejamos saber se nossas opiniões acerca da justiça representam algo a mais do que nossos sentimentos subjetivos ou os costumes de nossa sociedade. Se existem “direitos naturais” (princípios eternos, imutáveis e universais), quais seriam? Uma das atrações principais da teoria do Contrato Social é que ela coloca de lado todas essas preocupações muito facilmente. As explicações não são mais necessárias. A justiça não é mais uma questão de costumes ou sentimentos; ela possui uma base objetiva. Mas a teoria não precisa estabelecer algum tipo especial de “fato” para explicar as bases. O direito é um conjunto de regras que as pessoas racionais concordariam em aceitar para seu benefício mútuo. Podemos determinar quais são essas regras por meio da investigação racional e, assim, determinar se uma ação específica é aceitável verificando se ela se conforma a essas regras ou não. 7. Excertos da obra Leviatã, de Hobbes 7.1 Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria “Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo, que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disso se segue que, quando um invasor nada mais tem a recear do que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros. E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige. Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o (p. 108) lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Tudo aquilo que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua própria invenção. Numa tal 20 situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta (p. 109). Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais (p. 110)”. 7.2 Das causas, geração e definição de um Estado “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a consequência necessária das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e àquelas leis de natureza. Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar a menor segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros (p. 141). Não é a união de um pequeno número de homens que é capaz de oferecer essa segurança, porque quando os números são pequenos basta um pequeno aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da força suficiente para garantir a vitória, constituindo portanto tal aumento um incitamento à invasão. A multidão que pode ser considerada suficiente para garantir nossa segurança não pode ser definida por um número exato, mas apenas por comparação com o inimigo quetememos, e é suficiente quando a superioridade do inimigo não é de importância tão visível e manifesta que baste para garantir a vitória, incitando-o a tomar a iniciativa da guerra. É certo que algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão (p. 142) seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram adequado para o benefício comum. Assim talvez haja alguém interessado em saber por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Os homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre aquelas criaturas tal não acontece. A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões de estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam alimentar-se e viver satisfeitos (p. 143), é conferir toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando- se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa 21 praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar- me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã (p. 144)”. 8. Conclusão Para Hobbes, na base da sociedade e do Estado há dois pressupostos: 1) o bem relativo originário, isto é, a vida e a sua conservação (egoísmo); 2) a justiça, que é uma convenção estabelecida pelos homens e cognoscível de modo perfeito e “a priori” (convencionalismo). Nesse sentido, a concepção política de Hobbes constitui a inversão mais radical da clássica posição aristotélica, segundo a qual o homem é um animal político; Hobbes considera ao contrário o homem como um átomo de egoísmo, razão pela qual nenhum homem está ligado aos outros homens por consenso espontâneo. A condição em que todos os homens naturalmente se encontram é da guerra de todos contra todos (“homo homini lúpus”); o homem arrisca-se, deste modo, a perder o bem primário, que é a vida e pode sair desta situação fazendo apelo a dois elementos fundamentais: a) o instinto de evitar a guerra contínua e de providenciar aquilo que é necessário para a subsistência; b) a razão, no sentido de instrumento apto a satisfazer os instintos de fundo. Nascem assim as leis de natureza, que constituem na realidade a racionalização do egoísmo, as normas que permitem realizar de modo racional o instinto da autoconservação. No “Leviatã”, Hobbes elenca 19 leis naturais, das quais as mais importantes são as 3 primeiras: 1) procurar a paz e alcançá-la, defendendo-se com todos os meios possíveis; 2) renunciar ao direito sobre tudo, quando também os outros renunciam; 3) respeitar os pactos estipulados, isto é, ser justos. Para constituir a sociedade, todavia, além dessas leis, é preciso também um poder que obrigue a respeitá-las: é preciso, portanto, que todos os homens deputem um único homem (ou uma assembleia) a representa-los. Nasce assim o pacto social, que é feito pelos súditos entre si, enquanto o soberano permanece fora do pacto e é o único depositário dos direitos dos súditos. O poder do soberano (ou da assembleia) é indiviso e absoluto: ele está acima da justiça, pode intervir em matéria de opinião e de religião, concentra em si todos os poderes. Trata-se da mais radical teorização do Estado Absolutista. Referência Bibliográfica HOBBES. Leviatã. Col. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. 22 V. JUSNATURALISMO: OS OLHOS VENDADOS DE KANT E A JUSTIÇA COMO LIBERDADE Prof. Mateus Salvadori1 1. Introdução Tanto a legislação ética quanto a legislação jurídica, em Kant, são formais. O imperativo categórico funciona como uma bússola para o agir humano. Ele deve ser formal, pois somente assim ele atende o critério da universalidade. A razão não é legisladora, pois não está preocupada com “o que deve ser feito”, mas “como deve ser feito”. O imperativo categórico é regulador e orientador. É um dever ser válido para todos, sem exceções. 2. Leis morais, éticas e jurídicas Na obra A Metafísica dos Costumes é realizada uma distinção entre moral e ética e a fundamentação moral do jurídico é investigada; nela, o termo moral tem um sentido amplo; ele corresponde às leis da liberdade (ética e direito) em distinção das leis da natureza. As leis da natureza dizem o que é e as leis da liberdade dizem o que deve ser. Enquanto as leis da natureza, como os princípios da física, derivam da experiência, as leis morais são a priori e não têm como fundamento uma base empírica. Portanto, nem as leis éticas nem as leis jurídicas devem ter como base a experiência. Tanto a legislação ética quanto a legislação jurídica tem a mesma base metafísica: a razão. Em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade são denominadas leis morais. Enquanto dirigidas meramente a ações externas e à sua conformidade à lei, são chamadas de leis jurídicas; porém, se adicionalmente requerem que elas próprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das ações, são leis éticas e, então, diz- se que a conformidade com as leis jurídicas é a legalidade de uma ação, e a conformidade com as leis éticas é a sua moralidade. A liberdade à qual as primeiras leis se referem só pode ser liberdade no uso externo da escolha, mas a liberdade à qual as últimas se referem é liberdade tanto no uso externo como no interno da escolha, porquanto é determinada por leis da razão2. Portanto, na esfera das leis da liberdade, que são as leis morais (moralisch), Kant distingue duas formas de legislação: a legislação ética e a legislação jurídica. Esse conceito de moral (gênero) aborda tanto as leis éticas quanto as leis jurídicas (espécies). Nenhum fundamento empírico pode assegurar absolutamente a primazia da justiça e da integridade dos direitos individuais. Um princípio que deve pressupor certos desejos e inclinações não pode estar menos condicionado que esses mesmos desejos. Todos os objetos práticos são objetos empíricos e não podem proporcionar leis práticas. Na obra A religião nos limites da simples razão, Kant afirma: “Um estado civil de direito (político) é a relação dos homens entre si, enquanto estão comunitariamente sob leis de direito públicas (que são no seu todo leis de coação)”3. Em seguida, Kant acrescenta: “Um estado civil 1 SALVADORI, M. Moralidade e legalidade em Kant. Outramargem, v. 2, p. 113-128, 2015. Endereço eletrônico: https://revistaoutramargem.files.wordpress.com/2015/05/9-n2-mateus-salvadori.pdf 2 KANT, A metafísica dos costumes, p. 63-4. 3 KANT, A religião nos limites da simples razão, p. 101. 23 ético é aquele em que os homens estão unidos sob leis nãocoativas, i.e., sob simples leis de virtude”4. 3. Distinção entre a legislação ética e a legislação jurídica A legislação ética caracteriza-se pela ação praticada por dever. A sua preocupação não é com as leis exteriores, mas com as leis interiores, com a intenção da ação. A relação interna é o que caracteriza a moralidade (Moralität) e a relação externa é o que caracteriza a legalidade. A sua motivação (móbeis), ou seja, o princípio subjetivo do desejar é o dever. O valor moral está no fato de que o ser humano é capaz de motivar as suas ações racionalmente e não pelas paixões. Justamente para se opor à tendência sensível da natureza humana é que é necessário o imperativo categórico. Todavia, se não se explicita o conteúdo pressuposto, em uma dicotomia forma-conteúdo, qualquer conteúdo pode ser justificado. A forma aceita qualquer conteúdo. O formalismo kantiano recorre somente às formas gerais das máximas e prescinde dos fins aos quais são dirigidas. A forma da moralidade é o caráter imperativo da lei moral. Uma moral puramente formal é aquela que satisfaz a condição posta por Kant: Se um ente racional deve representar suas máximas como leis universais práticas, então ele somente pode representá-las como princípios que contêm o fundamento determinante da vontade não segundo a matéria, mas simplesmente segundo a forma5. Essa condição é preenchida pela lei moral puramente formal que é o imperativo categórico. O formalismo define os juízos morais em termos de sua forma lógica, ou seja, preocupa-se apenas com prescrições universais e não com conteúdos. A legislação jurídica é a ação praticada conforme o dever. A ação legal é externa, pois está apenas preocupada com a adesão às leis exteriores, ou seja, com a sua legitimação. Legalmente, sou obrigado somente a me conformar com a ação. Trata-se da liberdade externa. A sua motivação são as inclinações. Portanto, na legislação jurídica se desconsidera o dever como móbil. Preocupa-se apenas com a concordância da ação com a lei. A lei jurídica [...] admite um outro móbil que não a ideia do dever, no caso, móbiles que determinem o arbítrio de maneira patológica (e não prática ou espontânea), ou seja, por sentimentos, sensíveis que causam aversão, pois a lei deve obrigar de alguma maneira eficaz. [...] No plano jurídico há legalidade, ou seja, correspondência da ação com a lei, mesmo que o móbil seja patológico; e no plano ético há moralidade, onde esta correspondência não é suficiente, sendo exigido ainda que o móbil da ação seja o respeito pela lei6. Essa distinção entre ética e direito é essencialmente formal, pois não se preocupa com o conteúdo da ação, mas apenas com a forma. Tendo o mesmo fundamento (leis morais), a legislação ética e a legislação jurídica se distinguem apenas por meio da motivação de suas ações. A diferença não está entre as leis jurídicas e as leis morais, mas entre as leis jurídicas e as leis éticas. Para a ética, basta apenas ter como motivação o dever. Não é necessário ter coerção externa. Por isso, cumprir promessas e contratos, se for realizado apenas devido a coerção externa é próprio da legislação jurídica; mas, se for realizado pelo dever é próprio da legislação 4 KANT, A religião nos limites da simples razão, p. 101. 5 KANT, Crítica da Razão Prática, p. 45. 6 TERRA, A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana, p. 88. 24 ética. Assim, a motivação é a forma com que Kant diferencia as duas legislações. Ao responder a pergunta “O que é a Doutrina do Direito?”, Kant diz o seguinte: Denomina-se doutrina do direito (ius) a soma daquelas leis para as quais é possível uma legislação externa. Se houve realmente uma tal legislação, é a doutrina do direito positivo, e diz-se daquele nesta versado – o jurista (iurisconsultus) – que é experiente na lei (iurisperitus) quando não somente conhece leis externas, como também as conhece externamente, isto é, na sua aplicação a casos que ocorrem na experiência. Pode-se também dar o nome de jurisprudência (iurisprudentia) a tal conhecimento; porém, na falta de ambas essas condições, ele permanece mera ciência jurídica (iurisscientia). Este último título diz respeito ao conhecimento sistemático da doutrina do direito natural (iusnaturae), embora alguém versado nesta tenha que suprir os princípios imutáveis a qualquer legislação do direito positivo7. Portanto, ao buscar definir o direito, Kant irá distinguir o direito positivo e empírico (definido pelo jurista, que trata dos atos lícitos e ilícitos) do direito natural e racional (que trata do justo e do injusto, ou seja, que investiga o valor do direito a partir da ideia da justiça, isto é, a partir de uma fundamentação metafísica). O direito natural é o fundamento do direito positivo. Mas isso não significa a não importância do direito positivo. Uma comunidade necessita desse direito, pois é impossível que ela seja governada apenas por leis advindas da razão. São necessárias, para governá-la, leis positivas. Essas leis, devido à fundamentação moral do jurídico, fundamentam-se no direito natural. Kant trata de uma [...] justificação dos principais institutos jurídicos a partir de alguns princípios racionais a priori, ou postulados, de maneira que sua doutrina do direito pode muito bem ser designada como uma dedução transcendental do direito e dos institutos jurídicos fundamentais, a partir dos postulados da razão pura prática8. O conceito do justo e do injusto não pode ser tirado do direito positivo. O direito positivo diz respeito apenas ao lícito ou ao ilícito. Para saber o que é a justiça se faz necessário buscar os princípios imutáveis, não na legislação positiva, mas na razão, no direito natural. O direito, com isso, indica apenas quais são as leis de um determinado local em um determinado tempo. 4. Afinal, o que é direito? O justo e o injusto permanecem ocultos para o direito, ou seja, não se conhece o critério universal para se delimitar o justo do injusto. O direito positivo deve abandonar as leis empíricas, buscando os seus princípios na razão. “Como a cabeça de madeira da fábula de Fedro, uma doutrina do direito meramente empírica é uma cabeça possivelmente bela, mas infelizmente falta-lhe cérebro”9. Portanto, “um ‘conjunto de leis’ é, para Kant, direito, mas o direito não é um ‘conjunto de leis’, já que essas dependem da verificação sensível do fenômeno jurídico”10. O “cérebro” do direito positivo é o direito natural. O conceito do justo e do injusto é dado pela razão e não pelo direito positivo. O conceito do direito, na visão kantiana, (...) enquanto vinculado a uma obrigação a este correspondente (isto é, o conceito moral de direito) tem a ver, em primeiro lugar, somente com a relação externa e, na verdade, prática de uma pessoa com outra, na medida em que suas ações, como fatos, possa ter influência (direta e indireta entre si). Mas, em segundo lugar, não significa 7 KANT, A metafísica dos costumes, p. 75. 8 BOBBIO, Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant, p. 67. 9 KANT, A metafísica dos costumes, p. 76. 10 WEBER & HAEBERLIN, Equidade na Doutrina do Direito de Kant, p. 125. 25 a relação da escolha de alguém com a mera aspiração (daí, por conseguinte, com a mera necessidade) de outrem, como nas ações de beneficência ou crueldade, mas somente uma relação com a escolha do outro. Em terceiro lugar, nessa relação recíproca de escolha, não se leva de modo algum em conta a matéria da escolha, isto é, o fim que cada um tem em mente com o objeto de seu desejo; não é indagado, por exemplo, se alguém que compra mercadorias de mim para seu próprio uso comercial ganhará com a transação ou não. Tudo que está em questão é a forma na relação de escolha por parte de ambos, porquanto
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