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< * LADRÕES DE PALAVRAS Ensaio sobre o plágio, α psicanálise e o pensamento Tradução: Luiz Fernando Ρ. N. Franco _ , » ΓΛ "Λ C7 J ' V? UM TEXTO PARA O OUTRO: O PLAGIO Há quem cscrcvc com a pena de sargento-mor e os que escrevem com a esferográfica, os que escrevem a máquina, por- que assim faziam os grandes romancistas americanos, c os que escrevem a lápis porque se apaga melhor. Depois, os que escre- vem com tesouras e adesivo transparente. São plagiários. Como? Definamos os termos. Tentaremos precisar os sentidos ético, jurídico e estético, deixando momentaneamehte de lado o alcan- ce psicológico do plágio. O plágio não é um problema estético, dizem às vezes, é uma questão ética, penal ou simplesmente prática; nesse plano, as coisas seriam simples e os critérios, fáceis. Do mesmo modo que dizer coisas falsas pode ser tanto um erro quanto uma mentira, dizer as idéias de um outro pode decorrer tanto da influência quanto do plágio. No sentido moral, o plágio designa uni comportamento refletido que visa o emprego dos esforços alheios e a apropriação íftudulenta dos resultados intelectuais de seu trabalho. Em seu ienlido estrito, o plágio se distingue da criptomnésia, esqueci- "aento inconsciente das fontes, ou da influencia involuntária, 47 pelo caráter conseienle do empréstimo e da omissão das fontes. £ desonesto plagiar. O plagiário sabe que o que faz não se faz. Não se deve, aliás, confundir o plágio, que expõe geralmente seu autor só a uma reprovação moral, e a contrafação, que é, esta sim, um delito. No entanto, no próprio plano jurídico, a noção contem certas dificuldades. Os juristas — e ver-se-á que o mesmo acontece com os críticos — perdem-se em distinções, por demais sutis cm geral, para fornecer um critério prático. Alguns tendem a pesar e a comparar as partes de emprés- timo e de inovação, e, dependendo do caso, a qualificar a obra de original ou derivada. Escreve Rcnouard: "o plágio e a con- trafação diferem um do outro como o menos do mais: o que os separa não é uma oposição nítida entre cores que se chocam, mas sim uma passagem entre nuanças que se fundem cm grada- ções insensíveis". O pensamento é por demais fugidio para servir de guia. Pouillel replica brutalmente: "O que é o plágio e quais os caracteres que o distinguem da contrafação? É o que ninguém saberia dizer: é impossível fixar um limite preciso onde acaba a contrafação sujeita a punição, onde começa o pla- gio tolerado'\ 1 Em Direito, o plágio é uma noção inacessível. Só a apreen- demos como caso particular das infrações ao copyright. Essa no- ção, como aliás a proteção legal a que remete, aparece em data relativamente recente. O plágio só fica sob o alcance da lei indiretamente, por assimilação à contrafação (lei de 11 de mar- ço de 1957). Entretanto, não são passíveis de sanção nem a paródia, nem o pasticlio: o renome é menos protegido do que o nome. No artigo 6, a lei precisa: "O autor goza do direito ao respeito por seu nome, por sua qualidade e por sua obra. Este direito é vinculado à sua pessoa." Todavia, a jurisprudência estima que ' 'o fato de tomar emprestado de uma obra conside- rável um certo número de trechos, compostos de linhas esparsas e disseminadas, não constitui contrafação". Segundo uma fórmu- la bonita, as idéias tem "trânsito livre". 48 O plágio só aparece como contrafação infamante a partir d o momento em que o autor fica ideologicamente investido de unia individualidade de artista, de criador, demiurgo solitário que tira de sua psique os recursos de seu estilo. O movimento acontece muito progressivamente e culmina no século dezenove. A lei Le Chapelier (1791) proclama que "a mais sagrada e a mais pessoal de todas as propriedades 6 a obra, fruto do pensa- mento do escritor". Ao mesmo tempo que punha fim aos direi- tos à cata do que sobrava das colheitas, a Revolução pôs fim a séculos de pastagem intelectual vã. A primeira lei sobre a pro- priedade literária (lei "de Lakanal") data de 1793; ela garante direitos por dez anos. Os textos seguintes prolongam o pra- zo: 1810 (vinte anos), 1824 (trinta anos), 1866 (cinqüenta anos). A representação moral do plágio é histórica c socialmente condicionada. O plágio tem uma história. Mas essa história é complexa e contraditória: como tudo o que concerne à concep- ção, ela não tem mais desenlaccs do que comcços. Tentemos porém mostrar alguns momentos. Embora existisse há muito tempo, a palavra plágio, pelo menos em seu sentido moderno, aparece cm francês tardia- mente (o adjetivo em 1584, o substantivo em 1679, o verbo eni 1801). O combate que travam o escritor e o plagiário no homem de letras, e que se manifesta brutalmente na consciência infeliz do autor moderno, já atormentava os Antigos. Não vemos São Jerônimo estigmatizar os plagiários e obstinar-se a confun- di-los, traduzindo os autores que pilhavam e permitindo, assim, confrontar fonte e cópia (Certe qui hoc legerit Laíitwrum furta cognoscet), enquanto admite para si mesmo: "Preferi aparecer como o tradutor da obra de outrem, a me vestir, pequena gralha feia, de brilhantes cores emprestadas"? Como se, ao traduzir o De Spiritu Saneio, d e Dídimo o Cego, Jerônimo tivesse hesita- d o um bom tempo cm apagar a autoria e a se apropriar. Lar- baud não hesita em indicar-lhe algumas falhas, não de ordem moral, mas intelectuais e estéticas: " O s elementos de empresti- 49 mo, sacros e profanos, foram deixados intactos amiúde, no esta- do de citações, com ou sem referências; o material ajuntado não foi trabalhado, e algumas passagens são tão recheadas de alusões literárias que parecem centões, c cabe se perguntar se, em épocas de baixa cultura, não citaram Salustio, Cícero e Pér- sio, crentes que citavam Jerônimo."2 Diz-se que Santo Inácio de Loiola teria copiado, literal- mente, os Exercícios espirituais, obra do abade de Montserrat, Cisneros, morto em 1510. Ousaríamos dizer que cometeu plá- gio? Ousaríamos, não porque um santo seria incapaz de cometer a infâmia, mas porque seria puro anacronismo assimilar a cópia (e a imitação desempenha então seu papel espiritual pleno) a um plágio? Outro exemplo dos enganos que se podem cometer: o caso de Shakespeare. O crítico inglês Malone, apelidado Mi- tiulius, contou minuciosamente, com efeito, os plágios do autor de Ricardo III. Em 6.043 versos, 1.771 foram escritos por algum autor anterior, 2.373 foram refeitos e, do resto, 1.899 perten- cem a Shakespeare. Aliás, uma versão das peças que distingue graficamentc as três categorias foi editada por Malone. Dentre os autores plagiados, figuram Robert Greene, Marlowe, Lodge, Peele etc. Ao ponto que seu talento de plagiário valeu a Sha- kespeare o apelido de John Factotum. Não faria, contudo, o menor sentido falar de plágio no contexto de efervescência tea- tral da Inglaterra elisabetana, em que se distinguiarn mal os papéis de ator e de autor, em que era normal retomar um esbo- ço, uma metáfora ou uma cena inteira para dar-lhe uma forma nova. Recortar c retirar dos livros e introduzir no próprio dis- curso o que se crê que neles haja de melhor, de mais verdadeiro, é o mais freqüente dos procedimentos de escritura e, ao mesmo tempo, a pior das ações do escritor. Essa marca de infâmia, aos nossos olhos associada ao plágio, está presente num Montaigne que, no mais das vezes, fala de ' 'empréstimos", sim, mas não hesita em se acusar dc "gatunagens".3 Entretanto, como todo 50 mundo, ele escondeu alguns roubos, além dos que confessa ter escondido. Um dos mais manifestos é o empréstimo feito a Plu- tarco, no final da Apclogie de Raimond SebondCuriosamen- te, afora o anacronismo de alguns séculos, o texto é uma refle- xão sobre o ser e o tempo que quase "plagiaria" Heiddegcr. "Nós não temos nenhuma comunicação com o ser, porque todahumana natureza está sempre a meio entre o nascer e o morrer, entreabrindo de si apenas uma obscura aparência e sombra, e uma incerta e débil opinião. Ε se, por acaso, aprofundai vosso pensamento a querer tomar seu ser, isto seria, nem mais, nem menos, como quem quisesse empunhar a água." Este ser que escorre, como o tempo, do qual não podemos apreender nada de subsistente nem de permanente, Montaigne mostra-o sob os tra- ços de um homem que toma dinheiro emprestado e que jamais o devolve, pois o tempo dividiu-se em dois: aquele que deve não é aquele que devolverá. É este mesmo ser, inapreensível, "declinação, passagem, vi- cissitude", ladrão do outro e despossuído de si, é ele quem ve- mos nas questões de propriedade de pensamento, de plágio, de transferencia. Ou de literatura. Pois essa passagem de Montaigne vem "depois", e reproduz textualmente, sem indicação da fonte, o texto de Plutarco: Porque a justiça divina às vezes difere a punição dos malefícios. Ê verdade que Plutarco, por sua vez, tinha apenas transcrito o Timeo de Platão. . . Mas não há nisso plágio algum no sentido moderno do termo, uma vez que essa reflexão sobre a inconstância do ser faz parte do fundo comum da sabedoria estóica. No Renasci- mento, pensar era mergulhar numa tradição e atualizar sua li- ção. Uma lição que não pertence a ninguém e que faz, daquele que não se chamaria de intelectual sem anacronismo, um repre- sentante de um pensamento que o supera. No século dezesseis, as coisas tornam-se mais confusas. Pode-se constatá-lo conside- rando as relações de Pascal com Montaigne, em particular com 51 a mesma Apologie. Acontece que Pascal tomou emprestado desse mesmo capítulo doze, nada menos do que sete passagens, den- tre as quais as que seguem: Pascal: O maior filósofo do mundo, sobre uma prancha mais larga que o necessário, se tem um precipício em baixo de si, ainda que a razão o convença de sua seguran- ça, prevalecerá sua imaginação. Muitos não saberiam sustentar o pensamento sem empalidacer e suar. 6 Montaigne: Aloje-se um filósofo em uma gaiola de finos arames em malha larga e suspensa no alto das torres da No- tre-Dame de Paris; ele verá, com evidência da razão, que é impossível que caia de lá, e se não conseguisse impedir que a vista daquela altura extrema (se não está acostumado ao ofício de telhador) o apavore e o paralise (...) Que se lance uma viga entre as duas torres, de uma largura tal que nos baste para passear sobre ela: não há sabedoria filosófica de tão grande firmeza que nos dê coragem de percorrê-la como se ela estivesse no chão.6 Pascal: Não se vê nada cie justo ou de injusto que não mude de qualidade ao mudar o clima. Três graus de latitu- de subvertem toda a jurisprudência; um meridiano decide sobre a verdade; em poucos anos de vigência, as leis fundamentais mudam; o direito tem suas épo- cas; a entrada de Saturno em Leão marca a origem 52 de tal crime. Estranha justiça, a que um rio delimita! Verdade aquém dos Pirineus, erro além. 7 Montaignc: O que, então, nos dirá a filosofia nessa necessidade? Que sigamos as leis de nosso país? isto é, esse mar incerto das opiniões de um povo ou de um príncipe, que me pintarão a justiça com outras tantas cores e a reformarão com tantas faces quantas são as mudanças de suas paixões? Não posso ter o juízo tão flexível. Que bondade é essa que ontem via acreditada e não mais amanhã, e que o curso de um rio torna crime!' Há nesses exemplos uma semelhança que excede os limites da tradição filosófica. Então há plágio? O termo é pesado e certamente não levaria em conta o fato dc que os Pensamentos não são um livro, mas sim uma coletânea de notas das quais algumas são referencias a tal ou tal outra autoridade, outras são exemplos a serem refutados. No entanto, é a palavra que •Nodier pronuncia: "Nenhum autor chega perto dc Pascal na audácia desse pequeno furto. O plágio de Pascal 6 o mais evidente, talvez, e o mais manifestamente intencional dc que se tem exemplo nos anais da literatura." 0 Pode-se constatar, com efeito, que Pascal, quando cita ou- tros autores, dá sempre suas referências e que ele, que tanto denegriu Montaigne, não pôde se impedir, justamente sobre a questão da originalidade, de escrever "à la Montaigne".1 0 Mas ele tem a lucidez quanto a seus empréstimos: "O que Montaigne tem dc bom pode ser adquirido só dificilmente." 11 Observação importante, que indica que o empréstimo se faz sempre no sen- tido do maior esforço. A argumentação de Nodier é, contudo, curiosa. Há plágio porque Pascal introduz modificações em Montaigne, "menos para tornar a idéia mais clara e mais apro- 53 priada ao assunto, do que para apropriá-la a seu estilo e enqua- drá-la sem disparate no contexto de seus escritos". Circunstân- cia agravante no processo que Nodier instaura, Pascal não só se enriqueceu com os escritos de Montaigne, como também "empregou contra seu benfeitor um tom acre, categórico e so- berbamente desdenhoso". Estranhos argumentos, uma vez que o primeiro, referente ao meio (apropriação estilística), é justa- mente o que elude o plágio do ponto de vista literário, e o segundo, referente ao mecanismo psicológico do rancor, cons- tituiria antes uma circunstância atenuante: só se plagia o que se ama, de um amor devorante e frustrado. Não há dúvida que Nodier cede aqui à ilusão retrospectiva: ele é um homem do século dezenove, e é com as categorias dc então, principalmente psicológicas, que ele julga os empréstimos de Pascal. Não há por que não lhe devolver sua própria perspi- cácia: "Seria injusto qualificar dc plágio o que seria apenas uma extensão ou uma melhoria." 12 Tomemos um outro exemplo dessa atitude ambígua do século dezessete face ao plágio. A primeira edição dos Caractè- res dc La Bruyèrc, onde aparece o célebre "tout est dittudo já foi dito, data de 1688. Retoma, ligeiramente transposta, uma frase de Robert Burton (literato inglês, desgarrado na medicina, e que deixa um tratado publicado em 1621, The Anatomy of Melancholy, 13 onde são abordados mil assuntos, entre reflexões e citações, inclusive, naturalmente, a melancolia): "nothing is omiíted that may well be said", nada é omitido daquilo que pode ser bem dito. Não se pode, porém, dizer que La Bruyère tenha plagiado Burton. Quando menos porque vários autores se anteciparam a ambos nessa constatação melancólica. Mas sobretudo porque a idéia de uma repetição inevitável do saber, ligada à redescoberta dos Gregos e dos Latinos, instala o "tout est dit" na atmosfera da época e o torna quase um tema obriga- tório do prefácio letrado. Com efeito, um dos elementos prin- cipais da tradição humanista é que o autor não deve se distin- 54 guir, mas sim aceitar que toda língua é de empréstimo e que toda forma é recebida através do aprendizado c da apropriação. É na articulação entre idade clássica e época moderna que a acusação de plágio se constitui progressivamente. Até então, a invenção não é levada em nenhuma conta e a arte é constru- ção. Quando J. S. Bach leva a caridade cristã ao ponto de transcrever obras inteiras de Vivaldi, de Telemann ou de Cou- perin, ele não está em desacordo nem com a lei moral nem coirj a dos homens. Essa fraternidade numa obra que é a de Deus é antes uma homenagem da criatura ao Criador de todas as coi- sas. Do mesmo modo, não viria à cabeça de ninguém a idéia de acusar La Fontaine de ter plagiado Esopo, quando, no mais das vezes, ele não fez senão pôr cm versos franceses do século dezessete as fábulas que todo mundo aprendia de cor na escola. Os clássicos tinham, assim, o empréstimo fácil e alegre. Na épo- ca moderna, ao contrário, a pilhagem alegre cede o lugar à angústia de influencia. Para La Fontaine, o plagiário era certa- mente uma estranha ave: "Há corvos bastantes,com dois pés como ele, que se vestem com os despojos alheios e que chama- mos de plagiários." 14 Mas isso não tem nada a ver com a som- bra pálida que se desenha sob as elegâncias amargas de um Musset, ciscando onde pode seu próprio bem, nem, muito me- nos, com a ansiedade triste de um Thomas Mann, com medo de ler Glasperlenspiel de Hcrmann Hesse, e que anota cm seu Diário: "Ser lembrado do fato que não estamos sós no mundo. Sempre desagradável", e que, soubesse ele ou não, cita, plagia, em tom depressivo, a palavra tranqüila de Gocthe: "Um homem vive quando vivem os outros também?" Como é então que se deu a passagem de uma atitude à outra? Tentemos precisar melhor o mom&ito em que as coisas se rebatem. Só bem tarde é que vai aparecer, lentamente, inter- rompido por retrocessos, um discurso sobre o plágio, que este vai ser nomeado, analisado teoricamente e tornado objeto de reflexão e, ao mesmo tempo, uma prática condenável. 55 Se retomarmos o destino de um livro muito estranho, Le Manuscrit trouvé a Suragosse de Jean Potocki, objeto de um dos plágios de Nodier, é que apreenderemos melhor este rebati- mento entre o "plágio" admitido e o plágio desprezível. Ainda, na mais pura tradição, o romance é um florilégio de emprésti- mos feitos aos escritores da Antigüidade, uma compilação de relatos de aparições que coloriram a Idade Média e o século de- zesseis. Potocki, que publicou seu livro em 1805 — cem exem- plares copiados a mão —, tinha explorado fartamente as Rela- tions curieuses de Happelius, do erudito Eberhard Werner Happel (1647-1690), que, por sua vez, tinha utilizado as His- toires mémorables ou tragiques daqueles tempos, de François de Rosset (1619). 15 Entretanto, ninguém teria a idéia de acusar Potocki de plágio. Ele escreve citando outros, mas se desinte- ressa pela propriedade e não reivindica a originalidade. Cita suas fontes e joga com suas referências numa soberba seqüência de variações. A própria forma de seu relato é herdada. Antes e depois de Potocki, observa-se a recorrência obrigatória da his- tória do manuscrito encontrado, de nascimento obscuro. Depois ela alimentou toda uma serie de obras, desde Nodier (que começa o seu Thérèse Aubert com: "o manuscrito desta novela foi encontrado numa dessas casas que, em certa época, servi- ram de prisão") até Danièle Sallenave (Les portes de Gubbio), passando por Ou biert, ou bien, de Kierkegaard.1C (O esquema do manuscrito encontrado tornou-se hoje, praticamente, um lu- gar-comum, um fantasma das origens do escritor, uma espécie de romance familiar em que o escritor se conta: o livro não é de quem se pensa, mas bem-nascido ou de baixa extração.) Mais especificamente, a forma utilizada por Potocki, su- cessão de aventuras repartidas em "jornadas" ou cm noites, à maneira dos antigos heptameron ou decameron, tinha sido reno- vada pelo Vathek, de Bcckford. Nada de original. O próprio assunto é afim ao dos contos de fada de Cazotte. Mas a narrati- va de Potocki é, sobretudo em sua própria estrutura, a ilustra- 56 ção dos podcres da literatura de engendrar o novo a golpes de repetição: sempre a mesma história, contada uma vez mais, toda nova. O leitor encontra a mesma situação, de capítulo em capí- tulo, constantemente reproduzida através de cenários e tempos diferentes: um viajante encontra duas irmãs que o levam para sua cama comum, sozinhas ou às vezes com sua mãe. O que acaba, a cada vez, em castigos, fantasmas, esqueletos. Amores de sudários, festins de pedra. Levada, aqui, à incandesccncia em que se consuma a si mesma, a literatura tem seu movente na fascinação que exerce sobre o leitor uma duplicação domi- nada e transformada cm prazer pela variação estilística e o engenho inventivo. Mas o destino do livro não se fez com a mesma tinta. Nodicr foi o primeiro plagiário de Potocki. Na sua coletânea de histórias de fantasmas, Fnfernalia, publicada em 1822, ele plagia literalmente a décima jornada do romance, as aventuras de Thibaud de La Jacquièrc. É provável que o plágio de Nodicr tenha se seguido a um seqüestro, o do próprio manuscrito. Se- gundo seu companheiro Klaproth, Potocki tinha enviado a um amigo de Paris uma cópia de seu romance para ser publicado1. Essa cópia foi guardada pelo amigo e, até 1958, não foi encon- trada nenhuma versão original em francês. Segundo Caillois, pesa sobre Nodier a "grave presunção" de ter sido este amigo indelícado. Seja como for, quando um polígrafo dc nome Mauri- ce Cousin publica, em 1834-1835, sob o pseudônimo dc Comtc de Courchamps, seu Vai funeste, plágio integral do romance dc Potocki, o caso foi denunciado publicamente nas colunas do National. Houve processo, porque La Presse, que pagara a Courchamps por seu folhetim, cobrou-lhe vinte e cinco mil francos dc indenização. Cruel desdobramento, vôo funesto, Cour- champs foi, por sua vez, plagiado por Washington Irving cm The Granei Prior of Malta. Este foi um dos primeiros processos a dar ao plágio seu caráter infamante. Assim, a partir desta anedota, ve-se bem que o plágio aparece, ao mesmo tempo, 57 como questão literária e como causa penai: Potocki era ainda um homem do século dezoito, Courchamps, já do século deze- nove (de um a outro, toda a distância da folha copiada a mão ao folhetim impresso às dezenas de milhares de exemplares). Mas o incontestável rebatimento no começo do século de- zenove não poderia esconder a complexidade da evolução das mentalidades literárias sobre o assunto. Aplicada ao roubo li- terário, a expressão encontra-se, pela "primeira" vez, já cm Marcial (livro I, epigrama 53): "Impones plagiario pudorem". Aquele que pilha e se apropria das obras dos outros é um plagiário impudente. Em 1679, encontramos um Disserlation philosophique du plagiat littóraire, de um certo Jacqucs Tho- massius, mas a noção é ainda imprecisa e só pouco a pouco ela irá adquirir sua carga de abjeção. Os dicionários dão testemunho desse movimento. Para o dicionário inglês Johnson (começo do século dezoito) o plágio é o crime dc roubo dos pensamentos ou dos escritos de ou- trem. Um século mais tarde, o New and complete dictionnary, de John Ash, o define pelo fato de tomar emprestado os pensa- mentos ou as expressões de um outro. O Littré, de 1866, o considera ainda como delito, bastante benigno, diga-se de pas- sagem: "Ação do plagiário, aquele que se apropria de partes de livros." Entretanto, alguns decênios mais tarde, a Grande Enci- clopédia de Berthelot (1890) só se reporta — aliás sob o nome latino, plagium — ao antigo crime de usurpação fraudulenta das potências domésticas. Do mesmo modo, n o dicionário Fiam- marion (1956) desapareceu qualquer noção de crime ou de delito: "apropriar-se dos escritos, das invenções de outrem". Por que as oscilações? Por que essa incerteza mantida, desde o final do século dezenove, acerca da própria noção de plágio? Por que um mesmo crítico, Remy de Gourmont, tece sobre o assunto comentários manifestamente contraditórios? Em 1906, vemo-lo partir para o ataque à última extensão da 58 proteção legal: "Pertencer a todos, tornar-se o pão cotidiano de todos, não é esse o sonho de todo escritor digno deste nome?" Mas alhures, ele considera o plágio, ora uma fatalidade — "A mácula inevitável e terrível que espreita os livros felizes em demasia" —, ora urna vergonha — "Raspagem c lavagem, esse trabalho comovente dos imitadores que se esforçam em expres- sar suas almas inacabadas, essa labuta dos trapaceiros, por de- mais perseverante, deve ser destruída como uma teia dc aranha, até que o bicho hediondo esteja morto em seu buraco." 17 Um estudo histórico-jurídico mais preciso mostraria, dc cer- to, que a sensibilidade social ao plágio, depois dc ter se exa- cerbado na época do individualismo e do direito dc proprieda- de, atenuou-se dc novo na épocamoderna quando, ao contrário, sob formas diversas (colagem, derivação etc.), o empréstimo perdeu qualquer aspecto de plágio e de comportamento moral- mente condenável. Pouco a pouco, sob o nome sapiente dc intertextualidade, o plágio voltou a ser alguma coisa que não é mais uma fatali- dade, mas sim um procedimento dc escritura como outro qual- quer, àc vezes reivindicado como o único. Quanto à infâmia propriamente dita, o opróbrio diluiu-se um pouco. Ε no entanto, mesmo na época moderna, que valoriza e às vezes exacerba a individualidade c a unicidade das obras de imaginação, não há pior atributo associado ao nome de um escritor que o de plagiário. As duas palavras se opõem: não é um escritor, é um plagiário. Não é mais possível, como Montaigne, confessar-se um plagiário, seria reconhecer uma insuficiência de imaginação, um defeito do próprio pensamento, uma lacuna em st/a criatividade. Numa época que enfatiza o artista como pura singularidade, a acusação o atinge na carne e a ferida é bem outra que não as cócegas que, em condições análogas, sentiam Vps autores que pretendiam simplesmente representar momentaneamente um todo ao qual pertenciam: a tradição. É já nesse contexto moderno que Walter Benjamin denunciava o "fetichismo de einmalig", da- 59 quilo que só se verá uma vez, e tentava tirar a obra de arte do imperturbável diálogo de surdos entre o "único" e o "sempre recomeçado". O estatuto social do intelectual de hoje, indivíduo detentor de uma fração de capital simbólico, que ele tenta valorizar em função de seus interesses próprios, tem por corolário, no plano psicológico, cm seu pensamento, a ênfase daquilo que Freud chamou de "narcisismo das pequenas diferenças". Λ propensão ao plágio se intensificou no meio intelectual e, hoje, cia se deixa observar sob formos exasperadas em grupos cm que o excesso de candidatos aguça o rancor contra os elei- tos. Num vagão lotado, os punguistas e as rixas entre passagei- ros são bem mais freqüentes que na época em que a escritura e o pensamento eram o ofício que poucos seguiam, cada qual em seu caminho. Num tal contexto, o plágio torna-se, realmen- te, o que sempre foi fantasmaticamente: uma questão de sobre- vivência cm um ambiente onde é preciso disputar o próprio lugar. Ao mesmo tempo, a sensibilidade se atenuava. Quando o crime torna-se delito c o roubo, empréstimo, isso testemunha bem uma crescente admissão de um comportamento até então condenável. Em nossos dias, não estamos entrapdo numa era em que os escritos serão plagiáveis à vontade, em que as máqui- nas de comunicar reduzirão a aldeia global às dimensões de um terminal interligado a todas as redes possíveis? Aliás, o li- vro sempre foi um objeto cujo roubo foi constantemente negado ou eufemisado: nas lojas, são "filados", nas bibliotecas de ami- gos, são levados "emprestados", com a certeza, legível às vezes nos olhos do devedor, de jamais devolvê-lo, forma socialmente admissível de um roubo indireto que, amiúde, se confessa de maneira muito direta, conquanto inconsciente: " O que é que eu posso te tomar?", diz o convidado dirigindo o passo e o olhar para a biblioteca. O próprio Freud o praticou ("aconte- ce-me muito facilmente, talvez menos facilmente do que me 60 acontecia quando era mais jovem, de esquecer de devolver os livros emprestados").18 Observa-se, assim, no campo do roubo literário, o mesmo relaxamento generalizado da condenação moral do que atentava contra a propriedade. Ao longo de todo este século, a noção de propriedade das idéias e a noção correlata de plágio sofreram uma evolução histórica constante. Em particular, valerá obser- var uma degradação quanto aos processos e aos procedimentos em jogo, notadamente nos trabalhos universitários. A modéstia dos grandes letrados de ontem contrasta com o amoralismo que atualmente caracteriza o uso das citações ou das referencias nas ciências humanas. A título de exemplo notável da primeira ati- tude, evocar-se-á, aqui, o de Léo Spitzer que, tendo escrito um longo ensaio sobre o estilo de Proust, decidiu suprimir capítulos inteiros de sua análise depois de descobrir que um outro grande romanista de língua alemã, E. R. Curtius, tinha escrito, em seu Franzosischer Geist in neuen Europa (1925), comentários deci- sivos sobre o mesmo assunto. No plano propriamente estético, como definir o plágio? Aqui também não observamos uma dificuldade de isolá-lo? Lançaremos mão, com maior freqüência, de definições téc- nicas descritivas do procedimento do plágio, sem nos pronun- ciarmos sobre seu alcance literário, definições, cm geral, negati- vas: uma citação sem aspas, uma elisão de autoria sem trans- formação. Diremos o que o plágio não é. Notaremos, por exem- plo, que ele se distingue da transcrição, da paráfrase, da varia- ção, termos qu\ têm em música um sentido bem preciso. A arte da paráfrase ou da transcrição (Liszt, Busoni), meio termo entre a interpretação e a composição, pode encobrir, também no âmbito literário, desenvolvimentos de um segundo autor — não necessariamente secundário (cf., de Beethovcn, as Variações sobre um tema de Diabelli) sobre um motivo tornado empresta- do de um autor primeiro e apresentado como tal. Pode-se citar 61 o caso de Stendhal que, praticamente, nunca empreendeu uma história que já não estivesse prefigurada numa narrativa exis- tente e apresenta, por exemplo, a novela Mina de Vanghel corno sendo "traduzida livremente de A. CEhlenschlaeger". Do mesmo modo, A Cartucha de Purma se inspirava numa velha crônica, e O vermelho e o negro, na Gazette des tribunaux. Não se dirá que Stendhal, que os cometeu, alguns evidentes, tenha aqui recorrido a plágios. Trata-se somente da paráfrase romanceada de fontes históricas. Mais significativo é o caso de Nodier, praticante e, ao mesmo tempo, teórico do plágio. Nele podemos apreender dois modos bem distintos de abordar a questão. A primeira, bem clássica, retomada de La Bruyère, insiste na necessária imitação, na inevitável herança: "a imitação é o objeto da arte propria- mente dita, a invenção é a marca do gênio. Ó que é certo é que não há nenhuma invenção absoluta. A mais marcada pela ousa- dia e pela originalidade das invenções nada mais é que um feixe de imitações escolhidas. O homem não compõe nada de nada". 2 0 O escritor forma uma nova individualidade a partir de uma multidão de elementos esparsos, "ele procura, ele com- para, ele monta, ele põe em relação". Por outro lado, contudo, Nodier anuncia, inçontestavelmcn- te, as abordagens mais modernas da escritura, com a sua ma- neira de expor o problema e de acrescentar-lhe um toque de fantasia: teoria do intertexto, afirmação do desaparecimento do escritor, representação invertida da comunicação literária (o escritor é, de fato, um leitor, o leitor, um escritor). Segundo essa concepção, a tarefa do escritor continua sendo a de dizer, ainda que tudo já tenha sido dito. Mas Nodier chega, pouco a pouco, a uma visão muito moderna ao rejeitar a oposição mítica segundo a qual se constituiu a história literária ensinada no século dezenove: "as fontes" e a "originalidade". Ele abandona a idéia de um autor anterior à sua obra, em favor de outra, a de um escritor interior a um texto que ele não pode dizer que 62 é seu, a não ser que inverta sua origem. O escritor se produz no texto. Assim sendo, ele não tem mais nada a dizer, nada dele, pelo menos, nada além do dizer interminável da própria litera- tura. Aproximamo-nos aqui da insistência moderna na noção de texto como tecido, tela de reminiscência, uma vez que um texto nunca dá acesso à coisa escrita pela primeira vez. Como a lem- brança-sobre-tela, o texto é lembrança de uma tela. Texto que se lembra de um texto anterior. O grau zero da escritura não existe e talvez jamais tenha existido.A literatura é sempre de segundo grau, não cm relação à vida ou à realidade social de que ela seria Mimésis (Auerbach), mas em relação a ela mesma, e o plágio não é senão um caso particular dessa escritura sem- pre derivada de uma outra.2 1 Dc onde se conclui que o vício dc Flaubert dc só escrever, como Bouvard e Pécuchct, um livro feito dc livros (ainda que, curiosamente, perseguisse com rigor a repetição interna a seu próprio texto), ao invés de exprimir um fantasma regressivo, seria a constatação realista do estado da literatura na época moderna. O plágio constitui um dos casos de fraude literária, em que o autor faz passar por sua a obra de um outro. Uma tal defini- ção descreve um movimento: fazer (pretensamente) seu um ob- jeto (a obra escrita). A prática desse roubo sobre um outro objeto (as palavras, as idéias) foge à definição. Fica-se no em- préstimo, na influência, se elas vêm de outrem; senão, exprimi- mos "nossas" idéias, com "nossas" palavras, bem sabendo que delas não há nenhuma posse garantida, mas tampouco desapro- priação fraudulenta. Do mesmo modo, tomar um objeto, sem fazê-lo passar por seu, também não é um plágio, é uma citação. Dado um outro texto, pertencente a um autor designado, eu o faço meu graças à citação, ou me faço dele pela dívida reconhe- cida. (O caso simétrico, em que um autor põe suas próprias elocubrações sob o nome de um outro, não tem nome preciso, 63 I c só um falso, uma suposição de autor dc uma espécie parti- cular.) Para além dessas duas formas, correm soltos os disfarces e ÍIS mistificações (pasticho, paródia, palimpsestos, pseudôni- mos etc.). Todas têm por efeito o dc torcer, desajuntar ou dissi- mular o liame que une o nome do autor à obra, que une seu nome real, de estado civil, à sua obra verdadeira, resultado efe- tivo de sua criação. No entanto, essas distinções são incertas. Plágio, pasticho, paródia, os termos são empregados como sinônimos por Charles Nodicr, uni dos raros teóricos da escritura mimética: "Ao que tudo indica, entretanto, aquele lá (escritor original, eu o saú- do!) nada mais escreveu, além daquilo que tinha sido dito antes dele; e, coisa maravilhosa!, o primeiro livro escrito nada mais foi, além de um pasticho da tradição, um plágio da palavra!" 22 De fato, é difícil achar uma definição propriamente lite- rária do plágio. Pode-se citar, aqui, aquela que dava o próprio Nodicr nas suas Questions dc littérature légale; du plagiat, de la supposition d'autcurs, des supcrcheries qui ont rapport aux livres (1812): "tirar de um autor o fundo de uma obra de in- venção, o desenvolvimento dc uma noção nova ou ainda mal conhecida, o jeito dc um ou mais pensamentos". Essa definição converge com a de Voltairc: "quando um autor vende os pen- samentos dc um outro como se fossem seus, este pequeno furto chama-se plágio". A palavra decisiva está lançada: pensamento, apropriar-se do pensamento alheio; essa definição corrente do plágio esbarra logo em múltiplas questões. Qual é esse genitivo que vincula um pensamento a um autor? Uma marca de propriedade, de posse, de concepção? Pode um pensamento ser apropriado? O pensamento alheio não fica sempre estranho, longínquo, fora de alcance? Ou então, não se pode antes varrer a definição com um simples gesto da mão? não se faz outra coisa senão se apropriar do pensamento alheio. Todo dia, a cada momento, quando se escuta, negocia, discute, sem falar dos interesses con- 64 vcrgentes ao redor de um mesmo tema ou de uma mesma for- mulação e que fazem grilar aqueles que o encontro fere e reme- te à sua pequenez: os grandes espíritos se encontram. Ninguém nega que o movimento do pensamento repousa sobre um fundo comum ao qual a inteligência esta condenada, que existem aca- sos dcsconcertantes, uma memória involuntária c uma apropria- ção fecunda. Ε então? Procuremos outros critérios. É ainda em Voltaire que se encontra uma tentativa mais precisa de definir o plágio. Sabe-se que, depois do Télémaque de Fcnelon, muitos autores fizeram viajar seus heróis segundo esse traçado, com- provado c coroado do imenso sucesso do precedente. Assim fe2 Ramscy, nas Voyages cie Cyrus. "Até aí, nada além de uma fria imitação", diz Voltaire. Entretanto, se ele copia as frases, os raciocínips de um autor antigo, "isto se parece muito com um plágio. . . " Mas ele usa alhures as mesmas expressões em- pregadas por Fcnelon: "ele o copia, sem citá-lo, palavra por palavra. Eis aí um plágio sob todos os aspectos". É 110 palavra por palavra, no decalque exato, mas sem nome de autor, que reside o plágio. Definição algo estreita, sim, que restringe os casos de plágio a alguns exemplos aberrantes, mas que tem, ao menos, o mérito de absolver Voltaire dos inúmeros plágios que ele se permitiu, mudando, é verdade, algumas palavras, algu- mas situações. Nodicr cita vários exemplos. O capítulo de Zaclig, " D u chien et du cheval", foi copiado das Voyages et aventures des trois princes de Sarrendip, do Cavaleiro de Mailly. Um outro capítulo, "L'Ermite", foi transcrito do inglês Thomas Parwell. O caso mais exemplar é este plágio de um soneto de Maynard: Por vossos humores o estado é governado; Só vossos amigos jazem a calma e o temporal, Ε vós rides de me ver confinado Longe da corte, em meu pequeno arraial. 65 Cleomedoníe, meus desejos estão a contento; Eu acho belo o deserto onde habito Ε bem sei que é preciso ceder ao tempo, Fugir do convívio mundano, tornar-se eremita. Sou feliz de envelhecer sem fim, De me esconder, de viver todo para rnim, De ter domado o medo e a esperança; Ε se o céu que me trata tão bem Tivesse piedade de vós e da França, Vossa felicidade seria igual à que aqui se tem. Voltai re, que não fazia sonetos, transformou a peça em madrigal: Por vosso humor o mundo é governado; Vossas vontades fazem a calma e o temporal. Vós vos rides de me ver confinado, Longe da corte, no fundo de meu arraial; Mas não é nada ser todo para mim? Estar sem cuidados, viver sem fim, Ter domado o medo e a esperança? Ah! se o céu que me trata tão bem Tivesse piedade de vós e da França, Vossa felicidade seria igual à que aqui se lem. Entretanto, afora certos casos patentes, é deveras difícil decidir o que é e o que não é plágio. Mais vale renunciar ao jogo estéril em que, graças a um hipotético "onomômetro", me· dir-se-ia a freqüência de aparição das palavras tomadas empres- tado e das construções desviadas, do mesmo modo que é pre- ciso perder qualquer esperança quanto a um critério rigoroso e incontestável. Ao invés de uma definição inencontrável, mais vale tentar propor uma fenomenologia, descrever as formas e delinear o que está em jogo. 66 Poder-se-ia montar uma tipologia das formas dc plágio. O plágio de derrisão, que só é plágio na aparência. Se bem que utilize o procedimento formal da elisão de autoria, sua finali- dade não é a apropriação, mas o desvio: a não-dissimulação do empréstimo é antes essencial ao efeito cômico. Pode-se citar aquele que comete o jovem Racine nos Pluideurs, onde utiliza o verso em que Corneille dizia do pai de Chimène: "Suas rugas sobre sua fronte gravaram suas proezas"; brincando com a pa- lavra exploit — proeza ou intimação — , Racine diz do pai do Intimé, que era oficial de justiça: "Suas rugas sobre sua fronte gravavam todas as suas intimações". A meio caminho entre a derrisão e a homenagem, o plágio lúdico. Molière põe na boca de Arnolphc esse verso do Sertorius dc Corneille: "Eu sou o senhor, eu falo; ide, obedecei." 23 O plágio de humildade. "É preciso esconder minha fraque- za sob esses grandes créditos. . . Neles encontro semeadas flo- res por demais ricas e de que minha roça não é absolutamente capaz e que todos os frutos dc meu cultivo não seriam capazes dc pagar" (Montaigne). O plágio perverso."Nas razões e invenções que transplan- to para meu terreno e que confundo com as minhas, às vezes omiti deliberadamente a marca do autor, para manter com as rédeas curtas a temeridade dessas sentenças apressadas que aco- riac;24 entretanto, a ausência de aspas explica-se, não pela trapa- uma ofensa a Plutarco cm meu nariz e que se excitem ao inju- r iar Sêneca em mim." 24 O plágio condescendente. Os grandes autores não podem ser suspeitos de plágio. Eles são influenciados, são dados a facécias, mas não copiam. Assim, não há dúvida de que Valéry plagiòü Le cimetière au bord de la mer, de C. A. Lebrun (1785-1873). O plano, a seqüência de imagens e até mesmo o texto exato de uma dezena de versos encontram-se em Le cimetière marin. Mas ninguém pensará tratar Valéry como plagiário, uma vez que o poema derivado superou dc longe seu modelo. Do mesmo modo, 67 quando Gide, em Les Fuux-Monnayeurs, evoca a aurora nesses lermos: "a pálpebra do horizonte avermelhado já se levanta", ele reproduz, palavra por palavra, uma frase tomada de Mau- Friae; entretanto, a ausência de aspas explica-se, não pela trapa- ça, mas por um desafio zombeteiro ao leitor. O plágio ornamental. Montaigne reivindica nada ter feito além de "roçar e pinçar, pela cabeça ou pelos pés, ora um autor, ora outro; de modo algum para formar minhas opiniões, exceto para assisti-las há muito tempo formadas, para secundá-las c servi-las". O plágio de humor. Piscar de olhos para o autor de um jogo dc palavras que gostaríamos de ter feito. Assim, escreve Queneau: "Não era ontem nem amanhã, mas no mesmo dia", plagiando a frase de efeito dc Théophile Gautier: "É hoje e não ontem ou amanhã que se põe a venda o admirável, o inevi- tável, o divino e mais que divino romance do muito célebre Th. Gautier." 27 O plágio de impostura, β ainda em Montaigne que acha- mos as palavras mais duras contra este roubo, assim estigmati- zado: "Cobrir-se com as armas dc ou trem até não mostrar se- quer a ponta dc seus dedos, conduzir seu projeto, como é fácil aos sábios numa matéria comum, sob as invenções antigas re- mendadas aqui e acolá; quanto àqueles que as querem esconder e fazer próprias, é, primeiramente, injustiça e covardia que, nada tendo em seu valor por onde se produziram, queiram se apresentar através de um valor estranho."2 8 O plágio é uma "tolice", uma "trapaça". Aqueles que o praticam são "escrito- res indiscretos" sobre os quais recai o opróbrio definitivo: seus escritos nada mais são do que "obras do nada".2 Ü O plágio absoluto. Tão forte no século dezesseis, o sonho de escrever o livro dos livros, aquele que os submete a todos, quintessência e resumo dc tudo o que foi escrito, sonho que anima Montaigne ou kabelais, naufraga já no século dezessete com o último monstro no gênero, a Anatomy o/ Melancholy, 68 dc Burton. Bem mais tarde, se o ideal ressurge com Borges, não tanto como livro (ninguém mais fará a loucura de escrever um tal livro), mas como uma imagem invertida em pesadelo, na idéia duplamente exposta do livro que contém todos os li- vros (O livro cie areia) e da nostalgia vertiginosa segundo a qual todos os livros formam um só, que é o mundo ou Deus (A Biblioteca de Babel). 69
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