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Traduzido: Robert A. Dahl (1961) – Who governs? Democracy and power in an american city – New Haven: Yale University Press

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Robert A. Dahl (1961) – Who governs? Democracy and power in an 
american city – New Haven: Yale University Press. 
 
Tradução: Wagner Pralon Mancuso e Pablo Ortellado 
 
Capítulo 19 – Sobre a espécie Homo Politicus 
 
Descobrimos e expusemos a anatomia da influência política em New 
Haven. Descrevemos as mudanças de longo prazo da oligarquia ao pluralismo; 
analisamos a distribuição e os padrões de influência; traçamos as mudanças de 
curto prazo das esferas de influência para uma ordem centrada no executivo. 
Sabemos agora como o sistema funciona. Podemos explicar por que funciona? 
Comecemos com o próprio homem: com suas oportunidades e recursos para 
obter influência e o modo como explora – ou, mais freqüentemente, deixa de 
explorar – suas potencialidades políticas. 
 
Homo Civicus 
 
O homem cívico é, no fundo, um homem simples. O homem é a criança 
crescida. A criança é a espécie humana após milhões de anos de evolução. 
Apesar das idéias e dos ideais, o organismo humano ainda insiste 
incessantemente em sua busca primordial por gratificações e alívio do 
sofrimento. A criança e o jovem aprendem diversas formas de experiência 
gratificante: eles aprendem sobre o amor e sobre a comida, sobre as 
brincadeiras, sobre o trabalho e sobre o descanso, a busca da curiosidade, a 
percepção da ordem e do padrão, o sexo, a amizade, a auto-estima, a estima 
social. Em toda a vida do homem, experiências como essas fazem convergir 
seus esforços, suas energias, sua atenção. Elas representam seus apetites, 
suas necessidades, seus desejos. 
A criança, o homem cívico emergente, aprende logo que não pode fazer suas 
próprias vontades sem limites. Restrições são impostas à sua liberdade para 
satisfazer-se, tanto pela própria natureza, na forma de limitações fisiológicas, 
mecânicas e psicológicas, como por outros indivíduos – sua família, para 
começar, depois seus colegas, professores e mais tarde inúmeros outros. A 
criança luta, resiste e é pega, com mais ou menos firmeza, numa rede tramada 
por ela mesma e pela sociedade. 
Ela aprende como postergar suas experiências gratificantes. Devido às várias 
barreiras impostas a ela, as rotas que escolhe para seus objetivos são 
normalmente complexas e demoradas, algumas vezes chatas, ocasionalmente 
dolorosas, às vezes perigosas. 
Ela descobre que assim como outros a obrigam em seus esforços para 
conquistar seus objetivos primários, ela também tem recursos que pode usar 
para influenciar outros para atingir seus próprios fins. No começo, esses 
recursos estão fortemente ligados a sua própria pessoa e consistem em ações 
simples e diretas e em reações tais como afeição, cordialidade, ódio, hostilidade, 
choro e destrutividade. Mas o mundo, como ela pouco a pouco descobre, 
contém outros recursos que podem ser usados de maneira mais indireta. Em 
nossa própria cultura, por exemplo, ela logo descobre que o dinheiro tem um 
poder mágico que induz o consentimento de pessoas muito diferentes para 
propósitos muito diferentes. 
Assim, o homo civicus começa a desenvolver estratégias, maneiras de utilizar 
seus recursos para conquistar seus objetivos. Ele descobre que mesmo 
escolhendo as estratégias, ele não desfruta de uma liberdade completa. 
Algumas estratégias são proibidas, outras são admissíveis, outras ainda são 
encorajadas, muitas são simplesmente inevitáveis. A escolaridade e o emprego 
são apresentados a ele como estratégias compulsórias; deixam-lhe claro que 
qualquer tentativa de se desviar destes caminhos será castigada não apenas 
com uma grande perda na capacidade de conquistar seus objetivos mas 
possivelmente até com uma punição direta. A escolaridade é considerada um 
degrau para a obtenção do conhecimento e o conhecimento é um recurso de 
aplicação ampla; um emprego é um degrau para a aquisição de renda e 
reputação social, recursos que são importantes para uma variedade de fins. 
O jovem homo civicus aprende que suas escolhas são compelidas por leis e 
impostas pela polícia, pelos tribunais e por muitos outros membros do poder 
público. Ele descobre grupos de instituições e homens chamados governos, em 
relação aos quais desenvolve sentimentos de lealdade ou cinismo. Ele pode 
aceitar as imposições sobre as suas escolhas que partem das ações destes 
governos, ou pode tentar evadi-los, mas, de qualquer maneira, descobre pouco 
a pouco que o leque de estratégias admissíveis ao lidar com os governos é em 
grande medida largo e inclui muitas alternativas mais sutis do que as que ele 
inicialmente tinha suposto. Entre os recursos para influenciar os membros do 
poder público, o homo civicus descobre o voto. Embora a doutrina pública 
preponderante da sociedade americana atribua um alto valor a este recurso e o 
homo civicus possa externalizar um apoio a essa doutrina, na verdade ele pode 
duvidar do seu valor e utilizá-lo raramente se é que alguma vez, ou pode ainda 
votar apenas por hábito ou sentimento de obrigação. Ele pode também ver o 
voto como um dispositivo útil para influenciar os políticos. 
 O homo civicus tem também outros recursos. Por exemplo, ele pode renunciar a 
um filme ou dois para contribuir para uma campanha política; pode renunciar a 
uma noite de televisão para distribuir propaganda para um candidato; mas muito 
dificilmente a atividade política será o principal objetivo da sua vida. 
Normalmente, como uma fonte de gratificações diretas, a atividade política vai 
parecer ao homo civicus menos atraente que um grande número de outras 
atividades; e, como uma estratégia para conquistar suas gratificações 
indiretamente, a ação política parecerá bastante menos eficiente do que o 
trabalho, do que ganhar dinheiro, comprar um seguro, entrar para um clube, 
planejar as férias, mudar-se para um outro bairro ou cidade ou enfrentar um 
futuro incerto de diversas maneiras. 
Às vezes, no entanto, as ações ou falta de ação dos governos podem ameaçar 
os objetivos primários do homo civicus (como no caso da Sra. Grava e seus 
vizinhos quando foram ameaçados pelas casas de metal ou como quando os 
professores primários de New Haven foram ameaçados por salários reduzidos e 
escolas pobres). O homo civicus pode deliberadamente levantar-se então para 
utilizar os recursos à sua disposição para influenciar as ações dos governos. 
Mas quando o perigo passa, pode-se normalmente esperar que o homo civicus 
retorne a sua preocupação ordinária com estratégias não-políticas para a 
conquista de seus objetivos primários. 
O homo civicus não é, por natureza, um animal político. 
 
Homo Politicus 
 
Apesar de vários milhares de anos de especulação criteriosa, não se pode dizer 
com certeza sobre os fatores que moldaram o homo politicus a partir do barro do 
homo civicus. Presume-se que no decorrer do desenvolvimento, alguns 
indivíduos descobriram que a ação política é uma fonte poderosa de 
gratificações, tanto diretas, quanto indiretas. Se e quando os objetivos primários 
que movem o homo civicus tornam-se permanentemente ligados à ação política, 
nasce um novo membro do gênero homo politicus. O homem político, ao 
contrário do homem cívico, dispõe deliberadamente uma grande parte de seus 
recursos no processo de conquista e manutenção do controle das políticas de 
governo. O controle sobre as políticas normalmente requer controle sobre os 
membros do poder público. E onde, como nos Estados Unidos, os membros 
principais do poder público são escolhidos pelo eleitor, o homem político 
normalmente dispõe uma grande parte de seus recursos no processo de 
conquista e manutenção de influência sobre os eleitores. Uma vez que a 
aquiescência do homo civicus é sempre uma condição necessária para o 
domínio, e a obtenção do seu consentimento é normalmente econômica, em 
todos os sistemas políticos, o homo politicus utiliza deliberadamente recursos 
para influenciar as escolhas do homo civicus. O homem político invariavelmente 
buscainfluenciar o homem cívico diretamente, mas mesmo em sistemas 
democráticos o homem cívico apenas ocasionalmente busca influenciar o 
homem político diretamente. 
Da mesma forma que o homem cívico, o homem político desenvolve estratégias 
que governam os modos pelos quais utiliza os recursos à sua disposição. Tal 
como o homem cívico, o homem político escolhe suas estratégias a partir de um 
conjunto limitado. Em alguns sistemas políticos, os limites impostos ao homo 
politicus são amplos; em outros, os limites são relativamente estreitos. Em 
sistemas políticos democráticos ou pluralistas, com amplo consenso político, o 
leque de estratégias admissíveis é limitado pelas crenças e hábitos enraizados 
nas tradições de legalidade, constitucionalidade e legitimidade que são 
constantemente reforçadas por uma grande variedade de processos sociais para 
a geração de concordância e aderência às normas políticas. Quem quer que se 
desvie destas estratégias admissíveis corre um grande risco de derrota, pois os 
recursos que serão mobilizados contra o desviante são quase certamente 
maiores do que os recursos que o próprio desviante arregimentou. Pode-se 
esperar que mesmo o homo civicus (sob o estímulo de líderes políticos rivais) se 
levante brevemente de sua preocupação com objetivos apolíticos e empregue 
alguns dos seus recursos para golpear o homem político que, em suas escolhas 
de estratégias, comece a se desviar explicitamente das normas prescritas na 
cultura política. 
 
Recursos 
 
 Os recursos disponíveis ao homem político para influenciar os outros são 
limitados, embora não sejam permanentemente fixos. Para nossos propósitos 
neste livro, um recurso é qualquer coisa que possa ser usada para alterar as 
escolhas específicas ou as estratégias de um outro indivíduo. Ou, para utilizar 
uma linguagem diferente, qualquer coisa que possa ser usada como um 
induzimento é um recurso. 
 Como se classificam os recursos é, em alguma medida, arbitrário. Seria 
possível listar recursos em grande detalhe, distinguindo um recurso do outro 
com a máxima minúcia, ou lidar com categorias muito amplas. Poder-se-ia 
buscar alguma classificação abrangente e logicamente exaustiva, ou 
simplesmente listar recursos conforme os ditames do senso comum. Poder-se-ia 
empregar elaboradas categorias psicológicas, derivadas de teorias da psicologia 
moderna, ou poder-se-ia usar termos mais comuns para classificar os recursos. 
Para que possamos explicar os padrões de influência em New Haven, será 
suficiente, eu acredito, usar as categorias ditadas pelo senso comum; qualquer 
coisa a mais do que isso, no presente estágio de nosso conhecimento, seria 
mero palavreado pseudocientífico. 
 Alguns recursos podem ser utilizados como induzimentos de forma mais 
ou menos direta. Ou, para dizer de outro modo, os tipos de experiências efetivas 
e cognitivas mencionadas anteriormente como peculiarmente fundamentais e 
universais dependem de forma mais direta de alguns tipos de recursos e, de 
forma mais indireta, de outros tipos de recursos. 
 Uma lista de recursos no sistema político dos EUA poderia incluir o 
próprio tempo de um indivíduo; o acesso ao dinheiro, ao crédito e à riqueza; o 
controle sobre empregos; o controle sobre informação; estima ou posição social; 
a posse de carisma, popularidade, legitimidade, legalidade; e os direitos ligados 
ao cargo público. A lista também poderia incluir a solidariedade: a capacidade de 
um membro de um segmento social de evocar apoio de outros sujeitos que o 
identificam como um igual, por causa de semelhanças em ocupação, posição 
social, religião, origem étnica ou racial. A lista incluiria o direito ao voto, 
inteligência, educação, e talvez até mesmo o nível de energia pessoal de cada 
um. 
 Poder-se-ia facilmente pensar em refinamentos e adições a esta lista; ela 
não é concebida como uma lista exaustiva, mas como uma ilustração da riqueza 
e da variedade de recursos políticos. Muito freqüentemente, as tentativas de 
explicar a distribuição e os padrões de influência em sistemas políticos 
começam com uma suposição a priori de que tudo pode ser explicado pela 
referência a apenas um tipo de recurso. Pelo contrário, as várias manifestações 
de influência em New Haven descritas em capítulos anteriores somente podem 
ser explicadas, como veremos, levando-se em conta uma quantidade de 
recursos políticos diferentes. 
 Embora os tipos e as quantidades de recursos disponíveis para o homem 
político sejam sempre limitados e fixos em qualquer momento determinado, eles 
não são, como apontou-se anteriormente, permanentemente fixos no que se 
refere seja ao tipo, seja à quantidade. O homem político pode usar seus 
recursos para obter influência, e ele pode depois usar sua influência para ganhar 
mais recursos. Os recursos políticos podem ser acumulados da mesma forma 
que um homem que começa uma carreira empresarial às vezes transforma um 
pequeno investimento em um grande império corporativo. Para o empreendedor 
político que tem habilidade e ímpeto, o sistema político oferece oportunidades 
ímpares para transformar uma pequena quantidade inicial de recursos em uma 
considerável “propriedade” (holding) política. Como veremos, esta possibilidade 
mostrar-se-á muito importante para explicar as mudanças de influência em New 
Haven. 
 
Hipóteses 
 
 No livro I, vimos como foi destruído o monopólio sobre a vida pública 
mantido pelas famílias patrícias congregacionistas de New Haven, como os 
empreendedores sem posição social herdada e educação alcançaram as 
prerrogativas dos cargos públicos, e como estes homens foram, por sua vez, 
deslocados por ex-plebeus privados dos mais importantes recursos de influência 
possuídos por seus antecessores: status social hereditário, riqueza, destaque 
empresarial, realizações profissionais, e, freqüentemente, até mesmo educação 
formal além do ensino secundário. A mudança no sistema político de New 
Haven desde a eleição de Elizur Goodrich, em 1803, até a eleição de John W. 
Murphy, em 1931 – o primeiro, descendente de um bispo anglicano do século 
XVI, formado em Yale, congregacionista, advogado, juiz, congressista, 
federalista; o segundo, descendente de imigrantes irlandeses, católico, 
democrata e funcionário do antigo Sindicato Internacional de Produtores de 
Cigarros de Samuel Gompers – representou nada menos do que uma revolução 
ampla e pacífica que transformou as instituições sociais, econômicas e políticas 
de New Haven. 
 Esta mudança em New Haven é totalmente consistente com três das 
hipóteses-chave deste estudo. Primeiro, algumas antigas cidades americanas, 
das quais New Haven é uma, passaram por uma transformação 
aproximadamente semelhante, de um sistema em que os recursos de influência 
eram altamente concentrados, para um sistema em que eles são amplamente 
dispersos. Segundo, a atual dispersão é uma conseqüência de certos aspectos 
fundamentais das estruturas sociais, econômicas e políticas de New Haven. 
Terceiro, a atual dispersão não representa igualdade de recursos, mas 
fragmentação de recursos. É possível dizer que a revolução em New Haven 
constitui uma mudança de um sistema de desigualdades cumulativas em 
recursos políticos para um sistema de desigualdades não-cumulativas, ou 
dispersas, em recursos políticos. 
 Este sistema de desigualdades dispersas é, acredito, marcado pelas seis 
características seguintes: 
1) Muitos tipos diferentes de recursos para influenciar os membros do poder 
público estão disponíveis para diferentes cidadãos; 
2) Com poucas exceções, estes recursos são distribuídos 
desigualmente; 
3) Os indivíduos em melhor posição no acesso a um tipo de recurso 
freqüentemente estão em má posição no que tange a muitos outros 
recursos; 
4) Nenhum recurso de influência predomina sobre todos os outros 
recursos em todas as decisões-chave, ou mesmo na maioria delas; 
5) Com algumasexceções, um recurso de influência é efetivo em 
algumas áreas de questão, ou em algumas decisões específicas, mas 
não em todas; 
6) Virtualmente ninguém, e certamente nenhum grupo com mais do 
que alguns indivíduos, é inteiramente privado de alguns recursos de 
influência. 
 
Se, conforme nossa hipótese, New Haven é um sistema de desigualdades 
dispersas que possui as seis características de um tal sistema, como isto nos 
ajuda a explicar os padrões de influência descritos nos capítulos anteriores? 
Uma maneira de responder à questão é olhar para a forma em que os recursos 
estão distribuídos em New Haven. Seria entediante examinar em detalhe todos 
os tipos de recursos existentes na comunidade. Mantendo em mente a grande 
variedade de recursos políticos citados anteriormente, podemos prosseguir e 
considerar uma lista de recursos suficientemente curta para ser manejável e, 
todavia, suficientemente longa para permitir-nos testar algumas explicações 
alternativas para a distribuição, padrões e mudanças de influência em New 
Haven. Esta lista reduzida de recursos políticos consistirá em posição social 
(discutida no próximo capítulo); acesso ao dinheiro, ao crédito e à riqueza 
(capítulo 21); acesso a certos recursos disponíveis para líderes eleitos, tais 
como os poderes legais do cargo público, popularidade e empregos (capítulo 
22); e controle sobre informação (capítulo 23).

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