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1 FILOSOFIA - 06 REFLEXÃO FILOSÓFICA: CRITICIDADE, RADICALIDADE E TOTALIDADE1 “A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade... não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido, a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, descobrir o modo de ser do existente”. Vemos, então, que é necessário um esforço sistemático para se chegar à estrutura da realidade, sem o que torna-se ineficiente a nossa tarefa filosófica. Tarefa esta que não se encontra restrita à “missão” de grandes sábios. O filosofar é próprio de todos, em níveis distintos, dos mais simples (“simplórios” no dizer de Gramsci) aos mais elaborados intelectualmente. Por esse motivo, o esforço sistemático que é filosofar tem um caminho. Ele parte, como sabemos, do “nosso-redor” cotidiano que é o senso comum e se dirige a uma atitude polêmica, crítica. Em outras palavras, todo filosofar, como processo, tem origem no senso comum e se dirige a uma filosofia, e, contrariamente, toda filosofia “tende a se tornar senso comum de um ambiente, ainda que restrito”. Neste caminho dialético podemos distinguir algumas características desse pensar, que são determinantes da possibilidade de se tornar crítica a reflexão filosófica. Para que a reflexão filosófica seja crítica, é necessário que haja criticidade. E o que é isso? Tomemos a palavra crítica. Os significados da palavra encontrados nos dicionários são, entre outros: a “arte de julgar o valor”; “exame”; “discernimento”; “critério”. Podemos inferir que a palavra crítica está vinculada à idéia de “cuidado de abordagem”. Esta idéia de analisar atenta e minuciosamente o objeto nos dá idéia de crítica como uma característica da reflexão filosófica mas, também, e antes disso, como uma postura do filósofo. Criticar, então, é ter o cuidado de saber estabelecer critérios. Ter critério é possuir uma norma para “decidir o que é verdadeiro ou falso, o que se deve fazer ou não fazer, etc.” Um cognato de crítica e critério é crise. E crise significa alteração. Criticar seria, para nós, estabelecer critérios nos quais o objeto do conhecimento se coloque em ponto de crise para, então, poder divisá-lo como afirmação e negação. Seria uma forma de conhecer compreensivamente para decidir. Exemplifiquemos: a palavra crítica tem uma conotação, muitas vezes, pejorativa. Criticar seria, neste sentido, falar mal de alguma coisa. Já vimos em livros professores dizendo que o seu trabalho (um livro sobre educação) é de “críticas construtivas”. Mas voltemos ao exemplo. Quando assistimos a um filme e queremos nos informar mais sobre ele, procuramos, depois, ler algo nos jornais, escrito por críticos especializados. E, muitas vezes, com aquela visão oferecida pelo crítico, trechos ou detalhes não-compreendidos encaixam-se num quadro referencial mais coerente. Outras vezes, a leitura da crítica de um filme nos faz pensar em determinadas relações, dentro da trama, que não foram sugeridas pelo especialista. Esta situação é uma ilustração da criticidade da reflexão filosófica. Vejamos como: Por que o crítico consegue fazer uma crítica de cinema e você não? Temos, como pessoas, potencialmente as mesmas possibilidades, o filme é o mesmo e não somos (no caso, o crítico e você) culturalmente tão diferentes. Vamos lembrar o que é crítica. Fazer crítica é estabelecer critérios para conhecer um objeto, colocando-o em ponto de crise. O nosso objeto de conhecimento é o filme. Entretanto, só poderemos estabelecer esses critérios para criticá- lo quando, através de um prévio conhecimento do contexto, o analisarmos, isto é, refletirmos sobre suas propostas, sua situação na história, sua relação com outras obras ou artes, enfim, quando pudermos analisar o filme em profundidade e extensão. Com essas informações, com a análise feita, temos como colocar o filme em um ponto de crise, conhecê-lo compreensivamente e aí, segundo critérios pessoais, decidimos sobre o seu valor. Por este motivo é que o espectador “comum” não faz uma crítica elaborada. Ele tem a possibilidade e o instrumento para a crítica, mas falta-lhe um exercício de reflexão apoiado por informações contextuais. Neste ponto podemos observar, por analogia, que o “senso comum” do espectador se transforma na reflexão do crítico quando aquele busca informações e reflete criticamente sobre cinema. Da mesma forma, o pensar filosófico tem origem no “senso comum” e se torna crítico com este tipo de reflexão. Entretanto, além de crítica, a reflexão filosófica tem duas outras características. Vejamos quais são: A primeira é que além de critica, e por isso mesmo, a reflexão filosófica tem de buscar as origens da questão estudada. Em outras palavras, é necessário que essa reflexão seja radical, ou seja, que ela busque a raiz, a origem, os fundamentos. A reflexão filosófica é como a raiz de uma planta que busca a origem na profundidade. Esta é a outra característica: a radicalidade. Lembramos que a palavra radical significa “relativo a raiz” e, também, “cerne, origem, princípio”. Portanto, o conhecimento que não é radical, isto é, que não vai à raiz, à origem, é um conhecimento ingênuo ou, ainda, é a manifestação de uma consciência ingênua. “Consciência ingênua é aquela que – por motivos que cabe à análise filosófica examinar – não inclui em sua representação da realidade exterior e de si mesma a compreensão das condições e determinantes que a fazem pensar 1 In: SOARES, Agostinho J. Introdução ao pensamento filosófico. 7 ed. São Paulo: Loyola, 2000. 2 tal como pensa. Não inclui a referência ao mundo objetivo como seu determinante fundamental. Por isso julga-se um ponto de partida absoluto, uma origem incondicional, acredita que suas idéias vêm dela mesma, não provêm da realidade, ou seja, que têm origem em idéias anteriores. Assim, as idéias se originam das idéias. A realidade é apenas recebida ou enquadrada em um sistema de idéias que se cria por si mesmo”. Este tipo de conhecimento é superficial, em que a polêmica não inclui esclarecimento nem possibilidades de negação. É um conhecimento polêmico por postura de exclusões, e não por autenticidade dialética. É um saber que não inclui o diálogo. Ao passo que a postura radical busca esclarecer, clarificar e não exclui, nessa procura, a atenção para a indagação dos contrários. Ser radical é proceder como a raiz de uma árvore que penetra o solo com uma haste principal e robusta para se fixar à terra, mas não abandona ias ramificações, pois estas são parte e complemento daquela. Citemos um exemplo. O universitário recém-saído do “crivo” dos exames vestibulares, talvez não tenha tido oportunidade (por falta de tempo, às vezes) de se perguntar por que e para que existem estas provas (provações, obstáculos). A partir do momento em que ele se posiciona criticamente, isto é, adquire uma postura crítica com relação ao vestibular (estabelece critérios que lhe permitem tornar crítica, colocar em crise, aquela questão) está iniciando uma reflexão filosófica. Ele deve, no segmento do problema, procurar compreender radicalmente a questão, buscar a origem na profundidade. Uma das atitudes, e talvez a primeira é a compreensão histórica do problema (entendendo história como gênese, cronologia crítica). Desta forma ele estaria caminhando para um ponto de vista filosófico. Entretanto, esta reflexão ainda não estaria completa: falta-lhe uma outra característica. Vejamos: “Outra das idéias categóricas que distinguem a consciência superior da realidade é o atributo da totalidade. Queremos com esta noção designar o caráter próprio dessa consciência de considerar sempre o real como multiplicidade interiormente estruturada”. Se o real deve ser consideradoestruturalmente como uma multiplicidade, não podemos abstrair aspectos da realidade, isto é, não podemos fazer cortes no real para compreendê-lo, e sim devemos mantê-lo no contexto próprio que possibilite a compreensão das relações ali existentes. As ciências explicam as partes e isso é característica de sua atividade. A ciência não se preocupa em refletir sobre os seus postulados. A filosofia pergunta sobre o porquê das ciências, sobre o porquê se faz ciência, etc. A filosofia está interessada na reflexão sobre a totalidade, e a abrangência de suas questões transcende o científico. No caso do aluno do nosso exemplo, ele deveria dirigir sua reflexão, agora, para a compreensão do problema no âmbito da sua totalidade. O vestibular não é fato isolado, e por mais que ele fosse estudado assim (como fato destacado do seu contexto) não chegaria a uma compreensão (visão total) do problema. Para haver esta compreensão é necessário incluir o vestibular no todo (contexto) do qual ele faz parte. E este todo é o contexto sócio-político, econômico e educacional. Aí será compreendida a ideologia que determina a sua existência, e a compreensão do problema será um fato. Essas características da reflexão filosófica, entretanto, não são separadas a não ser numa exposição didática. Elas se interpenetram e constituem a própria reflexão. Ao pensar dialeticamente, o ser humano não consegue ser somente crítico sem ser radical ou vice-versa. Da mesma forma não se consegue abordar um problema em sua totalidade sem nisso incluir uma postura crítica e uma atitude radical. Então, quando é que fazemos filosofia ou quando é que fazemos uma reflexão filosófica? Será quando a nossa reflexão for radical (buscar a origem do problema), crítica (colocar o objeto do conhecimento em um ponto de crise) e total (inserir o objeto da nossa reflexão no contexto do qual é conteúdo).