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ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 1 Aula 6: Poder de Polícia ................................................................................................................. 2 Introdução ............................................................................................................................. 2 Conteúdo ................................................................................................................................ 4 Contextualização ............................................................................................................... 4 Natureza jurídica do poder de polícia ........................................................................... 4 Finalidade e fundamento ................................................................................................. 6 Poder de polícia originário e poder de polícia delegado ........................................... 7 Formas de atuação do poder de polícia e seus meios de execução ..................... 12 Ordem de polícia ............................................................................................................. 14 Consentimento de polícia - 1ª parte ............................................................................ 16 Consentimento de polícia - 2ª parte ........................................................................... 22 Consentimento de polícia - 3ª parte............................................................................ 25 Fiscalização de polícia .................................................................................................... 28 Sanção de polícia ............................................................................................................. 29 Atributos ou características definidoras do poder de polícia – proporcionalidade ............................................................................................................................................. 30 Atributos ou características definidoras do poder de polícia – discricionariedade ou vinculação? ................................................................................................................. 32 Atributos ou características definidoras do poder de polícia – autoexecutoriedade ........................................................................................................ 36 Atividade proposta .......................................................................................................... 41 Referências........................................................................................................................... 43 Exercícios de fixação ......................................................................................................... 43 Chaves de resposta ..................................................................................................................... 47 Aula 6 ..................................................................................................................................... 47 Exercícios de fixação ....................................................................................................... 47 ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 2 Introdução Ao longo da existência humana, as atividades de pensar, estudar, trabalhar, opinar, tomar atitudes, como celebrar um contrato em algum momento da vida, por exemplo, demonstram não só a capacidade física e mental do homem, mas, sobretudo, sua liberdade. Significam os direitos que o homem tem dentro da sociedade em que vive, sejam direitos expressos explícita ou implicitamente no ordenamento jurídico. Para que essas atividades possam se processar do modo mais perfeito possível, no entanto, é necessário que o homem tenha um mínimo de segurança, pois com ela o homem trabalha melhor e, via de regra, produz mais. Sendo assim, em todos os países, uma determinada parte do Estado especializou-se, constituindo um corpo diferenciado ao qual se dá o nome de polícia, organismo encarregado de assegurar a ordem pública e de promover a segurança humana, cujo poder se manifesta para conter os excessos, estando intimamente ligado, portanto, à contenção dos direitos individuais em face do interesse público. Por conseguinte, tem o administrador o poder de conter esses direitos, cuja competência é indicada pela expressão poder de polícia. Nesta aula, falaremos sobre: poder de polícia Originário, poder de polícia Delegado, finalidade e fundamento, bem como as formas de atuação do poder de polícia e suas sanções. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 3 Objetivo: 1. Identificar nas atividades do Estado o poder de polícia e suas peculiaridades, inerentes ao ordenamento e ao Estado de Direito, em razão da supremacia do interesse coletivo. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 4 Conteúdo Contextualização Em face de sua soberania, o Estado é detentor de prerrogativas especiais perante os indivíduos, sem as quais, aliás, não se tornaria possível organizar a vida em sociedade. Entretanto, sabe-se que, para organizar, necessário se faz utilizar o poder, quer dizer, pressupõe-se a existência de um indivíduo – ou de um grupo de indivíduos – hierarquicamente superior aos demais que dita as regras de organização, até por conta do fato milenar de que as pessoas não se organizam voluntariamente, sendo imprescindível, portanto, a existência de uma soberania para reger uma sociedade e torná-la organizada. Relevante é ressaltar, portanto, que não há direito individual absoluto. Os direitos são todos relativos em prol do interesse público, o que significa dizer que a Administração pode limitar, condicionar e restringir os direitos individuais em prol do interesse coletivo, mas sem poder jamais retirar o próprio direito do cidadão, hipótese em que não seria poder de polícia, e sim arbítrio, configurador do abuso de poder. Assim, em nossos dias, predomina a ideia da relatividade dos direitos, porque o direito do indivíduo não pode ser absoluto, visto que absolutismo é sinônimo de soberania. Não sendo o homem soberano na sociedade, o seu direito é, por consequência, simplesmente relativo. Natureza jurídica do poder de polícia A polícia administrativa funda-se em um vínculo geral entre a Administração Pública e os administrados, que autoriza a imposição de condicionamentos ou limitações ao uso, gozo e disposição da propriedade, e ao exercício da liberdade, em benefício do interesse público: quanto à propriedade, porque deve cumprir sua função social, e à liberdade, por se compatibilizar com o ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 5 princípio da prevalência do interesse público, condicionamentos esses relacionados ao bem-estar público ou social. A razão do poder de polícia é, portanto, o interesse social, e o seu fundamento está na supremacia geral que o Estado exerce em seu território sobre todas as pessoas, bens e atividades, supremacia que se revela nos mandamentos constitucionais e nas normas de ordem pública, que a cada passo opõem condicionamentos e restrições aos direitos individuais em favor da coletividade, incumbindo ao Poder Público o seu policiamento administrativo. Para desempenhar a função de polícia administrativa, então, a administração assenta seus fundamentos na supremacia geral do interesse público sobre todos os cidadãos indistintamente, expressão em termos legais, mas não recaindo sobre esseinstituto qualquer limitação advinda da supremacia especial decorrente de algum vínculo específico entre o Poder Público e determinado sujeito, como ocorre com os concessionários, funcionários públicos, usuários de serviços públicos e com as próprias autarquias. A respeito cumpre destacar que, quando se invoca expressamente a ordem pública como um instrumento de manutenção da segurança, da tranquilidade e da salubridade públicas, não se pode esquecer que o conceito jurídico de poder de polícia está impregnado de outros valores, voltando-se também à proteção da dignidade humana. Conclui-se que o poder de polícia guarda estreita relação com a constrição dos direitos individuais em face do interesse público; consequentemente, conclusivo também que o direito individual não é absoluto, sendo que o direito público prevalece sobre o privado, podendo esse ser restringido, limitado ou condicionado em razão do primeiro. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 6 Finalidade e fundamento A finalidade do poder de polícia não é outra senão a proteção dos interesses públicos, no seu sentido mais amplo e nos diversos aspectos em que esses possam estar presentes, tais como os valores material, moral, cultural etc. É mister que, para o Estado exercer essa proteção, atuará imbuído do seu peculiar poder de polícia e, nesse contexto, o interesse do particular não poderá transcender o interesse público, que será o ápice dessa tutela, mas, ao contrário, poderá a Administração até mesmo condicionar o exercício dos direitos individuais e o uso de bens que afetem a comunidade, de forma preventiva ou repressiva. O fundamento do poder de polícia é a supremacia do interesse público sobre o individual, com respaldo no Artigo 3º, IV, da Constituição Federal, ao preconizar que: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Finalidade e fundamento Essa assertiva também encontra respaldo jurisprudencial, assim se observando: Ementa: processual civil. Remessa necessária. Permissão de uso. Bem público. Instalações precárias. Necessidade de reforma. Desocupação do bem. Reintegração de posse. Impossibilidade. Poder de polícia. Indenização indevida. Apreensão de mercadorias. Necessidade de devolução. I – Não cabe reintegração de posse em face do Poder Público, quando o ato realizado pela Administração se pautou em interesse relevante; II – Nos casos em que o poder de polícia foi utilizado de forma adequada, mostra-se incabível indenização por parte do ente público, vez que não há abuso ou ilegalidade no ato; ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 7 III – Tendo sido apreendidas mercadorias tão somente com o escopo de desocupar o imóvel que seria reformado, mister se faz a devolução das mesmas, quando o fim tiver sido atingido; IV – Remessa conhecida e improvida. (TJ/MA. Processo nº 6.599/1997, Rel. Des. Cleones Carvalho Cunha, 3ª Câmara Cível) Assim, com base na doutrina pátria, a finalidade e o fundamento do poder de polícia é a defesa da ordem pública, e para o Direito Administrativo essa expressão ordem pública significa condições mínimas e essenciais para uma vida adequada e pacífica. O objetivo maior do interesse público é promover o bem de todos, devendo agir o administrador com imparcialidade e sem restringir a sua atuação a nenhum indivíduo ou classe, o que vale dizer que toda a sociedade é suscetível de ser abarcada na consecução de atos do Poder Público que visam garantir ao cidadão o bem comum. Isto é o que se configura um Estado democrático, excepcionando a observância dos direitos individuais apenas quando estes colidirem com o interesse social. A exemplo do exposto pode-se citar o mencionado na própria Lei Maior, em seu inciso XXIII, Artigo. 5º, onde é garantido o direito de propriedade, mas este é condicionado ao cumprimento de sua função social. Poder de polícia originário e poder de polícia delegado Se o poder de polícia, como já dito, é conferido a todas as pessoas políticas da federação, a elas cabendo atuar editando leis e atos administrativos, coerente é que se lhes confira também, em decorrência, o poder de expor minuciosamente as restrições, atuação essa que caracteriza o poder de polícia originário. O referido poder nasce, portanto, com a entidade que o exerce, sendo pleno o seu exercício, subordinado unicamente à Constituição. Melhor dizendo, é exercido pelo próprio estado – pela administração pública direta. Acompanhe. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 8 A União, estados, Distrito Federal e municípios têm competência para exercer poder de polícia dentro daquele sistema de partilha de competências estabelecido na Constituição. Existe, ainda, o poder de polícia delegado, este um pouco mais complexo, que é o que se transfere a outras pessoas administrativas vinculadas ao estado – administração pública indireta –, para atuarem através de lei formal, caracterizando-se por serem atos de execução. O poder de polícia delegado é o poder que, embora limitado, as pessoas recebem através de um ato próprio para isso, mas cuja delegação não é outorgada a pessoas de direito privado desprovidas de vinculação real com os entes públicos, pois essas não possuem o ius imperi necessário ao desempenho do poder de polícia. Pessoas que recebem o poder de polícia delegado não têm competência legal, atribuída originalmente a elas, para fazer determinadas fiscalizações, como foi na época dos vários planos econômicos, quando vários órgãos da administração municipal e estadual receberam competência para fiscalizar o tabelamento de preços. Podemos, inclusive, observar o caso do IBAMA, uma autarquia federal que, na área de meio ambiente, exerce poder de polícia derivado ou delegado. Embora exista uma parte da doutrina que entenda que todas as entidades da administração indireta (autarquia, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista) podem possuir poder de polícia, outros lecionam que somente aquelas que possuem personalidade jurídica de direito público estão aptas a exercer essa prerrogativa estatal, desde que exista previsão legal nesse sentido, como já anteriormente explicitado. Em que pese os entes políticos criarem as chamadas empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) vinculadas à sua respectiva administração indireta, tem-se que, para alguns doutrinadores, essas referidas entidades não poderão exercer o poder de polícia, pois tal prerrogativa é incompatível com a natureza privada dessas entidades. Além da ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 9 polêmica envolvendo as entidades da administração indireta, discute-se também a possibilidade das empresas privadas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos exercerem poder de polícia. Da mesma forma que as empresas estatais não podem exercer tal prerrogativa, entendem que não o poderão as empresas privadas delegatárias de serviços públicos; pela mesma razão, qual seja, são pessoas jurídicas de direito privado. Desse modo, mesmo que para essas empresas concessionárias ou permissionárias de serviços públicos possam ser concedidas, por meio de contrato, algumas prerrogativas para a execução do objeto contratado, por certo é dizer que não poderão exercer o poder de polícia, repise-se, pois esse é prerrogativa estatal que decorre de lei, conferida apenas às pessoas jurídicas de direito público. A respeito,entretanto, há de se tomar muito cuidado com o tema que trata de delegação do poder de polícia, pois, por ser esse entendido pela doutrina majoritária como um serviço essencial, em princípio, não pode ser delegado a particulares. Ocorre que o Artigo 30, V, da Constituição Federal, quer queira ou não, traz um serviço essencial delegável: ao dispor que cabem aos municípios organizar e prestar diretamente os serviços públicos de interesse local, ao mesmo tempo delega esse poder sob o regime de concessão ou de permissão, incluindo o de transporte coletivo, que tem caráter essencial. Confirma-se, todavia, que o que ambas as atuações pretendem, tanto a do poder de polícia originário quanto à do poder de polícia delegado, também chamado de derivado, é ver alcançado o fim maior pretendido, que é disciplinar os direitos e liberdades individuais em prol do interesse público. As características do poder de polícia derivado são a limitação no tempo e em matéria. Assim, a competência do poder de polícia derivado é nominativa, isto é, tem que ser indicado o órgão, o período e qual o âmbito de fiscalização desse poder de polícia, que cessará quando cessar o motivo. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 10 Hoje, já se tem amparado pelo próprio texto constitucional a possibilidade de se afirmar que não é todo e qualquer serviço essencial que é indelegável, como radicalmente se coloca na doutrina. Aqui, porém, vale chamar a atenção para alguns aspectos importantes: para começar, ainda que o Código de Trânsito e o CONTRAN falem em delegar o poder de polícia de fiscalização, é preciso anotar que a competência de legislar sobre trânsito é privativa da União (Artigo 22, XI, da CF/88) – o que fez com a edição do Código de Trânsito Brasileiro. Estabeleceu-se, porém, o CONTRAN que regulamentaria algumas situações, dentre elas o sistema de licenciamento, mas se observando que o Código de Trânsito não exige, na verdade, a vistoria anual de veículos, o que legalmente seria impeditivo para a edição de resoluções e portarias como forma de restringir direito, pois, como se sabe, não cabe ao ato administrativo, seja distrital, estadual ou municipal, ampliar matérias que não estejam disciplinadas em lei, razões pelas quais o STF afirma que a vistoria anual de veículos é inconstitucional.1 Ocorre que o CONTRAN, ao arrepio da lei, burlando o 1 “EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VISTORIA DE VEÍCULOS. MATÉRIA RELATIVA À TRÂNSITO. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO. INCONSTITUCIONALIDADE. Viola a competência legislativa privativa da União (art. 22, XI, CF/1988) lei distrital que torna obrigatória a vistoria prévia anual de veículos com tempo de uso superior a quinze anos. Precedentes. Pedido julgado procedente” (STF. ADI 3.323 DF, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 08/03/2005, Tribunal Pleno). Nesse sentido, lê-se o seguinte em Notícias do STF, de 9 de março de 2005: “Lei sobre vistoria de carros no DF é declarada inconstitucional. O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou, por maioria, a inconstitucionalidade da Lei distrital 3.425/04, que regulamenta a periodicidade das vistorias obrigatórias em veículos automotores. Essa decisão foi tomada ontem (9/3) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3323, proposta pelo governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz. O governo alegou que a referida lei, ao regulamentar matéria sobre trânsito, teria ofendido o artigo 22, inciso XI da Constituição Federal, que atribui à União a competência sobre a regulamentação do trânsito. Cita, ainda, que o Código de Trânsito Brasileiro (Lei federal 9.503/97) determina que o Contran estabeleça a periodicidade das vistorias, em seu artigo 104. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 11 comando constitucional, editou a Resolução nº 84/98, estabelecendo a vistoria como exigência obrigatória para o licenciamento de veículo, o que estaria relacionado diretamente ao trânsito, sendo então suspensa sua aplicação pela Resolução nº 107/99, por tempo indeterminado. Curiosamente, no entanto, no Rio de Janeiro, o DETRAN vem descumprindo essa Resolução, sendo o único estado da federação a adotar o sistema de vistoria veicular anual, o que é visivelmente arbitrário, pelo que se acabou de demonstrar. Pode-se afirmar, então, que a delegação do poder de polícia é bastante complexa, havendo, inclusive, ultimamente, uma grande discussão sobre esse tema, questionando-se o seguinte: quem pode desempenhar o poder de polícia? Os momentos do poder de polícia podem ser materializados por pessoas de direito privado? Pode, ou não, o Estado delegar poder de polícia ou parcela do seu poder a terceiros, entidades privadas? Bem, para tentar responder a essas questões, é importante apreciar, primeiramente, as formas de atuação do poder de polícia e, sobretudo, os meios administrativos para a sua execução, assim melhorando a compreensão do tema e até perceber, mais adiante, o porquê da controvérsia existente sobre essa questão. O relator da ação, ministro Joaquim Barbosa, rejeitou preliminar levantada pela Câmara Legislativa do Distrito Federal de que o STF não seria competente para avaliar a lei distrital, de natureza municipal, por regulamentar suposto interesse local referente à política de educação para a segurança do trânsito. O ministro entendeu que norma sobre a exigência de vistoria de veículos não regulamenta questões referentes à educação para a segurança no trânsito, mas, sim, questões relacionadas diretamente ao trânsito. Barbosa esclareceu que o tema pode ser regulamentado pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos municípios, e confirmou a competência do STF para analisar o caso. Ao julgar o mérito, o relator sustentou que o tema da vistoria de automóveis é matéria relativa ao trânsito, a qual, por força do artigo 22, inciso XI, da CF/88, é de competência privativa da União. ‘A invasão da competência legislativa da União me basta para considerar inconstitucional a norma ora atacada’, afirmou Barbosa, julgando procedente a ADI para declarar a inconstitucionalidade da Lei 3.425/04, do Distrito Federal”. Disponível em: <http://m.stf.jus.br>. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 12 Formas de atuação do poder de polícia e seus meios de execução Afirmar que o poder de polícia não pode ser delegado por ser uma atividade adstrita à soberania estatal e o Estado não poder delegar aquilo que é ligado a sua soberania trata-se de um posicionamento superado. Nem tudo ligado ao poder de polícia é vinculado à soberania do Estado, ou seja, ao poder de império, pois existem atividades ligadas ao poder de polícia que correspondem ao poder de gestão, que são justamente aquelas praticadas sem que o Estado utilize de sua supremacia sobre os destinatários. Por isso, hoje predomina a posição intermediária, isto é, que o poder de polícia é parcialmente delegável. Veja! Antes de se falar propriamente de delegação, há de se observar, conforme dito, as formas de atuação do poder de polícia, que podem ser a escrita ou a verbal, admitindo-se, ainda, a simbólica, como os silvos dos policiais de trânsito, por exemplo, a sinalização do tráfego de veículos e pedestres etc., atuações essas, no entanto, cujo exercício não é instantâneo, e sim percorrido em fases, que eventualmente vão ser seguidas no caso concreto. Mas por queé importante compreender essas fases de polícia? Por várias razões, principalmente para entender as controvérsias que existem sobre essa temática controvertida, que é a delegação do poder de polícia à entidade privada, pois, invariavelmente, a doutrina vai trazer, a partir dessas fases, diversos aspectos do poder de polícia para responder à questão em tela. A jurisprudência, no entanto, assim não procede, porque tem uma posição mais clássica, mais conservadora, mas infelizmente o que se observa é que não são poucos os magistrados que, em suas decisões, chegam a confundir poder de polícia com Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Federal, o poder de segurança pública, quando isso não é verdade. Uma entidade autárquica, quando fiscaliza o meio ambiente, quando fiscaliza as condições sanitárias de um restaurante, ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 13 por exemplo, está exercendo poder de polícia, mas isso não tem nada a ver com o sentido técnico da expressão segurança pública. Dizer que não se delega poder de polícia à entidade privada, tudo bem, é o raciocínio perfeito, mas afirmar que isso é porque a segurança pública não se delega a terceiros é um argumento equivocado, bastando observar o caso concreto da fiscalização de trânsito, que faz lembrar segurança pública, e que a Administração pode contratar com terceiros essa atividade instrumental – mas isso não é o poder de polícia que está sendo delegado. Portanto, poder de polícia pode envolver segurança pública, mas pode envolver segurança de trânsito, pode incidir sobre a disciplina das construções (poder de polícia edilícia), sobre a proteção do meio ambiente (poder de polícia ambiental), da saúde pública (poder de polícia sanitária) etc. Enfim, há inúmeras manifestações de poder de polícia, sendo segurança pública apenas uma delas. É bom deixar claro que essa crítica que aqui se faz não é quanto à conclusão a que alguns magistrados chegam, de que não se delega poder de polícia à entidade privada, e sim com relação ao argumento, que tem que ser coerente, tem que ser um argumento jurídico, e não aquele que eles trazem. Como se pode observar, então, o poder de polícia abrange uma área muito mais ampla do que polícia de segurança. Assim, certas áreas de atuação do poder de polícia não só podem como devem ser delegados a terceiros, inclusive pela falência dos próprios órgãos públicos, especialmente a polícia de costume. Partindo-se dessas premissas, seguindo a orientação didática do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que nesse ponto é praticamente repetida por quase todos os autores, existe um ciclo de fases que vão ser adotadas no exercício do poder de polícia, o qual ele denomina de ciclo de polícia, elencando quatro modos de atuação administrativa: ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 14 • Pela ordem de polícia, pelo consentimento de polícia, pela fiscalização de polícia e, por fim, eventualmente, pois nem sempre necessária, pela sanção de polícia, momentos importantes que serão detidamente analisados, detalhando-se seus meios de execução. Ordem de polícia O ciclo de polícia se inicia guiado, necessariamente, por uma previsão legal dotada de generalidade e abstração que promove a limitação da liberdade individual, assim ocorrendo justamente para o estado cumprir sua finalidade precípua, que é atender ao interesse público. Por isso, as restrições ou condicionamentos estatais a direitos fundamentais estão, nesse primeiro momento, exatamente na ordem de polícia. Partindo daí, então, o que diz Diogo de Figueiredo? Ele diz que essa ordem de polícia envolve necessariamente a atuação legislativa, porque só a lei pode impor primariamente restrições e condicionantes a direitos fundamentais, só a lei pode criar direitos e obrigações ao particular, pois é ato normativo primário como já vimos preteritamente. É a lei, portanto, o fundamento primeiro do poder de polícia, embora possa haver, variável ou eventualmente, outros atos administrativos normativos que vão executar esmiuçar o que a lei já disse previamente, trazendo genericamente algumas condições e restrições a direitos fundamentais, como é o caso do regulamento executivo que analisamos em momento passado deste trabalho. Sendo a finalidade do poder de polícia, no seu sentido mais amplo, atender ao interesse público resguardando o bem comum, a Administração, com respaldo legal, pode atuar de duas maneiras: primeiro, editando atos normativos em geral, que são aqueles que não têm destinatários determinados, que possuem como características a generalidade, a abstração e a impessoalidade, o que os ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 15 torna dotados de grande abrangência, daí as limitações serem instituídas por lei. Nessa hipótese, tais limites são perpetrados por meio de decretos (ato administrativo da competência do Chefe do Executivo), regulamentos (como a venda de bebidas nos períodos eleitorais), resoluções, deliberações (órgãos colegiados), portarias, instruções e despachos para a sua consecução, sendo exemplo clássico o gabarito dos prédios ou, então, qualquer ordem de polícia. Ao lado das limitações administrativas, encontram-se os regulamentos de execução, os quais são baixados pelo Executivo para regulamentar as leis e disciplinar sua aplicação. Além desses, a Administração ainda pode atuar através de atos concretos, que são aqueles que têm destinatários determinados, são direcionados a indivíduos devidamente identificados, a exemplo dos veiculados por atos sancionatórios, como a multa, a interdição de estabelecimentos, a dissolução de passeatas, a destruição de coisas, e por atos de consentimento, representados pela licença e a autorização, cujo instrumento formal é normalmente o alvará, embora outros documentos possam formalizar tais atos, como carteiras, declarações, certificados, entre outros que tenham idêntica finalidade. Exemplificando, verifica-se que a CRFB/88 prevê que à União compete disciplinar o exercício profissional (Artigo 5º, VIII). Então, necessariamente, a lei, em decorrência do princípio da legalidade, vai criar as limitações ao desempenho de determinadas atividades profissionais que poderão ser exercidas por particulares. Existem determinadas atividades para as quais entende o legislador deve-se estabelecer uma vedação absoluta – decorrendo disso atividades simplesmente proscritas pela lei. Em relação a essas atividades, então, a administração ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 16 pública não terá mais do que fiscalizar o cumprimento da proibição, estando-se aqui diante, pois, de uma atividade fiscalizatória. Nesse caso, todavia, a restrição estabelecida pela lei não é, na verdade, uma vedação, mas uma restrição relativa (aquela que estabelece requisitos a serem preenchidos pelo particular como condição para o desempenho da atividade), como no caso da atividade dos advogados, por exemplo. No caso dos advogados, além do diploma de bacharel em Direito, a lei exige a aprovação em um exame de aferição do conhecimento ministrado pela OAB e o registro em um curso reconhecido pelo MEC, bem como outros requisitos legais. Essa restrição é relativa, portanto, pois obedecidos os requisitos legais, qualquer pessoa terá o direito subjetivo a obter seu registro profissional. Note-se, assim, que aqui se passa de uma exigência legal genérica para uma restrição relativa à liberdade individual no campo do exercício profissional, que fica subordinada a uma aferição vinculada aos requisitos legais preenchidospelo particular que pretende desempenhar aquela profissão. É nesse momento que se sai do ínterim de realização do poder de polícia (previsão legal, genérica e abstrata) para o segundo momento, o momento administrativo, que é o de aferição do preenchimento dos requisitos legais. Consentimento de polícia - 1ª parte É ao lado da ordem de polícia que se encontra esse segundo momento do exercício, o consentimento de polícia, que se manifesta através de autorizações e licenças, basicamente. Nessa fase, o que o Estado vai fazer? Ele vai restringir o exercício de algumas atividades privadas, geralmente da livre iniciativa, que só poderão ser executadas com um consentimento prévio do ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 17 Poder Público, e quem vai destacar quais são essas atividades que precisam desse consentimento é o legislador. Sendo assim, se a lei destacar essas tais atividades, por representarem algum interesse social relevante, algum perigo, por exemplo, para a sociedade, elas só poderão ser exercidas, no caso concreto, mediante, necessariamente, uma concordância prévia do Estado, um consentimento prévio do Poder Público. Esse ato de consentimento, então, através de licença ou de autorização, representa uma resposta positiva da Administração à intenção daqueles interessados em exercer determinada atividade que necessite desse referido consentimento para ser considerada legítima. Logo, a partir do momento que o estado emite uma carteira de habilitação, por exemplo, ele está consentindo que o cidadão desempenhe uma atividade sujeita ao seu controle. Vejamos como isso acontece. Quando a lei confere à Administração apenas o poder-dever de aferir os requisitos legais sem nenhuma margem de deliberação sobre a conveniência e oportunidade de se permitir ou não permitir o desempenho da atividade, se está diante de um consentimento vinculado, classificado pela lei como licença, que é o primeiro momento de concretização administrativa da vontade legal de limitar a vontade do particular em prol do interesse público maior. Licença, pois, é o ato administrativo vinculado pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu a todas as exigências legais, possibilita- lhe a realização de atividades ou de fatos materiais, vedados sem tal apreciação. Portanto, a licença pressupõe apreciação do Poder Público no tocante ao exercício de direito que o ordenamento reconhece ao interessado, por isso não pode ser negada quando o requerente atende a todos os requisitos legais para sua obtenção. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 18 Logo, se o titular do direito comprova que atendeu a todas as exigências estabelecidas para a concessão da licença, a Administração Pública é obrigada a concedê-la; há o dever da Administração de deferir a licença – ato vinculado da Administração Pública. Uma vez expedida, ela traz o pressuposto da definitividade, embora possa estar sujeita a prazo de validade e ser anulada ante a ilegalidade superveniente. Mas, além disso, a licença ainda se desfaz por cassação, quando o particular descumprir requisitos para o exercício da atividade, e por revogação, se advier motivo de relevante interesse público que exija a não mais realização da atividade licenciada. Nesse caso, cabe indenização ao particular, concessa venia de balizado entendimento em contrário com fundamento de que ato vinculado só pode ser anulado, e não revogado, pois revogação está ligada a critérios de oportunidade e conveniência, ou seja, de mérito administrativo. Nesses moldes, um exemplo de consentimento de polícia vinculado é a licença da atividade profissional de advogado, como já se viu, cuja limitação se dá pelo conjunto de requisitos que o profissional deve preencher para desempenhar a função. Vemos, então, que se o sujeito se formou, é bacharel em Direito, fez a prova da Ordem e passou preenchendo todos os requisitos legais do Artigo 8º do Estatuto da Advocacia, a OAB tem a obrigação de conceder a licença para o exercício da função de advogado. E isso vale para qualquer Conselho. Da mesma maneira acontece com a licença para dirigir veículos automotores: se o administrado fez a prova teórica, a prova técnica passou em tudo e atendeu a todas as exigências legais, o Poder Público tem o dever de dar a licença ao particular, não podendo negar-lhe a carteira de habilitação. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 19 Conforme diz Diogo de Figueiredo, a licença é um consentimento vinculado e declaratório: vinculado porque, se o particular preenche os requisitos legais, ele tem direito subjetivo àquele consentimento ou àquela licença, e o Poder Público deve editar a licença, no caso concreto; e declaratório porque, quando o Poder Público emite a licença, ele está apenas declarando, reconhecendo um direito preexistente desse particular, que já tinha direito a obter a licença. Hipóteses há, no entanto, em que a lei, em vez de estabelecer que o consentimento da Administração será manifestado de forma vinculada pela mera aferição do preenchimento dos requisitos legais pelo particular, transfere à Administração uma margem de liberdade para a autorização ou não da realização de atividade particular submetida ao Poder Público, e isso por causa da discricionariedade legislativa. Nesta hipótese, a lei diz que, pelas circunstâncias de certas atividades específicas, o administrador deve poder avaliar, no caso concreto, se é conveniente e oportuno ao interesse público permitir que elas se realizem, estando-se diante, nesse caso, de um consentimento discricionário, parcialmente vinculado (pois nenhum ato administrativo é totalmente discricionário), chamado pela doutrina de autorização, que seria o segundo momento do consentimento de polícia, mas que pode haver ou não, de acordo com o predisposto na norma legal. Em sendo assim, se ela não submeter a atividade particular a um consentimento prévio da Administração, esse segundo momento não existirá. Mas, de regra, ele existe. Por ser ato discricionário, como se observou, o Poder Público não é obrigado a consentir, a autorizar o particular para certas atividades, tendo liberdade para conceder ou não uma autorização. Por isso a autorização é discricionária e constitutiva: discricionária porque o particular não tem um direito preexistente, não tem direito subjetivo à autorização, e constitutiva porque, quando o Estado ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 20 resolve, através de uma conveniência e oportunidade, conceder aquela autorização, ele está constituindo o direito do particular de exercer aquela atividade. Seguindo essa linha de raciocínio, ou seja, por não ser um direito do particular, mas o Poder Público quem o concede, por ser uma atuação discricionária, é de se deduzir que esse direito pode ser revogado a qualquer momento, em princípio, sem que isso gere indenização. Daí se conclui ser também um ato de consentimento precário, pois tal característica é exatamente esta: pode ser revogada a qualquer momento, sem que gere direito de indenização ao administrado. Sendo assim, por inexistir direito subjetivo à atividade, a autorização se apresenta como ato administrativo discricionário e precário por excelência. Isso porque, no âmbito do poder de polícia, diz respeito ao exercício de atividades cujo livre exercício pode, em muitos casos, constituir perigo ou dano para a coletividade, mas que não é oportuno impedir de modo absoluto. Desde que a Administração Pública esteja convencida de que a atividade pretendidapelo administrado é conciliável com o interesse público, poderá deferi-la. É o caso da autorização para o comércio de fogos e da autorização de porte de arma, pois ninguém tem o direito de portar arma; pelo contrário, trata-se de um ilícito. Mas, se alguém pretender portar arma, para isso precisará de uma autorização de autoridade administrativa competente, que tem a faculdade de examinar, caso a caso, as circunstâncias de fato em que o exercício pode se desenvolver, a fim de apreciar a conveniência e a oportunidade da outorga. Em sendo assim, de regra, a autorização se expressa por escrito, de modo explícito, ainda que se possa cogitar de autorização implícita, como no caso em que se exige, para o exercício da atividade, comunicação prévia à autoridade administrativa. A não oposição dessa equivaleria a uma autorização implícita ou tácita. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 21 Se a autoridade considerar que há perigo na atividade, manifesta-se, de modo explícito, em sentido contrário. Então, a condição ao exercício da atividade encontra-se na comunicação prévia, como, por exemplo, o direito de reunião, sem armas, pacificamente, em locais abertos, independentemente de autorização, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente (Artigo 5º, XVI, da CF). Nesse contexto, partindo-se da assertiva de que a autorização é discricionária, vale abrir parênteses para apreciar uma questão interessante, moderna, que hoje está sendo levantada, imaginando-se o seguinte caso concreto: uma empresa qualquer, particular, quer uma autorização para uma atividade específica, uma atividade “x”, e pede essa autorização ao Poder Público, que a concede. Um dia depois, outro particular, na mesma situação, querendo exercer a mesma atividade, bate à porta do Poder Público e solicita uma autorização; o Poder Público analisa e dá a autorização. Daí em diante, vem um terceiro particular, vem um quarto particular, o quinto, o sexto, o décimo particular, e todos ganham autorização. Porém, quando chega o décimo primeiro particular, que também está na mesma situação que os anteriores, exerce a mesma atividade, o mesmo ramo, no mesmo local, cumpriu os requisitos todos, mínimos da lei, para receber essa autorização, o Poder Público não o consente, alegando que já deu dez autorizações e não quer conceder mais uma. Em princípio, para esse décimo primeiro particular que pede a autorização, depois de dez autorizações concedidas em casos análogos, o Poder Público teria o dever, não a faculdade, de conceder também a autorização a esse requerente. Então, o que aconteceu aí? É o que você verá na sequência. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 22 Consentimento de polícia - 2ª parte Em relação ao décimo primeiro particular que pede a autorização, depois de dez autorizações concedidas em casos análogos, e que Poder Público teria o dever, não a faculdade, de conceder também a autorização a esse requerente, vejamos o que aconteceu. A linha de raciocínio seguida por esses autores modernos é no sentido de que, se aquela autorização era discricionária, em princípio, ela pode se tornar vinculada. Mas como assim? Ela pode se tornar vinculada por conta dos próprios atos praticados pelo Poder Público. E é isso que esses autores têm trazido, baseando-se em um princípio muito antigo, que no direito comparado é bastante discutido, o princípio da confiança legítima, às vezes, encontrado na doutrina com outras nomenclaturas (como princípio da autolimitação ou da autovinculação, que é a expressão usada por Alexandre de Aragão), e também como teoria dos atos próprios, expressa pela máxima segundo a qual nemo potest venire contra factum proprium (ninguém pode vir contra os próprios atos), um princípio muito consagrado no Direito Civil que impede que uma pessoa contrarie sua conduta anterior causando prejuízo a quem confiara na atitude inicial. Além dessas nomenclaturas, vale dizer que também se pode usar, mais genericamente falando, o princípio da segurança jurídica ou princípio da boa-fé, no âmbito do Poder Público. Para cada nomenclatura, pode haver variações de conteúdo, mas, no final das contas, com pequenas variações, todas elas querem dizer o seguinte: ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 23 O Poder Público, quando cria expectativas legítimas nos particulares tem que cumpri-las. O Poder Público não pode, de maneira arbitrária, atuar como se fosse o “sabidinho”, o “malandro” da história. Se o Poder Público atua e cria expectativas legítimas para o particular por seus próprios atos, ele, em princípio, tem que cumprir o que prometeu, tem que agir, na verdade, como prometeu. Enfim, em outras palavras, a atuação do Poder Público pode gerar expectativas que ele vai ter que cumprir no caso concreto, em atenção à confiança depositada pelo particular. Assim, voltando-se àquele caso citado, se o Poder Público dá a primeira autorização, a segunda, a terceira, a quarta, e chega a dar autorização para vários particulares que estão na mesma situação, por que ele vai negar essa autorização para aquele décimo primeiro requerente, que também está na mesma situação, sem que isso viole o princípio da igualdade? Ora, a nosso ver, o Poder Público teria que ter, pelo menos, um ônus argumentativo muito maior; ele teria que justificar essa não concessão de autorização de uma maneira muito mais forte sob pena de, não justificando, a negativa da autorização se tornar arbitrária. O que se pode dizer, em princípio, caso se adote essa linha moderna que está surgindo? Com essa atuação reiterada do Poder Público no mesmo sentido, para que não haja a violação à igualdade, à boa-fé, à segurança jurídica etc., ele, Poder Público, em princípio, vai ter que atuar da mesma maneira numa situação análoga, ou seja, para aquele décimo primeiro particular, no exemplo concreto. Para não atuar de maneira análoga, ele teria que justificar essa não atuação de maneira bem razoável naquele caso. Aquela atuação, portanto, que era discricionária, passaria, então, a ser vinculada. É a chamada “discricionariedade reduzida a zero”, discricionariedade que, para os autores modernos, pode ser assim reduzida se o Poder Público, por atos próprios, cria expectativas legítimas para o particular, aí fazendo incidir princípios maiores, princípios estes ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 24 constitucionais, como a boa-fé, a segurança jurídica e a confiança legítima, os quais reduziriam aquela discricionariedade a zero. Contudo, reduzir a discricionariedade a zero, retirando a conveniência e a oportunidade do Poder Público, que seria inicialmente colocada para aquela autorização, não é tão simples assim. A questão é complexa, mas hoje já se consegue encontrar aplicações concretas dessa tese no STJ, como no caso em que certo município “dividiu” um terreno público em vários lotes e vendeu cada gleba a centenas de particulares, pessoas humildes, de baixa renda, mas que ofereceram logo o valor maior que tinham. No caso, porém, esse terreno, na verdade, não era loteado formalmente e, no dia seguinte da aquisição, quando aquelas pessoas foram bater à porta do Poder Público municipal para regularizar a situação do loteamento, da gleba que cada um adquiriu, o município que alienou aquele bem público a vários particulares disse simplesmente que não era possível, porque o terreno que eles compraram, aquele pedaço de terra, enfim, não tem metragem mínima para um loteamento formal. Nesse caso concreto, o STJ decidiuque o Poder Público municipal tem a obrigação de lotear esse imóvel, ainda que com a metragem aquém do mínimo legal porque, em tese, a legalidade teria sido ferida, de um lado, que pede a metragem mínima, mas, de outro, ali estavam envolvidos direitos de propriedade, direitos fundamentais, direito à moradia daquelas pessoas, à dignidade humana e uma atuação contra os próprios atos do Poder Público municipal responsável pelo loteamento, assim aplicando o venire contra factum proprium, o princípio da confiança legítima ou a nomenclatura que se queira dar ao fato. E só para terminar, ainda que o assunto não seja o foco desse estudo, cabe observar mais uma aplicação do venire contra factum proprium, que poderia ser usado tranquilamente, sem problema nenhum, a nosso ver, em um outro caso ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 25 julgado recentemente pelo STJ, quando essa Corte afirma que, hoje, o aprovado no concurso público dentro do número de vagas previsto no edital vai ter direito à nomeação e posse, diferentemente daquele posicionamento doutrinário tradicionalíssimo de que só há mera expectativa de direito. Consentimento de polícia - 3ª parte É claro que essa doutrina dos atos próprios, no Brasil, ainda está engatinhando, sendo difundida e muito discutida, pois não se pode levar tão ao pé da letra, ou seja, não se pode invocar essa teoria, em princípio, para afastar o poder da Administração Pública de revogar o ato discricionário, pela ausência do requisito da legítima confiança, cuja proteção consiste no próprio escopo da teoria, assim engessando a atuação do Poder Público. Há de se considerar, todavia, que podem ocorrer situações em que, para além da simples prática do ato administrativo, a Administração adote um comportamento que induza o particular a acreditar na conservação do ato administrativo por lapso temporal ulterior. Assim, basta imaginar que, às vésperas do esgotamento do prazo de vigência de certa autorização (ato discricionário), a Administração exija do particular a realização de certas melhorias para a renovação, supondo-se, ainda, que o particular implemente essas tais melhorias, exatamente como solicitado pelo Poder Público e, mesmo assim, seja surpreendido com a revogação da autorização. Dessa forma, ter-se-ia a aplicação da teoria dos atos próprios, porque o comportamento adotado pela Administração, nesse caso concreto, às vésperas do esgotamento do prazo, despertou no particular a legítima confiança de que, incorrendo em certos gastos, obteria a renovação da autorização. A nosso ver, o Poder Público teria que ter, pelo menos, um ônus argumentativo maior para negar uma autorização, teria que justificar de uma maneira bem ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 26 concreta e robusta, bem razoável, tal negativa. Então, fechando-se esse longo parêntese, vale registrar o seguinte: A diferença entre a licença e a autorização é que as licenças traduzem o reconhecimento da Administração Pública de que, preenchidos os requisitos legais, o titular do direito possui toda a qualificação necessária. A licença, pois, pressupõe a existência de um direito subjetivo, sendo ele preexistente à própria licença. Portanto, se a Administração negá-la, poderá o particular inclusive se valer da proteção da tutela do Poder Judiciário para obtê- la, mas cabendo observar que o exercício desse direito se dá depois da licença, pois ela, por si só, não constitui o direito; ela condiciona o seu exercício. Já a autorização é um ato de inteira discrição da autoridade administrativa, e, assim sendo, estando o particular submetido a um consentimento discricionário, além do preenchimento dos requisitos legais, ele deve preencher os requisitos que o administrador formula no caso concreto segundo o seu juízo de conveniência e oportunidade, pois o mérito só caberá à Administração avaliar. Esse juízo, salvo violação de princípios da Administração Pública, é, em princípio, insindicável, ou seja, insuscetível de controle jurisdicional; portanto, ninguém tem, salvo hipóteses em que em jogo se encontra a violação de algum princípio maior da Administração Pública, direito subjetivo à obtenção de autorização para exercício de alguma atividade. Alvará de licença é típico ato vinculado. A autoridade administrativa está amarrada na lei, sem margem de escolha, e um exemplo é o alvará de licença para construir, encontrado no Plano Diretor ou no Código de Obras. Caminha também sob o aspecto de ser permanente, porque, uma vez expedido, o alvará de licença não pode ser revogado. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 27 É o problema que atualmente se vive com os apart-hotéis. O atual prefeito não conseguiu revogar as licenças passadas, pois são atos vinculados e, por isso, não possuem mérito. O decreto revogado possui efeito ex nunc, ou seja, daqui para frente, não podendo desfazer o que foi feito. Já o alvará de autorização é ato discricionário, constitutivo e precário, revogável a qualquer momento, pois, se um ato é discricionário, possui juízo de valor. É o oposto do alvará de licença porque, lá, o administrado tinha direito subjetivo, mas, aqui, ele não tem direito, por isso, se pede a autorização, e a Administração, em querendo, conferirá, por livre vontade. Entretanto, como a Administração usou do juízo de valor, poderá, a qualquer momento, reavaliar o ato, inclusive revogando-o, o que demonstra que o ato é precário. É o caso do alvará de porte de arma, já bastante comentado neste trabalho, porque não se tem direito de andar armado. Vemos, portanto, que para andar armado tem-se que solicitar autorização à Administração, a fim de avaliar a conveniência e a oportunidade de conceder o porte de arma. Assim, a autoridade administrativa concedente pode revogá-la a hora que achar conveniente, não dando margem ao direito adquirido. Então, para melhor fixar essas diferenças, tem-se o seguinte esquema: ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 28 Fiscalização de polícia O terceiro momento do exercício do poder de polícia é a fiscalização, atividade material típica de polícia consistente na verificação do cumprimento ou não, pelo particular, das normas legais que estabeleçam proscrições (vedações) ou das condições estabelecidas pela Administração para consentir o desempenho de atividades, pois há determinadas circunstâncias em que, por exemplo, a licença é concedida sob condição, e essas condições vão ser aferidas exatamente no momento da fiscalização. Assim, aquelas restrições ou condicionantes que foram colocadas primeiramente pela lei, secundariamente por atos normativos administrativos ou até pelo consentimento de polícia, têm que ser cumpridas, e o Poder Público tem que verificar isso, fazendo uso da fiscalização. Isso é poder de polícia, poder de polícia fiscalizatório. Sendo assim, é nesse momento, na fiscalização, que o Poder Público tanto vai verificar se determinada atividade está sendo desempenhada pelo particular de acordo com a ordem de polícia, quando observar se não estão ocorrendo abusos nas utilizações de bens e nas atividades que receberam consentimento de polícia. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 29 Essa é uma atividade material da Administração que previne danos decorrentes da ação dos administrados, como é o caso das visitas dos agentes públicos competentes a restaurantes, bares e lanchonetes para fiscalizar ou verificar se os banheiros dos restaurantes se encontram em perfeitas condições higiênicas. Verifica-se,então, se estão sendo cumpridas as normas necessárias à correta determinação dos atos no que concerne à higiene e à qualidade dos alimentos postos ao consumo público ou se a edificação de um imóvel está sendo realizada segundo o alvará de licença concedido, dentre outras. Sanção de polícia Dessa forma, em decorrência da fiscalização, que inclui a observação (ou vigilância observadora), a inspeção, a vistoria e os exames laboratoriais, só haverá sentido na aplicação da sanção se for verificada uma infração do particular, quando a atividade de poder de polícia se converte em atividade de poder sancionatório, e, aí, têm-se as sanções, que podem ser pecuniárias e consistentes em constrangimento da liberdade individual. Como visto, o poder de polícia é coercitivo e conta com medidas punitivas indicadas nas diversas leis que o disciplinam, medidas essas, porém, que não se confundem com as sanções do poder disciplinar nem, muito menos, com as sanções penais. Elas são os elementos de coação e de intimidação, sem os quais o poder de polícia não teria razão de ser, ou seja, ele seria inócuo, contraproducente ou ineficiente. Portanto, quem exerce o poder de polícia deve estar aparelhado de meios coercitivos para as hipóteses de desobediência às leis em geral e às ordens da autoridade competente. Todavia, importante é deixar bem claro que tais meios sancionatórios devem estar previamente, indicados na lei específica que discipline a matéria policiada. Sua aplicação deve obedecer estritamente às condições e aos limites estabelecidos na lei, ou seja, sua aplicação consiste no conhecido brocardo do ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 30 Direito Penal segundo o qual nullum crimen nulla poena sine praevia lege, isto é, não há crime nem pena sem que haja uma lei prévia. Em outras palavras, é necessária a observância do princípio da legalidade, pois somente a lei pode instituir as sanções com a indicação das condutas que possam constituir infrações administrativas. A aplicação de toda e qualquer sanção, por sua vez, depende, para sua validade, que, em processo administrativo regular, ofereça-se ao infrator o direito ao contraditório e à ampla defesa, conforme determina a Constituição Federal, em seu Artigo 5º, LV. A sanção administrativa típica, imposta pelo Estado no exercício do poder de polícia, é a sanção pecuniária, denominada multa, que pode ser única ou multa diária. No entanto, além de adotar a multa, o Estado pode, em vez de adotá-la, impor determinados constrangimentos materiais, chamados pela professora Di Pietro de “operações materiais”, visando a paralisar ou extinguir a conduta ilícita do particular. Então, genericamente falando, sem a pretensão de exaurir as hipóteses, além da multa, paga em dinheiro, tem-se a possibilidade de aplicação de outras penalidades que seriam até mais graves, como as que você verá na sequência. Atributos ou características definidoras do poder de polícia – proporcionalidade O sentido da proporcionalidade, como condição de validade do exercício do poder de polícia, é consequência da necessidade do uso deste poder para que se atinja o interesse público, o que equivale dizer que a arbitrariedade e a coerção não podem ser exercidas pelos agentes da Administração Pública. Dessa forma, o poder de polícia só pode ser exercido na extensão e intensidade proporcionais ao que seja demandado para o cumprimento da finalidade de ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 31 interesse público a que está atrelado, sob pena de, caso os meios utilizados forem mais enérgicos do que o necessário à obtenção do resultado colimado, configurar-se-á o ato como ilegítimo. Segundo Marcelo Caetano, “o emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas constitui abuso de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios a empregar para a sua prevenção”. É imperioso, portanto, o respeito à proporcionalidade entre a medida escolhida e a finalidade da lei que determina a execução de tal medida, uma relação de equilíbrio entre os meios e os fins da atividade administrativa, daí a doutrina mais autorizada ter erigido a proporcionalidade à categoria de princípio necessário à legitimidade do ato de polícia. Como realça Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da proporcionalidade representa uma faceta da razoabilidade que impõe à Administração cautela na sua atuação, devendo observar critérios aceitáveis sob a ótica racional, atribuindo à sua conduta prudência e sensatez, até porque uma conduta desarrazoada não condiz com a finalidade da lei, pois é através dela que se obtém a medida ideal que atende de modo perfeito a finalidade pretendida, ou seja, o poder de polícia não deve ir além do necessário à satisfação do interesse público. Quando há inobservância desse princípio, o qual está vinculado, inicialmente, à própria ideia de Estado Democrático de Direito, incorre o agente administrativo em abuso de poder. Assim, a decisão da Administração que for “desproporcional”, no que se refere a qualquer de seus elementos valorativos, deve ser considerada ilegal e, por via de consequência, anulada, sendo cabível, no caso concreto, o administrado valer-se, para resguardar seus direitos, do habeas corpus e do mandado de segurança, quando o ato atingir o exercício de ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 32 uma liberdade ou o uso, gozo e disposição de uma propriedade, respectivamente. A medida utilizada deve ser, portanto, o único meio eficaz para alcançar a finalidade pretendida e não pode ser exercida de modo excessivo, com rigor maior que o necessário. O princípio da proporcionalidade caminha, enfim, no mesmo passo que os princípios da supremacia do interesse público, da legalidade, da finalidade e da razoabilidade. Assim, quando o servidor público, no exercício de sua fiscalização, encontra uma irregularidade, ele irá avaliar qual a gravidade da infração para escolher uma sanção proporcional. Dessa forma, fica evidente que a lei não pode prever todo e qualquer tipo de sanção, e, por tal motivo, dá ao administrador margem discricionária, usando o juízo de valor diante da infração a fim de impor a sanção adequada. E, com efeito, no tocante às sanções de polícia, a maioria da doutrina trabalha com os elementos da discricionariedade, autoexecutoriedade e coercibilidade (com proporcionalidade), que são atributos característicos do poder de polícia. Tais características possibilitam que a autoridade administrativa possa aplicar a sanção imediatamente, como foi no caso de algumas marquises de edifícios de Copacabana que estavam caindo, expondo a vida dos pedestres que ali transitavam. Diante disso, utilizando-se desses atributos, o Poder Público interditou o local (Defesa Civil) e demoliu as marquises, que foram condenadas em laudo pericial. Atributos ou características definidoras do poder de polícia – discricionariedade ou vinculação? O poder de polícia, na maioria dos casos, é exercido sobre o impulso do poder discricionário, pois, ao editar a norma jurídica sobre matéria sujeita ao poder de ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 33 polícia, o legislador nem sempre tem condições de regrar, de maneira explícita e objetiva, o comportamento do agente público ante às situações concretas. Nesses casos, que são a maioria, já se teve a oportunidade de apreciar anteriormente que ao agente é conferida, pela lei, uma certa liberdade para, de acordo com a conveniência e oportunidade, optar pelaatuação da polícia administrativa mais adequada. Desse modo, a fiscalização do comércio de gêneros alimentícios ou da pesca, por exemplo, é feita de acordo com a escolha, meios e condições estabelecidos pelo órgão ou entidade encarregado desse mister. Atributos ou características definidoras do poder de polícia – discricionariedade ou vinculação? É essa característica da discricionariedade que permite à Administração, por exemplo, escolher: o melhor momento para fiscalizar determinada atividade; o local mais estratégico para se montar uma blitz de trânsito; a gradação de uma sanção a ser aplicada a um particular; etc. Em todas essas situações, e em inúmeras outras, o Poder Público tem a possibilidade de efetuar um juízo de valor sobre a conveniência e oportunidade de se praticar o ato, dentro dos limites estabelecidos pela lei e desde que observado o princípio da proporcionalidade. No exercício dessa faculdade discricionária, a Administração Pública deve estabelecer a periodicidade e a extensão do exercício do poder de polícia, levando em consideração vários fatores, sendo o mais importante deles o interesse público. Assim, observa-se, por exemplo, o caso de uma determinada empresa que propôs uma ação judicial requerendo que o órgão que fiscalizava seus tributos ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 34 só o fizesse na primeira sexta-feira de cada mês, ou seja, a tal empresa queria marcar data e hora para que a fiscalização tributária fosse feita. Acompanhe. É claro que o juiz da causa julgou extinto o processo por inadmissibilidade jurídica do pedido, por ser pretensão infundada, uma vez que não há como o Poder Judiciário, ou outro Poder, nortear a atuação de polícia de um órgão ou de uma entidade pública. Quer dizer, é inerente à própria função de polícia a escolha discricionária do seu momento de agir, até porque, se aquela propositura fosse possível, nunca iriam encontrar irregularidades, certo? É a mesma coisa quando se vai fazer uma escuta telefônica para saber, por exemplo, se alguém cometeu um crime. É claro que o órgão que recebeu essa competência não vai avisar o suspeito, marcando com ele um horário para tal escuta, o que, por óbvio, inviabilizaria o próprio poder de polícia. Portanto, o atributo da discricionariedade se traduz na livre escolha, pela Administração, do momento de atuar, com base em conveniência e oportunidade, e sobre a sanção que será aplicada, cujos meios devem ser conducentes a atingir o fim colimado, que é a proteção de algum interesse público, com observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como ressaltado. Consequentemente, não se pode interditar um supermercado por estar vendendo uma maçã podre; não se pode utilizar da competência administrativa para aplicar sanção de medida maior do que aquela necessária ao atendimento do interesse público, no caso concreto. A discricionariedade do poder de polícia reside no uso da liberdade legal da valoração das atividades policiadas e na graduação das sanções aplicáveis aos infratores. Desse modo, há de se observar que nem sempre o poder de polícia é discricionário, pois, em algumas hipóteses, ele é vinculado, como o exemplo clássico das licenças para construir a que se fez alusão e outros atos ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 35 caracterizados como licença que expressam o consentimento de polícia, que se segue ao conjunto de requisitos legalmente previstos. Há outras situações, porém, que o legislador, considerando as circunstâncias do caso, transfere parcela da deliberação ao administrador público, porque ele reconhece a sua incapacidade de se atualizar de acordo com as mudanças da sociedade e, mais do que isso, de aferir, naquelas circunstâncias, a conveniência ou não de dar o consentimento de polícia, e é por isso que existem atos de consentimento parcialmente vinculados, que são as autorizações. Ocorre que esses atos também são chamados de discricionários; sendo assim denominados, surge uma tendência de se dizer que o ato é absolutamente incontrolável e, no Estado Democrático de Direito, nenhum ato é totalmente discricionário, pois mesmo seus elementos discricionários podem ser passíveis de controle. É por isso que se prefere chamar esse ato discricionário, a autorização, de parcialmente vinculado, porque a Administração, diante do interesse público em jogo, vai apreciar a situação concreta e decidir se deve ou não conceder a autorização, com base na conveniência e oportunidade. Entendeu o legislador, por exemplo, no caso da autorização para a produção e comercialização de material bélico, que ele não estava totalmente equipado para verificar em quais circunstâncias seria conveniente para sociedade que essa produção e comércio fossem autorizados e em quais circunstâncias o risco para a segurança pública era maior que sua vedação. Nesses casos, então, ao administrador compete integrar a vontade do legislador, procurando o interesse público de acordo com as circunstâncias no caso concreto. Mister se faz ressaltar, então, que a Administração Pública há de se conduzir com razoabilidade quando da prática de atos de poder de polícia discricionário, a fim de que esses não ultrapassem a legitimidade da atuação administrativa. Será, portanto, a razoabilidade o limite dessa atuação. ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 36 Além disso, cumpre sublinhar que, se o fim de qualquer ato administrativo é atender ao interesse coletivo, no caso do ato vinculado tal interesse já foi fixado previamente pelo legislador, condicionando de forma precisa a futura conduta do agente administrador. Ou seja, no ato vinculado, a lei que o regula já estabelece o modo e a forma de sua realização. Em sendo assim, se o administrador, no uso do poder discricionário de que dispõe, deixa de atender ao fim legal a que está inexoravelmente ligado, está patente que exorbita do poder que a lei lhe conferiu. Portanto, não se pode confundir discricionariedade com arbitrariedade, pois aquela nada mais é do que a margem de liberdade que tem o administrador, dentro dos limites legais, de poder agir ou não agir, através dos critérios de oportunidade e conveniência, adotando os meios necessários para atingir um fim maior, que é o interesse público, uma atuação que será sempre legítima e válida. Já arbitrariedade representa uma ação praticada fora ou exorbitante das normas legais, um agir de forma contrária ao ordenamento jurídico, daí verificando-se o abuso ou desvio de poder, que fere os direitos individuais e será nulo, por ser uma atuação sempre ilegítima e inválida. Atributos ou características definidoras do poder de polícia – autoexecutoriedade Desde o momento de sua expedição, os atos de polícia se revestem de executoriedade, que é a qualidade pela qual o Poder Público pode compelir materialmente o administrado ao cumprimento da obrigação que impôs e exigiu, com a característica de que não precisa buscar, previamente, as vias judiciais. Funciona da seguinte forma: Quando a Administração apreende bens, interdita um estabelecimento e destrói os alimentos nocivos ao consumo público, ela o faz com base na prerrogativa da autoexecutoriedade que, segundo a corrente clássica, é a possibilidade de a Administração decidir e fazer atuar as suas decisões por seus próprios meios, independentemente de título judicial, assegurados o contraditório e a ampla ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 37 defesa, ressalvados nos casos de urgência e flagrância, hipótese em que se lavrao auto de infração. Nesses moldes, então, poderá a Administração empregar meios diretos de coerção, compelindo materialmente o administrado a fazer alguma coisa, utilizando-se, inclusive, da força, se necessário. Esse atributo, portanto, que é próprio de todos os atos administrativos, possibilita que a atividade do poder de polícia, os atos de polícia administrativa, seja executada imediata e diretamente sem prévia apreciação judicial, mas cabendo repetir que, como os atos de polícia são atos administrativos, estão sujeitos a todos os princípios e atributos norteadores dessa espécie de atos jurídicos. O próprio STF já decidiu que a Administração pode executar diretamente os atos emanados de seu poder de polícia sem se utilizar da via cominatória, que é posta à sua disposição em caráter facultativo. Nem se opõe a essa conclusão o disposto nos Artigos 287, 934 e 936 do CPC, uma vez que o pedido cominatório concedido ao Poder Público é simples faculdade para o acertamento judicial prévio dos atos resistidos pelo particular, se assim o desejar a Administração. Assim, a regra geral é de que os atos de polícia são autoexecutórios, sendo certo de que apenas quando a lei expressamente estabelecer a necessidade de autorização judicial é que o ato em si estará desprovido desse importante atributo. Pode-se deduzir que os atos providos de autoexecutoriedade visam evitar o dano social, que sobreviria sem a medida preventiva, a exemplo da destruição de alimentos impróprios para o consumo público, das requisições de bens para socorrer a perigo público iminente, dentre outras situações; daí ser a autoexecutoriedade, no direito público, a regra geral, mesmo quando não expressamente prevista no ordenamento jurídico. Por outro lado, os direitos e garantias fundamentais, previstos na Lei Magna, são desprovidos de autoexecutoriedade. Assim, a interdição de um hotel que explore o lenocínio, por exemplo, pode se dar independentemente de mandado ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 38 judicial, o mesmo se dizendo com relação à apreensão de alimentos deteriorados ou insalubres, ao fechamento de estabelecimento comercial que não atenda às exigências do código sanitário (quando não tenha atendido às intimações administrativas), à interdição de imóvel que não atenda às normas de segurança etc. Adverte-se, contudo, que o contraditório e a ampla defesa jamais podem ser abolidos, ainda que eles possam ser postergados naqueles casos de urgência e flagrância que justifiquem essa postergação. Nessas hipóteses, o que deve fazer o Poder Público é lavrar o auto de infração e assegurar o contraditório a posteriori. É como acontece, por exemplo, com a Secretaria de Fiscalização de Guardas Municipais em que a Administração Pública utiliza o famoso “rapa”.E por que o “rapa” é autoexecutório? Porque existe uma situação de urgência. Posteriormente, lavra-se o auto de infração, discrimina-se cada bem que está sendo apreendido e dá-se o auto de infração para o camelô, a fim de possibilitá-lo o contraditório e a ampla defesa. O ordenamento jurídico garante, pois, ao administrado que se achar lesado por medida dessa espécie, entendendo-a em desconformidade com a lei, o socorro da via judicial do mandado de segurança ou do habeas corpus, ou mesmo de outra ação apropriada, mas cabendo sublinhar que a autoexecutoriedade não se confunde com a arbitrariedade, pois ela será legítima apenas quando expressamente autorizada por lei ou quando a urgência da situação possa necessitar de uma atitude imediata para a defesa do interesse público ou, ainda, quando inexistir outra via assecuratória do interesse público. Interessante observar que, na atualidade, o Código de Trânsito Brasileiro dá uma autoexecutoriedade, ainda que indireta – uma exigibilidade –, à multa de trânsito. Quer dizer, em vez de propor necessariamente uma execução fiscal, o Poder Público cria esse meio indireto para coagir o particular a pagar a multa: ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 39 se não pagar, não vai ter o documento do carro no próprio nome, não vai dirigir de forma legítima o seu veículo etc. Ora, será que isso é razoável? Será que isso é constitucional? Por conta dessa doutrina clássica, então, há uma grande controvérsia em relação à constitucionalidade dessa exigência, uma controvérsia a respeito da constitucionalidade do Artigo 131, § 2º, do CTB. Art. 131. O Certificado de Licenciamento Anual será expedido ao veículo licenciado, vinculado ao Certificado de Registro, no modelo e especificações estabelecidos pelo CONTRAN. (...) § 2º O veículo somente será considerado licenciado estando quitados os débitos relativos a tributos, encargos e multas de trânsito e ambientais, vinculados ao veículo, independentemente da responsabilidade pelas infrações cometidas. Pois bem, diante dessa norma, têm-se hoje, na verdade, dois entendimentos possíveis, duas correntes doutrinárias, que a partir de agora se vai tentar resumir. A primeira corrente defende a inconstitucionalidade do Artigo 131, § 2º, dizendo que não poderia a multa de trânsito gerar ou criar essa autoexecutoriedade direta ou exigibilidade. Portanto, para essa primeira corrente, que não é majoritária, já vale adiantar, mas que encontra agasalho em algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, essa lei é inconstitucional, nessa parte, quando traz essa característica para a multa de trânsito, apoiando-se em dois argumentos básicos: 1º) essa exigência do Código de Trânsito violaria o princípio constitucional do devido processo legal, porque o Poder Público já tem um “devido processo legal” privilegiado para cobrar seus créditos, créditos tributários ou não tributários, o que inclui as multas, que é a execução fiscal, cuja lei traz esse ADMINISTRACÃO PÚBLICA À LUZ DOS TRIBUNAIS 40 procedimento que o Poder Público deve adotar para cobrar os seus créditos. Então, se o Poder Público tem a execução fiscal para cobrar os seus créditos, para essa primeira corrente, tradicional, clássica, no caso concreto, o Código de Trânsito estaria burlando a Constituição, violando o devido processo legal, utilizando-se, ali, de meios indiretos de cobrança que não sejam a execução fiscal. 2º) essa exigência violaria o direito de propriedade, porque, se o particular não paga a multa, ele não poderia usar a sua propriedade de maneira regular, de maneira legítima, sob pena de apreensão do veículo. Essa exigência, portanto, acaba retirando, no caso concreto, poderes importantes, como poder de uso da coisa, poder de uso do bem, poderes importantes inerentes ao direito de propriedade, o que seria uma exigência legal desproporcional, pois restringe muito o direito de propriedade sobre o veículo. Esses, então, são os dois principais argumentos citados pela primeira corrente, embora outros até possam existir; mas, quando se encontra decisão a respeito da matéria, nesse sentido, geralmente os argumentos são: a violação ao devido processo legal e a violação ao direito de propriedade. Ainda que razoáveis sejam esses argumentos, defendidos por importantes magistrados, essa corrente não prevalece na jurisprudência, e sim a segunda corrente, porque o STJ editou a Súmula nº 127, com o seguinte verbete: “É ilegal condicionar a renovação da licença de veículo ao pagamento de multa, da qual o infrator não foi notificado”. Então, o que vai dizer a segunda corrente? Que é constitucional o Artigo 131, § 2º, do CTB, que o Poder Público pode fazer a exigência lá prevista, pode condicionar o licenciamento ao pagamento
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