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EVOLUÇÃO DO DESENVOLVIMENTO FLORAL No século XIX, Haeckel elaborou a lei biogenética: a ontogenia recapitula a filogenia. Essa lei foi desmistificada no início do século XX, com a descoberta de inúmeros casos em que ela não se aplicava. Atualmente, grande atenção tem sido voltada para a relação entre o desenvolvimento e sua evolução através de bases genéticas. Genes MADS-box Os controladores-chave do desenvolvimento são geralmente genes homeóticos (reguladores) pertencentes a um pequeno número de famílias multigênicas. No desenvolvimento floral, destaca-se a família de genes MADS-box (TheiBen & Saedler 1996). As proteínas codificadas por esses genes são modulares, definidas pela presença do domínio MADS (M), composto por 180 pb, codificando 60 aminoácidos, sendo responsável pela ligação do DNA, a dimerização e a ligação entre funções. O dominio é altamente conservado, especialmente em animais, contendo apenas dois aminoácidos distintos entre artrópodes e vertebrados e nenhum entre anfíbios e mamíferos (TheiBen et al. 1996). Genes MADS são encontrados em animais, fungos e plantas e a sigla faz referência às proteínas MCM1 (Saccharomyces cerevisiae), AGAMOUS (Arabidopsis thaliana), DEFICIENS (Antirrhinum majus) e SRF (Homo sapiens). Eles possuem, portanto, uma origem muito antiga, anterior a 1.000 m.a., e estão divididos basicamente em dois grupos, o tipo I e tipo II. Nas plantas, a maioria deles é do tipo II, contendo três domínios adicionais: intercalar (I, com cerca de 30 aminoácidos), queratinóide (K, 70) e terminal-C (bastante variável), formando a estrutura MIKC. Esses genes podem ser subdivididos em MIKCc e MIKC*, separados há mais de 450 m.a. (Becker & TheiBen 2003). Estrutura modular da proteína MADS do tipo MIKC, M (domínio MADS), I (Intercalar), K (Queratinóide) e C (terminal). As proteínas codificadas pelos genes MADS desempenham muitas funções, entre elas a regulação do desenvolvimento e da diferenciação celular em praticamente todos os eucariontes (TheiBen et al. 1996). O tipo MIKCc é o mais importante em plantas, e inclui várias subfamílias de genes reguladores da parte vegetativa e floral (12 clados em Arabidopsis, revisados em Becker & TheiBen 2003). Eles agem de maneira hierárquica e combinada na identidade meristemática e de órgãos, i.e. controlam a transição de um tipo de meristema em outro e determinam suas características. Em Arabidopsis, existem cerca de 100 genes desse tipo espalhados no genoma, 40 relacionados com a identidade de meristemas e órgãos, mas apenas um quinto com função conhecida. As subfamílias MADS são definidas de acordo com a função, estrutura e expressão. Representam clados de genes que podem ser ortólogos extremamente conservados ou parálogos recentes originados a partir de duplicação. Enquanto alguns genes MADS de angiospermas e gimnospermas formam clados, a maioria dos genes de pteridófitas aparecem separadamente, indicando que a maioria das subfamílias teria surgido antes da separação das angiospermas e gimnospermas atuais, ca. 350 m.a., mas depois da separação das espermatófitas (Münster 1997, Hasebe 1999, Becker et al. 2000). Esse período entre o Devoniano Médio (ca. 395 m.a.) e o Carbonífero Inferior (ca. 320 m.a.) é marcado pela presença das progimnospermas, plantas com estrutura vascular de gimnosperma, mas com esporos livres, i.e. sem formação de óvulos. Filogenia simplificada das plantas vasculares mostrando que várias subfamílias de genes reguladores das estruturas florais estavam presentes antes da divisão entre as angiospermas e as gimnospermas atuais (em cinza), mas depois do surgimento das espermatófitas. A maioria dos genes MADS em espermatófitas, portanto, não são ortólogos aos das demais plantas. Modelo ABC A transição de um meristema vegetativo apical para um meristema reprodutivo de uma inflorescência é promovida por genes M I K C 81 responsáveis pela identidade meristemática floral (FMI). Dentre eles, destacam-se os da família MADS, APETALLA1 (AP1; SQUAMOSA- SQUA, em Antirrhinum), CAULIFLORA (CAL) ou FLORICAULA (FLO) e FRUITFULL (FUL), que agem juntos com o gene LEAFY (LFY), induzindo a expressão dos genes das funções A, B e C (veja abaixo). Aparentemente, AP1 e LFY agem combinados, mas são parcialmente redundantes de modo que a ausência deles aumenta o defeito da expressão (flores são transformadas em ramos da inflorescência). FUL e CAL parecem agir apenas em combinação com AP1 e LFY. Quando ativados por algum sinal, como fotoperíodo ou giberilina, os genes FMI inibem a ação do gene TFL1 (TERMINAL FLOWER 1), responsável pela manutenção do meristema apical da inflorescência e também pela inativação dos genes FMI. O modelo ABC foi elaborado no início da década de 90 a partir de Arabidopsis (Brassicaceae) e Antirrhinum (Scrophulariaceae) (Coen & Meyerowitz 1991) para explicar a expressão das estruturas florais. Esse modelo está baseado em três grupos de genes homeóticos - A, B e C – responsáveis por desencadearem a identidade das estruturas florais. Genes com estrutura e padrão de expressão similares foram encontrados em várias angiospermas formando uma rede ortóloga de fatores controladores. Mutantes para a função A produzem carpelos no 1o verticilo e estames no 2o verticilo; para a função B produzem sépalas no 2o verticilo e carpelos no 3o verticilo; para a função C, produzem pétalas no 3o verticilo e sépalas no 4o. Portanto, a expressão de genes do tipo A resulta em sépalas, a expressão das funções AB em pétalas, BC em estames e C em carpelos (D nos óvulos). Antes (Haughn 1988), o modelo para o desenvolvimento floral consistia em um sistema de ativação de três genes, a, b e c; ativado- desativado-desativado para sépalas, A-A-D para pétalas, D-A-A para estames e D-D-A para carpelos. A função homeótica A é realizada pelos genes APETALA2 (AP2), que não pertence a família MADS, e APETALA1 (AP1), que pertence. AP2 é responsável também pela inibição de AGAMOUS (AG; PLENA-PLE, em Antirrhinum) no 1o e 2o verticilos, ao passo que o AG inibe a ação da AP1 nos 3o e 4o. As funções A e C, portanto, são antagonistas. Na ausência da expressão de AG, prevalece a expressão AP1 nos verticilos 3 e 4, que passam a produzir sépalas e pétalas. A classe B é expressa pelos genes APETALLA3 (AP3; DEFICIENS-DEF, em Antirrhinum) e PISTILLATA (PI; GLOBOSA- GLO, em Antirrhinum). Esses genes são derivados da duplicação do ancestral AP3/PI, que ocorreu antes da diversificação das atuais angiospermas (Kramer & Irish 2000, Kim et al. 2004). O mutante de AG, no entanto, é capaz de produzir carpelos, sugerindo que existam outros genes, como SPATULA (SPT), envolvidos na expressão do gineceu. Modelo ABC, mostrando a ação dos genes FMI (no topo) inibindo o TFL1 e ativando os genes reguladores da identidade floral A (preto), B (cinza-escuro) e C (cinza- claro), agindos nos verticilos florais 1 (sépala), 2 (pétala), 3 (estames) e 4 (carpelos). A seta acima representa ação positiva e as setas opostas abaixo ação antagonista. A aplicação ectópica dos produtos de AB não é capaz de transformar folhas em pétalas, indicando a necessidade de outros fatores para a expressão desses genes no 2o verticilo. Os genes (AGAMOUS LIKE) AGL2, AGL4 e AGL9 quando mutados individualmente não produzem grandes alterações fenotípicas, mas o triplo mutante produz apenas sépalas. Por isso, esses genes foram renomeados SEPALLATA, dai SEP1, SEP2 e SEP3. Esse fenótipo é o mesmo de um mutante para as funções B e C. A expressão das funções B e C exige, portanto, a expressão de pelo menos um desses três genes SEP1/2/3 (Pelaz et al. 2000). A mutação dos genes responsáveis pelasfunções ABC gera estruturas similares a folhas, corroborando a hipótese de que as flores são composta por estruturas derivadas de folhas modificadas. A ação combinada da expressão das funções A e B e SEP3 é capaz de converter folhas em pétalas (Pelaz et al. 2001). A SEP3 interage com AP3-PI (B) e AG (C) e também com AP1 (A). No 2o verticilo, a combinação parece ser AP1-PI-AP3-SEP3 e no 3o PI-AP3- SEP3-AG. AP1 e SEP3 pertencem ao mesmo super clado e são quase redundantes, pois folhas são transformadas em pétalas com a presença de FUL/FLO + API/LFY -TFL1 1 2 3 4 AP1/AP2 AG AP3/PI 82 apenas um deles. SEP3 também pode ser substituído por SEP1 e SEP2. Assim, os produtos de AP1+AP3+PI+SEP1+SEP2 também irão gerar pétalas. Os genes SEP1 e SEP2 influenciam todos os verticilos enquanto o SEP3 apenas do 2o ao 4o (Honma & Goto 2001, Jack 2001). Demonstração do efeito dos produtos produzidos pelos genes SEP1, SEP2 e SEP3: a. fenótipo normal; b. fenótipo do triplo mutante para SEP1/SEP2/SEP3 (note que são formadas apenas sépalas no lugar das estruturas florais); c. o triplo mutante desmembrado; d. o duplo mutante para PI/AG (note que o fenótipo é semelhante ao do triplo mutante para SEP); e. superfície abaxial da sépala normal; f. superfície abaxial da pétala normal; g. superfície abaxial da sépala do tripo mutante; h. superfície abaxial da pétala do tripo mutante (Pelaz et al. 2000). As setas indicam cloroplastos. Como já existia a classe D, foi reservado aos genes homeóticos SEP a letra E, tornando o modelo ABC em A-E. Enquanto a ligação entre as proteínas de SEP e AG parece antiga, a ligação entre genes de funções homeóticas distintas não parece ocorrer, mas podem eventualmente formar um complexo a partir da combinação de quatro proteínas. Uma das hipóteses é o modelo de quartetos (tetrâmeros ou dois dímeros) para a identidade floral (Goto et al. 2001, ThieBen 2001): AP1-AP1 e ? - ? : sépala AP3-PI e AP1-SEP3: pétalas AP3-PI e AG-SEP3: estames AG-AG e SEP3-SEP3: gineceu Esquema mostrando a relação entre os produtos dos genes reguladores do modelo A-E na determinação da identidade dos verticilos florais. O desenvolvimento floral não é controlado exclusivamente por genes da família MADS, mas esses genes desempenham uma função muito importante no sistema, agindo de maneira reguladora, em alguns casos sinérgicas ou antagônicas. Os genes envolvidos no processo de diferenciação floral vão agir em uma rede hierárquica de funções, e a influência de mudanças nesses genes é tão maior quanto mais funções forem afetadas. Esquema mostrando a rede integrada de relações envolvida na regulação da identidade das estruturas florais ativada por fatores intrínsecos e extrínsecos. O genes MADS estão em círculos. 83 O gene PERIANTHA parece estar relacionado com o número de peças do perianto. Sua mutação produz flores pentâmeras em Arabidopsis, originalmente tetrâmera. O gene SUPERMAN deve estar associado com o limite entre os verticílos 3 e 4 porque seu mutante produz primórdios estaminais no lugar de carpelos. CYCLOIDEAE e DICHOTOMA parecem estar relacionados com a simetria floral em Anthirrinum (Cubas et al. 2001, Smith 2001). O perianto petalóide surgiu várias vezes na evolução das angiospermas, em alguns casos, derivado de brácteas (bracteopétala), em outros de estames (andropétala). No primeiro caso, as tépalas são formadas antes dos estames, estão arranjadas como brácteas, possuem três traços vasculares e se assemelham a folhas. No segundo caso, os órgãos petalóides estão arranjados como estames, sua maturação é tardia, possuem apenas um traço vascular e, em alguns casos, possuem nectários. Nem sempre a derivação é clara e, em monocotiledôneas, as tépalas, apesar de se iniciarem e se maturarem antes dos estames, possuem características associadas com andropétalas. Os estudos de desenvolvimento floral ainda estão restritos a um pequeno grupo de plantas (modelos; Soltis et al. 2002) e poucos genes têm sua função conhecida (Baum et al. 2002). No entanto, o padrão de desenvolvimento floral parece ser semelhante em eudicotiledôneas e monocotilêdones, e supõe-se que, em gramíneas, as lodículas sejam homólogas às pétalas e a pálea e a lema homólogas às sépalas (Lawton-Rauh et al. 2000, Goto et al. 2001, ThieBen 2001). As linhagens mais antigas em angiospermas apresentam uma variação da morfologia floral mais acentuada e parecem possuir um sistema de diferenciação um pouco distinto (Kramer & Irish 1999). O gene ancestral AP3/PI da classe de reguladores B se dividiu em AP3 e PI no ramo das angiospermas (ca. 260 m.a.). Entretanto, não existem registros fósseis de pétalas por mais de 100 m.a. após essa divisão. Nas angiospermas atuais, ocorreu uma outra duplicação em AP3, originando o eu-AP3 e TM6 no grupo principal das eudicotiledôneas (Kim et al. 2004). Dessa maneira, o gene paleo-AP3 está presente nas linhagens que divergiram anteriormente ao surgimento do eu-AP3 e o TM6. Esses genes estão relacionados com a função B do desenvolvimento floral, responsável pela formação das pétalas e dos estames, e essa duplicação pode ter sido responsável pela canalização da morfologia floral característica das eudicotiledôneas mais derivadas. Todavia, não se sabe ao certo o papel da TM6 na identidade floral (Krame & Irish 2000). Associar as funções genéticas desses genes reguladores em angiospermas e gimnospermas pode indicar homologias entre estruturas florais e estruturas reprodutivas nas demais plantas vasculares. Genes responsáveis pela função A, B e C já estariam presentes antes da separação entre angio e gimnospermas (400 m.a.), o que concorda com o relógio molecular para a divergência entre os genes para função A e C em 480 m.a. Parte dos genes para função A, no entanto, foi perdida na linhagem das gimnospermas. Na ausência de um ortólogo do AP1, gene da função A, não é esperado encontrar nenhuma estrutura em gimnospermas homologa ao perianto das angiospermas, inviabilizando a associação entre o envelope e as brácteas de Gnetales com as sépalas e as pétalas de angiospermas. Ainda assim, a função A poderia estar presente nas Bennettitales, dessa maneira, o perianto daquele grupo seria determinado por genes ortólogos aos das angiospermas atuais. A função C é estabelecida antes da divergência entre as gimnospermas atuais e as angiospermas, mas o padrão espacial e temporal da expressão de genes das funções ABC é estabelecido apenas na linhagem das angiospermas (Hasebe 1999). A presença de ortólogos de genes das funções B e C em gimnospermas sugere que a especificação dos órgãos reprodutivos já estava presente no ancestral das espermatófitas atuais. A função C, responsável pela diferenciação dos carpelos em angiospermas, deveria ser responsável pela diferenciação da unidade reprodutiva, e a função B, expressa apenas nas unidades masculinas de gimnospermas e responsável pela diferenciação dos estames em angiospermas, seria responsável pela diferenciação entre unidades femininas (desativado) ou masculinas (ativado; Winter et al. 1999). Talvez a função B tenha, portanto, funcionado inicialmente na determinação sexual das espermatófitas, passando a atuar de maneira mais direta na determinação das pétalas apenas durante a evolução das angiospermas (Kim et al. 2004) A regulação das funções ABC pelo LFY surgiu antes da divergência entre gimno e angiospermas; nas demais plantas, seus ortólogos estão relacionados à regulação do desenvolvimento vegetativo (Himi et al. 2001). Enquanto existem dois parálogos de LFY, ‘leaf’ (masculino) e ‘Needle’ (feminino), nas gimnospermas, existe apenas um LFY em 84gimnospermas. O gene LFY teria se duplicado no ancestral das espermatófitas, mas um deles, o parálogo Needle teria desaparecido em angiospermas. Desse modo, o gene LFY presente em angiospermas seria ortólogo àquele predominantemente masculino em gimnospermas. Isso levou a teria da flor predominantemente masculina (Frohlich & Parker 2000, Frohlich 2003). Filogenia de LFY. Note que existem dois parálogos desse gene em gimnospermas e apenas um, ortólogo ao com ‘leaf’ (masculino) em angiospermas (Frohlich & Parker 2000). Segundo essa teoria, as flores bissexuadas teriam surgido a partir de uma estrutura reprodutiva masculina com óvulos ectópicos (em local errado). Esses óvulos seriam posteriormente envolvidos por microsporofilos laminares (como os encontrados em Coritospermales) que passariam a formar os carpelos. Essa porção predominantemente masculina passaria a ser a principal produtora de sementes, permitindo a degeneração da porção feminina. Esse aparecimento do óvulo de novo em uma estrutura masculina explicaria a ausência de fósseis com ramos bissexuados até as Bennettitales. Outra explicação seria a redundância entre LFYf (Needle) e LFYm (Leaf). Os dois parálogos desempenhariam, inicialmente, a mesma função, mas terim promotores distintos em plantas masculinas e femininas, levando a ativação das funções C e das funções B e C, respectivamente. Em Gnetum, é encontrado apenas um dos parálogos, ortólogo ao LFYm. Nesse caso, plantas masculinas possuiriam os dois promotores, o que acabaria levando a formação de inflorescências funcionalmente masculinas com óvulo abortado. A aproximação e condensação das porções masculina e feminina em angiospermas teria selecionado a regulação e identidade dos meristemas reprodutivos por apenas um gene promotor, evitando redundância. Dessa maneira, o gene LFYm passou a controlar a identidade dos órgãos florais sozinho através do sistema ABC (Albert et al. 2002). Esquema mostrando a atuação independente dos promotores M (a) e F (b) do LFY, como seria esperado na maioria das gimnospermas. Os dois promotores (M e F) estariam controlando o LFYm em Gnetum (c) e apenas um promotor contriolaria o gene LFYm em angiospermas (d), evitando redundância genética. 85
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