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PRINCIPIO DA BAGATELA

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1. INTRODUÇÃO
O Princípio da Insignificância, também conhecido como Princípio da Bagatela, originou-se no Direito Romano, sendo introduzido no sistema penal por Claus Roxin com a finalidade de colocar em prática os objetivos sociais traçados pela moderna política criminal.
De cunho civilista, funda-se no conhecido brocardo minimis non curat praetor, ou seja, quando a lesão é mínima, não há necessidade de sanção, eis que irrelevante o resultado, não se tratando, pois, de fato punível.
Segundo Claus Roxin, o direito penal não deve se ocupar de condutas insignificantes, isto é, incapazes de ofender ou lesar o bem jurídico protegido pela norma penal. 
Ainda de acordo com aludido princípio, não cabe ao direito penal preocupar-se com bagatelas, do mesmo modo com que não podem ser aceitos tipos incriminadores que descrevam condutas completamente inofensivas ou incapazes de lesar bens jurídicos. Nesse contexto, parte-se do pressuposto de que se a finalidade do tipo penal é assegurar a proteção de um bem jurídico, toda vez que a lesão for insignificante a ponto de não ser capaz de ofender o interesse tutelado pela norma não haverá adequação típica. Caberá a análise caso a caso.
Contudo, a adoção de tal postulado gera algumas indagações intrigantes: se a tipicidade penal exige um mínimo de lesividade a um bem juridicamente relevante, cabendo ao legislador proteger apenas direitos fundamentais (tais como vida, liberdade, segurança, patrimônio, etc.), como pode a prática de uma conduta descrita como criminosa ser então considerada atípica? E se for inconcebível que o legislador tenha inserido em um tipo penal condutas totalmente inofensivas, como é possível taxar determinadas práticas delitivas de insignificantes?
Parte da doutrina defende a aplicação do Princípio da Insignificância trazendo à baila a questão da superpopulação carcerária e do efeito maléfico que uma sanção rigorosa demais teria sobre o infrator de pequena monta. Por outro lado, há quem a rejeite veementemente, argumentando que o Estado tem o dever de inibir toda e qualquer atitude atentatória à paz e à segurança social, evitando, por conseguinte, a impunidade e a desordem social.
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CAPÍTULO I - O PAPEL DOS PRINCÍPIOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
 
1.1. Conceituação e Finalidade
A palavra “princípio” significa base, começo, início, razão. Denota, especialmente, ponto de partida. Para as ciências, representa as preposições básicas que condicionam as demais.
Para José Joaquim Gomes Canotilho, os princípios são normas de natureza ou com papel fundamental no ordenamento jurídico em razão de sua posição hierárquica no sistema das fontes ou sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (CANOTILHO, 1993, p. 166). 
Aludido autor menciona, ainda, que os princípios são multifuncionais, podendo desempenhar uma função argumentativa, admitindo, por exemplo, denotar a ratio legis de uma disposição ou revelar normas que não são expressas em enunciado legislativo algum, permitindo aos juristas, sobretudo aos juízes, o desenvolvimento, a integração e a complementação do direito. Destaca, finalmente, que os princípios são normas jurídicas impositivas de uma optimização, como diz ele, compatíveis com diversos graus de concretização, de acordo com os condicionalismos fáticos e jurídicos (CANOTILHO, 1993, p. 167). 
Rodrigo Padilha em seu livro “Direito Constitucional” também enfatiza a multifuncionalidade dos princípios, explicando que eles servem para produzir, interpretar e aplicar leis, extraídas de enunciados jurídicos de alto grau de abstração e generalidade, prescrevendo um valor fundamental e não uma situação de fato. (PADILHA, 2014, p. 131). 
A seguir, ao que tudo indica na mesma linha de Canotilho, complementa o mesmo autor dizendo que ao mesmo tempo em que os princípios têm natureza normogenética - por serem fundamentos das regras, formando a ratio das regras jurídicas -, são considerados mandatos de otimização, haja vista que otimizam a aplicação das leis, determinando que estas sejam realizadas na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por fim, arremata assinalando que os princípios descrevem valores fundamentais à ordem jurídica, exigindo ação integradora do órgão que irá aplicá-lo. (PADILHA, 2014, p. 132).
Walber de Moura Agra assevera que os princípios representam um norte para o intérprete que busca o sentido e o alcance das normas, podendo sua utilização se dar em uma grande diversidade de casos. Segundo ele, o papel dos princípios é não apenas instrumental, já que possuem autonomia própria sem necessitar para a sua incidência da aplicação de uma regra. Outro aspecto interessante citado é que os princípios, para ele, definiriam valores que serão aplicados de forma genérica, sendo o alcance deles definido segundo uma decisão política em que, de acordo com as forças sociais, o princípio terá seu sentido elastecido ou restringido (AGRA, 2012, p. 103/105). 
A respeito do tema, Paulo Gustavo Gonet Branco enfatiza que os princípios são vistos como espécie de norma dado que descrevem algo que deve ser, valendo-se de categorias deontológicas comuns às normas, sendo elas o mandato (determina-se algo), a permissão (faculta-se algo) e a proibição (veda-se algo). A seu ver, os princípios corresponderiam às normas que necessitam de mediações concretizadoras por parte do legislador, do juiz ou da Administração. (BRANCO, 2014, p. X1)
Da mesma forma com que os outros juristas supramencionados, novamente a multifuncionalidade dos princípios é mencionada, arguindo Paulo Gustavo Gonet Branco que, seguindo-se essa linha, os princípios desempenhariam uma função argumentativa, sendo eles, inclusive, padrões que expressam exigências de justiça. Sua conclusão é a de que como os princípios estruturariam um instituto, dariam ensejo até para descoberta de regras que não estejam expressas em um enunciado legislativo, propiciando o desenvolvimento e a integração do ordenamento jurídico inclusive. (BRANCO, 2014, p. X1)
Já para Leo Van Holthe:
“Princípio jurídico é o mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce do arcabouço legal de um Estado. Os princípios são a base das normas jurídicas, influenciando sua formação, interpretação e integração e dando coerência ao sistema normativo”. (HOLTHE, 2009, p. 77). 
Aludido jurista considera, também, que os princípios têm uma dimensão de peso, podendo não incidir no caso concreto apesar de válidos e pertinentes, dando-se sua aplicação através da ponderação dos interesses em jogo, resultando na solução mais “justa” ao caso concreto. (HOLTHE, 2009, p. 78). 
Segundo Guilherme de Souza Nucci: 
Etimologicamente, princípio tem vários significados, entre os quais o de momento em que algo tem origem; causa primária, elemento predominante na constituição de um corpo orgânico; preceito, regra ou lei; fonte ou causa de uma ação. No sentido jurídico, não se poderia fugir de tais noções, de modo que o conceito de princípio indica uma ordenação, que se irradia e imanta os sistemas de normas, servindo de base para a interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo. Há princípios expressamente previstos em lei, enquanto outros estão implícitos no sistema normativo. (NUCCI, 2014, p. 66). 
Na visão de Carlos Ari Sundfeld, “Os princípios são ideias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se”. (SUNDFELD, 1992, p. 137). 
A respeito do tema, Ruy Samuel Espíndola destaca que os princípios designam a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa, donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam.� (ESPÍNDOLA, 2002, p. 53)
Para Hermes Lima, são orientações normativas integrantes da lei ou de seu espírito e que ajudam a expansãológica do direito. Em nosso direito positivo achamos esses princípios antes de tudo na Constituição.�
Na concepção de Celso Antônio Bandeira de Mello, constitui mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.� E o nobre jurista completa dizendo que violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.� 
Jorge de Miranda ressalta a importância dos princípios e a sua carga valorativa para o intérprete ao afirmar que “A acção mediata dos princípios consiste, em primeiro lugar, em funcionarem como critérios de interpretação e de integração, pois são eles que dão a coerência geral do sistema. E, assim, o sentido exacto dos preceitos constitucionais tem de ser encontrado na conjugação com os princípios e a integração há-de ser feita de tal sorte que se tornem explícitas ou explicitáveis as normas que o legislador constituinte não quis ou não pôde exprimir cabalmente. Servem, depois, os princípios de elementos de construção e qualificação: os conceitos básicos de estruturação do sistema constitucional aparecem estreitamente conexos com os princípios ou através da prescrição de princípios.”�
No mesmo sentido a lição de Rizzatto Nunes, ao dispor que nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas.� Isso porque os princípios são, dentre as formulações deônticas de todo sistema ético-jurídico, os mais importantes a serem considerados não só pelo aplicador do direito mas por todos aqueles que, de alguma forma, ao sistema jurídico se dirijam. Sendo assim, ressalta a importância em sua essência e como elemento harmonizador, integrador e de mecanismo de garantia de eficácia da norma jurídica.�
Das lições acima mencionadas, depreende-se que os princípios, sob o ponto de vista jurídico, constituem categoria específica de normas. Definem quais são os valores mais relevantes para a sociedade e, a partir daí, determinam a regra que deverá ser aplicada pelo intérprete, apontando um caminho a seguir. Conferem unidade e coerência ao sistema jurídico, direcionando a confecção, a interpretação e a aplicação de suas normas.
Assim, a coesão lógica, a harmonia interpretativa e a uniformização de entendimentos somente são possíveis a partir da observância dos princípios.
Nesse contexto, Geraldo Ataliba, com precisão, elucida que “Os princípios são a chave e essência de todo direito; não há direito sem princípios. As simples regras jurídicas de nada valem se não estiverem apoiadas em princípios sólidos.”�
Os princípios, assim, nada mais são que valores fundamentais que expiram a criação e a aplicação do Direito. Os princípios antecedem as leis penais, sendo que os Princípios do Direito Penal podem estar positivados (consagrados em norma jurídica) ou não (como é o caso do Princípio da Insignificância). Positivados ou não eles são acolhidos pela doutrina e jurisprudência.
Além disso, os princípios captam os valores morais da sociedade e os tornam elementos próprios do meio jurídico. 
CAPÍTULO II - TIPICIDADE PENAL
2.1. Direito Penal: Fundamento, Conceito e Função
O fato social surge como importante ponto de partida para formação da noção do Direito, o qual passa a existir a partir das necessidades básicas das sociedades humanas, reguladas por ele como condição essencial a sua própria sobrevivência. É no direito que as pessoas encontram a segurança das condições inerentes à vida humana, determinada pelas normas que formam a ordem jurídica.� (JESUS, 2005, p. 3). 
Não há dúvida de que a vida em sociedade exige normas que a disciplinem, estabelecendo-se regras indispensáveis ao convívio sadio entre os indivíduos que a compõem. A esse conjunto de regras dá-se o nome de “direito positivo”. 
O Direito Penal é conceituado sob mais de uma forma. Visto pelo aspecto formal, seria o conjunto de normas jurídicas mediante o qual o Estado proíbe determinadas condutas, sejam elas ações ou omissões, ameaçando impor a elas determinada sanção penal na forma de pena e/ou medida de segurança. Também estariam incluídas as normas que instituem os princípios gerais e as condições ou pressupostos de aplicação da sanção penal, que também podem ser impostas aos autores de um fato previsto como crime.� (AZEVEDO; SALIM, 2014, p. 33/34). 
Sob o aspecto social, o direito penal seria um dos modos de controle social utilizados pelo Estado.� (AZEVEDO; SALIM, 2014, p. 33/34). 
 
De outro lado, para o critério material, o direito penal se refere a comportamentos considerados altamente reprováveis ou danosos ao organismo social, que afetam gravemente bens jurídicos indispensáveis a sua própria conservação e progresso.� (PRADO, 2005, p. 23).
Com efeito, de acordo com o jurista Fernando Capez, o Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que tem o papel de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.� (CAPEZ, 2005, p. 1).
Já para o professor Guilherme de Souza Nucci, Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação.� (NUCCI, 2007, p. 53). 
Na concepção de Luiz Regis Prado, a proteção de bens jurídico-penais essenciais ao indivíduo e à comunidade é a função primordial desse ramo do direito. Segundo ele: 
“Para cumprir tal desiderato, em um Estado democrático de Direito, o legislador seleciona os bens especialmente relevantes para a vida social e, por isso mesmo, merecedores da tutela penal. (...). Para sancionar as condutas lesivas ou perigosas a bens jurídicos fundamentais, a lei penal se utiliza de peculiares formas de reação – penas e medidas de segurança. O Direito Penal é visto como uma ordem de paz e de tutela das relações sociais cuja missão é proteger a livre convivência entre os homens.”. (PRADO, 2005, p. 23/24)
Sua função, portanto, é proteger valores fundamentais à subsistência do corpo social, tais como vida, saúde, liberdade, propriedade, dentre outros, denominados “bens jurídicos”. Contudo, o direito penal não tutela todos os bens jurídicos, mas apenas os mais relevantes. Outra função que se tem atribuído ao direito penal seria a de prevenir a vingança privada. O direito penal possuiria, assim, a função garantista consistente na proteção do indivíduo contra possíveis excessos de poder (Direito Penal garantista). 
Há, ainda, quem diga, a exemplo de Luiz Regis Prado, que em sede objetiva o Direito Penal é o conjunto de normas que definem os delitos e as sanções que lhes correspondem, orientando, também, sua aplicação. Já no sentido objetivo, relaciona-se ao direito de punir do Estado, representando sua exclusiva faculdade de impor uma sanção criminal diante da prática de um delito. Fundamenta-se, assim, no critério de absoluta necessidade, encontrando limitações jurídico-políticas, principalmente nos princípios penais fundamentais. (PRADO, 2005,p. 24). 
2.2. Definição de Crime pelos Prismas Material, Formal e Analítico 
A expressão “delito” provém de delinquere, que significa abandonar, resvalar, desviar-se, expressando o abandono de uma lei. Crimen vem do grego cerno, fazendo alusão aos delitos mais graves. Na Idade Média as duas expressões supramencionadas foram empregadas, a primeira indicando as infrações leves, enquanto a segunda, as graves.�. 
Na Itália foi adotada a expressão reato. Nos países de língua castelhana empregaram-se os termos "delitos", "crimes" e "contravenções", sendo que "infração" indicaria as três condutas delituosas. Na Alemanha são também utilizados os três termos, indicando "crime" ou Verbrechen em alemão -, o que no Brasil é chamado de infração. �
Para o ordenamento jurídico pátrio, entretanto, não há distinção entre crime e delito, tratando-se, no território brasileiro, de expressões sinônimas.
Luiz Regis Prado sustenta, inclusive, que o conceito de delito se trata de construção essencialmente jurídico-penal, apesar de poder ser objeto de estudo de outras ciências, a exemplo da criminologia, sociologia, medicina legal. (PRADO, 2005, p. 59). 
Saliente-se que o aspecto material visa esclarecer a razão pela qual determinado fato é, ou não, considerado criminoso, tendo-se em conta a natureza danosa da conduta e as suas consequências. Diz respeito ao conteúdo do ilícito penal propriamente dito, isto é, quais fatos, ações ou omissões que uma determinada sociedade, em dado momento histórico, considera que devem ser proibidos, taxados pela lei penal. O conceito material de crime, portanto, tem relação direta com os bens tutelados pela lei penal, podendo-se defini-lo como sendo o fato humano que lesar ou expor a perigo bem jurídico penalmente protegido. 
Do ponto de vista formal, o delito é definido sob o ponto de vista do direito positivo, representando toda conduta - ação ou omissão - proibida por lei sob ameaça de pena. Crimes seriam, então, todas as condutas descritas pelo legislador como tal, pouco importando o seu conteúdo e a sua efetiva lesividade. Resulta, assim, da mera subsunção da conduta ao tipo legal, entendendo-se como crime sob esse enfoque a relação de contrariedade entre o fato e a lei penal.
Tal conceito está presente no ordenamento jurídico brasileiro logo no art. 1º, primeira parte, da Lei de Introdução ao Código Penal�, que assim prevê: “Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”.� 
Essa distinção é de suma importância, haja vista que parte da doutrina e da jurisprudência entendem ser possível que determinada conduta se encaixe no prisma formal de crime, já que a lei assim a define, porém, e ao mesmo tempo, não se amolde no prisma material devido à irrelevância, para a vítima, do bem atingido (não obstante a lei lhe confira tutela jurídica). Como consequência, ter-se-ia a ausência de lesividade no resultado.
Em casos assim, em que a conduta coaduna-se tão-somente com a definição de crime sob o aspecto formal, desde que preenchidos alguns requisitos, tem-se decisões entendendo que se trata de fato atípico, ou melhor, de hipóteses em que nenhum delito teria sido praticado, impondo-se à absolvição do agente.
Tal questão, no entanto, será melhor analisada a seguir, quando das considerações acerca do princípio da insignificância.
Finalmente, o conceito analítico de crime enfoca os elementos ou requisitos do crime. Quanto a esse conceito de crime, há duas teorias; a primeira, denominada de tripartite, segundo a qual crime é toda conduta típica, antijurídica e culpável, e, segunda, considera crime toda conduta típica e antijurídica. 
Para a teoria bipartida, a culpabilidade não seria elemento do crime, mas sim pressuposto de aplicação da pena, podendo ter ocorrido o crime (fato típico + ilicitude) e mesmo assim ser o agente isento de pena. (AZEVEDO; SALIM, 2014, p. 136). 
Ressalte-se, por oportuno, que na doutrina prevalece o conceito tripartite de crime, sendo esse, igualmente, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
2.3. A Relação entre Fato Típico, Fato Atípico, Tipo Legal e Tipicidade 
O fato típico é a conduta, comissiva ou omissiva, abstrata descrita na lei penal incriminadora com o intuito de proteger determinado bem jurídico cuja importância o faz necessitar de resguardo pelos instrumentos do Direito Penal. É o fato material que a lei proíbe e que se adéqua perfeitamente aos elementos constantes do modelo previsto na lei penal. Exemplo: “A” atira em “B”, que vem a morrer em consequência do tiro. Tal fato enquadra-se na descrição legal contida no artigo 121, “caput” do Código Penal: “Matar alguém”.
Opostamente a isso, tem-se o fato atípico, que é aquele que não se encontra descrito em lei como crime ou contravenção penal. Nada mais é que um indiferente penal, havendo, nesse caso, um juízo de tipicidade negativo. 
Tipo legal, por sua vez, é a descrição abstrata do crime realizada pelo legislador. Por natureza, o tipo legal contém o atributo da síntese, pois é impossível que ele abarque todas as particularidades do crime como ocorrido na vida real. Em razão disso, o fato concreto é sempre mais amplo do que o tipo legal, procurando o legislador concentrar-se apenas na essência comum de cada espécie punível.
Já a tipicidade consiste no enquadramento, subsunção, adequação do fato ao modelo previsto no tipo legal. Equivale, assim, à perfeita correspondência do fato praticado na vida real ao que prevê o tipo legal. Exemplo: “A” subtraiu para si o carro de “B” – esse fato amolda-se ao art. 155, “caput” do CP. 
2.4. Distinção entre Tipicidade e Ilicitude 
Como já mencionado no tópico anterior, tipicidade é a adequação de uma conduta a um tipo legal de crime, sendo a base do injusto penal. A ilicitude ou antijuridicidade, por outro lado, é a contrariedade do comportamento humano aos princípios da ordem jurídica. Dessa forma, ilícito é todo fato descrito na lei penal incriminadora e não protegido por uma causa de justificação. 
Observe-se que enquanto a justaposição de um fato concreto ao tipo penal – juízo de tipicidade – tem um caráter positivo, o juízo de ilicitude evidencia um aspecto negativo. Ademais, após ter sido verificada a tipicidade do fato, será aferida a ilicitude por meio de um procedimento negativo, averiguando-se se não ocorre qualquer causa justificante. (PRADO, 2005, p. 107). Isso porque em algumas hipóteses o direito autoriza ou tolera a realização de um comportamento típico não antijurídico ou ilícito. 
Ricardo Antônio Andreucci destaca que: 
“Não basta, para a ocorrência de um crime, que o fato seja típico (previsto em lei). É necessário também que seja antijurídico, ou seja, contrário à lei penal, que viole bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico. Há quem distinga antijuridicidade de ilicitude. Sustenta-se que o termo antijuridicidade não poderia ser aplicado ao delito que, como criação do Direito, é essencialmente jurídico. Desse modo, quem pratica o delito não contrariaria a lei (que estabelece tipo proibitivo), mas, antes, a ela se amoldaria, ao realizar exatamente a forma de conduta por ela estabelecida. Não obstante, adotamos o termo antijuridicidade como sinônimo de ilicitude.” (ANDREUCCI, 2014, p. 94/95). ANDREUCCI, Ricardo Antônio. Manual de Direto Penal. 
Com efeito, se um fato não chega sequer a ser típico, ou seja, se não está nem mesmo descrito como crime, pouco importa se é ilícito ou não, tratando-se de irrelevante penal. Exemplos: crime impossível, suicídio, morte de uma mosca, dentre outros.
Conclui-se, assim, que todo fato penalmente ilícito é, primeiramente, típico. No entanto, um fato típico pode, ou não, ser ilícito, haja vista a existência de causas de exclusão de ilicitude, as quais serão abordadas no tópico a seguir.
2.5. Causas de Exclusão da Tipicidade e da Ilicitudeou Causas de Justificação
Conforme já visto, todo fato ilícito será, necessariamente típico. Contudo, existem no ordenamento jurídico determinadas situações, chamadas de causas justificantes, que excluem a antijuridicidade do fato típico. Assim, toda ação típica será também ilícita, salvo quando justificada. 
Desse modo, a presença de uma causa justificante fará com que uma ação que seria típica e ilícita torne-se lícita ou permitida. Exemplo: “A”, para salvaguardar sua vida, mata “B”, agindo em legítima defesa. Na realidade, “A” praticou um fato típico, definido em lei como crime de homicídio (art. 121 do CP), o qual, porém, não será considerado crime nesse exemplo por ter agido “A” em legítima defesa, a qual é causa excludente da antijuridicidade, prevista expressamente no art. 23, II, do Código Penal. 
As causas excludentes da antijuridicidade podem ser legais (quando previstas em lei, como no exemplo acima) ou supralegais (quando aplicadas analogicamente, ante a falta de previsão legal). Trata-se, na verdade, de um juízo de valor acerca da lesividade do fato típico.
As causas legais estão previstas no artigo 23 do Código Penal, sendo elas, além da legítima defesa, o estado de necessidade, o estrito cumprimento do dever legal e, por fim, o exercício regular de um direito. Note-se que o Código Penal enumerou de forma expressa as principais causas de justificação sob a rubrica “exclusão de ilicitude”, assim dispondo: 
 “Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: 
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito.”.
No parágrafo único do artigo supramencionado tem-se o excesso punível, estabelecendo-se: “O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”. Vale dizer que pelo excesso responderá o agente, a título de dolo ou culpa, qualquer que seja a causa de exclusão do injusto.
As causas supralegais decorrem de um juízo de valor acerca da lesividade do fato típico, devendo o julgador, na identificação da lesão ou do perigo de lesão ao bem jurídico, ater-se aos fins sociais a que a lei se dirige e às exigências do bem comum, consoante preceitua o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.
Parcela da doutrina entende que as causas supralegais, quando existem, excluem a própria tipicidade, uma vez que estão intimamente ligadas ao conceito de tipicidade material, segundo o qual o fato típico não pode ser produto de simples operação de enquadramento formal, exigindo-se que tenha conteúdo de crime.
O princípio da insignificância é considerado causa supralegal de exclusão de ilicitude, sendo considerada essa a natureza jurídica do princípio em tela; para os adeptos de corrente diversa, trata-se de causa de exclusão da tipicidade. 
Ressalte-se, ainda, que tanto para a doutrina, como para a jurisprudência, o consentimento do ofendido seria outra excludente supralegal excludente da ilicitude por não estar na lei. 
Finalmente, como já mencionado alhures, uma ação será típica quando a descrição abstrata de um fato real se amoldar ao que a lei proíbe (tipo penal incriminador), sendo notória causa de exclusão da tipicidade a hipótese em que isso não ocorrer. 
 
CAPÍTULO III – O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA OU BAGATELA 
3.1. Definição do Crime de Bagatela
O chamado “crime de bagatela” ou insignificante nada mais é do que aquele de pequena monta, isto é, de reduzidíssima importância econômica, ínfimo valor, sendo seu objeto uma verdadeira ninharia.
4.2 - ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O princípio da insignificância surgiu de forma significativa na Europa somente a partir deste século, devido às crises sociais decorrentes das duas grandes guerras mundiais. O excessivo desemprego e a falta de alimentos, dentre outros fatores, acabaram por desencadear um surto de pequenos furtos, subtrações de mínima relevância, que receberam a denominação de “crimes de bagatela”.
Há quem afirme, contudo, que o princípio da insignificância teve sua origem no direito romano, onde o pretor não cuidava, de modo geral, de causas ou delitos de bagatela, consoante a máxima contida no brocardo de minimis non curat praetor.
Sabe-se que a sua evolução relaciona-se diretamente com o princípio da legalidade – nullum crimen nulla poena sine lege –, cuja origem Jescheck vinculou à teoria do contrato social, concluindo que a função do Estado seria garantir a proteção efetiva dos direitos do homem – em outras palavras, somente seria ilícito aquilo vedado por lei. 
Nesse passo, os pensadores iluministas achavam necessária a contenção do arbítrio judicial com a conseqüente submissão do magistrado à norma, único elemento capaz de estabelecer o que era antijurídico e as sanções pertinentes.
Cesare Beccaria, em sua obra Dei delitti e delle pene, de 1764, argumentava ser o legislador o único agente capaz de estabelecer normas, por representar toda a sociedade unida por um contrato social, e que apenas estas leis poderiam indicar as penas de cada delito. Quanto à medida dos delitos, Beccaria entendia que a exata medida do crime é o prejuízo causado à sociedade.�
Em suas palavras já se vislumbrava a aplicação do princípio da insignificância, eis que o renomado jurista condicionava tanto a intervenção do Direito Penal como também a aplicação da sanção à efetiva existência de um prejuízo à sociedade, ou mesmo à extensão desse dano.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789 na França, também já fazia alusão ao princípio em comento, ainda que de forma implícita, ao determinar, em seu art. 5º, que a lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade�.
Todavia, a formulação teórica do princípio da bagatela, com a possibilidade de restringir o alcance da tipicidade, deu-se somente com Claus Roxin, em 1964, a respeito de um crime de constrangimento ilegal.
Posteriormente, com suporte na fragmentariedade do Direito Penal, passou-se a defender a ampliação do princípio da insignificância para afastar a tipicidade de outras condutas que ofendessem de forma irrelevante o bem jurídico tutelado.
4.3 - CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEMA
O princípio da insignificância recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves, ou seja, de diminuta relevância material. 
O conceito de delito de bagatela não se encontra definido em nossa legislação. Trata-se de um princípio implícito, integrado aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, já que tenta resguardar a dignidade da pessoa humana e a proporcionalidade da aplicação da pena aos casos de mínima relevância, impedindo que se cometam injustiças. 
Ante a falta de previsão legal, é a interpretação doutrinária e jurisprudencial que tem permitido delimitar as condutas tidas como insignificantes, sob o condão de um Direito Penal mínimo, fragmentário e subsidiário. Tem sido aplicado nos casos de furto de objeto material insignificante, lesão insignificante ao Fisco, maus-tratos de importância mínima, descaminho e dano de pequena monta, lesão corporal de extrema singeleza, etc.
Assim, não há crime de dano ou furto quando a coisa alheia não tem qualquer significação para o proprietário da coisa;� não existe contrabando na posse de pequena quantidade de produto estrangeiro, de valor reduzido, que não cause uma lesão de certa expressão para o Fisco; não há peculato quando o servidor público se apropria de ninharias do Estado (folhas de papel, caneta esferográfica, etc); não há crime contra a honra quando não se afeta significativamente a dignidade, a reputação, a honra de outrem;� não há lesão corporal em pequenos danos à integridade física;� não há maus-tratos quando não se ocasiona prejuízo considerável ao bem-estar corporal;�não há dano no estrago ao patrimônio público de pequena monta;� não há estelionato quando o agente se utiliza de fraude para não pagar passagem de ônibus;� não há furto quando a res subtraída é economicamente insignificante, etc.
No Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, já se absolveu réu acusado pelo crime de posse de entorpecente, por ser mínima (1 grama) a quantidade do tóxico.�
Segundo Diomar Ackel Filho, "O princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes".�
Conforme nos diz Assis Toledo, o princípio se vincula à gradação qualitativa-quantitativa do injusto, que permite ser o fato insignificante excluído da tipicidade penal.�
Alberto Silva Franco adere o princípio da insignificância à antijuridicidade material� e Aldo Montoro acrescenta que, além desse limite quantitativo-qualitativo, não há racional consistência de crime, nem justificação de pena, sendo irrelevantes os fatos que se encontrem abaixo deste limite�.
Na lição de Vico Mañas, "O princípio da insignificância é um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal".�
Desse modo, estruturado nos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, o princípio da bagatela apresenta-se como um vetor interpretativo restritivo da aplicação do Direito Penal, restringindo-o às lesões ou perigo de lesões consideradas relevantes socialmente. Atua, dessa maneira, como uma excludente de tipicidade que, tendo como base a divisão da tipicidade elaborada pela moderna teoria do tipo em formal e material, exclui do rol de tutela penal os crimes de pequena e insignificante monta. Assim, uma conduta insignificante, ou seja, isenta de um resultado socialmente danoso, é atípica, pois lhe falta a tipicidade material, a despeito de possuir uma aparente tipicidade formal.
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5 - O DIREITO PENAL MÍNIMO E O CRIME DE BAGATELA
5.1 - PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA X TIPICIDADE PENAL
O princípio da intervenção mínima assenta-se na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo artigo 8º determina que a lei só deve prever as penas estritamente necessárias.
Isso significa, primeiro, que o Direito Penal só intervirá naqueles raros episódios típicos em que a lei descreve um fato como crime; quando ela nada disser, não haverá espaço para a atuação criminal. Reside aí a principal proteção do cidadão em face do poder punitivo estatal, qual seja, a de que somente terá invadida a sua esfera de liberdade se realizar uma conduta descrita em lei como infração penal.
Em segundo lugar, significa que o legislador deve agir com cautela ao eleger as condutas que merecerão punição criminal, abstendo-se de incriminar todo e qualquer comportamento. Deve haver utilidade na incriminação para a defesa do bem jurídico que se quer proteger, bem como ponderação entre a natureza do delito e a quantidade/severidade da sanção cominada.
O princípio da intervenção mínima tem, pois, o intuito de limitar ou eliminar o arbítrio do legislador. É sabido que a pena criminal não repara a situação fática anterior, isto é, não proporciona o chamado status quo ante, além de impor ao condenado um sacrifício social alto. Logo, o Direito Penal deve ser a última ratio, ou seja, a sua intervenção só se fará aceitável em casos de ataques relevantes a bens jurídicos tutelados pelo Estado.
Segundo René Ariel Dotti, tal princípio visa restringir a incidência das normas incriminadoras aos casos de ofensas aos bens jurídicos fundamentais, reservando-se para os demais ramos do ordenamento jurídico a vasta gama de ilicitudes de menor expressão, em termos de dano ou perigo de dano. A aplicação do princípio resguarda o prestígio da ciência penal e do magistério punitivo contra os males da exaustão e da insegurança que a conduz à chamada inflação legislativa.�
5.2 - A RELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA INTERVENÇÃO MÍNIMA E DA INSIGNIFICÂNCIA
Como vimos, o princípio da intervenção mínima aponta para o caráter subsidiário do Direito Penal. Quer dizer que este ramo do Direito só será chamado a manter a ordem social quando os demais forem insuficientes ou ineficazes.
Nesse diapasão, falar em intervenção mínima do Direito Penal nada mais é que defender a aplicação do princípio da insignificância como uma construção dogmática, com base em conclusões de ordem político-criminal, que procuram solucionar situações de injustiça provenientes da falta de relação entre a conduta reprovada e a pena aplicável. Parte-se da idéia de que uma conduta somente pode ser coibida por meio de uma pena quando se mostra de todo incompatível com os pressupostos de uma vida pacífica, livre e materialmente assegurada.
A EVOLUÇÃO LEGISLATIVA BRASILEIRA DE COMBATE AO USO DE ENTORPECENTES
1.1 Breves Considerações
As Ordenações Manuelinas� e Filipinas� foram os primeiros códigos legislativos a tipificar a posse de determinadas substâncias consideradas venenosas no Brasil, incluindo-se o ópio, cominando pena de “perda de sua fazenda e degradação para a África” (RODRIGUES, 2006, p. 136). 
O Código Criminal do Império permaneceu silente acerca do tema. No entanto, o Regulamento de 29 de setembro de 1851 abordou a política sanitária (artigo 51) e a venda de substâncias medicinais e de medicamentos (artigo 68 e seguintes).
O Código Penal Republicano de 1890, em seu Capítulo III, que tratava dos crimes contra a saúde pública, nada mencionou sobre o uso, mas incriminou a conduta de “expor à venda ou ministrar substâncias venenosas sem legítima autorização e sem as formalidades previstas nos regulamentos sanitários” (GRECO FILHO; RASSI, 2007, p. 2).
A primeira ação internacional dirigida à proibição coordenada da produção, comércio e consumo de determinadas substâncias psicoativas foi sistematizada na Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada pela Liga das Nações, em Haia, em 23 de janeiro de 1912. Seu artigo 20 recomendava aos Estados signatários que examinassem a possibilidade de criminalização da posse de ópio, morfina, cocaína e seus derivados.
Visando acirrar o combate ao uso de substâncias venenosas no país, que se intensificou após 1914, editou-se, em julho de 1921, fruto da Convenção de Haia, o Decreto nº 4.294, regulamentado pelo Decreto nº 14.969, de setembro de 1921, que passou a prever pena de prisão para o consumo de entorpecentes.
Tais Decretos foram substituídos pelo de nº 20.930, editado em janeiro de 1932, que adotou a expressão "substâncias tóxicas" para se referir a entorpecentes como o ópio, a cocaína e a maconha. Apresentou rol de substâncias proibidas e tipificou várias ações como tráfico e posse ilícita, sendo o viciado tratado como doente e a drogadição uma doença de notificação compulsória (RODRIGUES, 2006, p. 137-138).
O Decreto nº 780, alterado pelo de nº 2.953, de agosto de 1938, criou a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, vinculada ao Ministério da Saúde, o que representou um avanço na harmonização da legislação antidroga. 
Em novembro de 1938, fruto da Convenção de Genebra, foi editado o Decreto nº 891, que cominou pena de prisão para o consumo de entorpecentes, criou rol de substâncias assim consideradas e dispôs sobre a internação obrigatória e interdição civil dos toxicômanos.
O Código Penal de 1940 tratou das drogas em seu artigo 281, que tipificou as condutas de importar, exportar, vender ou expor à venda, fornecer, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar e entregar a consumo substância entorpecente, semautorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Considerando que não se fez referência ao consumo pessoal, parcela da doutrina passou a defender que houve a descriminalização dessa conduta. Prevalecia o entendimento de que o usuário era um doente que necessitava de tratamento médico, e não de sanção penal, enquanto que se utilizava o controle penal mais intensamente como forma de se controlar os atos de comércio de substâncias entorpecentes (RODRIGUES, 2006, p. 141). 
Segundo Roberta Duboc Pedrinha, especialista em Direito Penal e Sociologia Criminal, estabeleceu-se uma “concepção sanitária do controle das drogas”, pela qual a dependência é considerada doença e, ao contrário dos traficantes, os usuários não eram criminalizados, mas estavam submetidos a rigoroso tratamento, com internação obrigatória�.
Em 1967, o Brasil equiparou as substâncias que determinam dependência física ou psíquica – tais como alucinógenos – a drogas.
Em 1964, ingressamos definitivamente no cenário internacional de combate às drogas após a promulgação da Convenção Única de Entorpecentes (RODRIGUES, 2006, p. 142).
No ano de 1968, o Decreto nº 385 passou a incriminar o consumo e equiparou a figura do usuário à do traficante, inserindo na redação do artigo 281 do Código Penal a conduta de “trazer consigo, para uso próprio, substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”. Com a criminalização do usuário, antes tratado sob o ponto de vista clínico, buscou-se combater de maneira oblíqua o tráfico de drogas (RODRIGUES, 2006, p. 144).
Nesse contexto, o Código Penal Militar de 1969 punia o tráfico e a posse para consumo pessoal com a mesma sanção de reclusão de dois a oito anos.
Pouco tempo depois, a Lei nº 5.726, de outubro de 1971, dispôs sobre medidas preventivas e repressivas ao comércio ilícito de entorpecentes e ao uso de substâncias psicotrópicas. Além disso, alterou o rito processual para o julgamento desses delitos.
Nessa época, o traficante e o usuário ainda recebiam o mesmo tratamento penal, sendo-lhes cominada pena idêntica de prisão.
Com a entrada em vigor da Lei nº 6.368/76, o artigo 281 do Código Penal foi tacitamente revogado. A lei extravagante passou a tratar com exclusividade da prevenção e repressão ao tráfico e uso de substâncias entorpecentes, separando-os em artigos distintos (respectivamente, artigos 12� e 16�). De modo geral, buscou ressaltar a importância da educação como medida preventiva. Conforme anota M. M. Ribeiro, a Lei 6.368/76, ao disciplinar a conduta do usuário em seu artigo 16 de forma distinta da figura do traficante do artigo 12, representou para a época um avanço, mesmo que ainda tímido. O sistema repressivo, porém, estava impregnado da ideologia de segurança nacional e permaneceu reforçado (RIBEIRO, 2012, p. 27).
A Lei nº 10.409/02 surgiu no ordenamento pátrio com o fim de substituir integralmente a Lei nº 6.368/76. Todavia, porque eivada de inconstitucionalidade e deficiências técnicas, apenas a parte processual entrou em vigor.
Assim, as Leis nº 6.368/76 e nº 10.409/02 vigeram até o advento da Lei nº 11.343, de agosto de 2006, a qual revogou expressamente os diplomas anteriores.
1.2 A mudança de cultura jurídica sobre drogas
A legislação pátria, por um longo período, corporificou a ideia de que era necessário estabelecer uma verdadeira “guerra contra as drogas”. Foi essa a orientação que prevaleceu nas décadas de 1970 e 1980, quando o usuário era considerado um vadio, um marginal. 
Essa cultura bélica e discriminatória marcou a postura política das instituições jurídicas, projetadas no contexto daquela estrutura normativa punitiva, dirigindo suas funções (controle social, sanção, administração política e financeira, ordem familiar, satisfação das necessidades comunitárias) e treinando seus operadores profissionais (policiais, promotores de justiça, juízes, advogados, defensores públicos) e órgãos de decisão (tribunais de justiça) para atuarem de acordo com o modelo repressivo-punitivo.
Enquanto ocorriam profundas transformações sociais, ambientais, econômicas e tecnológicas que indicavam a imprescindibilidade de uma análise sistêmica, a fim de compreender a complexidade que informa o ser humano no contexto das drogas, o combate ao uso passou a ser encarado como uma guerra possível de ser vencida, já que dirigida “contra a pessoa do usuário”, sem considerar a criminalidade moderna caracterizada pela concentração de poder político, econômico, domínio tecnológico e estratégia global (Cervini, 1995). Vendia-se a ideia de que “fazer mal ao usuário de drogas era o mesmo que fazer bem à sociedade”, e de que “só existe a figura do traficante por causa do usuário”, levando à conclusão de que a guerra deveria ser contra ele.
No entanto, com o passar do tempo, constatou-se que esse olhar discriminatório e que o modelo repressivo, que recomenda punição indistintamente para todos os casos, não foram capazes de impedir o agravamento do problema. A experiência demonstrou que a simples subsunção do fato tido por criminoso à norma, com a consequente aplicação da pena, não modificam o comportamento dos indivíduos.
Foi assim que o Brasil, seguindo a tendência mundial, deu os primeiros passos em direção à mudança de cultura jurídica sobre o tema, passando a entender que usuários e dependentes não devem ser penalizados pela Justiça com a privação da liberdade. É essa a linha de pensamento que permeou a edição da Lei nº 11.343/06, então em vigor. 
Com o advento da Nova Lei de Drogas, a Justiça retributiva baseada no castigo foi substituída pela Justiça restaurativa, cujo objetivo maior é a ressocialização por meio de penas alternativas.
Essa abordagem em relação ao porte de drogas para uso pessoal tem sido apoiada por especialistas, de acordo com os quais a atenção ao usuário / dependente deve ser voltada ao oferecimento de oportunidade de reflexão sobre o próprio consumo, em vez do encarceramento.
Nesse dispasão, o Supremo Tribunal Federal� assim se pronunciou: 
(…) Preocupação do Estado em mudar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. 
1.3 O tratamento dispensado ao usuário pela Lei nº 11.343/06
A Lei 11.343/06 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, o SISNAD, que tem por princípios, dentre outros, o reconhecimento da intersetorialidade dos fatores correlacionados com o uso indevido de drogas; a adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; a observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando garantir a estabilidade e o bem-estar social.
O artigo 19 do referido diploma legal cuida dos princípios e diretrizes relativos à prevenção do uso indevido de drogas, mencionando como objetivos a serem alcançados o “não-uso”, o “retardamento do uso” e a redução de riscos. 
O artigo 20 estabelece como atividades de atenção ao usuário e seus familiares todas aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dos danos associados ao uso de entorpecentes.
Determina, dentre outros princípios e diretrizes, que se respeite o usuário e o dependente de drogas, independentemente de condições, observando-se os direitos fundamentais da pessoa humana, os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social; que se defina projeto terapêutico individualizado, objetivando a inclusão social e a redução de riscos e danos sociais e à saúde, enfocando a necessidade de atenção ao usuário ou dependente químico e aosrespectivos familiares de forma multidisciplinar.
No que concerne ao agente do crime, o artigo 26 garante os serviços de atenção à saúde do usuário que esteja cumprindo pena privativa de liberdade transitada em julgado ou submetido a medida de segurança.
O artigo 28, que incrimina as condutas de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, bem como as condutas de semear, cultivar ou colher, para seu consumo pessoal, plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica, submete o agente a três espécies de penas restritivas de direitos: advertência sobre os efeitos maléficos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
A advertência consiste em o juiz esclarecer ao usuário as conseqüências que podem advir do uso indevido de drogas, tanto para ele como para a sociedade, considerando que o objeto jurídico tutelado pela lei é a saúde pública. Cuida-se de uma tentativa de desestimular o uso, expondo ao infrator os malefícios provocados por sua conduta.
Nas palavras do Promotor de Justiça Renato Marcão, 
“A pena de advertência tem por finalidade avivar, revigorar e, em alguns casos, incutir, na mente daquele que incidiu em qualquer das condutas do art. 28, as conseqüências danosas que o uso de drogas proporciona à sua própria saúde; ao seu conceito e estima social; à estabilidade e harmonia familiar; à comunhão social, buscando despertar valores aptos a ensejar contra-estímulo ao estímulo de consumir drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (MARCÃO, 2007, p. 66).
Para BITENCOURT, tal sanção pode se mostrar eficaz nos casos em que a simples responsabilização penal ou o fato de estar no polo passivo de uma ação penal já seria, por si só, sanção relevante para o agente portador de irretocáveis antecedentes, ou seja, a pena estaria, nesses casos, cumprindo sua função de prevenção especial. Tal sanção deveria ser reservada aos agentes que não precisam ser “ressocializados” e que o delito não passou de um mero incidente (BITENCOURT, 2011, p. 629-630).
Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto Galvão de Carvalho não consideram a advertência uma pena, porquanto lhe falta a finalidade repressiva, tendo em conta que não se restringe nenhum bem jurídico do condenado. Ademais, a advertência não teria uma finalidade preventiva especial capaz de dissuadir o sentenciado a não mais delinquir. A saída seria aplicar a medida cumulativamente com alguma das outras duas previstas (MENDONÇA; CARVALHO, 2008, p. 57-58). 
A pena de prestação de serviços à comunidade consiste em impor ao usuário a tarefa de prestar serviços gratuitamente a determinadas entidades, principalmente àquelas que tenham por objetivo a prevenção do uso indevido de drogas e o tratamento de usuários e dependentes.
Para BITENCOURT, é o “dever de prestar determinada quantidade de horas de trabalho não remunerado e útil para a comunidade durante o tempo livre, em benefício de pessoas necessitadas ou para fins comunitários” (BITENCOURT, 1999, p. 133).
Trata-se de uma pena comum no ordenamento jurídico-penal brasileiro, espécie de pena restritiva de direitos, prevista nos artigos 32 e 43 do Código Penal.
A respeito dessa modalidade de pena, Guilherme de Souza Nucci discorre sobre as distinções existentes entre as orientações gerais do Código Penal e as particularidades trazidas pela Lei 11.343/06:
(...) Respeitam-se as regras gerais estabelecidas no Código Penal (art. 46), observadas as peculiaridades trazidas por esta Lei. Ilustrando: a) a prestação de serviços à comunidade, no Código Penal, somente pode ser aplicada em substituição à pena privativa de liberdade, quando esta atingir montante superior a seis meses; no caso da Lei 11.343/2006, constitui pena totalmente independente, com prazo próprio, variando de um dia a cinco meses (o art. 28, §3º, fixou o máximo; o mínimo advém da impossibilidade de haver pena em horas, conforme art. 11 do CP); b) as tarefas gratuitas, no Código Penal, destinam-se a entidades assistenciais, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais; na Lei 11.343/2006, a prestação de serviços à comunidade deve voltar-se, preferencialmente, à prevenção ao consumo e à recuperação do usuário e dependente de drogas; c) no Código Penal, o descumprimento da prestação de serviços à comunidade implica na sua conversão em pena privativa de liberdade, pelo remanescente do tempo não cumprido, respeitado o mínimo de trinta dias; na Lei 11.343/2006, a prestação de serviços à comunidade, quando não cumprida, sujeitará o sentenciado à admoestação verbal e/ou à aplicação de uma multa; d) a prestação de serviços à comunidade, no Código Penal, em relação à prescrição, tem o mesmo prazo da pena privativa de liberdade que substituiu; na Lei 11.343/2006, as penas prescrevem em dois anos. No mais, parece-nos que se pode aplicar o disposto no código Penal, vale dizer, o condenado a cumprirá à razão de uma hora-tarefa por dia de condenação, num total de sete horas por semana, ajustando-se a maneira de executá-la de acordo com a conveniência do trabalho regular do condenado (art. 46, § 3º, CP). (NUCCI, 2006, p. 758).
O prazo máximo de aplicação da pena de prestação de serviços à comunidade é de 5 meses, se o agente for primário, e de 10 meses, em caso de reincidência. Deve ainda ser cumprida preferencialmente em estabelecimentos que se ocupem da prevenção do vício ou recuperação de usuários.
A medida de comparecimento a programa ou curso educativo também é uma espécie de pena restritiva de direitos imposta ao usuário, e, tal como se deu com a advertência, não houve previsão legal especificando o seu cumprimento. 
De acordo com Guilherme de Souza Nucci, 
“(...) cuida-se de pena inédita, não constante do Código Penal, mas também sem ter sido detalhadamente regulada pela Lei 11.343/2006, o que foi, naturalmente, um equívoco. Não se mencionou a forma da obrigação de comparecimento a programa ou curso educativo. Por isso, a única maneira de se evitar lesão ao princípio da legalidade, porém buscando-se salvar a pena criada, parece-nos que se deva fazer uma analogia com a prestação de serviços à comunidade” (NUCCI, 2006, p. 758).
Na doutrina, houve quem entendesse que a atual Lei de Drogas descriminalizou a posse de drogas para consumo pessoal, uma vez que não se cominou ao agente nenhuma espécie de privação da liberdade, situação que não se coaduna com o disposto no artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Penal. Luiz Flávio Gomes foi um defensor dessa tese.
Na visão de João José Leal, “não foi adotada nem a corrente de descriminalização total do porte nem se manteve a pena de prisão no novo diploma, prevaleceu a opção por uma espécie de descriminalização branda” (LEAL, 2007).
Vicente Greco Filho entende que não é porque as penas de 2006 não foram previstas pela Lei de Introdução de 1941 que lei posterior de igual hierarquia não possa trazer inovações que estão de acordo com a ordem vigente. As penas são próprias e específicas e estão de acordo com a ordem constitucional de 1988, já que não são de morte, infamante, perpétua ou cruéis (GRECO FILHO, 2009, p. 127-128).
Para muitos, a conduta do artigo 28 seria uma infração sui generis, exemplo de direito judicial sancionador (GOMES, 2006a, p. 108-119, 2006b).
Submetida a questão ao Supremo Tribunal Federal, firmou-se o entendimento de que, na verdade, houve a despenalização e não a descriminalização do delito (STF, RE-QO 430.105 / RJ, Primeira Turma, Relator Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 13.02.2007, publicado em 27.04.2007).
Logo, o agente desse crime em hipótese nenhuma estará sujeito ao cárcere. Caso se recuse a cumprir a pena que lhe foi imposta, deverá ser submetido a admoestação verbale multa. Não caberá a conversão em pena privativa de liberdade, ainda que haja reincidência.
A admoestação verbal consiste em 
(...) uma repreensão oral a respeito da necessidade de o agente se submeter ao título executivo que decorre da sentença condenatória ou da decisão que homologou transação penal. Deve ser feita pelo próprio juiz (...). Trata-se de função jurisdicional (...). (MARCÃO, 2007, p. 70).
Já a multa consiste na imposição de um valor em pecúnia, a ser pago pelo condenado em razão do descumprimento da pena inicialmente imposta. Tem por escopo fazer com que o sentenciado cumpra a pena originariamente imposta. O artigo 29 fixa os parâmetros de aplicação dessa multa, cujos valores são revertidos ao Fundo Nacional Antidrogas.
O artigo 30 estabelece que a imposição e a execução das penas prescrevem em dois anos. 
O artigo 45 traz como causa excludente da punibilidade o fato do agente que, em razão da dependência, ou sob o efeito, proveniente de caso fortuito ou força maior, de droga, era, ao tempo da ação ou da omissão, qualquer que tenha sido a infração penal praticada, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, com base em perícia. Nessa hipótese, o juiz, na sentença, poderá encaminhar o agente para tratamento médico adequado. Esse instituto corresponde à medida de segurança.
Luiz Flávio Gomes resume em poucas palavras o tratamento conferido pela nova Lei de Drogas ao usuário:
Ao usuário não se comina a pena de prisão. Pretende-se que ele nem sequer passe pela polícia. O infrator da Lei será enviado diretamente aos Juizados Criminais, salvo onde inexistem tais Juizados em regime de plantão (art. 48, § 2º). Não há que se falar, de outro lado, em inquérito policial, sim em termo circunstanciado. Não é possível a prisão em flagrante (art. 48, § 2º): o agente surpreendido é capturado, mas não se lavra o auto de prisão em flagrante (no seu lugar, elabora-se o termo circunstanciado). A competência para aplicação de todas as medidas alternativas é dos Juizados Criminais. Na audiência preliminar é possível a transação penal, aplicando-se as penas alternativas do art. 28. Não aceita (pelo agente) a transação penal, segue-se o rito sumaríssimo da Lei 9.099/95. Mas, ao final, de modo algum será imposta pena de prisão, sim, somente as medidas alternativas do artigo 28. A distinção entre usuário e traficante continua tendo por base o caso concreto. Devem ser levados em conta a natureza da droga, sua quantidade, local e condições da prisão, modo de vida do agente, seus antecedentes, etc. (GOMES ET al., 2007, p. 7-8).
 
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CAPÍTULO II - A DISCUSSÃO ACERCA DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO DE DROGAS NO BRASIL
2.1 O conceito de descriminalização
Segundo Luiz Flávio Gomes�, descriminalizar é “retirar de algumas condutas o caráter de criminosas. O fato descrito na lei penal deixa de ser crime (deixa de ser infração penal)”.
Cervini� explica que descriminalização é 
Sinônimo de retirar formalmente ou de fato do âmbito do Direito Penal certas condutas, não graves, que deixam de ser delitivas, em três formas possíveis: a) a descriminalização formal (penal), b) descriminalização substantiva (plena ou total), c) descriminalização de fato, quando o sistema penal deixa de funcionar sem que formalmente tenha perdido competência para tal, quer dizer, do ponto de vista técnico-jurídico, nesses casos permanece ileso o caráter de ilícito penal, eliminando-se somente a aplicação efetiva da pena.
Na definição de Adriane Medianeira Toaldo e Carina Deolinda da Silva Lopes�,
Significa tirar da conduta o caráter criminoso, mas mesmo assim este ainda irá possuir sanções a serem aplicadas no âmbito penal, trata-se de descriminalização formal, ou seja, a que tira o caráter criminoso, mas ainda permanece no âmbito do Direito Penal, em outras palavras, o fato deixa de ser considerado crime, mas continua com o seu caráter ilícito, tratando-se de uma infração sui generis.
Nesse passo, constata-se que existe uma diferença entre legalizar e descriminalizar. Para que uma conduta seja legalizada é necessário que, além de não constituir crime, deixe de ser um ilícito de outra natureza (cível, trabalhista, administrativo). 
2.2 O julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659
O Recurso Extraordinário nº 635.659/SP chegou à Corte Suprema em 2011 por meio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, atuando na defesa de um indivíduo que foi flagrado portando três gramas de maconha no interior da cela que dividia com outros presos. O recurso foi interposto contra o acórdão que manteve a condenação de Francisco Benedito de Souza pelo crime de porte de entorpecente para consumo pessoal.
Alega a Defensoria Pública, em síntese, que a referida proibição ofende os princípios constitucionais da intimidade e da vida privada, bem como que o uso de drogas constitui autolesão, o que inviabiliza a atuação do Direito Penal.
2.2.1 O voto do Ministro Gilmar Mendes
O primeiro voto foi o do Ministro e relator Gilmar Mendes, que ressaltou a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei nº 11.343/06, ou seja, votou a favor da descriminalização do uso e porte de drogas, porém, com ressalvas�.
De acordo com o i. Ministro, “a incongruência entre a criminalização de condutas circunscritas ao consumo pessoal de drogas e os objetivos expressamente estabelecidos pelo legislador em relação a usuários e dependentes, potencializada pela ausência de critério objetivo de distinção entre usuário e traficante, evidencia a clara inadequação da norma impugnada e, portanto, manifesta violação, sob esse aspecto, ao princípio da proporcionalidade”.
Ponderou também que “não existem estudos suficientes ou incontroversos que revelem ser a repressão ao consumo o instrumento mais eficiente para o combate ao tráfico de drogas. Pelo contrário, apesar da denominada ‘guerra às drogas’, é notório o aumento do tráfico nas últimas décadas”. Ainda sobre esse aspecto, analisando os resultados obtidos por outros países que recentemente adotaram a despenalização ou a descriminalização, ressaltou que “a criminalização do consumo tem muito pouco impacto na decisão de consumir drogas”.
Em outro trecho de seu voto, o relator afirmou que “A criminalização da posse de drogas ‘para consumo pessoal’ afeta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações” e que “dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação”. Desse modo, para Gilmar Mendes, “A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde”. Por conseguinte, “A relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante”.
Na sequência, o jurista mostrou-se favorável à adoção de critérios objetivos para a distinção entre o usuário e o traficante, fundados no peso e na natureza da droga apreendida, precedida de estudos sobre as peculiaridades locais. Defendeu, ainda, o deslocamento da aplicação das medidas previstas no art. 28 da Lei nº 11.343/06 do âmbito penal para o civil, até o advento de legislação específica.
2.2.2 O voto do Ministro Luiz Edson Fachin
O e. Ministro Luiz Edson Fachin votou pela inconstitucionalidade da criminalização do porte exclusivamente de maconha para uso próprio�.
Segundo Fachin, “é possível antever que a incriminação da drogadição situa-se na tênue delimitação entre o Direito Penal do autor e o do fato. Com efeito, a posse para uso pessoal, embora tipifique a ação, incide sobre conduta que, não raro, é condição essencial da pessoa, e a vetor constitucional que não autoriza a penalização da personalidade”.
Adverte o i. jurista que “o usuário em situação de dependência deve ser encarado como doente.Ao necessitar de tratamento para a superação do vício, é estabelecida ao Estado (e mesmo à sociedade) uma obrigação de fornecer os meios necessários para tanto”. “(...) o acesso à saúde é universal, frise-se bem, e, por conseguinte, deve abarcar todos os indivíduos que necessitarem dos seus serviços para preservação da própria integridade física e mental”.
Prossegue o Ministro destacando que “A regulamentação de toda a sequência que liga a produção ao consumo da droga em questão não cabe, nem aqui ou agora, ao Poder Judiciário, mas sim ao poder constitucional e democraticamente responsável para levar a diante tal mister sob pena de vácuo inconstitucional e mora legislativa. Não deve o STF em sede deste recurso preencher o vazio normativo que daí pode decorrer. Há, nesse sentido, tanto os limites da controvérsia constitucional posta – e a necessidade de adstrição a estes – quanto os confins democráticos que se põem ao Judiciário. No entanto, cabe reconhecer, sem prejuízo da nulidade constitucional adiante chancelada, que o usuário, apesar da autodeterminação que pode lhe assistir, fomenta, ainda que reflexamente, o tráfico. Este, pois, é o destinatário das causas cujos efeitos estão em pauta. Dessa forma, sendo injurídico o uso e porte para consumo da droga objeto do presente recurso (maconha), o enfrentamento do tráfico mira, por conseguinte, ato porvindouro, ou seja, a devida regulamentação legislativa”.
Por fim, acompanhando o relator, o Ministro Fachin inclinou-se favoravelmente à adoção de critérios objetivos para a distinção entre o usuário e o traficante, fundados no peso e na natureza da droga apreendida, o que deve ser feito pelo legislador.
2.2.3 O voto do Ministro Luís Roberto Barroso
Assim como o Ministro Fachin, Barroso votou pela inconstitucionalidade da criminalização apenas do porte de maconha para uso próprio�.
Analisando o tema, argumentou que “A guerra às drogas fracassou. Desde o início da década de 70, sob a liderança do Presidente Nixon, dos Estados Unidos, adotou-se uma política de dura repressão à cadeia de produção, distribuição e fornecimento de drogas ilícitas, assim como ao consumo. Tal visão encontra-se materializada em três convenções da ONU. A verdade, porém, a triste verdade, é que passados mais de 40 anos, a realidade com a qual convivemos é a do consumo crescente, do não tratamento adequado dos dependentes como consequência da criminalização e do aumento exponencial do poder do tráfico. E o custo político, social e econômico dessa opção tem sido altíssimo. Insistir no que não funciona, depois de tantas décadas, é uma forma de fugir da realidade. É preciso ceder aos fatos”.
Nessa toada, afirmou que “O modelo criminalizador e repressor produz um alto custo para a sociedade e para o Estado, resultando em aumento da população carcerária, da violência e da discriminação. Da promulgação da lei de drogas, em 2006, até hoje, houve um aumento do encarceramento por infrações relacionadas às drogas (...). Além do custo elevado, há outro fenômeno associado ao encarceramento: jovens primários são presos juntamente com bandidos ferozes e se tornam, em pouco tempo, em criminosos mais perigosos. Ao voltarem para a rua, são mais ameaçadores para a sociedade, sendo que o índice de reincidência é acima de 70%”.
Barroso ainda destacou que “O consumidor não deve ser tratado como um criminoso, mas como alguém que se sujeita deliberadamente a um comportamento de risco. Risco da sua escolha e do qual se torna a principal vítima”. Assim, abordando a discussão sobre a autolesão, anotou que, “Se um indivíduo, na solidão das suas noites, bebe até cair desmaiado na cama, isso não parece bom, mas não é ilícito. Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, tampouco parece bom, mas não é ilícito. Pois digo eu: o mesmo vale se, em lugar de beber ou consumir cigarros, ele fumar um baseado. É ruim, mas não é papel do Estado se imiscuir nessa área”.
Quanto à questão da autonomia individual, “o indivíduo que fuma um cigarro de maconha na sua casa ou em outro ambiente privado não viola direitos de terceiros. Tampouco fere qualquer valor social. Nem mesmo a saúde pública, salvo em um sentido muito vago e remoto”.
No que tange ao princípio da proporcionalidade, esclareceu que “O principal bem jurídico lesado pelo consumo de maconha é a própria saúde individual do usuário, e não um bem jurídico alheio. Aplicando a mesma lógica, o Estado não pune a tentativa de suicídio ou a autolesão. Há quem invoque a saúde pública como bem jurídico violado. Em primeiro lugar, tratar-se-ia de uma lesão vaga, remota, provavelmente em menor escala do que, por exemplo, o álcool ou o tabaco. Em segundo lugar porque, como se procurou demonstrar, a criminalização termina por afastar o usuário do sistema de saúde, pelo risco e pelo estigma. De modo que pessoas que poderiam obter tratamento e se curar, acabam não tendo acesso a ele. O efeito, portanto, é inverso. Portanto, não havendo lesão a bem jurídico alheio, a criminalização do consumo de maconha não se afigura legítima”.
Conclui o e. Ministro que “A forte repressão penal e a criminalização do consumo têm produzido consequências mais negativas sobre a sociedade e, particularmente, sobre as comunidades mais pobres do que aquelas produzidas pelas drogas sobre os seus usuários”.
De igual modo, defendeu a adoção de critérios objetivos para a distinção entre o usuário e o traficante, fundados no peso e na natureza da droga apreendida. Demonstrou preferência pela fixação do critério quantitativo em 40 gramas. Porém, propôs 25 gramas como possível denominador comum das diferentes posições do Tribunal.
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CAPÍTULO III - POR QUE NÃO DESCRIMINALIZAR
3.1 Dados recentes sobre o consumo de drogas no país
A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), em parceria com diversos centros de pesquisa, no I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2001 nas 107 maiores cidades do país, apurou que, entre pessoas com idade de 12 a 65 anos de ambos os sexos, 19,4% delas já haviam feito uso na vida de drogas, o que correspondia a 9.109.000 pessoas.
Em 2005, no II Levantamento, esse número subiu para 22,8%, correspondendo a 10.746.991 pessoas.
O uso na vida de maconha em 2005 apareceu em primeiro lugar entre as drogas ilícitas, com 8,8% dos entrevistados, aumento de 1,9% em relação a 2001.
A segunda droga com maior uso na vida (exceto tabaco e álcool) foram os solventes (6,1%), com aumento de 0,3% em relação a 2001, porcentagem superior à de países como Espanha (4,0%), Bélgica (3,0%) e Colômbia (1,4%).
Em relação à cocaína, 2,9% dos entrevistados declararam ter feito uso na vida, um aumento de 0,6% em relação a 2001.
Em 2010, a SENAD, realizando uma pesquisa com estudantes dos ensinos fundamental e médio das redes pública e privada, em 27 capitais brasileiras, apurou que houve um aumento significativo do consumo de maconha e cocaína, revelando um padrão de consumo de drogas semelhante ao dos estudantes norte-americanos.
A Organização das Nações Unidas, no ano de 2012, divulgou um relatório elaborado sobre o consumo de drogas, segundo o qual o Brasil é um país vulnerável ao tráfico de cocaína, devido à sua localização geográfica. Citando dados da SENAD, o estudo indicou que 3% dos estudantes universitários, de todas as idades, usavam cocaína.
No período de junho de 2012 a julho de 2013, o INPAD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas) realizou um estudo abrangendo todas as regiões do Brasil com 3.142 famílias de dependentes químicos em tratamento. O II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (II LENAD), realizado recentemente pelo INPAD, estimou que existe na população cerca de 5,7% de brasileiros que são dependentes de álcool e/ou maconha e/ou cocaína, representando mais de 8 milhões de pessoas. Este levantamento também estimou que os domicílios no Brasil são compostos por uma médiade 3,5 pessoas. Tendo em vista estas informações, estima-se que pelo menos 28 milhões de pessoas vivem hoje no Brasil com um dependente químico�.
Considerando esse número já alarmante, eventual descriminalização certamente elevá-lo-á ainda mais, passando a abranger também muitos daqueles indivíduos que antes, por questões morais, não se permitiam infringir a lei.
3.2 Inexistência de autolesão
As pessoas buscam as drogas pelos mais diversos motivos, tais como dificuldade financeira, falta de perspectiva de vida, má influência, curiosidade, diversão, desespero, etc.
A verdade é que é inerente ao ser humano a busca pelo prazer e pelo alívio da dor.
O problema surge porque, em que pesem as opiniões em sentido contrário, o porte de entorpecente para consumo pessoal não se restringe à autolesão. Não se pode olvidar que o poder destrutivo das drogas ultrapassa a figura do usuário, alcançando sua família e a sociedade como um todo.
Segundo Pratta�, o uso abusivo das drogas é 
(...) um problema proeminente e abrangente, a nível mundial, envolvendo diversas instâncias e caracterizando-se como um grave problema social e de saúde pública. Quando este fenômeno ocorre, os pais são os que mais se preocupam, mas ele tem um impacto sobre o ciclo vital da família, podendo levar ao ‘congelamento’ da passagem de uma fase para outra do ciclo vital. Poucos fenômenos sociais acarretam em mais custos com justiça e saúde, dificuldades familiares e notícias na mídia do que o uso de álcool e drogas.
Quando o usuário é um dos progenitores, observa-se um aumento de ansiedade nos filhos, dentro e fora de casa, pois nunca sabem o que pode acontecer quando o pai ou a mãe chegar. “Será que chegará bem ou sob o efeito da droga?” Essa imprevisibilidade deixa todos na casa em alerta, gerando um grande estresse que pode acarretar dificuldades, a começar pela aprendizagem, porque a ansiedade dificulta a concentração da criança ou do jovem, até o relacionamento social, com manifestações de agressão ou isolamento�.
Assim, é indiscutível que a família sofre tanto quanto o usuário com o problema, seja porque se compadece da situação de degradação em que se encontra o ente querido, seja porque comumente tem seus pertences subtraídos para custear o vício, seja porque frequentemente é vítima de agressões de toda a ordem por parte do dependente químico. 
Isso porque a droga está intimamente ligada à violência. “Um exemplo disso é a banalização da vida humana quando comparada a uma dívida de drogas, vida esta que automaticamente se torna propriedade do traficante credor da dívida”. Ademais, “A violência urbana causada pela luta desesperada de usuários e usuários dependentes, sedentos por uma miséria que lhes acalente a dor da abstinência, ocasiona a perpetração de crimes de todas as espécies”�.
A respeito do tema, Andrey Borges de Mendonça e Paulo Roberto de Galvão de Carvalho� asseveram que 
(...) é uma falácia imaginar que no porte de droga para consumo pessoal haveria lesão apenas ao bem jurídico do usuário e que o único interesse lesionado seria o seu. Há, em verdade, um evidente perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, de natureza difusa, ou seja, titularizado por toda a sociedade, que é a saúde pública. Afirmar-se o contrário é esquecer que o ser humano não é uma ilha, como já se disse, e, assim, relaciona-se com os demais indivíduos em sociedade. Não bastasse a lesão à saúde pública, outros bens jurídicos – também caros ao Estado – são lesionados, ao menos indiretamente. Não se pode perder de vista, por exemplo, os prejuízos que um dependente causa a qualquer estrutura familiar, por mais solidificada que seja.
E como bem analisa o professor Renato Brasileiro�,
Por mais que o agente traga a droga para consumo pessoal, não se pode perder de vista que sua conduta coloca em risco a saúde pública, porquanto representa um risco potencial à difusão do consumo de drogas. De mais a mais, mesmo que indiretamente, outros bens jurídicos além da saúde pública são lesionados em virtude dessa conduta. Com efeito, não é incomum que o usuário-dependente pratique outros crimes para sustentar seu vício. Ademais, a aquisição de drogas por parte do usuário serve como forte estímulo para a prática do tráfico de drogas. Noutro giro, por mais que seja verdade que a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal não venha surtindo o efeito desejado, nem por isso se pode cogitar da possibilidade de renunciarmos à tutela do direito penal para coibir tal conduta. Fosse assim, condutas delituosas diversas como homicídios, latrocínios e roubos também deveriam ser descriminalizadas, porquanto a utilização do direito penal como instrumento para coibir tais condutas delituosas também não vêm surtindo os efeitos desejados, infelizmente. 
De outra parte, não há que se falar em violação ao Princípio da Alteridade. Fernando Capez� leciona que
O princípio da alteridade ou transcendentalidade proíbe a incriminação de atitude meramente interna do agente e que, por essa razão, só faz mal a ele mesmo e a mais ninguém. Sem que a conduta transcenda a figura do autor e se torne capaz de ferir o interesse do outro (altero), é impossível ao direito penal puni-la. O princípio da alteridade impede o direito penal de castigar o comportamento de alguém que está prejudicando apenas a sua própria saúde e interesse. Com efeito, o bem jurídico tutelado pela norma é sempre o interesse de terceiros, de forma que seria inconcebível, por exemplo, punir um suicida malsucedido ou um fanático que se açoita. É por isso que a autolesão não é crime [...] no delito previsto no art. 28 da Lei 11343/2006 poder-se-ia alegar ofensa a esse princípio, pois quem usa droga só está fazendo mal à própria saúde, o que não justificaria uma intromissão repressiva do Estado [...] tal argumento não convence. A lei em estudo não tipifica a ação de usar a droga, mas apenas o porte, pois o que a lei visa é coibir o perigo social representado pela detenção, evitando facilitar a circulação da droga pela sociedade, ainda que a finalidade do sujeito seja apenas a de consumo pessoal. Assim, existe transcendentalidade na conduta e perigo para a saúde da coletividade, bem jurídico tutelado pela norma do art. 28. [...] é exatamente por isso que a lei não incrimina o uso pretérito (desaparecendo a droga, extingue-se a ameaça).
3.3 Descriminalização: nem justiça nem saúde
Não se desconsidera a importância da discussão que alguns setores da sociedade trouxeram à tona ao encabeçarem uma campanha nacional pela descriminalização do uso de drogas, pois, afinal, algo realmente precisa mudar.
Todavia, considerando a precária situação da saúde no país, as lacunas do sistema e o fraco trabalho em rede desempenhado, entre outros entraves, a descriminalização, neste momento, traria prejuízos e efeitos nefastos ao Brasil.
Muito se fala a respeito das experiências obtidas por outros países. Contudo, vale lembrar que os benefícios colhidos com a política sobre drogas de determinados países não se deram com a descriminalização, mas com uma ampla e coesa política de saúde pública, bem como com uma integrada e eficaz rede pública, privada e comunitária de prevenção, tratamento e reinserção social.
A Holanda e o Reino Unido, por exemplo, optaram pela despenalização (não cabimento de prisão a usuários) e desenvolveram iniciativas precursoras do modelo de redução de danos, que se consolidou, na década de 1990, pelo impacto produzido na prevenção de transmissão do HIV/AIDS entre usuários de drogas injetáveis (UDI)�.
Particularmente, a Holanda iniciou sua política de liberação do consumo de maconha e haxixe em determinados locais, aliada ao sistema de redução de danos, entre outras medidas. Embora o programa tenha apresentado pontos positivos, o número de usuários de drogas cresceu consideravelmente até meados da década de 80 (de 15% para 40%, aproximadamente), quando a parábola começou a abaixar graças a um maciço programa de controle do governo. Levando

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