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1 KONDER, Leandro. “Marx e a Sociologia da Educação”. In: TURA, M. de L. R. (Org). Sociologia para Educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2004. pags. 11- 24. Marx e a sociologia da educação I Uma das dificuldades que aparecem no nosso caminho quando nos dispomos a abordar as ideias do pensador alemão Karl Marx (1818-1883) está no fato de que poucas pessoas assumem que não conhecem nada sobre a filosofia dele e muita gente acha que conhece "alguma coisa" a respeito do famoso autor de O capital. Marx se tornou uma celebridade, é difícil encontrar quem o desconheça totalmente. Transformado em guru do movimento comunista mundial, em ícone dos partidos socialistas, sua imagem de olhar enérgico e barba hirsuta ficou associada à crítica radical do capitalismo e à mobilização revolucionária dos trabalhadores. Algumas das suas frases - ou de frases atribuídas a ele - têm sido repetidas ad nauseam: "Proletários de todos os países, uni-vos"; "Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo, trata-se, porém, de transformá-lo", "Transformar a classe em si em classe para si"; "Ser radical é pegar o problema pela raiz", etc. No entanto, apesar dessa difusão fragmentária de determinados aspectos do seu pensamento, a vasta e complexa obra de Marx é muito mal conhecida. O que as pessoas pensam que sabem nem sempre é exato e muitas vezes não é decisivo. O alcance de uma idéia, suas implicações e conseqüências dependem da sua articulação com outras idéias. Posso estar familiarizado com uma afirma- ção e, no entanto, avaliá-la mal, porque ignoro sua conexão com pressupostos que lhe dão um sentido que me escapa. Na acolhida que os escritos de Marx tiveram após sua morte, a dimensão filosófica do seu pensamento ficou, em geral, bastante prejudicada. A dialética foi posta de lado e os dirigentes, ativistas e militantes do movimento socialista fizeram dos textos do autor de A miséria cia filosofia uma leitura que combinava as suas teorias (sobretudo sua concepção do homem e sua concepção da história) com teorias evolucionistas, positivistas, economicistas e cientificistas. Friedrich Engels, o maior amigo de Marx, ainda viveu cerca de 12- anos após a morte do autor do Dezoito Brumário. Tentou evitar algumas das conseqüências mais desastrosas do empobrecimento teórico da dimensão dialética do pensamento de Marx, porém nem sempre conseguiu escapar incólume, ele mesmo, à pressão deformadora das ideologias daquele tempo. Seguiu, por exemplo, uma linha de pensamento que se empenhava em fundar a dialética humana sobre a dialética da natureza. 2 As condições históricas e culturais da passagem do século XIX ao século XX permitiram ao movimento operário e sindical na Europa alcançar algumas conquistas significativas, porém também trouxeram muitas frustrações. Depois, ao longo do século XX, o quadro se tornou ainda mais frustrante. Difundiu-se a imagem de um Marx "cientista", sério, de um lado, e a imagem de um revolucionário disposto a tudo para realizar seu programa radical e saudar o advento do comunismo, de outro. Em ambas as imagens "cristalizadas", aparecia um Marx "reduzido", ao qual faltava algo importante, que não se sabia bem o que era. Havia os que salientavam a força das concepções teórico-políticas de Marx, presentes no Manifesto comunista; os que sublinhavam a consistência da análise crítica da economia política e do modo de produção capitalista, desenvolvida n' O capital; e até os que chamavam a atenção para o vigor do historiador político e social de As lutas de classe na França de 1848 a 1850 e de O Dezoito Brumário de Luís Napoleão. O que faltava era a percepção da importância decisiva da perspectiva filosófica de Marx. Marx fez um doutorado em filosofia. Defendeu em 1841 uma tese sobre a diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro. Ao longo de seus estudos em Berlim, devorou os escritos de Hegel, comparou-os à mitológica harpa de Éolo: "As harpas ordinárias soam quando são tocadas por qualquer mão. A harpa de Éolo só soa quando é golpeada por uma tempestade." A filosofia de Hegel lhe pareceu ser a única capacitada para reconhecer "a rosa da razão na cruz do presente". Foi hegeliano até 1843. Impossibilitado de tornar-se professor universitário por causa da onda de repressão que varreu a Prússia em 1841, virou jornalista. E foi como redator-chefe do Jornal Renano que se deu conta de que mestre Hegel tinha uma concepção equivocada a respeito de um ponto crucial: o Estado. Hegel via o Estado como o lugar onde a razão haveria de prevalecer em meio aos conflitos de interesses particulares, típicos da "sociedade civil". Marx convenceu-se de que o Estado era também parte dos conflitos e jamais funcionaria efetivamente como lugar da razão. A partir dessa divergência, Marx passou a elaborar sua própria concepção da história e sua própria concepção do homem. Ocupou-se - intensamente - de questões filosóficas. Refletiu, criticamente, sobre o Estado, observando: "O Estado é abstraio, só o povo é concreto." Para sobreviver, o povo tem que consumir; e para consumir é preciso produzir. É em torno da produção que se organiza a sociedade. Uma minoria privilegiada se apropria dos grandes meios de produção e usa o Estado para legitimar a ordem que lhe permite explorar o trabalho alheio. "Qual é o poder do Estado político sobre a propriedade privada?", se pergunta o jovem 3 Marx. E responde: "é o próprio poder da propriedade privada". Como intelectual de gabinete, que via a dinâmica da sociedade de um ângulo ainda contemplativo, Hegel não se deu conta de que "o homem não é um ser abstraio, situado fora do mundo". São os homens que criam o Estado, são eles que se acham na origem da propriedade privada, na raiz da invenção das instituições. Se quisermos compreender o Estado e a propriedade privada, temos de ser radicais, dizia Marx. E acrescentava: "Ser radical é pegar o problema pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem." Ficava no ar a pergunta: o que é o homem ? II Em 1844, Marx, recém-casado, instalou-se em Paris, como diretor de uma revista. Enquanto tentava salvar a publicação do naufrágio (que acabou acontecendo), elaborou sua concepção do homem. Essa concepção foi desenvolvida em polêmica com os economistas clássicos ingleses e o filósofo alemão Hegel. Em ambos os movimentos, reconhecia-se a centralidade do trabalho na história dos povos, porém o trabalho, em si mesmo, ainda era pensado um tanto abstratamente. Marx se aproximou dos trabalhadores, entrou em contato com as organizações clandestinas de operários rebeldes: convenceu-se de que o trabalho humano era uma atividade peculiar que se distinguia de todas as demais atividades realizadas por todas as espécies animais. O trabalho humano foi reconhecido como o núcleo de uma atividade teleológica, a primeira atividade pela qual o sujeito se contrapunha ao objeto. Segundo Marx, o ser propriamente humano não preexistiu a essa atividade e não poderia ser conhecido antes de passar a existir como tal (e de se expressar nela). O homem é o sujeito ativo e criativo que existe se modificando, se superando, e só podemos nos aproximar dele através do que ele faz. O trabalho é a forma inicial - e persistente - da capacidade que os homens têm de agirem como homens. A atividade que assume a forma pioneira do trabalho e depois se diversifica é o que Marx chama de práxis. Por meio do trabalho, inicialmente, e em seguida também pelas atividades criativas que desenvolve, o homem faz-se a si mesmo. Marx, filósofo do trabalho, decidiu ser igualmente o filósofo dos trabalhadores. Sua disposição era a de contribuir para a mobilização dos trabalhadores numa luta incansável para promover a superação da sociedade burguesae para acabar com o modo de produção capitalista. A seu ver, cabia ao proletariado, em sua práxis revolucionária, atuar como o portador material de uma transformação social que lhe interessava diretamente, mas interessava também ao conjunto da sociedade. Para essa atuação, a classe 4 operária precisava esclarecer-se a si mesma no plano teórico, paralelamente às ações que empreendia no plano prático. Precisava aprender que a práxis não é toda e qualquer atividade prática: é a atividade de quem faz escolhas conscientes e para isso necessita de teoria. O conceito de práxis foi reconhecido por diversos teóricos marxistas importantes como o conceito fundamental da filosofia de Marx. É ele que está na base da concepção do homem que o pensador alemão desenvolveu nos Manuscritos parisienses de 1844 e nas Teses sobre Feuerbach. Apoiado nele, Marx repele sistematicamente tanto a perspectiva idealista, que superestima o papel das idéias e da consciência nas ações históricas dos homens (subestimando a força do condicionamento material) como a perspectiva materialista, que minimiza (ou até ignora) a importância da intervenção dos sujeitos humanos na constante modificação da realidade objetiva (e deles mesmos). A partir de um certo nível da experiência do conhecimento, ou o sujeito participa ativamente do movimento que lhe revela o real ou escorrega para uma posição contemplativa que lhe impossibilitará o aprofundamento no conhecer. Como adverte Marx: "Os filósofos têm se limitado a interpretar o mundo de diversas maneiras; trata-se, entretanto, de transformá-lo." O indivíduo isolado, privado da experiência da ação coletiva, pode crer numa pretensa "neutralidade", numa suposta "isenção", quando observa os problemas humanos de um ângulo que se imagina imune às pressões das tendências conflitantes. O fato de instalar-se na posição de sujeito individual isolado, porém, empobrece e estreita seus horizontes, priva-o dos estímulos do intercâmbio proporcionado pelo agir conjuntamente e resulta numa impregnação de seus valores e de seus critérios por distorções ideológicas. Numa sociedade marcada pela divisão social do trabalho, pela luta de classes, pela generalização da produção de mercadorias, pela hipercompetitividade, a ideologia, com suas distorções, se impõe à construção do conhecimento. A possibilidade de atenuar seus efeitos e fazê-la recuar depende da participação consciente do sujeito no movimento histórico que se realize em direção à superação prática da alienação. A ideologia, como conseqüência da alienação, só pode ser superada em suas raízes por meio de uma transformação desalienadora, prática, capaz de mudar as condições sócio-econômicas, de modo a permitir que os produtores em geral possam se reapropriar de todas as suas produções. Nas condições atuais, com o modo de produção capitalista, os trabalhadores não são donos daquilo que produzem. Antes mesmo de ser formado, de começar a existir, o objeto fabricado já pertence ao dono da máquina, ao 5 proprietário da matéria-prima, quer dizer, ao patrão (e não ao operário). O criador, na indústria, sob o domínio do capital, não pode se reconhecer, de fato, na criação. Obrigado a vender no mercado sua força de trabalho, o homem-trabalhador está, realmente, alienando sua criatividade; e isso afeta a sociedade inteira. Como, porém, essa criatividade essencial não pode ser completamente erradicada da humanidade, os seres humanos tendem a se insurgir - quando possível - contra os mecanismos da opressão e da exploração capitalista. Da concepção do homem de Marx decorre, então, uma clara incompatibilidade entre seu ponto de vista e o ponto de vista dos sociólogos "clássicos" do século XIX. Marx recusa tanto o subjetivismo dos teóricos que atribuem aos sujeitos humanos superpoderes como o objetivismo dos teóricos que reduzem os sujeitos humanos a meros "produtos do meio" ou das circunstâncias. Para ele, os homens, ao serem observados pelos cientistas, jamais poderão ser corretamente conhecidos se forem reduzidos a "fatos", a "dados" ou a "coisas". O homem é o sujeito da práxis, existe se inventando a si mesmo, num movimento incessante, sempre condicionado -necessariamente - pela situação em que se encontra no ponto de partida; mas sempre capaz de tomar iniciativas e projetar sua ação, impondo - até certo ponto livremente - limites ao condicionamento necessário. A rigor, não há resposta conclusiva para a indagação "o que é o homem?". Por sua atividade criativa, surpreendente, o homem nos escapa, porém ao mesmo tempo se revela: podemos conhecê-lo pelo que ele faz, por suas ações. O plano em que o ser humano age, faz suas escolhas, expressa mais significativamente sua práxis, é o plano da história. Impõe-se, aqui, portanto, a pergunta: para Marx, o que é a história? III Para poder desenvolver sua concepção da história, Marx assumiu uma incisiva posição de combate à sociedade burguesa. Ele queria entender: por que o trabalho, que foi a forma básica da atividade pela qual os homens se tornaram homens (o "caroço" da práxis), acabou se transformando nessa realidade opressiva, sufocante, que conhecemos hoje? Procurando formular sua explicação para este fenômeno, Marx se dispôs a investigar como se deu a divisão social do trabalho num passado muito remoto, através da escravidão (cf. A ideologia alemã). Concentrou-se, em seguida, no exame da forma assumida pela divisão social do trabalho no capitalismo. E se convenceu de que, ao longo da história das sociedades divididas em classes, apesar do desenvolvimento das forças produtivas, apesar do progresso 6 tecnológico, a exploração da força humana de trabalho tem se refinado, tem se sofisticado e tem até mesmo se tornado mais aguda. Esse processo é sutil; para perceber seus efeitos em todo o alcance perverso deles é preciso enxergar a história de um ângulo resolutamente crítico. É preciso não se deixar impressionar demais com o discurso dos grandes personagens históricos e observar como funcionam as condições materiais de existência em cada sociedade. O pensamento, em si, pode influir nas convicções das pessoas, porém, não tem o poder de desencadear e decidir os rumos das mudanças práticas, sócioeconômicas. Marx escreveu: "as idéias nunca podem executar coisa alguma; para a execução das idéias são necessários seres humanos que ponham em ação uma força prática" (A Sagrada Família). Não há sociedade que não consuma, para sobreviver. E, para consumir, ela precisa, de algum modo, produzir. Nas sociedades divididas em classes, os que possuem os grandes meios de produção exploram os que produzem. A história, então, tem sido a história das lutas de classes, de um conflito explícito ou implícito entre os detentores do poder e da riqueza e os excluídos. Os de "cima" usam o aparelho do Estado e tiram proveito da ideologia dominante (conservadora) para controlar a sociedade e para atenuar e neutralizar as expressões mais agudas do inconformismo dos de "baixo". Em A miséria da filosofia, Marx esclareceu alguns aspectos dos desdobramentos da sua concepção da história, advertindo que "as relações de produção de toda sociedade formam um todo". Esse todo é marcado pela contradição interna (a luta de classes) e por uma dinâmica autotransformadora incessante, que abrange todas as coisas. Tudo muda, nada escapa ao movimento das transformações sociais, mas os detentores do poder agem sempre no sentido de promover as mudanças adaptativas que servem para preservar o essencial do sistema (do "todo") e no sentido de evitar mudanças sociais mais profundas, que possibilitariam uma transformação revolucionária da própria estrutura da sociedade. A perspectiva de Marx era a de uma decidida solidariedadecom os trabalhadores. A seu ver, a modificação na correlação de forças e a vitória dos de "baixo" dependiam do aumento da participação ativa e consciente do povo no movimento da história. E dessa modificação dependia a criação do comunismo, isto é, de "uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e aplicam suas numerosas forças individuais de trabalho, com plena consciência do que estão fazendo, como uma grande força de trabalho social" (O capital, vol. I). Marx dizia que não pretendia descrever como seria o comunismo porque não 7 tinha a veleidade de "preparar receitas para os caldeirões do futuro". No entanto, para não deixar dúvidas quanto à insuficiência de uma concepção do comunismo que o reduzisse à mera reorganização do trabalho, o pensador alemão falou numa "passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade"; e afirmou que essa passagem deveria se realizar fora do espaço comprometido com a disciplina do trabalho. Escreveu: "O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho, que é determinado pela necessidade e pela finalidade exteriormente fixada. Por sua própria natureza, portanto, o reino da liberdade fica além da esfera da produção material" (O capital, vol. III). Para alcançá-lo, os seres humanos não só vão ter de humanizar as condições de trabalho como vão ter de reduzir a jornada de trabalho. Essa concepção da passagem do reino da necessidade ao reino da liberdade é uma característica importante do humanismo de Marx e influi, poderosamente, em sua filosofia da educação. IV Marx desprezava, ostensivamente, o discurso daqueles que propunham a educação corno atividade capaz de promover por si mesma a transformação necessária da sociedade. Para ele, a atividade do educador era parte do sistema, e portanto não podia encaminhar a superação efetiva do modo de produção entendido como um todo. O educador não deveria nunca ser visto como o sujeito capaz de se sobrepor à sua sociedade e capaz de encaminhar a revolução e a criação de um novo sistema. A atividade do educador tem seus limites, porém é atividade humana, é práxis. É intervenção subjetiva na dinâmica pela qual a sociedade existe se transformando. Contribui, portanto, em certa medida, para o fazer-se da história. Aos que pretendem entender o processo histórico a partir das ações dos educadores, Marx lembra que o educador também é educado: antes de exercer sua influência formadora, ele próprio é formado pelo sistema no qual está inserido. É o que se lê na terceira das "Teses sobre Feuerbach": "A doutrina materialista da produção de efeitos transformadores pelas circunstâncias e pela educação esquece que os seres humanos transformam as circunstâncias e os próprios educadores precisam ser educados." O homem não é um produto do meio, nem é o resultado das lições que lhe são ministradas em casa ou na escola. Para compreender o ser humano em sua atividade é imprescindível entender em que condições materiais ele está agindo, quais são as questões concretas a que ele está respondendo; mas não basta 8 conhecer o condicionamento objetivo da sua ação, é preciso entender o sentido das suas iniciativas, o movimento subjetivo que ele realiza. Uma vez realizado esse movimento, ele pode ser compreendido em seu sentido histórico, um senti- do que nunca é inteiramente predeterminado. Marx não escreveu especificamente sobre educação, não extraiu as conseqüências da sua concepção do homem e da sua concepção da história para os socialistas enfrentarem os problemas da área da educação. Algumas conclusões, entretanto, nos parecem claras a respeito dos desdobramentos das suas idéias nas batalhas travadas pelos educadores socialistas. Uma primeira conclusão é de caráter negativo: as instituições de ensino não são o lugar a partir do qual pode se desencadear a transformação revolucionária da sociedade como um todo. A escola não deve ser encarada como o centro irradiador do processo da revolução. Segue-se, contudo, imediatamente, outra conclusão: a educação, a formação de quadros, constitui um campo de batalha importante, onde se pode inculcar hábitos conservadores, cultivar tendências conservadoras, acomodatícias, resignadas ou meramente pragmáticas, mas onde se pode também fortalecer disposições críticas, estimular o inconformismo e a inquietação, incentivar o desenvolvimento da capacidade questionadora. Nas instituições educacionais pode prevalecer tanto a formação de súditos como a formação de cidadãos. O educador, no diálogo com seus alunos, precisa lhes transmitir não só conhecimentos, mas também convicções. E, complementando seu assumido senso crítico, o educador socialista deve estar atento para o que lhe vem do lado dos seus interlocutores e que o auxilia em seu esforço de não perder seu senso autocrítico. A experiência nos ensina que, se não levássemos em conta o que nos dizem os outros, não teríamos suficiente capacidade autocrítica e jamais poderíamos adotar o lema de Marx: "de omnia dubitandun" (duvidar de tudo). Marx indicou esse lema na resposta que deu à pergunta de uma das suas filhas, preenchendo um caderno-questionário, numa brincadeira que estava na moda. Sabemos, porém, que o lema citado correspondia ao ideal da sua convicção. Já na juventude, quando se preparava para ir para Paris, em 1843, ele escreveu a um amigo que a revista que os dois pretendiam fundar deveria ter como princípio programático a "critica implacável a tudo que existe". No entanto, Marx tinha plena consciência dos limites de uma atitude de puro ceticismo. O cético não pode levar às últimas consequências seu ceticismo, porque até para não acreditar o sujeito precisa acreditar que não está acreditando. O caminho, então, seria o de exercer a dúvida radical, sim, mas em conexão com a inserção da pessoa no movimento da história, através da práxis, da 9 cidadania. Essa inserção não se faz sem convicções, sem valores. Quem não crê em nada, não tem por que empreender coisa alguma. Na atividade do educador - essencial a todas as sociedades -a perspectiva de Marx nos leva a observar, por conseguinte, os dois pólos: o da afirmação de valores e o da reflexão crítica/autocrítica; o das convicções e o das dúvidas. A educação, no âmbito do esforço daqueles que lutam por uma democratização mais efetiva da sociedade, deve passar continuamente de um pólo ao outro. Se estacionar no primeiro, coagula os valores, ossifica-os, engessa-os e atrela a práxis a dogmas. Se ficar girando exclusivamente em torno do segundo, esvazia a práxis, emperra-a, prende-a num círculo vicioso, transforma-a num jogo estéril. Ainda podemos falar numa terceira conclusão no que concerne aos desdobramentos das idéias de Marx no âmbito da educação. Reconhecida a conexão dinâmica entre a ação confiante e a reflexão desconfiada, não podemos deixar de lembrar a advertência que o filósofo nos faz nas "Teses sobre Feuerbach" sobre os impasses a que chega a teoria quando lhe falta modéstia metodológica e ela pretende resolver questões que vão além da sua competência. Em suas palavras: "toda vida social é essencialmente prática". "A questão de saber se a verdade objetiva é acessível ao pensamento humano não é uma questão de teoria e sim uma questão prática." E depois: "A controvérsia sobre a realidade ou irrealidade do pensamento - isolado da práxis - é um problema escolástico." V Não há, nos escritos de Marx, algo que se possa designar como uma sociologia da educação. No entanto, o Marx filósofo, na sua concepção da história e na sua concepção do homem, faz observações que têm desdobramentos de grande importância na educação e não podem ser subestimados por nenhum educador disposto a refletir seriamente sobre suaatividade. Embutida na sua concepção do homem e da história, como uma dimensão inerente à práxis, a educação em Marx é pensada filosoficamente como uma atividade essencial à dinâmica das sociedades. Só podemos entendê-la como espaço permeado de choques, de conflitos, marcado pela colisão de valores, interesses e convicções que correspondem às perspectivas distintas - e muitas vezes inconciliáveis - dos grandes grupos humanos (as classes sociais) que exercem maior influência na formação das pessoas.
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