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ALINE BRAMBILLA YAMAGUTI EDUARDO FERNANDO LACHIMIA FILHO IGOR VIEIRA DOS SANTOS KELLY FERNANDA MIRANDA DE ANDRADE OS LAUDOS ANTROPOLÓGICOS NO RECONHECIMENTO DA POSSE DAS TERRAS DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS. LONDRINA 2018 ALINE BRAMBILLA YAMAGUTI EDUARDO FERNANDO LACHIMIA FILHO IGOR VIEIRA DOS SANTOS KELLY FERNANDA MIRANDA DE ANDRADE OS LAUDOS ANTROPOLÓGICOS NO RECONHECIMENTO DA POSSE DAS TERRAS DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS. Trabalho Avaliativo apresentado ao curso de Direito da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à aprovação na Disciplina de Antropologia. Orientador: Profª. Dr. Giovanni Cirino. LONDRINA 2018 SUMÁRIO 1 A PERÍCIA ANTROPOLÓGICA ................................................................... 3 2 O LAUDO ANTROPOLÓGICO .................................................................... 5 3 OS LAUDOS ANTROPOLÓGICOS NO RECONHECIMENTO DA POSSE DAS TERRAS DAS COMUNIDADES REMANESCENTE DE QUILOMBOS. ..... 6 4 BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 10 3 1 A PERÍCIA ANTROPOLÓGICA Consolidando-se principalmente nas últimas décadas, a perícia antropológica tornou-se um campo de trabalho para diversos antropólogos e mudou a forma como a pesquisa de campo é vista, desenvolvida e desempenhada. A partir de Constituição de 1988 pode-se dizer que houve um grande estreitamento de relações entre os operadores do Direito e Antropólogos, os quais passaram a unir forças para entender e buscar a garantia de direitos para minorias e a pluralidade étnica-cultural do país. Segundo o Código de Processo Civil (CPC), a definição normativa de perícia, a qual basicamente é uma investigação realizada por técnicos acerca de um objeto com a finalidade de esclarecer fatos sobre ele. Segundo Maia, é “a verificação acerca da verdade ou da realidade de certos fatos, quando a prova de tais fatos dependerem de conhecimento técnico ou científico”. Sendo assim, faz-se necessária a perícia antropológica quando os fatos sociais de determinada sociedade necessitam de conhecimento especializado para serem compreendidos. A perícia torna-se imprescindível principalmente quando são debatidos direitos das minorias, onde são questionadas a verdade dos fatos e a realidade de comunidades de índios, quilombolas e ciganos, por exemplo. Nas palavras da antropóloga Ilka Boaventura Leite, quando a perícia antropológica é aplicada ao Direito “[...] é responsável pela identificação de um grupo étnico enquanto tal (índios, quilombolas, ciganos, gerazeiros, populações tradicionais, etc.); pela revelação de seus usos, costumes, tradições, modos de ser, viver, se expressar; pela documentação de sua memória e sua ação (reconstruindo sua trajetória de luta e de vida, de resistências e transformações, de deslocamentos e perdas, de insurgências e ressurgências); delimitação de seu território e de espaços de interação com o meio ambiente ou outras comunidades intraétnicas ou interétnicas (nisso indicando a finalidade prática da identificação da ocupação tradicional). (LEITE, 2005, p.15)” Em suma, a perícia antropológica deve relatar os achados de maneira que possibilite a reconstrução do grupo pesquisado, evidenciando suas perspectivas e visão do mundo social em que estão inseridos. Para Maia, é imprescindível registrar 4 as crenças, costumes, hábitos, práticas, valores, interação com o meio ambiente, ordens internas, hierarquias, fatores de pertencimento dentre outras características intrínsecas a essa comunidade (MAIA, 2015, p. 49). Para Leite, o papel da perícia antropológica “inclui desde patrimônio cultural, questões fundiárias, direitos humanos, justiça, saúde e medicina, passando por políticas públicas, território, nação, etnicidade, violência, conflitos e religião, até movimentos sociais, preconceito racial, gênero, infância, adolescência e pesquisa de campo.” (LEITE, 2015, p. 15). Após todos os devidos estudos, coleta de dados e constatações, a perícia antropológica encerra-se gerando como resultado principal a documentação de todas essas informações em um laudo, documento o qual servirá como referência e embasamento teórico-científico para os juristas relacionados ao caso em questão. 5 2 O LAUDO ANTROPOLÓGICO Laudos Antropológicos nada mais são que documentos os quais servem como meio de constituir provas e legitimar reivindicações: apropria-se de um saber especificado, em diversos usos possíveis que podem ser feitos antropológicos em políticas de reconhecimento de direitos étnicos, onde o cenário é marcado por disputas, contradições e tensões verificados no âmbito da Antropologia e que se refletem na construção dos processos reivindicatórios. A sua grande importância é a transferência de conhecimento histórico e antropológico do especialista, que pode trazer inúmeras vantagens e privilégios aos grupos minoritários que os mesmos se sentem identificados e estão envolvidos. Os laudos têm grande influência no reconhecimento e demarcação de terras indígenas e remanescentes quilombolas. Em uma sociedade democrática, quem tem poder de decidir sobre a demarcação das terras é o judiciário. Então é imprescindível que ao redigirem seus laudos, os antropólogos saibam que os mesmos não serão lidos no meio acadêmico, mas sim por juízes. O grande problema é que os antropólogos não querem dar respostas que os levem a uma área muito limitada da questão que aborda. Porém, eles devem estar cientes que a autoridade que decidirá, é o juiz. O professor Silvio Coelho dos Santos afirma que os antropólogos e os operadores do direito, além de possuir linguajar diferente, também possuem éticas distintas. As diferenças de linguagem estão ligadas ao fato de os antropólogos adotarem a atitude profissional de relativizar tudo, e os operadores do Direito, a de imaginar que a norma jurídica cria a realidade. No campo da ética, os juristas operam com a ideia de que todos podem ser defendidos, não importando o que cometeram. Defender uma pessoa que cometeu um crime hediondo é perfeitamente ético e faz parte da atividade de um advogado. No mundo do Direito, é legítimo defender qualquer pessoa que necessite de defesa e usar todos os argumentos possíveis no processo. Já a atuação pública do antropólogo, por mais que ele seja treinado a relativizar as crenças e os comportamentos, tende a ser pautada por uma ética que se rege pela defesa daqueles que ele acredita terem efetivamente direitos e pela crítica àqueles com cuja atuação não concorda. 6 3 OS LAUDOS ANTROPOLÓGICOS NO RECONHECIMENTO DA POSSE DAS TERRAS DAS COMUNIDADES REMANESCENTE DE QUILOMBOS. Com base em uma reportagem do Jornal Futura, do canal de mesmo nome, sobre como funciona o processo de registro de quilombos no Brasil, destacamos a ênfase do caráter histórico necessário tanto para a certificação de uma comunidade como remanescente de quilombos, quanto para a titulação de posse da propriedade das terras ocupadas por essa comunidade. Cida Abreu, Presidenta da Fundação Cultural Palmares, diz, a partir do minuto 3'48'' do vídeo, resumidamente, como funciona o processo de certificação das comunidades como remanescente de quilombos. Fica claro, em sua fala, a importância do papel da história nesse reconhecimento. Ela diz que apósa comunidade informar essa fundação de que se reconhecem como descendentes de quilombos, é enviado à comunidade uma diligência de antropólogos que irão realizar uma pesquisa que identifique essa comunidade como "historicamente de resistência quilombola". Depois, na fala de Miguel Cardoso, Coordenador de Serviço de Quilombos / INCRA – RJ, sobre o processo de titulação das terras, ele enfatiza a necessidade de uma nova pesquisa antropológica, e que este “laudo comprove alguma referência dessa comunidade a um passado que remeta a escravidão”. Diante disso, podemos perceber a relevância que a história dessas comunidades possui durante esse processo de reconhecimento da posse das terras. Podemos inferir que os antropólogos responsáveis pela elaboração do laudo necessite atribuir muita importância a história dessa comunidade, história essa que só conseguem ter acesso por meio dos relatos dos mais velhos, por meio da história oral. Isso acaba por fazer com que às pessoas envolvidas neste processo, os habitantes das comunidades investigadas, atribuam um papel relevante sobre o caráter histórico destes laudos. É sobre esse aspecto historiográfico atribuído as pesquisas e laudos antropológicos por essas comunidades que trata o texto Estudos Antropológicos nas “Comunidades de Quilombos”: sinais que amplificam a luta por uma vida histórica, vida jurídica”, da antropóloga do Ministério Público Federal, Miriam de Fátima Chagas. Os laudos antropológicos muitas vezes vistos somente como documentos jurídicos que embasam as decisões judiciais a respeito da demarcação de terras para as comunidades indígenas e de remanescentes de quilombos, 7 passam a ter uma nova dimensão para essas comunidades, que é o da sua inserção na História. A autora inicia seu texto tratando sobre a reconfiguração de saberes que a elaboração de uma pesquisa antropológica que objetiva a realização de um laudo pode efetivar nas comunidades estudadas, já que conjuga saberes de várias áreas, além da participação dos integrantes daquela comunidade e militantes de movimentos sociais. Todo o procedimento necessário para a elaboração do laudo acaba por propiciar a escuta daquela comunidade, dando-lhes um papel de protagonismo na construção daquele documento. Os estudos feitos com o objetivo do reconhecimento dos territórios dessas comunidades ganha para aquele grupo um sentido que vai além do da defesa e garantia dos direitos sobre terra onde moram, ganha um sentido de “transmitir”, de “testemunhar” as experiências históricas destas pessoas. Desse modo, as comunidades tem se envolvido na produção destes documentos, pois os consideram como uma forma de reconhecimento, de ver suas visões de mundo, seus problemas e modos como os enfrentam serem expressos em espaços institucionalizados. A autora vê nas comunidades que pesquisou o caráter de “documento decisivo” atribuído aos estudos antropológicos realizados nestes locais. Como coloca uma liderança da Comunidade de Morro Alto, o Sr. Wilson Marques da Rosa: “é uma garantia que não tínhamos”, “antes falávamos entre nós, sozinhos”. (CHAGAS, 2005. p. 72). Os laudos tornam-se, portanto, mais do que um documento jurídico- administrativo destinado ao Estado, mas sim documentos que reconhecem a existência e a historicidade dessas comunidades. Para demonstrar essa dimensão do estudo antropológico para os integrantes das comunidades de remanescentes quilombolas, a autora traz a fala de Diosmar Lopes da Rosa, liderança da Comunidade de Casta, em Mostarda, no Rio Grande do Sul, sobre a publicação em livro de uma pericia antropológica: “Esse livro é o símbolo, é o valor da Casca. Hoje essa comunidade é importante”. Em estudo antropológico realizado entre os anos de 2001 e 2002, na Comunidade de Morro Alto, no Rio Grande do Sul, realizado por uma equipe multidisciplinar de antropólogos, historiadores e uma geógrafa, devido um convênio entre a Fundação Palmares e o Governo do Estado, Chagas (2005, p.73-74) 8 destaca a seguinte narrativa feita pelo Sr. Ermenegildo Manuel da Silva, antes de uma reunião da associação da comunidade: Era o pai do Machado. Era um senhor muito ruim (risos), muito maldoso, então com ele tinha que ser tudo nos trinque, que do contrário não tinha perdão. E tinha um escravo que vivia, que era desse senhor, chamava-se Bastião [...]. Esse Bastião era escravo junto com a minha vovó e a avó do Manoel, que era a mesma, a vovó Teresa, a Floriana. Vovó sempre me contava isso aí muitas vezes. Ela, Floriana e a Libânia, a tia Libânia. Então, de manhã, todos os dias de manhã, levantavam de manhã, tinham que preparar a mesa do senhor este, com todos os conforto, e o Bastião ia pra mangueira tratar de uma vaca, tirar o leite para dar o café para o senhor, o Machado véio, e se passasse do horário ou se fracassasse alguma coisa, a sumanta era bonita. [...] Bastião olhava, cumpria as ordens, mas tava sempre de corpo mole. Segundo dia ele disse assim para as colegas, para a vovó, a falecida Libânia, a falecida Floriana: „Hoje eu vou dar um jeito nesse homem‟ (risos). E eles acharam que era brincadeira. Ele, à noite, tinha pensado: „Vou apagar esse trem aí‟. De manhã, quando foi pra tirar o leite, que tirava o leite que era pra ter o leite quentinho pra servir a mesa do senhor... [...] O senhor achou que ainda não estava a contento e xingou o Bastião. O Bastião olhou para o lado, não tinha ninguém a jeito, assim. Ele olhou pro senhor e o senhor saiu para pegar o crioulo e botar no tronco, colocar na forca [...]. Daí, quando o senhor chegou a se aproximar da porteira, ele puxou uma vara de porteira, tamanho médio, assim, de „guamirim‟. Puxou aquilo ali, botou a vara nas costa e arriou na cabeça do abobado do Machado esse. Ficou só a fotografia do miolo do véio no pau, do senhor na vara de porteira. Ele saiu dali, foi lá na senzala dele, na mesa do senhor: „Eu quero aí a merenda do senhor que eu quero passear, quero dar uma volta‟. „Ah, tu tá louco, Bastião, não faz isso, quer me ver na forca?‟ „Não, aquilo não incomoda mais ninguém, nem vai incomodar mais vocês nem os futuros netos, aquele lá eu matei‟. E assim, ele foi lá na mesa, comeu a merenda do senhor, cumprimentou as colega, a minha avó e as demais todas, abraçou, e nunca mais. Sumiu no mato, meio que nunca... A vovó teve notícias dele muitos anos depois. Teve notícias dele que ele andava muito pras bandas de Rolante. [...] Depois não teve mais notícia, mas em compensação começou a libertação, né? Começou o respeito, que daí começaram a encarar o negro com mais respeito”. (CHAGAS, 2005, p.73-74) Por meio dessas narrativas sobre as memórias da escravidão pode-se verificar as visões de mundo dessas comunidades e comparar a leitura que fazem de sua história frente a história oficial. Outros membros da comunidade de Morro Alto atribuem grande importância a essa narrativa do “nêgo que matou o senhor”, essa narrativa atribui o protagonismo ao negro frente à escravidão, àquele que matou o senhor e foi para o mato, para o quilombo, é o responsável por sua própria liberdade, além de livrar os outros de um senhor maldoso. Essa e outras narrativas expressam o que para os integrantes destas comunidades significa ser quilombola, e como remanescente de quilombos, qual o significado que atribuem a sua origem: o heroísmo daqueles que reagiram frente à humilhação e à subordinação aos senhores e fugiram para tornarem-se livres. Por 9 isso, para eles sua história não esta contada pela história oficial. Esses estudos significam, portanto, mais do que requerer a posse da terra, é incluir-se na história do país, de mostrar seus referenciais de identidade, de contar como se deu a resistênciaquilombola, é a busca de seu protagonismo na história e na luta contra a escravidão. A forma como estes indivíduos encontram para enfrentar esse não- reconhecimento é uma tradição de ajuda mútua, de relações solidárias daqueles que foram “escravos juntos na senzala”, da comunidade que luta junto contra os sofrimentos vividos. Os laudos entram, então, na história dessas comunidades, cujas lideranças apoiam as publicações, como forma de colocar sua existência histórica. Wilson Marques Rosa, líder da Comunidade de Morro Alto traduz essa perspectiva: Estou lutando pela nossa História, raça. Todo mundo é da mesma família. Esse resgate é isso. Escrever uma página na História. A partir desse reconhecimento passamos a ter vida histórica, jurídica. A História do Rio Grande do Sul não pode ser contada sem nos incluir. É isso que a gente quer. (CHAGAS, 2005, p.78) A presença dessas narrativas nos laudos são importantes na medida que fornecem as concepções de justiça, historicidade e territoriedade dessas comunidades remanescentes de quilombos. Os laudos representam, portanto, um documento escrito sobre uma “História apagada” que torna-se, por meio deles, reconhecida. Essas comunidades atribuem, à esses estudos antropológicos, o significado de instrumento de luta, uma forma de reescrever a História, de revertê-la. Os laudos dão a possibilidade de que essas comunidades existam jurídica e também historicamente. 10 4 BIBLIOGRAFIA CHAGAS, Miriam de Fátima. Estudos Antropológicos nas “Comunidades Remanescentes de Quilombos”: sinais que amplificam a luta por uma vida histórica, vida jurídica. In: LEITE, Ilka Boaventura(org.). Laudos Periciais Antropológicos em Debate. Florianópolis: NUER/ABA, 2005. p.71-79. Disponível em: < http://www.abant.org.br/conteudo/livros/laudos.pdf >. Acesso em: 24 de jul. 2018. COMO FUNCIONA O PROCESSO DE REGISTRO DE QUILOMBOS NO BRASIL. Jornal Futura. Canal Futura. 07min. Dublado. Colorido. 26 jun 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZzaVCIFG2lE>. Acesso em: 24 jul. 2018. LEITE, Ilka Boaventura(org.). Laudos Periciais Antropológicos em Debate. Florianópolis: NUER/ABA, 2005. Disponível em: < http://www.abant.org.br/conteudo/livros/laudos.pdf >. Acesso em: 24 de jul. 2018. MAIA, Luciano M. Do papel da perícia antropológica na afirmação dos direitos dos índios. In: SILVA, Alexandra Barbosa (org.). LAUDOS ANTROPOLÓGICOS EM PERSPECTIVA. Brasília- DF: ABA, 2015. p.48-50. Disponível em: < http://www.portal.abant.org.br/livros/Laudos_antropol%C3%B3gicos_em_perspectiva .pdf>. Acesso em: 24 de jul. 2018. SANTOS, Silvio Coelho dos (org.). O índio perante o Direito. Florianópolis: Edufsc, 1982.
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