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Civilizações Clássicas II

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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS IIUNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – UNIJUÍ
VICE-REITORIA DE GRADUAÇÃO – VRG
COORDENADORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA – CEaD
Coleção Educação a Distância
Série Livro-Texto
Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil
2009
Dinarte Belato
CIVILIZAÇÕES
CLÁSSICAS II
EaD Din arte Belato
2
 2009, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 1364
98700-000 - Ijuí - RS - Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
Fax: (0__55) 3332-0216
E-mail: editora@unijui.edu.br
www.editoraunijui.com.br
Editor: Gilmar Antonio Bedin
Editor-adjunto: Joel Corso
Capa: Elias Ricardo Schüssler
Designer Educacional: Jociane Dal Molin Berbaum
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)
Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí
B426c Belato, Dinarte.
Civilizações clássicas II / Dinarte Belato. – Ijuí : Ed.
Unijuí, 2009. – 162 p. – (Coleção educação a distância.
Série livro-texto).
ISBN 978-85-7429-772-9
1. Civilizações. 2. Civilização mediterrânea. 3. Civili-
zações americanas. 4. Civilização romana. I. Título. II.
Série.
CDU : 930
 930.85
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
SumárioSumárioSumárioSumário
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................7
CONHECENDO O PROFESSOR .................................................................................................9
UNIDADE 1 – O MEDITERRÂNEO E SUAS CIVILIZAÇÕES ..............................................11
Seção 1.1 – A civilização grega: o período arcaico ...................................................................20
1.1.1 – A sociedade arcaica .....................................................................................22
1.1.2 – A primitiva sociedade homérica .................................................................23
1.1.3 – Da crise da sociedade arcaica à democracia ateniense
 e à autocracia militar espartana ...............................................................26
1.1.4 – Dracon – 624 a.C. ........................................................................................27
1.1.5 – Sólon – 594 a.C............................................................................................28
1.1.6 – Clístenes e a democracia ............................................................................33
1.1.7 – O conselho dos 500 ou Boulé ....................................................................35
1.1.8 – A assembléia dos cidadãos ou Eclésia ......................................................36
1.1.9 – Os cultos do Estado ....................................................................................36
Seção 1.2 – Esparta: a pólis da disciplina militar .....................................................................37
Seção 1.3 – A maturidade da democracia ateniense – século 5º ............................................39
Seção 1.4 – Crise da democracia ateniense – 431-322 a.C ......................................................48
1.4.1 – A busca de uma solução para a crise .......................................................49
1.4.2 – Xenofonte e Isócrates – a restauração da tradição ................................50
1.4.3 – O realismo político de Aristóteles .............................................................53
Seção 1.5 – Alexandre e a conquista do oriente .......................................................................57
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UNIDADE 2 – A CIVILIZAÇÃO ROMANA ...............................................................................63
Seção 2.1 – Da guerra ...................................................................................................................64
Seção 2.2 – O Lácio e os povos latinos .......................................................................................68
Seção 2.3 – Roma, uma máquina de guerra ..............................................................................68
Seção 2.4 – Os frutos da guerra ...................................................................................................71
Seção 2.5 – A política: uma aristocracia que jamais cede o poder e a riqueza ....................75
2.5.1 – As estruturas políticas ................................................................................76
Seção 2.6 – Nasce a Cives romana ou o Estado romano ........................................................79
Seção 2.7 – Os eixos históricos de uma classe predadora: o butim e a glória ......................80
Seção 2.8 – Os deuses romanos ...................................................................................................82
Seção 2.9 – O cristianismo e o império .......................................................................................87
Seção 2.10 – O legado do cristianismo primitivo ......................................................................89
Seção 2.11 – A escravidão na Grécia e em Roma .....................................................................90
Seção 2.12 – As heranças que nos vêm dos romanos ...............................................................95
2.12.1 – Heranças lingüísticas ...............................................................................95
2.12.2 – Arquitetura e urbanismo ..........................................................................98
2.12.3 – Direito romano ........................................................................................ 100
UNIDADE 3 – AS CIVILIZAÇÕES AMERICANAS .............................................................. 103
Seção 3.1 – Introdução .............................................................................................................. 103
Seção 3.2 – As dimensões civilizatórias da América .............................................................. 110
3.2.1 – Os sistemas alimentares da América ..................................................... 111
3.2.2 – Os sistemas alimentares dos índios brasileiros:
 a civilização emerge na Amazônia ........................................................ 122
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UNIDADE 4 – AS CIVILIZAÇÕES AVANÇADAS DA AMÉRICA ...................................... 131
Seção 4.1 – A geografia do império inca ................................................................................. 135
Seção 4.2 – Os deuses e divindades ......................................................................................... 139
Seção 4.3 – A polêmica da escravidão no império inca ........................................................ 149
Seção 4.4 – Códigos e regulações ............................................................................................. 150
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................... 159
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentação
O Mediterrâneo foi um mar tão importante para as civilizações que em torno dele se
desenvolveram – a grega, a romana e a cristã e, em boa medida, a islâmica – como os Rios
Nilo, Tigre e Eufrates, Indo e Amarelo o foram para as civilizações egípcia, mesopotâmica,
hindu e chinesa. O espaço articulado pelo Mediterrâneo, entretanto, é pobre de recursos
naturais e impôs às sociedades movimentos contínuos de expansão, convertendo-se deste
modo num mar de ligação e de trânsito com todas as demais civilizações: as do Oriente
Médio e Extremo Oriente, as da África e, mais tarde, as da América.
Não é casualque as velhas civilizações do Oriente se tenham expandido pelo mundo,
carregadas pelas civilizações desenvolvidas no Mediterrâneo. É isto, em boa medida, que
explica nossa múltipla herança civilizatória, a que nos vem do Oriente, sobretudo pela via
religiosa do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, e a que nos vem do Mediterrâneo por
meio da Filosofia, do Direito e da política greco-romanas. Insisto neste ponto: é preciso que
reconheçamos as heranças que nos vêm das civilizações mediterrâneas, seja para entender
os fundamentos profundos da civilização contemporânea, seja para criticar-lhe a pretensão
de verdade (religiosa ou científica) única e absoluta.
Reconhecer no presente nossas heranças forjadas no passado talvez nos obrigue a fazer
a crítica de nossas atitudes presentes de auto-suficiência, arrogância e orgulho, tão próprias
da modernidade. Não esqueçamos nunca: todas as vezes que comemos um bocado de pão,
não estamos só nos alimentando, estamos comendo um símbolo universal das condições de
nossa existência cotidiana. Por isso dizemos: “dai-nos o pão nosso de cada dia...” e, quando
trabalhamos duro para sobreviver no dia-a-dia dizemos: “estou ganhando meu pão...”.
Este roteiro de estudo privilegia as duas grandes civilizações do Mediterrâneo: a grega
e a romana. E por ser um roteiro, padece da exclusão de muitos temas e questões importan-
tes de ambas as civilizações. Tive de fazer escolhas, e o critério que as orientou foi a imensa
herança social e política que nos advém dos gregos e romanos. Dos gregos discutiremos
principalmente a herança política, o paradigma da compreensão e do exercício do poder que
está na origem da reflexão científica e filosófica das poleis em particular, Atenas e Esparta.
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Dos romanos abordaremos a construção de um vasto império, movido pela permanen-
te dinâmica de um poder fundado na guerra, na exploração econômica de inúmeros povos
subjugados e na necessidade de construir sistemas jurídico-políticos capazes de lhe oferecer
estabilidade e permanência. Roma, sob este aspecto, é a fonte inspiradora de todos os impé-
rios posteriores, seja o de Carlos Magno, o da Espanha, da França, seja o da Inglaterra ou
dos Estados Unidos da América.
Sobre outros temas não tratados aqui, podemos conversar no decorrer de nossos estu-
dos ou incorporá-los numa agenda futura de estudos e pesquisas.
Estudaremos na seqüência as civilizações americanas, aquelas que os povos da Amé-
rica construíram durante milênios e que foram bruscamente interrompidas com a conquista
e a dominação européia a partir de fins do século 15, quando da chegada das naus de
Cristóvão Colombo.
Nós conhecemos bem a história dos povos americanos sob a dominação européia. E
conhecemos muito mal a história desses mesmos povos antes de tal dominação. As razões
disso são diversas. A primeira delas deve-se ao fato da sistemática destruição da memória, dos
documentos e monumentos das civilizações anteriores. Os missionários europeus, ao erradicar
as crenças religiosas, a organização social e as diversas formas de organização do trabalho
dos povos americanos, destruíram também a sua história, ou, pelo menos, a silenciaram.
Faremos, em razão disso, um grande esforço no sentido de compreender os povos america-
nos em suas trajetórias originais de civilização. Descobriremos, às vezes espantados, que as civili-
zações americanas haviam percorrido algumas, outras estavam percorrendo trajetórias civilizatórias
em nada diferentes das percorridas por mesopotâmicos, egípcios, chineses ou europeus.
Não podemos esquecer em nossos estudos de compreender o quanto somos herdeiros das
civilizações indígenas da América, seja na longa lista de alimentos e bebidas incorporadas ao
nosso cotidiano, seja nos preciosos conhecimentos que nos legaram sobre a flora e a fauna da
América, ou ainda nos preciosos conhecimentos oriundos do manejo de ecossistemas tão diver-
sos como os da Cordilheira dos Andes, das florestas tropicais da Amazônia, das pradarias da
América do Norte ou da incrível capacidade de viver em ambientes tão hostis como os do Ártico.
Quando comeres um pão de milho, um chocolate, um tomate, um bocado de mandioca ou
uma batatinha frita, não te esqueças que aí está representado o “pão nosso” dos povos da Améri-
ca. E não esqueças que o chimarrão, que tanto apreciamos, é uma bebida indígena e guarani.
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Conhecendo o ProfessorConhecendo o ProfessorConhecendo o ProfessorConhecendo o Professor
Dinarte Belato
Nasci em 1943, num pequeno município do norte do Rio Gran-
de do Sul chamado Maximiliano de Almeida, filho de colonos des-
cendentes de imigrantes italianos. Sou bacharel e licenciado em
Filosofia pela Unijuí e especialista em Filosofia contemporânea pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Comecei a lecionar na Unijuí em 1967, há quase 40 anos,
como professor de Filosofia da Educação e História da Filosofia e,
logo a seguir, também de História da Educação. Este convívio com
a História me levou, em 1978 e 1979, a fazer o Mestrado em Histó-
ria na Universidade Estadual de Campinas. A partir de então pas-
sei a fazer parte do grupo de professores do curso de História.
Desenvolvi pesquisas sobre as questões agrária e agrícola.
Atualmente sigo pesquisando esta problemática, mas a ela acres-
centei outros temas como: a história dos alimentos, a história da
morte e da velhice, temas que, no meu modo de entender, guardam
profunda relação.
Nunca, ao longo de minha atividade de professor, deixei de
manter um intenso trabalho de assessoria a grupos sociais popula-
res, movimentos sociais e aos professores da rede pública estadual
e municipal. São esses trabalhos que ligam profundamente a uni-
versidade com a sociedade e dão aos professores universitários as
razões e as motivações para o estudo, a pesquisa e a formação dos
futuros docentes.
Gosto de estudar, de fazer pesquisa e de ser professor.
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Unidade 1Unidade 1Unidade 1Unidade 1
O MEDITERRÂNEO E SUAS CIVILIZAÇÕES
OBJETIVOS DESTA UNIDADE
• Aprofundar nossos conhecimentos históricos da civilização grega, visando a compreendê-
la em seu processo de construção e, sobretudo, em sua significativa contribuição na cons-
trução da civilização atual, mostrando o quanto nossos valores, crenças, instituições
sociais, econômicas, políticas e estéticas tiveram suas origens nesta civilização.
AS SEÇÕES DESTA UNIDADE
Seção 1.1 – A Civilização Grega: o período arcaico
Seção 1.2 – Esparta: a pólis da disciplina militar
Seção 1.3 – A Maturidade da Democracia Ateniense – Século 5º
Seção 1.4 – Crise da Democracia Ateniense – 431-322 a.C.
Seção 1.5 – Alexandre e a Conquista do Oriente
Estudaremos as civilizações do Mediterrâneo: a civilização grega, a civilização roma-
na e a bizantina. Elas sucederam-se umas após as outras e os seus elos foram propiciados
pelas águas do Mar Mediterrâneo. O Mediterrâneo não é apenas o berço dessas civiliza-
ções, ele é o meio de contato e de influência das grandes civilizações do Oriente Médio: do
Egito, da Anatólia e, um pouco mais a leste, da Mesopotâmia. Mais tarde o Império Roma-
no sofrerá o impacto do Cristianismo e este, mais tarde ainda, o impacto do Islamismo.
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Fonte: Disponível em: <http://galeria.blogs.sapo.pt/arquivo/
Mar_Mediterraneo_visto_do_espaco.jpg>. acesso em: 21/1/09.
O que é o Mediterrâneo, pergunta-se Braudel, o historiador contemporâneo que, pro-
vavelmente, mais o estudou e mais o conheceu. Ele mesmo responde:
Mil coisas ao mesmo tempo. Não uma paisagem, mas inúmeras paisagens. Não um mar, mas
uma sucessão de mares. Não uma civilização, mas civilizações sobrepostasumas às outras.
Viajar pelo Mediterrâneo é encontrar o mundo romano no Líbano, a pré-história na Sardenha, as
cidades gregas na Sicília, a presença árabe na Espanha, o islã turco na Iugoslávia. É mergulhar
nas profundezas dos séculos até as construções megalíticas de Malta ou até as pirâmides do
Egito. É encontrar coisas muito velhas ainda vivas, ladeando o ultramoderno; ao lado de Veneza,
falsamente móvel, a pesada aglomeração industrial de Mestre. Ao lado do barco do pescador,
que é ainda o mesmo de Ulisses, a traineira devastadora do fundo do mar, ou os enormes petro-
leiros. É ao mesmo tempo emergir no arcaísmo dos mundos insulares e surpreender-se diante da
extrema juventude de cidades muito antigas, abertas a todos os ventos da cultura e do lucro, e
que, há séculos, vigiam e comem o mar (1988, p. 1-2).
O Mediterrâneo são muitos mares. A oeste, lá está o Mar de Alboran; no centro, o Mar
da Ligúria, o Mar Tirreno e o Adriático; a leste, o Jônico, o Egeo, o Mar de Mármara ou
Propôntida e o Mar Negro ou Ponto.
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O Mar de Alboran é a parte mais ocidental do Mar Mediterrâneo. Limita-se ao norte
com a costa espanhola, ao sul com o litoral do Marrocos, a oeste com o estreito de Gibraltar,
conexão do Atlântico com o Mediterrâneo. Estende-se a leste até o cabo de Gata. É a ilha
de Alboran que dá nome a esta porção do Mediterrâneo.
A importância histórica da Ligúria, do Golfo de Gênova e dos acessos e caminhos do
continente à península italiana, deu a essa pequena porção do Mediterrâneo o nome de
Mar Lígure ou da Ligúria.
Logo abaixo, ao sul, no espaço interno delimitado pelo litoral da Itália e as ilhas da
Córsega, Sardenha e Sicília, está o Mar Tirreno. É por ele que se tem acesso ao porto de
Óstia que, por sua vez, dá acesso a Roma. Entre a península italiana e balcânica está o Mar
Adriático, ponto de contato entre a civilização grega, que se estende mais ao sul ao Mar
Jônico que, por sua vez, a leste, dá acesso ao Egito, à Fenícia e às civilizações do Oriente
Médio, e a nordeste dá acesso ao Mar Egeo, o qual, pelo Mar de Mármara, abre caminho ao
Mar Negro, e por ele, à Pérsia, à Mesopotâmia e Anatólia.
É por isso que o Mediterrâneo são muitos mares, pois
[...] é uma encruzilhada muito antiga. Há milênios tudo converge em sua direção, confundindo e
enriquecendo sua história: homens, animais de carga, veículos, mercadorias, navios, idéias reli-
giosas, arte de viver. E até mesmo plantas (Braudel, 1988, p. 2).
Originárias daí, só a oliveira, o trigo e a vinha. Aí se adaptaram e aclimataram laranjei-
ras, limoeiros e tangerinas que vêm da Ásia do leste, da China, trazidas pelos árabes; as figuei-
ras, aloés e cactos, que vêm do norte da África, da Barbária; da América vêm os tomateiros, as
batatas, o milho, o tabaco, o girassol. As plantas e outros temperos da gastronomia mediterrâ-
nea, que vêm da Índia e do sudeste asiático. E para o Mediterrâneo convergiram e ainda
convergem povos de todos os continentes, da Europa setentrional, da Ásia e da África.
E conclui Braudel (1988, p. 3):
Tanto em sua paisagem física como em sua paisagem humana, o Mediterrâneo-encruzilhada, o
Mediterrâneo heteróclito apresenta-se em nossas lembranças como imagem coerente, como um
sistema onde tudo se mistura e se recompõe numa unidade original. Como explicar essa unidade
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evidente, esse ser profundo do Mediterrâneo?... A explicação não é somente a natureza... Nem
apenas o homem... São ao mesmo tempo as graças da natureza, ou suas maldições – umas e
outras numerosas – e os múltiplos esforços dos homens, ontem como hoje.
Da mesma forma que os rios Nilo, Tigre e Eufrates, também o Indo, Amarelo e Azul são
dons da natureza, vantagens dadas potenciais, entretanto só o trabalho secular da socieda-
de pôde convertê-los em base sólida de civilizações. Assim também é o Mediterrâneo. Foi
preciso atravessá-lo, conhecer-lhe a diversidade, seus ritmos e perigos para convertê-lo em
base das civilizações que em suas margens se fizeram.
Os romanos, quando o dominaram por completo, chamaram-no de Mare Nostrum: Nos-
so Mar, ou Mediterrâneo, isto é, o mar que está cercado de terras, que está no meio da terra.
Ao recorte do mar em mares corresponde um desenho de terras que se projetam águas
adentro. São as sucessivas penínsulas que de oeste para leste adentram no mar: a península
ibérica, italiana, balcânica e anatólica. A península italiana divide o Mediterrâneo em dois, o
poente e o levante, o leste e o oeste, Ocidente e Oriente. Como destaca Braudel (1988, p. 8):
Aí a Itália encontra o sentido de seu destino: ela é o eixo mediano do mar e, [...], sempre se
desdobrou entre uma Itália voltada para o poente e uma Itália que encara o levante. Não foi
nisso que por muito tempo encontrou suas riquezas? Ela tem a possibilidade natural, o sonho
natural de dominar todo o mar.
Às vezes dizemos que tal ou qual região do Brasil tem um clima mediterrâneo. Que
queremos dizer com isso? Simplesmente que estamos comparando tal ou qual clima com o
do Mar Mediterrâneo. Que clima é esse? É um clima homogêneo, singular, que dá um cará-
ter único a toda a bacia do mar e que proporciona às paisagens e aos gêneros de vida que aí
se desenvolvem há milênios um toque unificador, uma identidade.
O clima é governado por duas forças que em sucessão se impõem: o deserto do Saara
ao sul e o Oceano Atlântico ao oeste.
“Todo o verão, o ar seco e ardente do Saara envolve toda a extensão do mar, ultra-
passando, porém, seus limites em direção ao norte. O Mediterrâneo torna-se, então,
quente, aprazível e à noite exibe céus límpidos e estrelados” (Braudel, 1988, p. 13). Van
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Gogh, um homem das planícies do norte da Europa, de céus cinzentos, captou como
ninguém este céu azul quando esteve internado no sul da França, em Arles. Ele pintou
também o vento implacável que, várias vezes por ano, no verão, sopra tórrido do Saara,
carregado de areia, que entorta as árvores e que obriga todos, homens e animais, a se
recolherem para dentro de casa. É o siroco, mistral, khamsin ou plumbeus auster, como
dizia o poeta romano Horacio. De abril a setembro os ventos dominantes do nordeste, os
ventos que os gregos chamavam de etésios, eram também quentes e não contrabalança-
vam o calor vindo do Saara.
A partir de outubro impõem-se os ventos carregados de umidade do Atlântico. Venta-
nias e chuvas torrenciais tornam o continente e o mar perigosos e umedecem o solo à espera
das sementeiras de primavera e de verão. O ciclo se repete a cada ano, de forma regular, há
milênios, e requer das sociedades que aí plantam, disciplinas coletivas e muito trabalho.
Não por acaso, gregos e romanos foram buscar na massa de escravos que capturaram
em guerras e piratarias o trabalho de que tanto necessitavam. Eles foram os criadores das
sociedades escravistas. Iguais a elas, só a escravidão em grande escala de povos africanos e
obrigados ao trabalho compulsório nas fazendas e plantações da América nos três séculos
que vão do 16 ao 18.
Se examinarmos com atenção as civilizações fenícia, grega e romana, todas têm como
um de seus móveis a busca de alimentos ou a expulsão de suas populações excedentes,
fundando sucessivas colônias ao redor da bacia do Mediterrâneo. Mesmo assim, a comida
nunca foi abundante, o que acabou convertendo a sobriedade, a temperança, em virtude
cardeal e explica o escândalo que produziam no povo romano e nos cristãos primitivos os
banquetes fartos dos ricos romanos que a iconografia fixou gordos e obesos. Não por acaso
gordo, “grosso”, “grasso, gras”, é sinônimo de rico, de abastado.
De um modo geral, observa Braudel (1988, p. 25), “[...] o Mediterrâneo equilibra sua
vida a partir da tríade:oliveira, vinho e trigo.” Muito pouca proteína animal, que vinha da
pesca e da criação de suínos e de caprinos e ovinos, mas muito poucos bovinos. O Império
Romano, em sua extensão máxima e em seu apogeu se converteu numa máquina de rapina
de alimentos que eram drenados para Roma: trigo, vinho, azeite, animais, queijo, peixes.
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O trigo e o pão, entretanto, eram o alimento básico da população mediterrânea. Sua
escassez poderia ensejar revoltas e motins. Em contrapartida, uma celebração mediterrânea
pedia a Deus “...o pão de cada dia...”. O Cristianismo celebra a memória de Jesus Cristo
simbolizando seu corpo em pão e seu sangue em vinho. E observa Braudel (1988, p. 27):
Ainda hoje [...] em Nápoles e Palermo (os operários) [...] contentam-se com o Companatico, um
molho de cebola ou tomates sobre um pão regado com azeite, acompanhado de um pouco de
vinho [...].
A pizza tão apreciada hoje em sociedades superabundantes de comida é a comida típica dos
pobres do mediterrâneo: “sottile focaccia di pasta lievitata, condita com olio, mozzarella,
pomodoro, o altro e cotta in forno o sotto bracia”.
Rodela fina de massa levedada, temperada com óleo (de oliva), queijo, tomate ou outra coisa e
assada no forno ou sob brasas (Minore, 1994).
O Mediterrâneo é onipresente e perigoso, traiçoeiro, de tempestades imprevistas e sú-
bitas que parecem governadas, como acreditavam os antigos, por deuses soberanos do mar:
Poseidon ou Netuno. E foi sempre pobre em sua fauna aquática e hoje vê suas reservas
biológicas ameaçadas pela pesca predatória e pela poluição.
O Mar Mediterrâneo foi, desde milênios, antes de mais nada, uma via de comunica-
ção, uma “superfície de transporte”, de intercâmbios e de riqueza (Braudel, 1988, p. 36). Há
indícios de que foram os cretenses os primeiros a ousar viagens em alto-mar desde Creta até
o delta do Nilo. A Odisséia descreve uma viagem de Ulisses desde a ilha de Itaca, onde se faz
passar por um mercador cretense, até o delta do Nilo.
Assaltou-me a vontade [...] de fazer um cruzeiro [...] para o Egito. Armo nove naus e os homens
afluem. Durante seis dias esses bravos festejam em minha casa [...]. No sétimo, embarcamos e,
das planícies de Creta, um belo e bom (vento) Boreas nos leva sempre em frente, como na corren-
te de um rio [...]. Bastou sentarmo-nos e deixarmo-nos levar pelo vento e pelos pilotos. Em cinco
dias alcançamos o belo rio Egyptor (Braudel, 1988, p. 38).
Os fenícios, marinheiros experientes, viajavam em linha reta de Creta até a Sicília e
daí para as Ilhas Baleares. A partir do século 4º a.C. a viagem da Ilha de Rodes à Alexandria
do Egito fazia-se em quatro dias (cf. Braudel, 1988, p. 38).
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As rotas do Mediterrâneo foram se expandindo e os marinheiros ganharam o Atlântico
e daí o Mar do Norte e a Bretanha.
O Mediterrâneo será, por isso, disputado entre gregos e fenícios, gregos e persas, entre
romanos e cartagineses, entre cristãos e muçulmanos e entre genoveses e venezianos, entre
espanhóis e turcos. Na batalha de Lepanto, em 1571, enfrentaram-se as Marinhas de Guer-
ra do Império Turco e da Europa cristã de Felipe II, da Espanha: cem mil pessoas se confron-
taram em 250 navios de cada lado. A batalha lembra o que aconteceu próximo a Lepanto
em 480, quando os gregos venceram a frota persa, com navios menores, sem canhões, mas
muito ágeis e rápidos.
O Mediterrâneo são muitos mares, isto sabemos. As primeiras porções do Mediterrâ-
neo que vêm à luz são as do levante, as do Oriente, aquelas que põem em contato Creta,
Micenas, Hugarit, Síria-Fenícia e Egito, e mais ao longe, a leste, a Mesopotâmia.
Embora a técnica de transporte de mercadorias por água se tenha desenvolvido nas
civilizações agrícolas do Egito e da Mesopotâmia, inicialmente com barcos de junco e de-
pois de madeira, foram duas áreas mediterrâneas periféricas a essas civilizações que desen-
volveram embarcações capazes de navegar o Mediterrâneo, a partir do 2º milênio a.C.: os
povos do Mar Egeu e os povos do litoral da costa libanesa. Os novos barcos eram mais leves,
equilibrados, com remos e velas, querena e quilha. Foi o primeiro barco adaptado ao trans-
porte marítimo. Síria-Líbano e Egeu foram dois pontos onde se fabricaram navios e onde se
encontraram marinheiros capazes de manejá-los. Foram eles que, por primeiro, puseram em
contato as civilizações que nasceram no Oriente, trocando objetos, técnicas, modas, gostos,
correspondências.
Todas as civilizações comunicam-se entre si a partir de outras, [...] inclusive o Egito, normalmente
tão fechado... É a época das viagens das trocas de presentes [...]. Época em que se vê surgir nos
afrescos dos túmulos egípcios [...] todos os povos da Oriente Próximo e do Egeu: cretenses, micênicos,
palestinos, núbios, cananeus; em que as magníficas cerâmicas cretenses invadem todo o Levante;
em que as porcelanas azuis do Egito [...] acompanham os mortos nos túmulos micênicos; em que o
culto das divindades cananeias, sem dúvida, introduzido pelos comerciantes, espalha-se pelo delta
(do Nilo), enquanto as esfinges aladas ou os deuses do Egito florescem na Síria ou na região hitita
[...] em que a moda egípcia, até então devotada ao linho branco, apaixona-se pelos bordados sírios
e pelos tecidos de várias cores dos cretenses (Braudel, 1988, p. 61-62).
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O Mediterrâneo, primeiro o Oriental, está pronto para desenvolver suas civilizações
peculiares: cretense, fenícia, micênica, grega e romana. E o Mediterrâneo será seu suporte
material, inspiração simbólica e desafio permanente.
A ligação das civilizações do Mediterrâneo com as do Oriente Médio realiza-se por
intermédio de três sociedades, muito parecidas entre si, constituindo uma herança muito
significativa para as futuras civilizações greco-romana. Cretenses, primeiro, micênicos a
seguir e fenícios constituem uma linha de tempo sucessiva que vai de 3 mil a aproximada-
mente 1.200 anos a.C.
Esses povos refletem no Mediterrâneo os grandes traços culturais das sociedades ori-
entais, seja na forma de organização do poder, fortemente centralizada na mão de um rei
semidivinizado, apoiado numa coesa burocracia civil e militar, seja num sistema de explora-
ção da terra mediante arrendamento e pagamento de tributos em espécie: vinho, azeite e
trigo e, sobretudo, de uma extensa divisão do trabalho artesanal de metais – bronze, cobre,
estanho – de cerâmica, tecidos e jóias de luxo e armas.
Adotam alfabetos do Oriente, modificados e adaptados às condições de cada uma des-
sas sociedades. É dos fenícios que os gregos receberam o alfabeto que se tornará, por sua
vez, o alfabeto romano, do qual deriva o alfabeto que utilizamos até hoje.
Em 1450 a.C. Micenas invade a ilha de Creta, de Rodes e de Chipre, destruindo para
sempre a civilização cretense. O século 12 a.C. é marcado por uma intensa movimentação
de povos que, partindo da Europa Central, do Cáucaso e da Ásia Central, movem-se para o
sul e se chocam com a civilização micênica, que é destruída. Na Anatólia chocam-se com o
hititas e só são contidos e derrotados nas costas da atual Síria e Líbano.
Essas invasões de povos vindos do norte, entre os quais estão os dórios, que se fixam
na Grécia continental, produzem uma profunda regressão cultural, um período em que de-
saparecem os avanços culturais cretenses e micênicos, extinguindo-se também a escrita. Os
historiadores costumam chamar o período que vai do início do século 12 até o século 8º a.C.
de idade obscura, idade média.
EaD
19
C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
A partir do século 8º a.C. a Grécia reemerge e dá início ao que denominamos de civili-
zação grega. Por séculos o Mediterrâneo será grego.
A ocupação das bordas do Mediterrâneo pelos gregosrealiza-se ao longo de séculos e
obedece a motivações variadas: seja a pressão das hordas invasoras vindas do norte, sejam
as condições geográficas da península, muito montanhosa, muito pedregosa, de poucas
planícies e terras de fertilidade medíocre.
Seja, finalmente, a grave crise agrária dos séculos 8º e 6º, que obrigava a grandes
contingentes de agricultores empobrecidos a emigrar, aliada a uma vigorosa expansão mer-
cantil, que importava cereais, peixe salgado, metais preciosos, marfim, âmbar, estanho, co-
bre, madeiras e pele e exportava vinho, azeite, jóias, armas, utensílios, navios, têxteis, cerâ-
mica, perfumes e ungüentos.
As colônias gregas semeadas desde o extremo leste do litoral do Mar Negro até a Espanha
davam à Grécia acesso ao trigo e peixe salgado produzidos nas terras férteis do Mar Negro, do
Egito e do sul da Itália; a madeira para a construção de navios vinha das florestas da Tracia,
os minérios da Espanha, França, Inglaterra e Groenlândia; produtos de luxo, do Egito e da
Fenícia. As colônias fundadas pelos gregos e os povos do Mediterrâneo, que os gregos chama-
vam de bárbaros, eram os consumidores dos produtos da indústria grega.
Todos os elementos de um grande comércio intramediterrâneo estavam então reunidos
e a Grécia, bastante incapaz de viver em autarquia – isto é, de ser economicamente auto-
suficiente – a não ser que se resignasse a uma vida miserável, abria-se largamente por todos
os lados (Levêque, 1967, p. 129). A expansão colonial representava ao longo da história
grega uma solução para as graves crises que a acometiam, pois sempre
[...] transportava em si uma força indefinida de expansão; assim, quanto mais se importava trigo,
menos havia necessidade de o produzir, mais se podia cultivar a vinha e a oliveira, mais se podia
exportar vinho e azeite (e também recipientes de cerâmica para seu transporte); a madeira de
importação permitia construir barcos cada vez em maior número, instrumento necessário para
um comércio unicamente marítimo. Os minérios que afluíam – principalmente – do ocidente
forneciam a matéria-prima indispensável tanto às indústrias utilitárias como às indústrias artís-
ticas e daí vem um aumento das exportações em direção do novo mundo. A indústria e a agricul-
tura eram simultaneamente estimuladas e o comércio tornava-se a base de uma vida em contí-
EaD Din arte Belato
20
nuo desenvolvimento. A Grécia e a Anatólia enriqueciam-se com o incessante entrecruzamento
de navios que iam longe trocar as suas produções agrícolas e industriais requintadas por víveres
e metais (Levêque, 1967, p. 130).
Tamanha transformação da Grécia, porém, só foi possível porque se fizeram acompa-
nhar de profundas revoluções sociais, políticas e culturais, das quais emergirá a civilização
grega, como veremos mais adiante.
A expansão econômica e colonial grega no Mediterrâneo foi favorecida também pela
queda de seus concorrentes fenícios. Em 677 a.C. Sidon é tomada pelo Império Assírio e em
573 a.C. Tiro é conquistada pelos babilônios, embora, a partir de então, os impérios
mesopotâmicos tentem submeter o Mediterrâneo e incorporá-lo a seu poder. As Guerras
Greco-Pérsicas e as conquistas de Alexandre Magno são desdobramentos desse novo qua-
dro geopolítico. Oriente e Ocidente inaugurarão uma sucessão de choques intermináveis e
que se prolongam até os dias de hoje (Belato, 2008b).
Seção 1.1
A Civilização Grega: o período arcaico
O povo grego é o resultado de um longo processo histórico de invasões, todas vindas
do norte, em direção à península e ao Mar Egeu.
O mapa a seguir nos mostra a “descida” dos gregos, todos povos indo-europeus ocu-
pando territórios e guardando características lingüísticas e culturais que se conservaram ao
longo da história grega: jônicos, eólios, aqueus e dórios darão o caráter definitivo ao povo-
amento da península e da Anatólia.
EaD
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
Fonte: Disponível em: <http://www.templodeapolo.net/Civilizacoes/grecia/
historia_civilizacao/mapa_invasao_dorica.html>. Acesso em 21 jan. 2009.
EaD Din arte Belato
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Os dórios, os últimos a chegar, destroem a civilização micênica e reduzem a península
e as ilhas adjacentes a um estado de barbárie. Foram necessários quatro séculos para que
nascesse uma nova cultura, que é a que conhecemos como cultura grega.
1.1.1 – A SOCIEDADE ARCAICA
Os historiadores costumam dividir esta primeira fase da história grega em duas etapas.
A primeira, que se inicia com as invasões dos dórios e é denominada de obscura, medieval,
vai do século 12 ao século 8º a.C. A segunda vai do século 8º ao século 4º a.C.
Para os gregos, arcaico é um adjetivo de significado altamente positivo, pois indica
princípio, ponto de partida, fundamento. O período arcaico é, então, para os gregos, aquele
em que a sociedade plantou seus alicerces e deu feição à sua cultura e civilização. É o
período em que foram criadas as instituições sociais, políticas e intelectuais que lhe deram
um lugar único na História: a sua experiência democrática, de um lado, e a experiência
militarista e autoritária, de outro, uma em Atenas e a outra em Esparta. Foi também quando
se iniciou uma nova forma de pensar e conhecer o mundo: a Filosofia e a Ciência. De ambas
(Atenas e Esparta), da democracia, da Filosofia e Ciência, somos herdeiros diretos.
Faz parte dessa etapa também a formação do imaginário religioso mediante a criação
de uma complexa sociedade de deuses e deusas e entes divinos que foi inteiramente assumi-
do mais tarde pela religião dos romanos. É nessa fase que se escrevem as duas grandes
epopéias –, a Ilíada e a Odisséia –, e a poesia lírica, que nasce o teatro com suas tragédias e
comédias, bem como a sofisticada arquitetura urbana e a inimitável arte da escultura. Todo
esse complexo cultural e civilizatório que se forma no período arcaico atinge sua plenitude
e força no período seguinte, o clássico, nos séculos 5º e 4º a.C.
Toma forma igualmente no período arcaico um traço que marcará as sociedades roma-
na e moderna ocidentais: a escravidão. Nenhuma dessas sociedades foi possível sem a escra-
vidão. E mais, a civilização grega e romana e a sociedade moderna européia do século 15 ao
19 plantam seus fundamentos na escravidão, mas, por contraste, exaltam a liberdade da-
queles que, em última instância, vivem do trabalho compulsório.
EaD
23
C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
1.1.2 – A PRIMITIVA SOCIEDADE HOMÉRICA
O período obscuro e bárbaro que se sucede à invasão dos dórios foi-nos revelado pelos
poemas homéricos: a Ilíada e a Odisséia, atribuídos a um poeta jônico chamado Homero.
Os gregos reconhecem-se descendentes de três grandes grupos étnicos: jônios, aqueus/
eólios e dórios. Os laços de identidade lhes advém de uma comum cultura religiosa, de uma
língua que se impôs a todos com suas próprias variantes dialetais e, sobretudo, de um modo
descentralizado de organização política, chamada pólis, cada uma delas completamente
independente. Esse conjunto de elementos dava-lhes uma identidade própria, e permitia
marcar a diferença em relação aos demais povos: a si denominavam gregos e civilizados; aos
demais chamavam de estrangeiros e bárbaros.
Produziu-se na Grécia, da diversidade, uma unidade e uma identidade, uma civiliza-
ção. Compelidos a expandir-se na orla do Mediterrâneo, os gregos faziam-no fundando co-
lônias que, embora guardassem entre si profundos vínculos culturais e religiosos com a
metrópole, constituíam unidades políticas e econômicas completamente autônomas.
A sociedade descrita nos poemas de Homero é uma sociedade de classes bem definida:
Horizontalmente, pode-se distinguir um certo número de classes que se definem por sua fortuna,
liberdade jurídica e atividade econômica. No topo, estão os grandes proprietáriosde terra, os
nobres, que são os companheiros do rei. Eles apropriam-se das melhores e mais extensas terras
(trabalhadas por escravos e dependentes e concentram em suas mãos também prestígio social e
poder). A participação nas guerras lhes dá direito à partilha do butim. Nesta sociedade há tam-
bém os camponeses livres que trabalham a terra do nobre. São pequenos produtores, pastores
que habitam com suas famílias sua própria casa. Vêm depois os demiurgos [... ] artesãos
especializados (carpinteiros, ferreiros), mais ou menos ambulantes, pagos por tarefa. Vêm a
seguir os “thetes”, que só possuem sua capacidade de trabalho. São livres, descendentes de es-
trangeiros ou camponeses expropriados, vivem junto à casa do nobre e são pagos por tarefa. Não
se pode confundi-los com os escravos. Os escravos que Homero denomina de “andropoda” ou
animal de duas patas, são, sobretudo as mulheres, presas de guerra [...] (Humbert, 1984, p. 23).
A esta estrutura de classe horizontal sobrepõe-se, segundo Humbert (1984, p. 23), uma
clivagem vertical que lhe dá sentido. “A sociedade homérica é dominada por um grupo que é, ao
mesmo tempo, unidade de produção econômica e uma das bases do poder político. É a oikos.”
EaD Din arte Belato
24
O que é a oikos, que literalmente significa casa?
[...] a oikos reúne em torno do chefe da casa e de seus parentes próximos, [...] todos os que,
instalados na propriedade participam de sua exploração, seja o conjunto dos bens e meios desti-
nados à produção agrícola e à pecuária, sejam os camponeses livres, pastores e escravos, sufici-
entemente amplos para que a propriedade seja auto-suficiente (p. 24).
A oikos é também uma estrutura jurídica e política. O chefe da oikos tem sob sua
dependência todos os que nela habitam, aos quais garante proteção e defesa, que se funda
no poder de jurisdição doméstica sobre seu domínio (apenas as questões graves são levadas
ao rei e a seu conselho). O indivíduo aí ganha seu estatuto, identidade e proteção, uma vez
que isolado não tem existência social e pode ser morto (p. 24).
A oikos, porém, não é uma unidade isolada, ela faz parte de uma unidade maior, que
agrupa várias oikos e dá origem à fratria (ou fraternidade de armas). Na Ática havia 12
fratrias, por sua vez repartidas em quatro tribos. A oikos é unidade de poder político, e é a
condição do poder:
É a oikos que dá suporte e faz de seu chefe um nobre (os aristoi, os agathoi). A estrutura agrária
muito estável da oikos faz com que seja impossível a um pretendente adquirir a terra suficiente
para tornar-se um senhor de prestígio. O sistema, então, acaba por gerar uma casta. Primitiva-
mente aristocracia agrária, a nobreza se converte em nobreza de sangue. A nobreza se fecha
totalmente. A oikos, que deu aos companheiros do rei os meios (riqueza e prestígio) de acesso ao
poder, lhes permite, no fim do período homérico, assegurar-se o monopólio do poder (p. 25).
Esta nobreza, convertida em casta para se proteger, minará e eliminará o poder do rei.
E o fará de forma gradativa, mediante um processo de separação dos poderes até então
enfeixados na sua mão, que dará origem ao colégio dos arcontes, cujos membros são eleitos,
inclusive o rei, por dez anos, cada um deles exercendo o poder por um ano. Os eleitores são
o conjunto dos nobres que constituem o Conselho dos nobres ou “areópago”.
O areópago ou Conselho, do qual fazem parte os arcontes, é constituído pela elite polí-
tica e econômica da nobreza. Seus membros têm mandato vitalício e se constituem no verda-
deiro núcleo do poder da sociedade. Reúnem-se, não mais no palácio do rei, mas na Colina de
Ares (Deus da guerra), daí o nome de Conselho da Colina de Ares ou Areópago. Este Conse-
lho, como poder supremo, controla os arcontes que, por turno, exercem o governo.
EaD
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
A assembléia do povo, composta por todos os que não fazem parte do Conselho, nada
representa. Mesmo quando convocada, nada diz, nada nunca decide. É apenas um teste-
munho que observa. Perdeu, com a monopolização do poder pela nobreza, inclusive o poder
de dar ou negar confiança aos governantes. Deixou de ser, como afirma Humbert (1984),
mesmo passiva, um contrapoder. Ao povo resta apenas o caminho do confronto, do qual
sairá vitorioso em Atenas e derrotado em Esparta e na maioria das póleis da Grécia.
Essa nobreza oligárquica, que monopoliza o poder e a riqueza da sociedade, também
se apropria da religião ao moldar um panteão e dinastias de deuses das quais esta nobreza
pretende ser descendente. Deuses e deusas feitos à imagem e semelhança da nobreza
oligárquica.
Por toda a parte a nobreza controla com mão de ferro a sociedade. E o povo foi com-
pletamente excluído de qualquer intervenção nos negócios públicos: governo, guerra, ad-
ministração da justiça:
O exercício do poder, da riqueza, o prestígio deram às famílias tradicionais mais poderosas uma
coesão e uma amplitude que lhes permitirão por longo tempo dominar a polis. Estas famílias
atribuíram a si não só o título de “agathoi”, os “bons” ou sua forma superlativa, os “aristoi”, os
melhores, mas também de “eupatridai”, isto é, os “bem nascidos” (Humbert, 1984).
A religião, a administração da justiça, as armas – só acessíveis aos nobres e seus clien-
tes – o poder, enfim, só têm sentido no interior de uma linhagem ou com o apoio de uma
linhagem ilustre. Em seu conjunto, a nobreza se converte numa oligarquia.
A cultura também estará a serviço dos interesses da nobreza. A escrita, que reaparece
no século 8º, se presta à difusão da Ilíada e da Odisséia, que se converte num manual de
educação da nobreza. Como observa Aristóteles, no entanto, “A desigualdade gera o des-
contentamento: e quando é prolongado, provoca um estado de crise” (Aristóteles. Política,
VIII, 2007, 9, 21). E acrescenta Humbert (1984):
A nobreza manteve-se no poder enquanto se perpetuavam as condições que lhe deram nascimen-
to: a riqueza ligada à terra. Mas a partir do momento em que o comércio se tornou outra fonte de
riqueza, a partir do momento em que os camponeses tomam consciência de sua existência e não
EaD Din arte Belato
26
mais aceitam um acesso à terra que sequer lhe permite sobreviver, o Conselho e o povo entraram
em conflito. E as alternativas tentadas pelos reformadores foram muitas: deportar o povo,
decapitá-lo politicamente e tentar composições e acordos. As poleis do mundo grego dão amos-
tras de todas essas tentativas. Duas, no entanto, representam as soluções radicais da luta de
classes que sacode a Grécia nos séculos VII e VI: Atenas e Esparta.
1.1.3 – DA CRISE DA SOCIEDADE ARCAICA À DEMOCRACIA
 ATENIENSE E À AUTOCRACIA MILITAR ESPARTANA
Hesíodo é um poeta completamente diferente de Homero. Ele não canta a nobreza,
seus feitos, seu heroísmo, seu parentesco com os deuses. Ele canta e conta a miséria dos
pobres, dos camponeses, a exploração que sofrem por parte de uma nobreza que lhe suga o
sangue. Ele canta o trabalho do camponês, exalta a sua luta para sobreviver. Eis o conselho
que ele dá ao irmão Perseu:
[...] vá, mas lembra-te sempre de meu conselho: trabalha, Perseu, para que a fome te tenha ódio
e que tornes amado da grande deusa Demeter – deusa da agricultura e da fertilidade – que
encherá teu celeiro de trigo que dá vida (Hesíodo, Trabalhos, v. 298ss).
É notável o esforço de Hesíodo no sentido de construir uma referência identitária e de
classe dos camponeses perante os nobres, que ele vai chamar de “reis comedores de presentes”
por sua venalidade na administração da justiça e do governo que eles mantêm e controlam de
forma monopólica. Em Hesíodo temos a primeira manifestação de uma consciência campone-
sa que transformará os camponeses em atores centrais das reformas políticas que se seguirão.
Nãosão somente os camponeses que se movem. Um pouco por toda a parte e em
decorrência da expansão das colônias gregas ao longo do litoral do Mediterrâneo, surgem
novos atores econômicos e sociais que entrarão no confronto com a nobreza e seu regime
oligárquico: artesãos da cerâmica, da metalurgia, do bronze e do ferro, joalheiros, pedreiros
e marceneiros e uma burguesia mercantil cada vez mais rica e poderosa, de uma riqueza que
não vem da terra, mas do comércio de longa distância, da bacia do Mediterrâneo.
Todos esses novos personagens pretendem partilhar o poder da nobreza, do qual estão
excluídos. As fontes de tensão social estão dadas. E é entre os camponeses que ela toma
corpo e se converte em luta de classes, que irá levar às reformas. Esclarece Aristóteles:
EaD
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
[...] os nobres e o povo entraram em conflito por um longo período. Com efeito, o regime político
era oligárquico em tudo; e em particular, os pobres, suas mulheres e seus filhos eram escravos
dos ricos e eram chamados “clientes” e “hectomeros”, isto é, trabalhavam para os ricos cinco
dias em seis. Toda a terra estava na mão de poucos. E se os pobres não pagassem suas dívidas,
caíam na escravidão eles e seus filhos” (Política, 2007, 2, 2).
Partilha da terra e fim da escravidão, eis o eixo maior do conflito: crise política e crise
agrária. Ambas requerem reformas. E como a aristocracia detinha de forma absoluta e man-
tinha sob controle a administração da justiça e o fazia a partir de princípios e regras
estabelecidas pelo Conselho dos nobres, ao qual a população não tinha acesso, a primeira
reforma incidiu sobre os códigos, leis e procedimentos da justiça. E a demanda central era
que as leis fossem escritas e todos pudessem ter acesso a elas.
É provável que os gregos, ao se expandirem pelo Mediterrâneo oriental, tenham co-
nhecido a sua prática de gravar em pedra as leis e códigos que regiam a sociedade. O exem-
plo do rei babilônico Hamurabi, que gravou seu código em pedra, em 1800 a.C., chega à
Grécia 1.200 anos depois. Atenas, que fez suas primeiras reformas em 624, foi antecedida
pelas reformas jurisdicionais da Locrida, em 663, e da Catania em 633. Corinto e Creta
fizeram suas reformas durante o século 6º.
Administração da justiça, direito penal, direito civil: por toda a parte se afirma simultaneamente
a autoridade do Estado em detrimento dos interesses da aristocracia ou dos preceitos tradicio-
nais. A obra dos grandes legisladores marca uma data na história do direito e assegura o primei-
ro triunfo do demos (do povo) sobre os nobres (Levêque, 1967, p. 137).
1.1.4 – DRACON – 624 A.C.
A reforma do Arconte Dracon, governante de turno em 624, dá o primeiro passo
para as sucessivas reformas em Atenas. A administração da justiça era um privilégio ex-
clusivo da nobreza. Dracon não muda a lei em vigor. Publica a lei penal que confere a
sua reforma a fama de severidade (lei draconiana). São publicadas também as leis refe-
rentes ao Direito de Família, a devolução sucessória, a condição (de escravos) dos deve-
dores insolúveis.
EaD Din arte Belato
28
O avanço representado pela reforma consiste no acesso de todos aos termos da lei.
Consiste também na vitória da comunidade, da pólis, sobre as linhagens de nobres. É a
primeira fenda na cultura e na prática jurídica monopolizada por uma classe.
E há outros avanços ainda embrionários, como o da punição individual. Ao se desfa-
zer a linhagem, o crime de um indivíduo não é mais um crime coletivo do clã ou da família,
mas emerge em seu lugar o indivíduo. Em vez de responsabilidade ou crime coletivo, a
responsabilização criminal do indivíduo se torna possível... A sanção do crime será definida
agora pela gravidade da intenção.
O delito será doloso – intencional –, ou culposo – involuntário, não-intencional. Pu-
nir-se-á, portanto, a vontade criminosa de um acusado e não mais, como antes, o clã ao
qual pertence o criminoso. Reconhece-se também a busca individual de reparação ou vin-
gança pela ofensa ou lesão recebida. Antes, o indivíduo fora do clã simplesmente não tinha
existência. A ação se torna individual. Com a reforma de Sólon – que virá logo depois da de
Dracon – a ação será popular, isto é, aberta a todos os cidadãos.
Sob todos os aspectos, começam a ser definidos os primeiros traços daquilo que virá a
ser, muitos séculos depois, o Direito moderno (Humbert, 1984, p. 46-47).
1.1.5 – SÓLON – 594 A.C
As reformas de Dracon, longe de resolver os problemas da sociedade ateniense, agra-
varam-nos, pois os nobres recusavam-se a fazer qualquer outra concessão, explicitando de
forma ainda mais clara as profundas diferenças sociais, das quais o povo ia tomando cons-
ciência.
Sólon pertencia a uma família aristocrática e muito rica. Poeta, assumia posição favo-
rável aos camponeses em seus poemas. Tornou-se popular entre as camadas pobres rurais e
urbanas. Foi nomeado arconte com a tarefa de propor uma nova reforma capaz de pacificar
a sociedade. Não conseguiu seu intento, mas sua obra marca definitiva, teórica e
metodologicamente as concepções de sociedade e das regulações que esta necessita instau-
rar para viver.
EaD
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
Sólon conhecia as especulações filosóficas dos primeiros filósofos jônicos, Tales e
Anaximandro. Eles estavam em busca das leis naturais que regem permanentemente o
universo. Sólon tinha a convicção de que também existem leis permanentes que gover-
nam o mundo social. Essas, como as da natureza, são própr ias da sociedade e
independem da vontade dos deuses, nem são por eles reveladas aos homens. Ele diz
num poema:
[...] da nuvem vem a neve e a chuva de gelo (de pedras de gelo); ao relâmpago lhe sucede neces-
sariamente o trovão e se uma cidade tiver nela homens excessivamente poderosos, irá à ruína e o
povo (demos) cairá sob o poder de um déspota. O princípio da causalidade acaba de ser desco-
berto. E a causa da ruína da cidade é o desequilíbrio, o excesso (que Sólon vai denominar de
hybris) de grupos rivais. Desmedida dos ricos em seu afã irracional e louco de lucro (é próprio da
riqueza não ter medida). Loucura também do povo que em sua fraqueza e imaturidade está
sempre pronto a lançar-se nos braços de um tirano. Excesso do povo igualmente em seu desejo
imoderado de se apropriar da riqueza dos nobres (eupátridas). Para Sólon, os nobres (os ricos)
são um contrapeso à pressão popular; seus privilégios uma vez justamente contidos, servem de
barreira a uma massa politicamente não formada (Humbert, 1984, p. 48).
Seria errôneo pensar que Sólon teria adotado uma espécie de determinismo físico.
Existem as leis da sociedade, mas é o homem o único responsável por seu destino. E diz:
“Nossa cidade não perecerá por um decreto de Zeus... São os próprios cidadãos, por sua
avidez de dinheiro, por sua estupidez, que conduzirão a cidade à ruína.” O futuro da soci-
edade política não é fruto do acaso.
O homem é o senhor deste mundo coerente. As reformas de Sólon são a primeira
afirmação da capacidade exclusivamente humana de propor soluções globais às crises que
ele próprio produz. Sólon separa a política da religião, das divindades do transcendente. A
política e a sociedade são tarefas humanas, imanentes. Maquiavel retomará estas teses no
século 16 d.C.
Por onde irá Sólon iniciar suas propostas de reforma social? Pela classe social que fora
mais severamente expropriada e explorada pela nobreza latifundiária. Para eles, Sólon de-
cretou o “estado de seichtheia”, contra a voracidade dos nobres. E incidia sobre o passado,
o presente e o futuro.
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As disposições imediatas para o presente: os devedores terão suas dívidas extintas,
sejam elas públicas ou privadas, isto é, os proprietários nobres,credores e o Estado não
receberão qualquer indenização. Ficam abolidas as dívidas dos pobres. Igualmente ficam
suprimidas as hipotecas das terras. São extintas também as humilhantes taxas de pagamen-
to (5/6) da colheita.
Sólon extingue e proíbe a escravização de gregos. Os devedores insolventes caíam na
escravidão, muitos deles eram vendidos a estrangeiros e muitos outros fugiam para não
serem escravizados. Liberta todos os escravos e estabelece o resgate dos que foram vendidos
ao estrangeiro por conta do Estado.
Sólon proíbe a hipoteca da terra dos camponeses e dos membros de sua família, extin-
guindo desse modo a “máquina” que na Antiguidade fabricava escravos: as dívidas.
A legislação de Sólon incide sobre outras questões e atende a outros sujeitos sociais.
Ocupa-se em definir leis que protegem a família nuclear e nela, o direito de sucessão. Sólon,
porém, não propõe uma reforma agrária, uma redistribuição geral das terras. Ele sugere a
urbanização dos sem-terra, incorporando-os nas atividades industriais e nos serviços de
transporte marítimo.
Para tal, propôs e instituiu uma reforma de pesos e medidas, uma reforma monetária.
Proibiu a exportação de trigo, método adotado pela nobreza para, produzindo escassez,
aumentar-lhe o preço e alimentar a cadeia de dívidas e a escravidão. Sólon dá a esses cam-
poneses urbanizados garantias de participação política, militar e meios de vida.
Sólon avança ao estabelecer o direito de todos os cidadãos de participar do Estado (da
pólis): na sua defesa, como soldados; como partícipes do sistema de administração da justi-
ça – o crime torna-se uma responsabilidade coletiva –; abre o acesso e amplia a participação
na pólis das camadas subalternas, mas não o faz de forma igualitária. O critério de partici-
pação é censitário, isto é, em conformidade com a riqueza do indivíduo, critério definido
anteriormente no direito de participação na defesa da pólis e que dá origem ao modelo
hoplita de organização do exército da pólis.
EaD
31
C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
As categorias de soldados e cidadãos censitários são as seguintes: os
pentacosiomedimnes, aqueles cujos bens equivalem a 500 medimnes ou mais; os cavaleiros
são os que têm uma renda de 300 medimnes e os zeuguitas, a quem corresponde uma renda
de 200 medimnes. E, finalmente, os tetes, que estão abaixo desses patamares, que constitu-
em as camadas pobres da sociedade. Embora esta divisão da sociedade já existisse, a novi-
dade introduzida por Sólon foi que a avaliação das rendas não se fazia mais em espécie, mas
em dinheiro.
A dracma correspondia a um medimne e as listas censitárias das cidades não eram
mais fixadas exclusivamente com base nos rendimentos das terras, mas de acordo com o
rendimento total. Essa medida representou efetivamente a garantia de acesso à participa-
ção política dos cidadãos cujas rendas proviessem do comércio e da indústria (Jardé, 1977,
p. 167; Humbert, 1984, p. 34).
A faceta verdadeiramente revolucionária da reforma política de Sólon consiste no acesso
dos “tetes”, daqueles que, por definição, não têm renda alguma, e eram isentos das obriga-
ções militares, de acesso à assembléia, à “eclésia”. Agora eles ascendem aos novos poderes
da pólis criados por Sólon. O povo, o demos, passou a participar da eleição dos magistrados
– outrora prerrogativa da nobreza – e da assembléia popular composta de 6 mil cidadãos,
que passou a exercer o direito de ratificar as sentenças dos magistrados.
Pronunciar as sentenças converte-se em direito soberano do povo, um direito coletivo.
Sólon igualmente confere a todo o cidadão a iniciativa da lei: todo o delito contra um ho-
mem ou uma mulher, uma criança, um concidadão ou estrangeiro livre ou escravo pode ser
levado à justiça por qualquer cidadão para que o delito seja reparado e o delinqüente casti-
gado. Cada indivíduo-cidadão é, assim, pessoalmente responsável pela aplicação do direito
e da justiça.
As reformas de Sólon, porém, não são ainda a democracia, apesar do acesso dos “tetes”
à justiça e à eclésia, da redução dos privilégios dos nobres e dos devedores libertados de suas
dívidas e da escravidão. Sólon não propôs uma Constituição que igualasse a todos perante
a lei e uma distribuição igualitária do poder político. A sociedade nascida das reformas de
Sólon no início do século 6º permanece desigual econômica, social e politicamente.
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Para Sólon, a sociedade divide-se entre os bons ou nobres (os kaloi kagathoi, literalmen-
te, belos e bons) e os feios e maus (kakoi) ou vilões. Os nobres não partilharão suas terras com
os pobres porque eles detêm a virtude política, porque é perigoso dar muitos bens a que não
tem nada, posto que eles não têm a sabedoria necessária. Por isso, diz Sólon, “os nobres não
terão suas terras confiscadas, pois não me agrada dar aos bons e aos maus uma parte igual
das terras férteis da pátria” (Aristóteles, Política, 2007, 12; Humbert, 1984, p. 54).
O princípio ordenador e pacificador da sociedade e que Sólon denominou Eunomia,
que significa “ordem e medida”, impõe aos nobres a renúncia de seu orgulho e de sua força
brutal e ao povo que se contente com os novos poderes que recebeu sem exigir mais nada.
Não pode haver entre essas duas classes nem vencidos, nem vencedores.
Não foi isso que aconteceu. Os nobres reagiram à perda de seus privilégios e o povo
por não ter recebido o que desejava, sobretudo uma justa distribuição da terra. E a Ática
acabou por dividir-se em três facções antagônicas: o “partido da planície”, composto pelos
ricos e nobres proprietários de terras, defensores de um governo oligárquico; em confronto
com eles, formou-se o “partido da montanha”, que agrupava os camponeses pequenos pro-
prietários, pastores e sem-terra, decepcionados por não terem recebido as terras que recla-
mavam para si; e o “partido da costa”, isto é, da cidade de Atenas e do litoral, que aceitaram
as reformas de Sólon, pois por meio delas artesãos e mercadores podiam ter acesso às magis-
traturas e aos Conselhos.
A Ática estava à beira de uma guerra civil. Essas três facções, acentua Aristóteles, em
contínuo confronto entre si freqüentemente impediam a eleição dos magistrados (Aristóteles,
Política, 2007, 13) até que, em 561 a.C., um nobre de nome Pisístrato que, eleito chefe do
exército e habilmente apoiado no partido da montanha (os camponeses pobres), dá um gol-
pe de Estado e se apodera do poder como tirano.
A “tirania” era uma forma de governo instituída em diversas póleis da Grécia, que
consistia na reunião de características monárquicas e democráticas: monárquicas porque o
tirano possuía autoridade ilimitada, sustentado por um exército de soldados mercenários;
democráticos porque, para conquistar o poder, o tirano se apoiava nas classes subalternas –
os pobres do campo e da cidade –, diminuindo os privilégios da aristocracia e promovendo o
bem-estar e a prosperidade do povo.
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
Pisístrato governou Atenas por 20 anos, até sua morte, em 528 a.C. Ao invés de pro-
mover uma reforma agrária, Pisístrato investe pesadamente na infra-estrutura urbana e por-
tuária e converte Atenas num dos mais poderosos centros industriais e comerciais do Medi-
terrâneo e atrai os camponeses mais pobres para a cidade, integra-os à economia urbana e
aos demais, converte-os numa classe estável de pequenos proprietários, confiscando as ter-
ras das famílias nobres que o tirano mandara ao exílio.
A estes novos proprietários concede os empréstimos necessários para que façam os in-
vestimentos na formação das culturas permanentes – a oliveira e a vinha – e na compra de
instrumentos e animais de trabalho. Em contrapartida, favorece a importação de trigo para o
abastecimento da população. A Ática,mediante a indústria urbana e a cultura da vinha e da
oliveira, tem excedentes exportáveis e meios de inserção no amplo mercado do Mediterrâneo.
A pólis ateniense não mais precisa nem depende de sua aristocracia. Nasce e se con-
solida neste período uma classe média ampla e próxima das aspirações do povo, que muito
rapidamente tomou consciência de si, de sua identidade. Estava aberto o caminho para a
democracia (cf. Humbert, 1984, p. 55-58; Jardé, 1977, p. 166).
1.1.6 – CLISTENES E A DEMOCRACIA
Depois de derrotar, em 507 a.C., uma tentativa da nobreza de voltar ao poder, Clístenes,
um aristocrata aliado das camadas populares, inicia a mais profunda reforma que dará ori-
gem ao regime democrático de Atenas. A reforma completa, a ruptura definitiva com as
antigas estruturas de poder e de organização da sociedade: e em seu lugar criará uma tríplice
estrutura de inserção do indivíduo na pólis: o demos, a tritie e a tribo.
O demos é a célula local de base. Clístenes divide o território da pólis (do Estado) em
cem circunscrições, os demos, igualmente distribuídos em três espaços: a cidade, a costa (o
litoral) e o interior. A cidade de Atenas é dividida em 30 demos, que obedecem a uma geo-
grafia semelhante à dos nossos bairros. Os demos do interior organizam-se sobre as comuni-
dades rurais pré-existentes. Cada demos agrupa entre 300 e mil pessoas – homens adultos.
Isto dá à Ática uma população total de 25 a 30 mil cidadãos, 80 a 100 mil com suas famílias,
às quais se juntam uns 10 mil metecos e uns 30 a 40 mil escravos.
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O demos agrupa todos os indivíduos residentes em seu território, independentemente
de classe social, origem étnica ou posses. Sua identidade lhe vem do demos ao qual pertence
e dele recebe inclusive o nome. Todas as referências ao passado são abolidas.
O demos cumpre uma dupla função. Em primeiro lugar, é uma unidade administrativa
de base que politicamente se expressa na assembléia, que elege o demarca ou “prefeito”,
cujas funções são: gerir as finanças locais e os bens da comunidade, supervisionar os cultos,
manter o cadastro dos cidadãos e cumprir a função de polícia. É esta assembléia também
que elege os membros que formarão, por um ano, o Conselho da Cidade (a Boulé).
Em segundo lugar, o demos é o lugar no qual todos os cidadãos aprendem a fazer
política. É uma escola permanente de civismo. É no seu demos que o adolescente inicia sua
vida pública, de cidadão.
A segunda estrutura de representação e organização política da pólis é a “tritie”. Seu
objetivo é evitar que os demos se tornem entidades isoladas, feudos e, desta forma, se perca
de vista o interesse geral da pólis. Cada tritie agrupa três ou quatro demos contíguos. Ob-
tém-se, assim, 30 trities, ou circunscrições homogêneas: dez para a cidade, dez para o inte-
rior e dez para o litoral. Para evitar que se torne um organismo poderoso, a tritie não dispõe
de meios efetivos de poder, como magistrados e assembléias. Ela serve apenas para encabe-
çar os demos e formar as tribos.
As tribos criadas por Clístenes visam a eliminar as anteriores sobre as quais a nobreza
exercia completo controle. Essas novas tribos são circunscrições puramente territoriais, po-
rém não homogêneas, pois cada tribo é composta de três trities, misturando uma tritie da
cidade, uma do litoral e outra do interior, de tal sorte que na tribo estão representados todos
os cidadãos, de todos os territórios da pólis.
A tribo, geograficamente descontínua, mistura, funde, as três frações da população
que estavam na base das lutas e dos conflitos políticos anteriores. Em contrapartida, a tribo
assume um caráter “nacional”, pois cada uma delas contém representantes de toda a Ática
e impede que a cidade cresça em poder e rompa o equilíbrio geral. Cada tribo designa, por
sorteio, todo ano, os 50 cidadãos que representarão cada tribo na Boulé, composta de 500
membros, que é a imagem em miniatura, mas fiel, da totalidade do corpo cívico da pólis.
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1.1.7 – O CONSELHO DOS 500 OU BOULÉ
O Conselho (Boulé) criado por Clístenes é formado de 500 membros, designados cada
ano por sorteio, à razão de 50 por tribo, a partir das listas feitas por cada demos. Todos são
candidatos, porém com a seguinte limitação: ninguém pode ser conselheiro mais de duas
vezes em sua vida, o que garante a alternância de governar e ser governado. Todo o cidadão
pode, por duas vezes em sua vida, ascender ao órgão máximo de governo e de poder da pólis.
É o Conselho que convoca a assembléia dos cidadãos e a dirige, é ele que propõe as pautas
de deliberações a serem tomadas.
Cabe ao Conselho também governar a pólis, dia e noite, em sessão permanente, não
porém, simultaneamente, reunindo todos os 500 membros. O sistema de tribo resolve o pro-
blema da seguinte forma: durante um décimo do ano (chamado Pritania), os 50 membros de
uma das dez tribos residirão sem descontinuidade no quarteirão dos pritanos, prontos a se
reunirem todo o dia no “bouleterion” (prédio do Conselho ou Boulé) que Clístenes mandou
construir sobre a “ágora”.
Durante este “mês político” os 50 conselheiros (buleutas) assumem o nome “pritanes”
(isto é, os chefes, os primeiros) e, cada dia, escolhem, por sorteio, um deles para ser o presi-
dente (epistate dos pritanes). O presidente não pode ser reeleito. Em conseqüência, cerca de
360 buleutas sobre 500, cada ano, podem orgulhar-se de ter sido por um dia – e unicamente
por um dia – o chefe de Estado. São previstas sessões plenárias do Conselho, neste caso
todos os buleutas participam delas (cf. Humbert, 1984, p. 62-71; Aristóteles, Política, 2007,
liv. VI, cap. I-VIII).
A estrutura da pólis compreende também outros organismos de representação e gover-
no. Salientam-se entre outros: o exército e seus comandos, a assembléia dos cidadãos (a
Eclésia), os cultos cívicos e o ostracismo.
O novo exército da pólis é composto por todos os cidadãos. Sua inserção militar se faz
por meio das dez tribos, cada uma delas formando um regimento. Cada tribo também elege
o comandante do seu regimento. Os comandantes dos regimentos são subordinados ao co-
mandante geral do exército denominado “arconte polemarco”, que é eleito pela assembléia
dos cidadãos.
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1.1.8 – A ASSEMBLÉIA DOS CIDADÃOS OU ECLÉSIA
A assembléia dos cidadãos ou eclésia é o órgão soberano de governo e de poder. A
presidência da assembléia cabe aos “epistates dos pritanes” de turno. A assembléia se reúne
em um prédio especialmente construído para tal, denominado Pnix. Ali os cidadãos partici-
pam das deliberações, escutam os discursos e os debates, sentados em degraus semelhantes
aos de um teatro. Clístenes garante a cada cidadão o direito de tomar a palavra na assem-
bléia, antes de votar. Este princípio será incorporado por todas as democracias antigas e
modernas.
1.1.9 – OS CULTOS DO ESTADO
Clístenes propõe um novo calendário, não mais religioso e lunar, mas político. A pólis
viverá segundo o ritmo da sucessão anual das dez pritanias que, a seu turno, governam,
promovem as assembléias, as eleições, prestações de contas, etc. Clístenes não pretende
abolir o calendário religioso anterior, simplesmente ele não é mais o calendário da pólis. É
um calendário privado, no qual se conservam os antigos cultos dos ancestrais, com seus
ritos e sacerdotes.
Cada demos e cada tribo terá seus deuses cívicos, suas festas e celebrações. A religião
se subordina à política. O conjunto dos deuses cívicos compõe o novo panteão da pólis.
O ostracismo proposto por Clístenes é um instrumento de proteção da pólis e de auto-
defesa dos cidadãos. Consiste na cassação ou suspensão dos direitos políticos de um cida-
dão cujas ações, atitudes e propostas impliquem ameaça à pólis.O acusado só será punido
com a pena do ostracismo se seu nome for anotado por pelo menos 6 mil cidadãos na con-
cha de uma ostra (ostrakon, em grego, daí ostracismo).
O condenado por ostracismo deverá abandonar a pólis dentro de dez dias e por dez
anos. Não é, porém, uma condenação penal, nem implica multa em dinheiro, nem perda de
sua capacidade civil e de seus direitos cívicos, os quais simplesmente suspensos. O ostracis-
mo não desonra a pessoa nem envolve os membros de sua família. O condenado tem direito
a apelar da sentença.
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
O Estado democrático fundado por Clístenes atingirá sua plenitude, a isonomia, isto
é, a autoridade, por ser exercida em função do interesse comum, e não segundo os interesses
de uma classe ou de um indivíduo. Todas as deliberações são submetidas ao público e pres-
ta-se a ele contas da autoridade exercida, esclarece Heródoto. A democracia ateniense se
completa quando todo o poder passa pelos canais constituídos pelos demos. A democracia é
o governo da pólis pelos demos. Ela atingirá sua plenitude no século 5º, depois de ter passa-
do pelo duro teste das guerras contra os persas (cfe. Levêque, 1967, p. 196-198; Humbert,
1984, p. 71-76).
SEÇÃO 1.2
Esparta: a pólis da disciplina militar
Esparta passou no século 7º a.C, tal como as demais pólis gregas, por uma severa
crise social. Os messênios, povo vencido quando da invasão dos dórios, iniciaram uma lon-
ga rebelião que acabou por exigir da nobreza proprietária das terras, como ocorrera em
Atenas, reformas profundas da estrutura social. O fio condutor dessas reformas é aqui tam-
bém a eunomia, a disciplina, a ordem. Aqui, entretanto, diferentemente das reformas pro-
postas por Sólon para Atenas, elas têm sucesso e Esparta é marcada definitivamente por
elas.
A vitória sobre os messênios revoltados só foi possível pela incorporação ao exército da
nobreza, da massa dos cidadãos comuns, dos esparciatas, ao todo uns 7 ou 8 mil cidadãos.
A nobreza proprietária das terras desfez-se delas e as pôs a serviço de toda a comunidade.
Renuncia também às suas prerrogativas de classe e às diferenças em relação aos cidadãos
comuns. Nasce daí a sociedade dos iguais.
Todo o espartano recebe um lote de terra (cleros), inalienável e não suscetível de hipo-
teca. O lote é cultivado por um hilota, messênio derrotado e escravizado, propriedade do
Estado, que deve entregar em espécie uma quantia de alimentos suficiente para manter a
família do titular e sua contribuição diária para a refeição comum. Aos espartanos é proibi-
da qualquer atividade econômica ou cultural. Sua ocupação única e permanente é a guer-
ra. Todos os espartanos são, em princípio, iguais nas posses.
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Essa igualdade se estende também à educação, que consiste na formação do soldado.
Sua formação militar inicia-se aos 7 anos e mais se assemelha à doma de um animal. Depois
de passar por sucessivas provas e iniciações, torna-se soldado aos 18 anos. É autorizado a
casar-se aos 30. Sua educação intelectual reduziu-se à aprendizagem de um “catecismo
moral” expresso em sentenças curtas ou “lacônicas”.
Politicamente, os espartanos também são iguais. Todos participam da assembléia. A
assembléia escolhe, entre os iguais, magistrados ou éforos, cujo mandato dura um ano. A
assembléia é dirigida pela “Gerusia”, o conselho dos anciãos, composto por todos os que,
chegados aos 60 anos, encerraram sua participação ativa no exército. Os espartanos con-
servaram também a figura política do rei, cujas funções eram exercidas por duas pessoas,
simultaneamente, das quais as principais eram comandar o exército nas guerras e presidir
celebrações religiosas e cívicas.
O militarismo que perpassou a sociedade dos iguais esterilizou a sociedade espartana
em termos culturais, artísticos e econômicos (cf. Humbert, 1984, p. 38ss) e observa Levêque
(1967, p. 181, 186-187):
Esparta aparece claramente como um fenômeno sociológico quase único, como um anacronis-
mo vivo, com a decisão cruel e muito sua de continuar fiel aos esquemas ancestrais e à sua
sociedade igualitária, herdade de idades longínquas.
E acrescenta:
Os espartanos amputaram-se de tudo o que poderia temperar sua rudeza. Desde então, Esparta
não sorrirá... nada pode dissimular o fator de egoísmo que entra na sua constituição oligárquica,
a serenidade que entra no seu imobilismo, o desprezo pelos bens espirituais que entra na sua
ruptura com a civilização (p. 186-187).
Essa sociedade exclusivamente voltada para a guerra só foi possível porque, como
vemos, submeteu e escravizou populações de camponeses obrigados a trabalhar suas ter-
ras em regime de escravidão, os hilotas. A sociedade igualmente dependia de outro impor-
tante grupo humano, os “periecos”, isto é, os que habitavam a periferia urbana e as terras
cultivadas pelos hilotas. Gozavam de alguma liberdade, dedicavam-se ao comércio, ao
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C IVILIZAÇÕES CLÁSSICAS II
artesanato, à indústria. Diferentemente dos hilotas, nunca se revoltaram e parece terem
aceitado com resignação sua marginalização política e militar (Jardé, 1977, p. 162;
Humbert, 1984, p. 41).
Embora tanto Esparta quanto Atenas tenham iniciado suas trajetórias históricas no
mesmo período e com o mesmo problema social a resolver, as duas soluções foram
diametralmente opostas. Ambas duraram um longo período e terminaram suas trajetórias
sob o domínio dos macedômios, primeiro, e dos romanos, depois.
Entre esses dois extremos, de Esparta e Atenas, estão as demais poleis gregas. Todas,
em seu conjunto, nos legaram boa parte das bases sobre as quais se assentam as sociedades
ocidentais.
SEÇÃO 1.3
A Maturidade da Democracia Ateniense – século V
A civilização grega, ao término do século 6º, já percorrera todas as experiências polí-
ticas, fruto inicial de revoltas e revoluções contra as aristocracias que desde o século 8º, se
haviam instalado no poder e o monopolizavam de forma absoluta, constituindo-se numa
cerrada oligarquia.
Desses movimentos antiaristocráticos ou antioligárquicos surgem, a partir do século
7º, os regimes governados por tiranos que promoveram em quase todas as póleis, à exceção
de Esparta, reformas políticas e sociais que implicaram, senão o fim da aristocracia, pelo
menos uma decisiva diminuição de seu poder e riqueza.
Atenas, entretanto, rapidamente ultrapassou o regime dos tiranos e em seu lugar ins-
taurou um regime baseado numa ampla participação dos demos. Foi a reforma de Clístenes.
Os atenienses, porém, não deram a seu novo regime o nome de democracia. A palavra
não existia, embora, como observa Humbert, na prática, a realidade do poder já estivesse no
povo.
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A palavra democracia aparece pela primeira vez, ainda segundo Humbert, na tragédia
de Ésquilo, as Suplicantes, escrita em data incerta entre 499 e 472 a.C.: “A mão soberana do
povo” (em grego “demou cratousa kheir”) “é a transposição poética do poder soberano de
votar a lei erguendo a mão. A maneira como a palavra foi construída é reveladora. Não se
trata de um decalque de “mon-arquia”, palavra já em uso, ou “oligarquia”. “Arquein” expri-
me o poder de mando sobre o outro, sobre um sujeito: o termo só conviria ao povo do qual se
pode dizer que não é senhor de si mesmo.
A palavra “cratein”, em contrapartida, abria um caminho de significações muito mais
rico: a idéia de um poder que tem sua origem, sua fonte, em si mesmo, de um poder, portan-
to, que se possui de forma absoluta. “Demo-cratia” exprime a noção de “poder soberano”
que reside no povo, que nada mais é do que o modo como os antigos gregos afirmavam a
“soberania popular” (Humbert, 1984, p. 78).
Atenas pôde realizar a mais importante, talvez única, experiência democrática radical

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