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Conceito de Crime 1. Conceito de crime O conceito de crime independe de fatores naturais. É impossível classificar uma conduta como criminosa através da análise ontológica. “A sociedade é a criadora inaugural do crime”[1], definindo quais as condutas ilícitas merecedoras de maior rigor punitivo. Cabe ao legislador transformar o intento social em uma figura típica através da criação de lei que permitirá a aplicação da punição. Sendo “a sociedade que define o que pode ser considerado como crime, este não é natural.”[2] O código penal vigente não define o que é crime, deixando a elaboração para a doutrina. E esta tem procurado definir o ilícito penal sob três aspectos diferentes. Definição formal, material e formal analítico da infração penal. 1.1 Conceito Material As definições materiais visam identificar por que o legislador prevê punição para certos fatos, e não para outros. É um conceito aberto que guia o legislador para definir quais condutas ofendem bens juridicamente tutelados, merecedores de pena. Segundo ensina Roxin, “o conceito material de crime é prévio ao Código Penal e fornece ao legislador um critério político-criminal sobre o que o Direito Penal deve punir e o que deve deixar impune”[3] Sendo assim, o Estado que irá valorar os bens da vida, protegendo-os por meio da lei penal. Para a sociedade, a conduta que gera lesão ao bem jurídico tutelado tem um sentido forte e único, que na lição de Roberto Lyra pode ser exemplificado: “Todos hão de saber, porque sentirão, o que devemos exprimir pela palavra crime. Julgamos criminologicamente, quando irrompe dentro de nós, diante de certos fatos, a sentença 'isto é um crime'! Este clamor provém da civilização que não se limita a 'invólucro dentro do qual arde a paixão selvagem do homem' (Carlyle). Há até uma sistematização subjetiva lançada na consciência humana através de um direito natural que ficou no verbo e agora será conquista, convicção, ação”[4] 1.2 Conceito Formal É a concepção do direito acerca do delito, em que se respeita o princípio da reserva legal, para o qual nullum crimen, nulla poena sine praevia lege, ou seja, não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine. Preocupa-se com o aspecto externo, nominal. Entram aqui definições como a de que “crime é uma conduta (ação ou omissão) contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena”[5] 1.3 Conceito Analítico Esse conceito não difere, na essência, do conceito formal. Trata-se do “conceito formal fragmentado em elementos que propiciam o melhor entendimento da sua abrangência[6] O conceito analítico de crime é o mais aceitado pela doutrina hodiernamente. Pode ser conceituado como a ação humana, antijurídica, típica, culpável e punível. A punibilidade é a possibilidade de aplicar a pena, porém não é elemento do crime. Hungria nos ensina que “um fato pode ser típico, antijurídico, culpado e ameaçado de pena, isto é, criminoso, e, no entanto, anormalmente deixar de acarretar a efetiva imposição de pena”[7]. Esta é a corrente mais aceita no Brasil e no exterior e se divide entre finalista (Assis Toledo, Heleno Fragoso, Juarez Tavares, Rogério Greco, entre outros) e causalista (Nelson Hungria, Frederico Marques, Magalhães Noronha, entre outros). Apesar de finalista, Damásio de Jesus, durante muito tempo, considerou uma teoria bipartida, hoje superada. Adotando o conceito analítico e a teoria finalista, passa-se à analisar os elementos do crime, quais sejam, conduta típica, antijurídica e culpável. 1.4 Antijuridicidade ou Ilicitude É a contrariedade de uma conduta em relação ao ordenamento jurídico. “Limita-se à observação da existência da anterioridade da norma em relação à conduta do agente, e se há contrariedade entre ambas, onde transparece uma natureza meramente formal da ilicitude.”[8] Trata-se de um prisma que leva em consideração o aspecto formal da antijuridicidade (contrariedade da conduta com o Direito), bem como o seu lado material (causando lesão a um bem jurídico tutelado. “A antijuridicidade é una, material porque invariavelmente implica a afirmação de que um bem jurídico foi afetado, formal porque seu fundamento não pode ser encontrado fora da ordem jurídica”[9] Segundo Mirabete, “diz-se que a tipicidade é o indício da antijuridicidade, que será excluída se houver uma causa que elimine sua ilicitude.”[10] Exemplificando, matar alguém é fato típico, mas não será antijurídico se o agente o fez por estar em estado de necessidade ou em legítima defesa. Não havendo crime nessas hipóteses. 1.5 Culpabilidade É um juízo de reprovação social que incide sobre o fato e seu autor. Entra na esfera interna do agente, no seu âmago. Trata-se do elemento subjetivo do crime. Sob a ótica da teoria normativa pura, proveniente do finalismo, o agente que é “imputável, atua com consciência potencial de ilicitude, e tem a possibilidade e a exigibilidade de atuar de outro modo seguindo as regras impostas pelo Direito”[11], é culpável. É preciso perguntar se o sujeito quis o resultado ou se ao menos podia prever que o evento iria ocorrer. Para falar em culpa precisamos desses dois elementos, vontade e previsibilidade. E foram esses elementos que serviram de base para a criação de dois conceitos jurídico-penais importantes: o dolo (vontade) e a culpa em sentido estrito (previsibilidade). O conceito de culpabilidade evoluiu muito, havendo diversas teorias a respeito. As principais são a psicológica e a normativa. Nas palavras de Noronha: “as duas teorias operam em setores diferentes; porém não se repudiam porque a psicológica vincula estritamente o indivíduo ao ato, enquanto a normativa refere-se à ilicitude desse proceder. Destacando- se, pois, na culpabilidade, esses dois elementos.”[12] Para a psicológica, ao realizar fato típico e antijurídico, somente se completaria a noção de infração penal se estivesse presente o dolo ou a culpa, que vinculariam, subjetivamente, o agente ao fato por ele praticado. Somente se analisaria a culpabilidade uma vez existente a imputabilidade penal. Na normativa ou psicológico-normativa leva-se em conta o juízo de reprovação social. A imputabilidade passa a ser elemento da culpabilidade e não pressuposto. A culpabilidade exige dolo ou culpa, elementos psicológicos do agente, e também a reprovabilidade como juízo de valor sobre o fato. Só então haveria consciência ou previsibilidade de tal resultado. A doutrina não pode aceitar a teoria psicológico-normativa, pois o dolo não pode ser ao mesmo tempo elemento do fato e elemento da culpabilidade pelo fato. Chegando-se assim, à teoria da culpabilidade ou teoria normativa pura. Se a conduta, sob a ótica do finalismo, é uma movimentação corpórea, voluntária e consciente com uma finalidade, logo, o ser humano possuí uma finalidade que é analisada desde logo sob o prisma doloso ou culposo. “Portanto, para tipificar uma conduta já se ingressa na análise do dolo ou da culpa, que se situam na tipicidade, e não na culpabilidade”[13] Ainda assim, não se exclui inteiramente da culpabilidade o dolo ou a culpa. Segundo Mirabete, “o dolo ocupa dupla posição: em primeiro lugar, como realização consciente e volitiva das circunstâncias objetivas (no fato típico), e, em segundo, como portador do desvalor da atitude interna que o fato expressa.”[14] Nessa esteira, o art. 59 do Código Penal observa a intensidade do dolo ou o grau de culpa do agente para fixação da pena. Essa dupla posição pode ser classificada como culpabilidade formal e material. “A culpabilidade formal é a censurabilidade merecida pelo autor do fato típico e antijurídico, dentro dos critérios que a norteiam, isto é, se houver imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade de atuação conforme o Direito. Porém, a culpabilidade material é a censura realizada concretamente,visualizando-se o fato típico e antijurídico e conhecendo-se o seu autor, imputável, com consciência potencial do ilícito e que valendo-se de seu livre- arbítrio, optou pelo injusto sem estar fundado em qualquer causa de exclusão de culpabilidade, por fatores de inexigibilidade de conduta diversa.”[15] 1.6 Fato Típico Para que o fato seja típico, deve se enquadrar perfeitamente à norma abstrata positivada. O fato típico é composto pela tipicidade, conduta, resultado e nexo causal. Isso porquê o fato típico é a síntese da conduta ligada ao resultado pelo nexo causal, amoldando-se ao modelo legal incriminador. Quando ocorre uma ação ou omissão, pode haver um resultado juridicamente relevante. Se tal resultado é dotado de tipicidade, está presente o fato típico. 1.6.1 Conduta Como exposto acima, há duas teorias principais a respeito da conduta. A causalista e a finalista. Há também as teorias social e funcional. A teoria causalista considerava conduta o movimento corpóreo capaz de repercutir no mundo exterior, sem qualquer valoração, neutro. O dolo e a culpa eram analisados apenas ao final, em sede de culpabilidade. Segundo ensina Juarez Tavarez, “o isolamento da culpabilidade do conceito de delito representa uma visão puramente pragmática do Direito Penal, subordinando-o de modo exclusivo à medida penal e não aos pressupostos de sua legitimidade”[16] Critica-se essa posição clássica, pois “está-se cindindo um fenômeno real, separando-se a ação voluntária de seu conteúdo (o fim do agente ao praticar a ação) e ignorando-se que toda ação humana tem sempre um fim.”[17] Isso dificultaria a conceituação de tentativa, por exemplo, pois o fato típico não ocorre, embora o agente o pretendesse. A finalista conceitua conduta como a ação ou omissão, voluntária e consciente, implicando em um comando de movimentação ou inércia do corpo humano, voltado a uma finalidade. Toma-se aqui o conceito de conduta como gênero, sendo ação e omissão suas espécies. O finalismo, mais dinâmico e atual, avalia tais elementos já no fato típico, dentro da conduta. Esta para ser penalmente relevante tem que ser dolosa ou culposa. Hans Welzel, considerando que se trata de um juízo de realidade, e não fictício, deslocou o dolo e a culpa da culpabilidade para o fato típico. Entretanto, há finalistas que não admitem a possibilidade de se elaborar um conceito genérico de conduta, envolvendo ação e omissão, visualizando-as separadamente. A teoria social conceitua conduta como o comportamento voluntário e consciente socialmente relevante. É uma teoria mista entre a causalista e finalista. Tendo em vista que algo socialmente importante pode ser muito vago e abstrato, esta teoria não encontrou muitos adeptos. Para a teoria funcional, “conduta é a ação ou omissão voluntária e consciente capaz de evidenciar uma autêntica manifestação da personalidade, explicitando a esfera anímico-espiritual do ser humano”[18] Para qualquer uma destas teorias é indispensável a existência do binômio vontade e consciência. Vontade é o querer ativo, apto a levar o ser humano a praticar um ato. Este querer deve ser apto a desencadear movimentos corpóreos tendentes à realização dos seus propósitos. Consciência é “a possibilidade que o ser humano possui de separar o mundo que o cerca dos próprios atos, realizando um julgamento moral de suas atitudes.”[19] Significa ter noção clara da diferença entre realidade e ficção. 1.6.2 Resultado Há dois conceitos para definir o resultado. O naturalístico e o jurídico ou normativo. Segundo o jurídico ou normativo, o resultado “é a modificação gerada no mundo jurídico, seja na forma de dano efetivo ou na de dano potencial, ferindo interesse protegido pela norma penal”[20]. Portanto, se a conduta fere um interesse juridicamente protegido, causa um resultado. Uma conceituação naturalística, afirma que resultado é a modificação do mundo exterior provocado pelo comportamento humano voluntário. É “o efeito natural da ação que configura a conduta típica, ou seja, o fato tipicamente relevante produzido no mundo exterior pelo movimento corpóreo do agente e a ele ligado por relação de causalidade”.[21] O resultado natural de um homicídio por exemplo, seria a morte da vítima. O critério jurídico foi adotado pelo legislador pátrio. Entretanto, prevalece na doutrina o conceito naturalístico de resultado. Assim, faz-se a divisão dos crimes de atividade (formais e de mera conduta) e de resultado (materiais). No crime formal, não é necessária a concretização daquilo que é pretendido pelo agente. O resultado jurídico previsto no tipo ocorre paralelamente à conduta. O tipo menciona o comportamento e o resultado, mas não exige a produção deste último para a sua consumação. O crime de mera conduta não prevê nenhum resultado. A ação ou omissão já caracteriza o crime. A ocorrência de eventual resultado do crime formal caracteriza o chamado exaurimento do tipo penal, que nada influi na consumação, visto que ocorre após esta fase. Crime material é aquele em que a lei descreve uma ação e um resultado, e exige a ocorrência deste para que o delito se consume. O crime de estelionato, em que a lei descreve uma ação, qual seja, "empregar fraude para induzir ou manter alguém em erro", e um resultado, qual seja, "obter vantagem ilícita em prejuízo alheio" (art. 171 do Código Penal). Assim, o estelionato só se consuma com a obtenção da vantagem ilícita visada pelo agente. Observe-se que “a relação de causalidade somente tem real importância no cenário dos crimes materiais, isto é, aqueles que necessariamente relacionam a conduta a um resultado concreto, previsto no tipo”.[22] 1.6.3 Nexo Causal Para se entender o nexo causal, é necessário analisar o conceito de causa. Causa é a conexão, ligação que existe numa sucessão de acontecimentos que pode ser entendida pelo homem. Causar, é motivar, produzir fenômeno natural que independe de definição. Para se apurar se alguma circunstância fática é causa de um crime, deve-se utilizar o critério do juízo de eliminação. Abstrai-se determinado fato do contexto e se ainda assim o resultado persiste, ele não é causa do resultado. Há duas posições doutrinárias predominantes acerca do nexo causal. A teoria da causalidade adequada e a da equivalência das condições. O Código Penal brasileiro, ao resolver a questão do nexo de causalidade, adotou a teoria da condition sine qua non ou da equivalência dos antecedentes causais. No seu artigo 13, caput, 2.ª parte, que é considerada causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Atribui relevância causal a todos os antecedentes do resultado, considerando que nenhum elemento, de que depende a sua produção, pode ser excluído da linha de desdobramento causal. Causa é toda condição do resultado, e todos esses elementos antecedentes têm o mesmo valor. A crítica mais severa que se faz à teoria da conditio sine qua non é a que diz respeito à sua extensão. Seria causa do homicídio a fabricação da arma utilizada pelo agente, ou o comerciante que vendeu o rebenque utilizado em um crime de lesão corporal. “Cairíamos no que se denomina regressus ad infinitum: todos os agentes das condições antecedentes responderiam pelo crime, pois teriam contribuído materialmente para o evento.”[23] Embora a lei diga que a omissão também é causa do resultado criminoso “não há, contudo, nexo causal entre a omissão e o resultado, uma vez que do nada, nada surge. O omitente responde pelo resultado não porque causou o resultado, mas porque não agiu para impedi-lo, realizando a conduta a que estava obrigado.”[24] Já a teoria da causalidade adequada ensina que um determinado evento somente será produto da ação humana quando esta tiver sido apta e idônea a gerar o resultado. O corte do nexo causal é feito de maneira diferente nas duas teorias.Na primeira, a inexistência de dolo ou culpa ocasiona o corte. A venda de uma arma que será utilizada para cometer um homicídio não é causa, caso o vendedor não tenha noção da finalidade do uso da arma. Na segunda teoria, a ação deve ser idônea a gerar o resultado. A venda da arma jamais seria considerada causa, pois não é idônea a esse tipo de resultado. Vale dizer que armas não são vendidas com o propósito de causar crimes de homicídio. Hoje, na Europa, há uma terceira teoria que visa sanar os problemas existentes com as duas anteriores. A teoria da imputação objetiva, que tem por finalidade imputar ao agente a prática de um resultado delituoso apenas quando o seu comportamento tiver criado, realmente, um risco não tolerado, nem permitido, ao bem jurídico. Entretanto, há grande divergência entre a doutrina que a sustenta sobre as situações em que deve haver punição ou não. Por ora, a teoria da equivalência dos antecedentes, adotada pelo direito penal brasileiro, é menos sujeita a erros. 1.6.4 Tipicidade É a adequação de uma conduta ou fato concreto à norma jurídica positivada. Isto é, a correspondência perfeita, a adequação exata entre o fato concreto e a descrição legal. Como nos ensina Damásio, “tipicidade é a correspondência entre o fato praticado pelo agente e a descrição de cada espécie de infração contida na lei penal incriminadora.”[25] O Código Penal pátrio prevê ainda a tipicidade por extensão, que é a aplicação conjunta do tipo penal incriminador, previsto na Parte Especial com uma norma de extensão, prevista na Parte Geral, tendo por finalidade construir a tipicidade de determinado delito. É o que se dá com a tentativa. A doutrina moderna afirma que o tipo penal tem duas funções. Uma é a da garantia, oriunda do princípio da legalidade. A outra é a de indicar a antijuridicidade do fato, sendo a tipicidade o seu indício. Praticado o fato típico, presume-se que seja antijurídico, presunção que apenas cessará diante da existência de uma causa que a exclua. Se uma pessoa mata outra, é uma conduta típica (matar alguém) e a princípio antijurídica, porém se comete tal conduta em legítima defesa, não é antijurídico o fato. A ausência de tipicidade é chamada de atipicidade, que “pode ser total, como, por exemplo, no exercer o meretrício, ou específica, quando inexistente um elemento objetivo que caracteriza determinado crime, como, por exemplo, não ser recém-nascida a vítima morta pela mãe (em se tratando de infanticídio).”[26] Muitas vezes, é possível aplicar diferentes normas a um mesmo fato natural, o que é chamado de conflito aparente de normas. São dois seus requisitos: unidade de fato e a pluralidade de normas que identificam o mesmo fato delituoso. Para resolver esse problema são aplicados os princípios da especialidade; o da subsidiariedade, da consunção e o da alternatividade.
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