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POSTMAN, Neil - Tecnopólio - A rendição da Cultura à Tecnologia

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REFERÊNCIA 2
Texto 1: 
POSTMAN, Neil. Tecnopólio: A rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 
1994. (p.13-48)
O JULGAMENTO DE 
THAMUS 
pessoas como nós, inclinadas (na frase de Thoreau) a ser ferramentas de 
nossas ferramentas, poucas lendas são mais instrutivas do que esta. A 
história, como Sócrates contou para seu amigo Fedro, desen- rolou-se 
da seguinte maneira: um dia Thamus recebeu o deus Theuth, que foi o 
inventor de muitas coisas, inclusive do número, do cálculo, da 
geometria, da astronomia e da escrita. Theuth exibiu suas invenções 
para o rei Thamus, afirmando que elas deviam ser ampla- mente 
conhecidas e disponíveis aos egípcios. Sócrates continua: 
Thamus indagou sobre o uso de cada uma delas, e, enquanto 
Theuth discorria sobre elas, expressava aprovação ou desa- 
provação, à medida que julgasse as afirmações de Theuth bem ou 
mal fundamentadas. Levaria tempo demais repassar tudo 
o que se relatou sobre o que Thamus disse a favor ou contra 
cada invenção de Theuth. Mas quando chegou na escrita, Theuth 
declarou: “Aqui está uma realização, meu senhor rei, que irá 
aperfeiçoar tanto a sabedoria como a memória dos egípcios. Eu 
descobri uma receita segura para a memória e 
1 3 
 
 
ocê encontrará em Fedro de Platão uma história sobre 
Thamus, o rei de uma grande cidade do Alto Egito. Para 
para a sabedoria”. Com isso, Thamus replicou: “Theuth, meu 
exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor 
juiz para avaliar o bem ou dano que ela causará naqueles que a 
pratiquem. Portanto, você, que é o pai da escrita, por afeição a seu 
rebento, atribuiu-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles 
que a adquirirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão 
esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua lembrança 
por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus próprios 
recursos internos. O que você descobriu é a receita para a 
recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus 
discípulos terão a reputação dela sem a realidade, vão receber uma 
quantidade de informação sem a instrução adequada, e, como 
conseqüência, serão vistos como muito instruídos, quando na 
maior parte serão bastante ignorantes. E como estarão supridos 
com o conceito de sabedoria, e não com a sabedoria verdadeira, se-
rão um fardo para a sociedade”.1 
Começo meu livro com essa lenda porque na resposta deThamus há 
vários sólidos princípios, com os quais podemos começar a aprender a 
pensar com sábia circunspecção sobre a sociedade tecnológica. Na 
verdade, há inclusive um erro no julgamento deThamus, com o qual 
também podemos aprender algo importante. O erro não está em sua 
afirmação de que a escrita irá prejudicar a memória e criar uma falsa 
sabedoria. É demonstrável que a escrita tem tido esse efeito. O erro de 
Thamus está em sua crença em que a escrita será um fardo para a 
sociedade, e nada mais que um fardo. Com toda a sua sabedoria, ele falha ao 
não imaginar quais poderiam ser os benefícios da escrita, que, como 
sabemos, têm sido consideráveis. Podemos aprender com isso que é um 
erro supor que qualquer inovação tecnológica tem um efeito unilateral 
apenas. Toda tecnologia tanto é um fardo como uma bênção; não uma 
coisa ou outra, mas sim isto e aquilo. 
Nada poderia ser mais óbvio, é claro, especialmente para aqueles que 
pensaram mais de dois minutos sobre a questão. Não obstante, 
atualmente estamos cercados por multidões de zelosos Theuth, pro 
14 
fetas de um olho só que vêem apenas o que as novas tecnologias podem 
fazer e são incapazes de imaginar o que elas irão desfazer. Podemos chamar 
essas pessoas de tecnófilos. Elas olham para a tecnologia como um amante 
para a amada, vendo-a sem defeitos e não sentindo apreensão alguma 
quanto ao futuro. Por conseguinte, cias são perigosas, e devem ser 
abordadas com cuidado. Por outro lado, alguns profetas de um só olho, 
como eu (ou pelo menos é do que me acusam), estão inclinados a falar 
apenas de fardos (ao modo de Thamus), e se calam sobre as 
oportunidades que as novas tecnologias tornam possíveis. Os tecnófilos 
precisam falar por si, e o fazem por toda a parte. Minha defesa é a de que 
às vezes é preciso uma voz discordante para moderar a gritaria feita pelas 
multidões entusiásticas. Se temos que errar, é melhor errar pelo lado do 
ceticismo de Thamus. Mas, ainda assim, é um erro. E eu poderia observar 
que, com exceção de seu julgamento sobre a escrita, Thamus não repete 
esse erro. Ao reler a lenda, você pode notar que ele dá argumentos a favor e 
contra cada invenção de Theuth. É, pois, inevitável que cada cultura 
precise negociar com a tecnologia, fazendo-o de maneira inteligente ou 
não. Chega-se a um acordo no qual a tecnologia dá e toma. O sábio sabe 
muito bem disso e raras vezes se impressiona com as dramáticas 
mudanças tecnológicas, e jamais se enche de satisfação. Aqui temos 
Freud, por exemplo, sobre a ques- tão, de seu sombrio Civilization and its 
Discontents. 
Gostaríamos de perguntar: então não há nenhum ganho positivo 
no prazer, nenhum aumento inequívoco em minha sensação de 
felicidade, se posso ouvir, quantas vezes quiser, a voz de um filho 
meu que está vivendo a centenas de quilômetros de distância, ou 
se posso saber no tempo mais curto possível que um amigo 
chegou a seu destino e que percorreu a longa e difícil viagem são e 
salvo? Não significa coisa alguma que a medicina tenha tido um 
enorme sucesso na redução da mortalidade infantil e no perigo de 
infecção para mulheres em trabalho de parto e em aumentar 
consideravelmente a média de vida do homem civilizado? 
1 5 
Freud sabia muito bem que os avanços técnicos e científicos não 
deviam ser encarados com leviandade, motivo pelo qual ele começa essa 
passagem reconhecendo-os. Mas ele termina lembrando-nos do que eles 
desfizeram: 
Se não houvesse nenhuma estrada de ferro para conquistar as 
distâncias, meu filho jamais teria saído de sua cidade natal, e eu 
não precisaria de telefone para ouvir a voz dele; se não tivesse sido 
iniciada a viagem de navio pelos oceanos, meu amigo não teria 
embarcado em sua viagem pelo mar e eu não precisaria de 
telegrama para aliviar minha ansiedade em relação a ele. De que 
adianta reduzir a mortalidade infantil quando é precisamente essa 
redução que nos impõe a maior limitação para gerar mais filhos, 
de forma que, em geral, ainda assim não temos mais filhos do que 
nos tempos antes do reinado da higiene, ao passo que ao mesmo 
tempo criamos condições difíceis para nossa vida sexual no 
casamento... E, por fim, de que nos serve uma vida longa, se ela é 
difícil e pobre de alegrias, e se é tão cheia de desgraça que só 
podemos acolher a morte como uma libertadora?2 
Ao analisar o custo do progresso tecnológico, Freud assume uma postura 
bastante depressiva: a de alguém que concorda com a observação 
deThoreau, de que nossas invenções nada mais são que meios 
aperfeiçoados para se chegar a um fim não melhorado. Sem dúvida o 
tecnófilo responderia a Freud dizendo que a vida sempre foi pobre de 
alegrias e cheia de desgraça, mas que o telefone, os navios de carreira e 
em especial o reino da higiene não apenas aumentaram o tempo de vida, 
mas também tornaram-na uma proposta mais agradável. Esse é, com 
certeza, um argumento que eu apresentaria (desse modo, provaria que 
não sou um tecnófobo de um olho só), mas nesse momento não é 
necessário seguir essa linha. Eu trouxe Freud para a conversa apenas para 
demonstrar que um sábio — mesmo alguém com um semblante tão triste 
— precisa começar sua crítica à tecnologia reconhecendo seus sucessos. Se 
o rei Thamus fosse tão sábio como demonstravasua reputação, não teria 
esquecido de in 
16 
cluir em seu julgamento uma profecia sobre os poderes que a escrita 
ampliaria. Há um cálculo da mudança tecnológica que requer uma 
medida de imparcialidade. 
Chega do erro de omissão de Thamus. Há uma outra omissão digna 
de nota, mas que não é um erro. Thamus simplesmente aceita como certo 
— e, por conseguinte, não acha necessário dizer — que a escrita não é 
uma tecnologia neutra, cujo bem ou dano depende do uso que se faça 
dela. Ele sabe que os usos de qualquer tecnologia são determinados, em 
grande parte, pela estrutura da tecnologia em si, isto é, que suas funções 
resultam de sua forma. Esse é o motivo pelo qual Thamus não está 
preocupado com o que as pessoas vão escrever; ele está preocupado com o 
fato de que as pessoas irão escrever. É absurdo imaginar Thamus 
avisando, à maneira do tecnófilo-padrão de hoje, que os malefícios da 
escrita poderiam ser minimizados, desde que ela fosse usada apenas para 
a produção de certos tipos de textos (digamos que para a literatura 
dramática, mas não para a história ou para a filosofia). Ele veria tal aviso 
como uma extrema ingenuidade. Imagino que ele permitiria que se 
impedisse uma tecnologia de entrar em uma cultura. Mas podemos 
aprender o seguinte com Thamus: uma vez que uma tecnologia é aceita, 
ela atua de imediato; faz o que está destinada a fazer. Nossa tarefa é 
compreender o que é esse desígnio; vale dizer que, quando aceitamos 
uma tecnologia nova, devemos fazê-lo com os olhos bem abertos. 
Podemos deduzir tudo isso do silêncio de Thamus. Mas podemos 
aprender mais ainda com o que ele diz do que com o que não diz. Ele 
observa, por exemplo, que a escrita mudará o significado das palavras 
“memória” e “sabedoria”. Ele receia que a memória vá ser confundida 
com o que ele chama desdenhosamente de “recordação”, e se preocupa 
com que a sabedoria não possa ser diferenciada do mero conhecimento. 
Devemos levar a sério esse julgamento, posto que é uma certeza que as 
tecnologias radicais criam novas definições para velhos termos, e que esse 
processo ocorre sem que tenhamos plena consciência dele. Desse modo, é 
insidioso e perigoso, bem diferente do processo em que novas tecnologias 
introduzem novos 
1 7 
termos na linguagem. Em nosso tempo, temos acrescentado, de forma 
consciente, à nossa linguagem, milhares de palavras e frases novas que 
têm a ver com tecnologias novas — “VCR”, “dígito binário”, “software”, 
“tração nas rodas dianteiras”, “janela de oportunidade”, “walkman” etc. 
Não somos tomados de surpresa por isso. Coisas novas requerem 
palavras novas. Mas as coisas novas também modificam palavras velhas, 
palavras que têm significados com profundas raízes. O telégrafo e o 
jornal diário mudaram o que antes chamávamos de “informação”. A 
televisão muda o que antes chamávamos de “debate político”, “notícia” e 
“opinião pública”. O computador muda a “informação” mais uma vez. A 
escrita mudou o que antes chamávamos de “verdade” e “lei”; a imprensa 
mudou-as mais uma vez e agora a televisão e o computador tornam a 
mudá-las. Essas mudanças ocorrem com rapidez, sem dúvida, e em certo 
sentido em silêncio. Os lexicógrafos não fazem plebiscitos sobre a ques-
tão. Não se escrevem manuais para explicar o que está acontecendo, e as 
escolas estão desatentas a isso. As velhas palavras ainda parecem ser as 
mesmas, ainda são usadas nos mesmos tipos de frases. Mas não têm mais 
os mesmos significados; em alguns casos, têm o significado oposto. E é 
isso o que Thamus nos deseja ensinar — que a tecnologia se apodera 
imperiosamente de nossa terminologia mais importante. Ela redefine 
“liberdade”, “verdade”, “inteligência”, “fato”, “sabedoria”, “memória”, 
“história” — todas as palavras com que vivemos. E ela não pára para nos 
contar. E nós não paramos para perguntar. 
Esse fato sobre a mudança tecnológica requer alguma elaboração e 
voltaremos ao assunto em um capítulo mais adiante. No momento, há 
vários outros princípios a serem explorados pelo julgamento de Thamus, 
que precisam ser mencionados porque pressagiam tudo sobre o que 
escreverei. Por exemplo, Thamus adverte que os discípulos de Theuth 
irão desenvolver uma reputação de sabedoria não merecida. Ele quer 
dizer que aqueles que cultivam a competência no uso de uma tecnologia 
nova tornam-se um grupo de elite ao qual aqueles que não têm essa 
competência garantem autoridade e prestígio imerecidos. Há maneiras 
diferentes de expressar as interessantes 
18 
implicações desse fato. Harold Innis, o pai dos estudos da comunicação 
moderna, falou repetidas vezes dos “monopólios do conhecimento” 
criados por importantes tecnologias. Ele referia-se precisamente ao que 
Thamus tinha em mente: aqueles que têm o controle do funcionamento de 
uma tecnologia particular acumulam poder e, de maneira inevitável, 
formam uma espécie de conspiração contra aqueles que não têm acesso ao 
conhecimento especializado, tornado disponível pela tecnologia. Em seu 
livro The Bias of Communication, Innis oferece muitos exemplos históricos de 
como uma tecnologia nova “dissolveu” o monopólio de um conhecimento 
tradicional e criou um novo, presidido por um grupo diferente. Uma 
outra maneira de dizer isso é que os benefícios e déficits de uma 
tecnologia nova não são distribuídos por igual. Há, por assim dizer, 
ganhadores e perdedores. É intrigante e comovente que em muitas 
ocasiões os perdedores, por ignorância, tenham aplaudido os vencedores, 
e alguns ainda aplaudam. 
Vamos tomar como exemplo o caso da televisão. Nos Estados Unidos, 
onde a televisão se firmou mais profundamente do que em qualquer 
outro lugar, muitas pessoas acham-na uma bênção, sobretudo aquelas 
que nela conquistaram carreiras bem pagas e gratifi- cantes, como 
executivos, técnicos, locutores e artistas de programas de variedades. Não 
deveria surpreender ninguém o fato de essas pessoas que formam um 
novo monopólio do conhecimento aplaudirem, defenderem e 
promoverem a tecnologia da televisão. Por outro lado, a longo prazo, a 
televisão pode pôr um fim gradual nas carreiras dos professores, posto 
que a escola foi uma invenção da prensa tipográfica e deve-se manter de 
pé ou cair conforme a importância que tenha a palavra impressa. Durante 
quatrocentos anos os professores fizeram parte do monopólio do 
conhecimento criado pela prensa tipográfica, e agora estão 
testemunhando o colapso desse monopólio. Ao que parece, eles pouco 
podem fazer para impedir esse colapso, mas com certeza há algo de 
perverso nos professores entusiasmados com o que está acontecendo. 
Esse entusiasmo sempre evocou em minha mente a imagem de algum 
ferreiro da virada do século, que não apenas canta os elogios ao 
automóvel, como também acre 
dita que seu negócio crescerá com ele. Nós sabemos agora que o negócio 
dele não cresceu; tornou-se obsoleto, como talvez o soubessem os 
ferreiros lúcidos. O que eles poderiam fazer? Chorar, se não tivessem 
outra opção. 
Temos uma situação semelhante no desenvolvimento e difusão da 
tecnologia do computador, pois aqui também há vencedores c vencidos. 
Não pode haver discussão sobre o fato de o computador ter aumentado o 
poder de organizações de larga escala, como as forças armadas, ou as 
empresas aéreas, bancos e órgãos coletores de impostos. E também está 
claro que agora o computador é indispensável para pesquisadores de alto 
nível na física e em outras ciências naturais. Mas em que extensão a 
tecnologia do computador tem sido uma vantagem para as massas? Para 
os operários siderúrgicos, proprietários de quitandas, professores, 
mecânicos de carro, músicos, pedreiros, dentistas e a maioria das pessoascujas vidas o computador está invadindo agora? Seus assuntos 
particulares foram tornados mais acessíveis para instituições poderosas. 
Eles são seguidos e controlados com mais facilidade; são submetidos a 
mais exames; são mistificados cada vez mais pelas decisões tomadas 
sobre eles; muitas vezes são reduzidos a meros objetos numéricos. São 
inundados por correspondência inútil. São alvos fáceis das agências de 
publicidade e de organizações políticas. As escolas ensinam seus filhos a 
operar sistemas computadorizados, em vez de ensinar coisas mais 
valiosas para crianças. Resumindo, para os perdedores não acontece 
quase nada do que precisam. E é por isso que são perdedores. 
Espera-se que os vencedores estimulem os perdedores a se entu-
siasmar com a tecnologia do computador. É a maneira de ser dos 
vencedores, e assim às vezes eles dizem para os perdedores que com 
o computador pessoal a média das pessoas pode verificar o saldo no 
talão de cheques com mais exatidão, pode acompanhar melhor receitas e 
fazer listas de compras mais lógicas. Também dizem que suas vidas serão 
conduzidas com mais eficiência. Mas discretamente deixam de dizer do 
ponto de vista de quem será garantida a eficiência, ou qual pode ser seu 
custo. Se os perdedores ficam céticos, os vencedores os ofuscam com as 
maravilhosas façanhas dos computadores, 
20 
a maioria das quais tem apenas relevância marginal para a qualidade 
de vida dos perdedores, mas que mesmo assim são impressionantes. 
Em dado momento, os perdedores capitulam, em parte porque acre- 
ditam como profetizou Thamus, que o conhecimento especializado 
dos mestres de uma tecnologia nova seja uma forma de sabedoria. E, 
como Thamus também profetizou, os mestres também passam a 
acreditar nisso. O resultado é que certas questões não são levanta- 
das. Por exemplo, a quem a tecnologia dará maior poder e liberdade? 
E o poder c a liberdade de quem serão reduzidos por ela? 
Talvez eu tenha feito tudo isso parecer uma conspiração bem planejada, 
como se os vencedores soubessem muito bem o que está sendo ganho e o 
que está sendo perdido. Mas não é bem assim que 
acontece. Em culturas que têm um espírito democrático, tradições 
relativamente fracas e alta receptividade a tecnologias novas, todo o 
mundo está inclinado a se entusiasmar com a mudança tecnológica, 
acreditando que seus benefícios se espalharão, em um dado momen- 
to por igual sobre toda a população. Sobretudo nos Estados Uni- dos, 
onde não tem limites a ânsia pelo que é novo, encontramos mais 
amplamente difundida essa convicção infantil. De fato, na América, raras 
vezes a mudança social de qualquer tipo é vista como resultando em 
vencedores e perdedores, condição essa que se origina 
em parte do otimismo muito documentado dos americanos. Quan- to à 
mudança causada pela tecnologia, esse otimismo nativo é explo- rado por 
empresários, que trabalham duro para instilar na popula- ção uma 
unidade de esperança improvável, posto que sabem que do 
ponto de vista econômico não é sábio revelar o preço a ser pago pela 
mudança tecnológica. Então, poder-se-ia dizer que, se há conspiração de 
algum tipo, é a de uma cultura conspirando contra si mesma. 
A L É M disso, e mais importante que tudo, nem sempre está claro, pelo 
menos nos estágios iniciais da invasão de uma tecnologia em uma 
cultura, quem ganhará mais e quem perderá mais. Isto se dá 
porque as mudanças forjadas pela tecnologia são sutis, quando não 
são completos mistérios; e poder-se-ia dizer que são imprevisíveis. 
 Entre as mais imprevisíveis estão aquelas que podem ser rotuladas de 
ideológicas. É o tipo de mudança que Thamus tinha em mente, 
21 
quando advertiu que os escritores passariam a confiar em sinais externos 
em vez de confiar em seus próprios recursos internos, e que iriam receber 
grandes quantidades de informação sem instrução adequada. Ele quis 
dizer que as novas tecnologias mudam aquilo que entendemos como 
“conhecimento” e “verdade”; elas alteram hábitos de pensamento 
profundamente enraizados, que dão a uma cultura seu senso de como é o 
mundo — um senso do que é a ordem natural das coisas, do que é 
sensato, do que é necessário, do que é inevitável, do que é real. Como 
essas coisas são expressas em sentidos modificados de velhas palavras, 
deixarei de lado, até discussão posterior, a maciça transformação 
ideológica que está ocorrendo agora nos EUA. Por enquanto, gostaria de 
dar apenas um exemplo de como a tecnologia cria novas concepções do 
que é real e, durante o processo, mina as concepções mais velhas. Refiro-
me à prática aparentemente inofensiva de atribuir notas ou graus às 
respostas que os estudantes dão nos exames. Esse procedimento parece 
tão natural para a maioria de nós que mal temos consciência de seu 
significado. 
Podemos achar difícil imaginar que o número e a letra sejam 
ferramentas, ou, se quiserem, uma tecnologia; contudo, quando usamos 
tal tecnologia para julgar o comportamento de alguém, fazemos algo 
peculiar. Na realidade, o primeiro exemplo de se dar nota a papéis dos 
estudantes ocorreu na Universidade de Cambridge, em 1792, por 
sugestão de um tutor chamado William Farish.3 Ninguém sabe muita 
coisa sobre William Farish; apenas um punhado de pessoas já ouviu falar 
dele. No entanto, sua idéia de que um valor quantitativo deveria ser 
atribuído aos pensamentos humanos foi um grande passo em direção à 
construção de um conceito matemático de realidade. Se se pode dar um 
número à qualidade de pensamento, então, pode-se atribuir um número à 
qualidade da compaixão, do amor, da beleza, do ódio, da criatividade, da 
inteligência e até mesmo da sanidade. Quando Galileu disse que a 
linguagem da natureza estava escrita em matemática, ele não tencionava 
incluir o sentimento humano, a realização ou a perspicácia. Mas agora a 
maioria de nós está inclinada a fazer essas inclusões. Nossos psicólogos, 
sociólogos e educadores acham quase impossível fazer seu trabalho sem 
22 
os números. Acreditam que sem eles não podem atingir ou expressar o 
conhecimento autêntico. 
Não vou discutir aqui se essa idéia é estúpida ou perigosa, apenas que 
é peculiar. O que é mais peculiar ainda é que muitos de nós não acham 
essa idéia peculiar. Dizer que alguém devia estar fazendo um trabalho 
melhor porque tem um QI de 134, ou que alguém tem 7,2 na escala de 
sensibilidade, ou que o ensaio de Fulano sobre o crescimento do 
capitalismo merece nota 10 e o de Beltrano merece 6, teria parecido 
algaravia para Galileu, Shakespeare ou Thomas Jefferson. Se faz sentido 
para nós, é porque nossas mentes foram condicionadas pela tecnologia 
dos números, de forma que vemos o mundo de maneira diferente da 
deles. Nosso entendimento do que é real é diferente — o que é uma outra 
maneira de dizer que toda ferramenta está impregnada de um viés 
ideológico, de uma predisposição a construir o mundo como uma coisa e 
não como outra, a valorizar uma coisa mais que outra, a amplificar um 
sentido ou habilidade ou atitude com mais intensidade do que outros. 
Foi isso que Marshall McLuhan quis dizer com seu famoso aforismo 
“O meio é a mensagem”. Foi o que Marx quis dizer quando afirmou: “A 
tecnologia revela a maneira como o homem lida com a natureza” e cria as 
“condições de intercurso” com as quais nos relacionamos uns com os 
outros. Foi o que Wittgenstein quis dizer quando afirmou, ao referir-se à 
nossa tecnologia mais fundamental, que a linguagem não é apenas um 
veículo do pensamento, mas também o motorista. E foi o que Thamus 
quis que o inventor Theuth visse. Resumindo, essa é uma sabedoria 
antiga e persistente, expressada talvez da maneira mais simples no velho 
adágio,segundo o qual tudo parece prego para um homem com um 
martelo. Sem sermos literais demais, podemos estender o truísmo: para 
um homem com uma caneta, tudo parece uma lista. Para um homem com 
uma câmera, tudo parece uma imagem. Para um homem com um 
computador, tudo parecem dados. E para alguém com uma folha 
pautada, tudo parece número. 
No entanto, tais preconceitos nem sempre são aparentes no começo de 
uma jornada da tecnologia, motivo pelo qual ninguém pode 
25 
conspirar com segurança para ser o vencedor numa mudança tecnológica. 
Quem iria imaginar, por exemplo, que interesses e que visão de mundo 
avançariam em última instância com a invenção do relógio mecânico? O 
relógio tem sua origem nos mosteiros beneditinos dos séculos XII e XIII. 
O impulso por trás da invenção era proporcionar uma regularidade mais 
ou menos precisa nas roti nas dos mosteiros, que requeriam, entre outras 
coisas, sete períodos de devoção no decorrer do dia. Os sinos do mosteiro 
deviam ser tocados para anunciar as horas canônicas; o relógio mecânico 
era a tecnologia que poderia proporcionar precisão para esses rituais de 
devoção. E de fato proporcionou. Mas o que os monges não previram foi 
que o relógio viria a ser um meio não apenas para acompanhar as horas, 
mas também para sincronizar e controlar as ações dos homens. E, assim, 
em meados do século XIV, o relógio foi além das paredes do mosteiro, 
levando uma nova e precisa regularidade à vida do trabalhador e do 
mercador. “O relógio mecânico”, como Lewis Mumford escreveu, “tornou 
possível a idéia da produção regular, das horas de trabalho regular e de 
um produto padronizado.” Resumindo, sem o relógio teria sido 
impossível haver capitalismo.4 O paradoxo, a surpresa e a curiosidade foi 
que o relógio foi inventado por homens que queriam dedicar-se mais 
rigorosamente a Deus; ele terminou como a tecnologia de maior uso para 
os homens, que desejavam dedicar-se à acumulação de dinheiro. Na 
eterna luta entre Deus e os bens materiais, o relógio favoreceu estes 
últimos, de maneira bastante imprevisível. 
Conseqüências imprevistas estão no caminho daqueles que pensam 
que vêem, com clareza, a direção para a qual uma nova tecnologia nos 
levará. Nem mesmo aqueles que inventam uma tecnologia podem 
presumir que são profetas confiáveis, como Thamus advertiu. Gutenberg, 
por exemplo, foi em todos os aspectos um católico devoto que teria ficado 
horrorizado ao ouvir que o execrável herege Lutero descreveu a 
imprensa como “o ato de graça mais alto de Deus, com o qual a causa do 
Evangelho foi impulsionada para a frente”. Lutero compreendeu, ao 
contrário de Gutenberg, que o livro produzido em massa, ao colocar a 
Palavra de Deus na mesa de cada 
24 
cozinha, tornava cada cristão seu próprio teólogo — pode-se inclusive 
dizer seu próprio sacerdote ou, melhor ainda, do ponto de vista de 
Lutero, seu próprio papa. Na luta entre a unidade e a diversidade de 
crença religiosa, a imprensa favoreceu esta última, e podemos supor que 
essa possibilidade jamais ocorreu a Gutenberg. 
Thamus entendeu muito bem as limitações dos inventores para 
compreender a tendência social e psicológica — isto é, ideológica— de 
suas próprias invenções. Podemos imaginá-lo dirigindo-se a Gutenberg 
da seguinte maneira: “Gutenberg, meu exemplo de inventor, o 
descobridor de uma arte não é o melhor juiz do bem ou dano que pode 
ser causado àqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é o pai da 
imprensa, por afeição a seu rebento, passou a acreditar que ele favorecerá 
a causa da Santa Sé Romana, ao passo que na verdade vai propagar a 
discórdia entre os fiéis; irá danificar a autenticidade de sua amada Igreja e 
destruirá seu monopólio”. 
Podemos imaginar que Thamus teria observado para Gutenberg, 
como fez para Theuth, que a nova invenção criaria uma vasta população 
de leitores que “irão receber uma quantidade de informação sem a 
instrução adequada... [que estarão] supridos do conceito de sabedoria e 
não da sabedoria verdadeira”; em outras palavras, que a leitura irá 
competir com outras formas de aprendizado. Este é outro princípio da 
mudança tecnológica que podemos deduzir do julgamento de Thamus: as 
novas tecnologias competem com as antigas 
— pelo tempo, por atenção, por dinheiro, por prestígio, mas sobretudo 
pela predominância de sua visão de mundo. Essa competição é implícita, 
uma vez que reconheçamos que um meio contém uma tendência 
ideológica. É uma competição feroz, como apenas as competições 
ideológicas conseguem ser. Não é mera questão de ferramenta contra 
ferramenta—o alfabeto atacando a escrita ideográfica, a prensa tipográfica 
atacando o manuscrito iluminado, a fotografia atacando a arte da pintura, 
a televisão atacando a palavra impressa. Quando a mídia faz guerra entre 
si, é um caso de visões de mundo em colisão. 
Nos Estados Unidos podemos ver essas colisões por toda a parte 
— na política, na religião, no comércio — mas as vemos com mais 
25 
clareza nas escolas, onde duas grandes tecnologias confrontam-se em uma 
perspectiva descomprometida pelo controle das mentes dos estudantes. 
Por um lado, há o mundo da palavra impressa, com sua ênfase na lógica, 
na seqüência, na história, na exposição, na objetividade, na imparcialidade 
e na disciplina. Por outro lado, há o mundo da televisão, com sua ênfase 
na fantasia, na narrativa, na presença, na simultaneidade, na intimidade, 
na gratificação imediata e na resposta emocional rápida. As crianças vão 
para a escola depois de haver sido profundamente condicionadas pela 
influência da televisão. Lá elas encontram o mundo da palavra impressa. 
Ocorre uma espécie de batalha psíquica, e há muitas baixas — crianças 
que não conseguem ou não querem aprender a ler, crianças que não 
conseguem organizar seu pensamento em uma estrutura lógica mesmo 
em um único parágrafo, crianças que não conseguem prestar atenção às 
aulas ou às explicações orais por mais de alguns minutos de cada vez. São 
fracassos, mas não porque sejam estúpidas. São fracassos porque está 
havendo uma guerra da mídia, e elas estão do lado errado — pelo menos, 
por enquanto. Quem sabe como as escolas serão daqui a vinte e cinco 
anos? Ou cinqüenta? Até lá, o tipo de estudante que no momento é um 
fracasso pode ser considerado um sucesso. O tipo que agora é bem-
sucedido pode ser visto como um estudante deficiente — lento na 
resposta, desapaixonado demais, carente de emoção, incapaz de criar 
imagens mentais da realidade. Considere: o que Thamus chamou de 
“conceito de sabedoria” — o conhecimento irreal adquirido por meio da 
palavra escrita — em dado momento tornou-se a forma de conhecimento 
preeminente apreciada pelas escolas. Não há nenhuma razão para supor 
que tal forma de conhecimento deva ser sempre apreciada em alta conta. 
Para tomar um outro exemplo: ao introduzir o computador pessoal na 
sala de aula, estaremos rompendo uma trégua de quatrocentos anos entre 
o gregarismo e a abertura, fomentados pela oralidade, e a introspecção e o 
isolamento, fomentados pela palavra impressa. A oralidade dá ênfase ao 
aprendizado em grupo, à cooperação e a um sentido de responsabilidade 
social, que é o contexto dentro do qual Thamus acreditava que a instrução 
adequada e o conhecimento ver 
dadeiro deviam ser comunicados. A imprensa enfatiza o aprendizado 
individualizado, a competição e a autonomia pessoal. Durante 
quatrocentos anos, os professores, enquanto enfatizavam a imprensa, 
permitiram que a oralidade ocupasse seu espaço na sala de aula e, por 
conseguinte, atingiram uma espécie de paz pedagógica entre essas duas 
formas de aprendizado, de tal modo que pudesse ser maximizado aquiloque era apreciado em cada forma. Agora chega o computador, 
carregando mais uma vez a bandeira do aprendizado privado e da 
solução individual do problema. Será que o uso difundido dos 
computadores derrotará de uma vez por todas as pretensões do discurso 
comunal? Irá o computador elevar o egocentrismo à categoria de virtude? 
Esses são os tipos de perguntas que a mudança tecnológica traz à 
mente quando se percebe, como Thamus percebeu, que a competição 
tecnológica desencadeia uma guerra total, que significa que não é 
possível confinar os efeitos de uma tecnologia nova em uma esfera 
limitada da atividade humana. Se essa metáfora apresenta a questão de 
maneira brutal demais, podemos tentar uma mais suave e delicada: a 
mudança tecnológica não é nem aditiva nem subtrativa. É ecológica. 
Refiro-me à “ecológica” no mesmo sentido em que a palavra é usada 
pelos cientistas do meio ambiente. Uma mudança significativa gera uma 
mudança total. Se você retira as lagartas de dado habitat, você não fica com 
o mesmo meio ambiente menos as lagartas, mas com um novo ambiente e 
terá reconstituído as condições da sobrevivência; o mesmo se dá se você 
acrescenta lagartas a um ambiente que não tinha nenhuma. É assim que a 
ecologia do meio ambiente funciona. Uma tecnologia nova não acrescenta 
nem subtrai coisa alguma. Ela muda tudo. No ano de 1500, cinqüenta 
anos depois da invenção da prensa tipográfica, nós não tínhamos a velha 
Europa mais a imprensa. Tínhamos uma Europa diferente. Depois da 
televisão, os Estados Unidos não eram a América mais a televisão; esta 
deu um novo colorido a cada campanha política, a cada lar, a cada escola, 
a cada igreja, a cada indústria. E é por esse motivo que a competição entre 
os meios de comunicação é tão feroz. Cercando cada tecnologia estão 
instituições cuja organização — para não men 
27 
cionar sua razão de ser — reflete a visão de mundo promovida pela 
tecnologia. Por conseguinte, quando uma tecnologia velha é atacada por 
uma nova, as instituições ficam ameaçadas. Quando as instituições são 
ameaçadas, uma cultura se encontra em crise. Trata-se de um assunto 
sério, que é o motivo pelo qual nada aprendemos quando os educadores 
perguntam: os estudantes aprenderão matemática melhor com 
computadores ou com livros didáticos? Ou quando os homens de 
negócios perguntam: por que meio podemos vender mais produtos? Ou 
quando os pregadores perguntam: podemos atingir mais pessoas por 
meio da televisão ou do rádio? Ou quando os políticos perguntam: que 
eficiência têm as mensagens enviadas pelos diferentes meios de 
comunicação? Essas perguntas têm um valor prático imediato para 
aqueles que as fazem, mas são dispersivas. Elas desviam nossa atenção da 
séria crise social, intelectual e institucional que o novo meio fomenta. 
Talvez aqui uma analogia ajude a sublinhar a questão. Ao falar sobre 
o significado de um poema, T. S. Eliot observou que o principal uso do 
conteúdo patente da poesia é “satisfazer um hábito do leitor, manter sua 
mente distraída e quieta, enquanto o poema trabalha nele: assim como o 
ladrão imaginário está sempre munido de um belo pedaço de carne para 
o cão da casa”. Em outras palavras, ao fazerem suas perguntas práticas, 
os educadores, empresários, pregadores e políticos são como o cachorro 
da casa, que masca pacificamente a carne enquanto a casa é saqueada. 
Talvez alguns deles saibam disso e não tomem nenhum cuidado especial. 
Afinal de contas, um belo pedaço de carne oferecido de graça resolve o 
problema de como conseguir a próxima refeição. Mas para nós outros não 
é aceitável que a casa seja invadida sem protesto ou pelo menos sem 
conscientização. 
O que precisamos para refletir sobre o computador nada tem a ver 
com sua eficiência como ferramenta de ensino. Precisamos saber de que 
maneira ele vai alterar nossa concepção de aprendizado e como, em 
conjunção com a televisão, ele minará a velha idéia de escola. Quem se 
importa com a quantidade de caixas de cereal que pode ser vendida pela 
televisão? Precisamos saber se a televisão muda 
28 
nossa concepção da realidade, o relacionamento entre ricos e pobres, a 
idéia de felicidade em si. Um pregador que se confina para pensar como 
um meio de comunicação pode aumentar sua audiência deixará de notar 
a questão significativa: em que sentido um novo meio de comunicação 
altera o significado de religião, de igreja e até mesmo de Deus? E se o 
político não consegue pensar além das próximas eleições, então temos 
que nos perguntar sobre o que o novo meio de comunicação faz com a 
idéia de organização política e com o conceito de cidadania. 
Para ajudar-nos a fazer isso temos o julgamento de Thamus, que, à 
maneira das lendas, nos ensina o que Harold Innis tentou à sua maneira 
ensinar. As novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as 
coisas sobre as quais pensamos. Alteram o caráter de nossos símbolos: as 
coisas com que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena 
na qual os pensamentos se desenvolvem. Como Thamus falou para Innis 
através dos séculos, é essencial que ouçamos a conversa deles, que 
entremos nela, que a revitalizemos. Pois aconteceu na América algo que é 
estranho e perigoso, e só há uma percepção vaga e até estúpida do que foi 
— em parte porque não tem nenhum nome. Chamarei de tecnopólio. 
Notas 
1 Platão, p. 96. 
² Freud, pp. 38-9. 
3 Esse fato é documentado em “The Examination, Disciplinary Power and Rational 
Schooling”, de Keith Hoskin, in History ofEducation, voL VIII, na 2 (1979), pp. 135-46. O prof. 
Hoskin apresenta a seguinte história sobre Farish: Farish era professor de engenharia em 
Cambridge, e desenhou e instalou uma parede divisória móvel em sua casa em Cambridge. 
A parede movia-se em roldanas entre o andar de baixo e o de cima. Uma noite, enquanto 
trabalhava até tarde e sentindo frio, Farish puxou a divisória para baixo. Isso não é lá uma 
história, e não foi revelado o que aconteceu em seguida. Tudo isso mostra quão pouco se 
sabe sobre William Farish. 
* Para uma detalhada exposição da posição de Mumford sobre o impacto do relógio mecânico, 
veja sua obra Technics and Civilization. 
29 
 
 
DAS FERRAMENTAS À 
TECNOCRACIA 
Entre os famosos aforismos produzidos pela impertinente ca- neta de 
Karl Marx está sua observação em A Miséria da Filosofia, de que “o tear 
manual nos deu a sociedade com o senhor feudal; o moinho a vapor, a 
sociedade com o capitalista indus- 
trial ”. Pelo que sei, Marx não disse que tecnologia nos dá o tecnocrata, e 
tenho certeza de que sua visão não incluía o surgimento do tecno- 
polista. Não obstante, a observação é útil. Marx compreendeu bem 
que além das implicações econômicas, as tecnologias criam as manei- ras 
com as quais as pessoas percebem a realidade, e que essas ma- neiras 
são a chave para compreender diversas formas de vida social e. Em A 
Ideologia Alemã ele diz: “Os indivíduos são como ex- pressam sua vida”, 
que soa muito parecido com Marshall McLuhan 
ou, no que diz respeito ao assunto, como Thamus poderia soar. De 
fato, no final desse livro, Marx inclui um parágrafo notável que fica- ria 
bem à vontade em Understanding Media de McLuhan. Pergunta 
ele: "É Aquiles possível quando foram inventadas a pólvora e a bala? 
E é possível a Ilíada quando existem a prensa tipográfica e as máqui- nas 
impressoras? Não é inevitável que com o surgimento da impren- 
sa cessem o canto, a narrativa e a musa, ou seja, desapareçam as 
condições para a poesia épica?”1 
51 
Ao vincular as condições tecnológicas à vida simbólica e aos hábitos 
psíquicos, Marx não estava fazendo nada de incomum. Antes dele, os 
eruditos achavam útilinventar taxionomias da cultura, baseados no 
caráter tecnológico de uma era. E ainda fazem isso, pois a prática é algo de 
uma persistente indústria da erudição. Pensamos de cara na classificação 
mais conhecida: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze, a Idade do Ferro, a 
Idade do Aço. Falamos facilmente da Revolução Industrial, termo 
popularizado por Arnold Toynbee, e, há pouco tempo, da Revolução Pós-
Industrial, assim chamada por Daniel Bell. Oswald Spengler escreveu 
sobre a Idade das Técnicas da Máquina, e C. S. Peirce chamou o século 
XIX de Era da Estrada de Ferro. Lewis Mumford, vendo a questão com 
uma perspectiva mais longa, deu-nos a Era Eotécnica, a Paleotécnica e a 
Neotécnica. Com a mesma perspectiva telescópica, José Ortega y Gasset 
escreveu sobre três estágios no desenvolvimento da tecnologia: a era da 
tecnologia do acaso, a era da tecnologia do artesão, a era da tecnologia do 
técnico. Walter Ong escreveu sobre as culturas orais, as culturas 
quirográficas, as culturas tipográficas e as culturas eletrônicas. O próprio 
McLuhan introduziu a expressão “a Era de Gutenberg” (que, acreditava 
ele, fora substituída agora pela Era da Comunicação Eletrônica). 
Com o objetivo de esclarecer nossa situação atual e indicar os perigos 
que estão à frente, acho necessário criar mais uma taxionomia. As culturas 
podem ser classificadas em três tipos: as que usam ferramentas, as 
tecnocracias e os tecnopólios. No momento atual, cada tipo pode ser 
encontrado em algum lugar do planeta, embora o primeiro esteja em 
rápido processo de desaparecimento; somos obrigados a viajar a lugares 
exóticos para encontrar uma cultura que use ferramentas.2 Se fizermos 
isso, é bom irmos equipados com o conhecimento de que, até o século 
XVII, todas as culturas eram usuárias de ferramentas. Havia, é claro, 
variações consideráveis de uma cultura para a outra em termos das 
ferramentas disponíveis. Algumas tinham apenas lanças e utensílios para 
cozinhar. Outras tinham moinhos d’água e energia a carvão e cavalo a 
vapor. Mas a característica principal de todas as culturas usuárias de 
ferramentas é o fato de 
52 
Ao vincular as condições tecnológicas à vida simbólica e aos hábitos 
psíquicos, Marx não estava fazendo nada de incomum. Antes dele, os 
eruditos achavam útil inventar taxionomias da cultura, baseados no 
caráter tecnológico de uma era. E ainda fazem isso, pois a prática é algo 
de uma persistente indústria da erudição. Pensamos de cara na 
classificação mais conhecida: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze, a 
Idade do Ferro, a Idade do Aço. Falamos facilmente da Revolução 
Industrial, termo popularizado por Arnold Toynbee, e, há pouco tempo, 
da Revolução Pós-Industrial, assim chamada por Daniel Bell. Oswald 
Spengler escreveu sobre a Idade dasTécnicas da Máquina, e C. S. Peirce 
chamou o século XIX de Era da Estrada de Ferro. Lewis Mumford, vendo 
a questão com uma perspectiva mais longa, deu-nos a Era Eotécnica, a 
Paleotécnica e a Neotécnica. Com a mesma perspectiva telescópica, José 
Ortega y Gasset escreveu sobre três estágios no desenvolvimento da 
tecnologia: a era da tecnologia do acaso, a era da tecnologia do artesão, a 
era da tecnologia do técnico. Walter Ong escreveu sobre as culturas orais, 
as culturas quirográficas, as culturas tipográficas e as culturas eletrônicas. 
O próprio McLuhan introduziu a expressão “a Era de Gutenberg” (que, 
acreditava ele, fora substituída agora pela Era da Comunicação Ele-
trônica). 
Com o objetivo de esclarecer nossa situação atual e indicar os perigos 
que estão à frente, acho necessário criar mais uma taxionomia. As 
culturas podem ser classificadas em três tipos: as que usam ferramentas, 
as tecnocracias e os tecnopólios. No momento atual, cada tipo pode ser 
encontrado em algum lugar do planeta, embora o primeiro esteja em 
rápido processo de desaparecimento; somos obrigados a viajar a lugares 
exóticos para encontrar uma cultura que use ferramentas.2 Se fizermos 
isso, é bom irmos equipados com o conhecimento de que, até o século 
XVII, todas as culturas eram usuárias de ferramentas. Havia, é claro, 
variações consideráveis de uma cultura para a outra em termos das 
ferramentas disponíveis. Algumas tinham apenas lanças e utensílios para 
cozinhar. Outras tinham moinhos d’água e energia a carvão e cavalo a 
vapor. Mas a característica principal de todas as culturas usuárias de 
ferramentas é o fato de 
52 
que estas foram inventadas, em grande parte, para fazer duas coisas: 
resolver problemas específicos e urgentes da vida física, como no uso da 
força hidráulica, dos moinhos de vento e do arado de roda pesada; ou 
servir ao mundo simbólico da arte, da política, do mito, do ritual e da 
religião, como na construção de castelos e catedrais e no desenvolvimento 
do relógio mecânico. Em todos os casos, as ferramentas não atacavam (ou, 
com mais exatidão, não tinham a intenção de atacar) a dignidade e a 
integridade da cultura em que foram introduzidas. Com algumas 
exceções, as ferramentas não impediam as pessoas de acreditar em suas 
tradições, em seu Deus, em sua política, em seus métodos de educação ou 
na legitimidade de sua organização social. Na verdade, essas crenças 
direcionavam a invenção das ferramentas e limitavam os usos nos quais 
eram aplicadas. Mesmo no caso da tecnologia militar, as idéias espirituais 
e os costumes sociais atuavam como forças controladoras. É bastante 
conhecido, por exemplo, que o uso da espada pelos guerreiros samurais 
era meticulosamente governado por um conjunto de ideais conhecido 
como Bushido, ou a Maneira do Guerreiro. As regras e rituais que 
especificavam quando, onde e como o guerreiro devia usar alguma de 
suas duas espadas (a katana ou espada longa e a wakizashi ou espada curta) 
eram precisos, tinham um estreito vínculo com o conceito de honra e 
incluíam o requisito de que o guerreiro cometesse o seppuku ou haraquiri 
caso sua honra fosse comprometida. Esse tipo de governo sobre a 
tecnologia militar não era desconhecido no mundo Ocidental. O uso da 
letal balista foi proibido, sob a ameaça de anátema, pelo papa Inocêncio II 
no começo do século XII. A arma foi julgada “odiosa para Deus”, e, por 
conseguinte, não poderia ser usada contra cristãos. O fato de poder ser 
usada contra muçulmanos e outros infiéis não invalida a questão de que, 
em uma cultura que usa ferramentas, a tecnologia não é vista como 
autônoma, e está sujeita à jurisdição de vínculo social ou sistema 
religioso. 
Tendo definido dessa maneira as culturas que usam ferramentas, 
preciso acrescentar dois pontos para evitar a supersimplificação ex-
cessiva. Primeiro, a quantidade de tecnologias disponíveis para uma c 
ultura usuária de ferramenta não é sua característica definidora. 
55 
Mesmo um estudo superficial do Império Romano, por exemplo, revela 
em que extensão dependia de estradas, pontes, aquedutos, túneis e 
esgotos, tanto para sua vitalidade econômica como para suas conquistas 
militares. Ou, para tomar um outro exemplo, sabemos que, entre os 
séculos X e XIII, a Europa passou por um boom tecnológico: o homem 
medieval foi cercado por máquinas.3 Podemos ir tão longe quanto Lynn 
White Jr., que disse que a Idade Média nos deu, pela primeira vez na 
história, “uma civilização complexa não nas costas de escravos suados ou 
cules, mas sobretudo em energia não humana”.4 Em outras palavras, as 
culturas usuárias de ferramentas podem ser engenhosas e produtivas na 
solução de problemas do ambiente físico. Os moinhos de vento foram 
inventados no final do século XII. Os óculos para miopia apareceram na 
Itália em 1280. No século XI, a invenção de rígidas coelheiras acolchoadas 
parase apoiar nas omoplatas dos cavalos resolveu o problema de como 
aumentar a força de tração dos animais sem diminuir sua capacidade 
respiratória. De fato, já no século IX, na Europa, foram inventadas as 
ferraduras, e alguém imaginou que, se os cavalos fossem atrelados um 
atrás do outro, sua força de tração seria enormemente aumentada. 
Moinhos de grãos, fábricas de papel e pisões faziam parte da cultura 
medieval, assim como as pontes, castelos e catedrais. A famosa agulha da 
torre da Catedral de Estrasburgo, construída no século XIII, erguia-se a 
uma altura de 140 metros, o equivalente a um arranha-céu de quarenta 
andares. E, para ir mais atrás no tempo, não se devem deixar de 
mencionar as notáveis façanhas de engenharia de Stonehenge e das 
pirâmides (cuja construção, Lewis Mumford insiste, significa o primeiro 
exemplo de megamá- quina em ação). 
Dados os fatos, devemos concluir que as culturas usuárias de 
ferramentas não são necessariamente empobrecidas de tecnologia, e para 
nossa surpresa até podem ser sofisticadas. Claro que algumas dessas 
culturas tinham (e ainda têm) tecnologia primitiva, e algumas até 
demonstraram certo desprezo pelos ofícios e pela maquinaria. A Idade do 
Ouro da Grécia, por exemplo, não produziu nenhuma invenção técnica 
importante, nem sequer conseguiu inventar 
54 
maneiras de usar a força do cavalo com eficiência. Tanto Platão como 
Aristóteles desprezavam as “artes mecânicas de base”, talvez por acre-
ditar que a nobreza da mente não era acentuada pelos esforços para 
aumentar a eficiência ou a produtividade. Eficiência e produtividade 
eram problemas dos escravos, não dos filósofos. Encontramos uma visão 
mais ou menos parecida na Bíblia, que é o relato mais longo e detalhado 
que temos de uma antiga cultura que usava ferramentas. No 
Deuteronômio, nada menos que uma autoridade como Deus diz: 
“Amaldiçoado seja o homem que fizer uma imagem gravada ou fundida, 
uma abominação para o Senhor, uma coisa feita pelas mãos de um 
artífice, e a montar em segredo”. 
Então, as culturas que usam ferramentas podem ter muitas ou poucas 
ferramentas, podem ser entusiasmadas ou desdenhosas em relação a elas. 
O nome “cultura que usa ferramentas” deriva do relacionamento em 
dada cultura entre as ferramentas e o sistema de crença ou a ideologia. As 
ferramentas não são invasoras. Estão integradas à cultura de maneira a 
não impor contradições significativas em sua visão de mundo. Se 
tomarmos a Idade Média européia como exemplo de cultura usuária de 
ferramentas, encontraremos um nível muito alto de integração entre suas 
ferramentas e sua visão de mundo. Os teólogos medievais desenvolveram 
uma descrição elaborada e sistemática da relação do homem com Deus, 
do homem com a natureza, do homem com o homem e do homem com 
suas ferramentas. Sua teologia assume como primeiro e último princípio 
que todo o conhecimento e bondade vem de Deus, e que, por conse-
guinte, todo empreendimento humano deve ser direcionado para servir a 
Deus. A teologia, e não a tecnologia, dá às pessoas autorização para o que 
fazer ou pensar. Talvez tenha sido por isso que Leonardo da Vinci 
manteve em segredo seu desenho de um submarino, acreditando que 
fosse uma ferramenta nociva demais para se expandir, que ela não cairia 
nas graças de Deus. 
Em todo caso, as suposições teológicas serviram como ideologia 
controladora, e qualquer ferramenta que fosse inventada teria que, cm 
última instância, adequar-se a essa ideologia. Podemos dizer que iodas as 
culturas usuárias de ferramentas — desde a mais primitiva 
55 
do ponto de vista tecnológico até a mais sofisticada—são teocráticas, ou, 
quando não, estão unidas por alguma teoria metafísica. Tal teologia ou 
metafísica estabelece ordem e significado à existência, tornando quase 
impossível para os técnicos subordinar as pessoas às suas próprias 
necessidades. 
O “quase” é importante. Ele leva à minha segunda classificação. 
Como o espírito de Thamus nos lembra, as ferramentas têm uma maneira 
de impor-se até mesmo ao conjunto mais unido de crenças culturais. Há 
limites para o poder tanto da teologia como da metafísica, e a tecnologia 
tem negócios a fazer que às vezes não podem ser impedidos por força 
alguma. Talvez o exemplo mais interessante de drástica ruptura 
tecnológica de uma cultura usuária de ferramentas tenha sido o uso, no 
século VIII, do estribo pelos francos sob a liderança de Charles Martel. 
Até essa época, o principal uso dos cavalos em combate era para o 
transporte dos guerreiros ao cenário da batalha, onde eles desmontavam 
para ir ao encontro do inimigo. O estribo tornou possível combater no 
lombo do cavalo, e isso criou uma nova e tremenda tecnologia militar: o 
combate do choque montado. A nova forma de combate, como Lynn 
White Jr. detalhou de maneira meticulosa, aumentou a importância da 
classe dos cavaleiros e mudou a natureza da sociedade feudal.5 Os 
proprietários de terra acharam necessário obter os serviços de uma 
cavalaria para sua proteção. Em dado momento, os cavaleiros assumiram 
o controle das terras da igreja e distribuíram-nas a vassalos, com a 
condição de que estes continuassem a seu serviço. Se nos permitem um 
jogo de palavras aqui, o estribo assumiu as rédeas e levou a sociedade 
feudal aonde ela jamais chegaria de outra forma. 
Para tomarmos um exemplo posterior: já fiz referência à trans-
formação do relógio mecânico, no século XIV, de instrumento de 
observância religiosa em instrumento de empresa comercial. Às vezes se 
dá uma data específica para essa transformação — 1370 — quando o rei 
Carlos V ordenou a todos os cidadãos de Paris que regulassem sua vida 
privada, comercial e industrial pelos sinos do relógio do Palácio Real, que 
batiam a cada sessenta minutos. Também se pediu a todas as igrejas de 
Paris que regulassem seus relógios, 
56 
desconsiderando as horas canônicas. Desse modo, a igreja foi obrigada a 
ceder aos interesses materiais, em detrimento das necessidades 
espirituais. Aqui está um exemplo claro de uma ferramenta sendo 
empregada para afrouxar a autoridade de uma instituição central da vida 
medieval. 
Há outros exemplos de como as tecnologias criaram problemas para a 
vida espiritual da Europa medieval. Por exemplo, os moinhos para os 
quais os agricultores se dirigiam para preparar o grão tornaram-se o local 
favorito para as prostitutas atraírem seus fregueses. O problema cresceu a 
proporções tais que São Bernardo, o líder da Ordem de Císter no século 
XII, tentou fechar os moinhos. Foi malsucedido, porque os moinhos se 
haviam tornado importantes demais para a economia. Em outras 
palavras, é mais ou menos uma supersimplificação dizer que as culturas 
usuárias de ferramentas nunca tiveram seus costumes e vida simbólica 
reorientados pela tecnologia. E, assim como há exemplos de tais casos no 
mundo medieval, podemos encontrar exemplos bizarros porém 
significativas nas sociedades tecnologicamente primitivas, de ferramentas 
atacando a supremacia dos costumes, da religião ou da metafísica. Egbert 
de Vries, um sociólogo holandês, contou que a introdução de fósforos em 
uma tribo africana alterou seus hábitos sexuais.6 Membros dessa 
comunidade acreditavam que era necessário acender um fogo novo na 
fogueira após cada ato sexual. Esse costume significava que cada relação 
sexual era um acontecimento mais ou menos público, pois quando era 
concluída alguém tinha que ir a uma cabana vizinha para pegar um galho 
aceso a fim de começar um fogo novo. Nessas condições, era difícil 
esconder o adultério, o que provavelmente deu origem ao costume, para 
começo de conversa. A introdução dos fósforos mudou tudo isso. Passoua ser possível acender um fogo novo sem ter que ir a uma cabana vizinha, 
e, desse modo, de uma hora para outra, uma longa tradição desapareceu. 
Ao relatar a descoberta de de Vries, Alvin Toffler levanta várias questões 
intrigantes: os fósforos redundaram em uma mudança de valores? Como 
resultado disso, o adultério passou a ser mais ou menos desaprovado? 
Ao facilitar a privacidade do sexo, os fósforos alteraram o valor 
57 
atribuído a ele? Podemos ter certeza de que ocorreram algumas 
mudanças nos valores culturais, embora elas não possam ter sido tão 
drásticas quanto o que aconteceu com a tribo Ihalmiut no começo do 
século XX, após a introdução do rifle. Como Farley Mowar descreveu em 
The People ofthe Deer a substituição de arcos e flechas pelos rifles é um dos 
relatos mais deprimentes de que se tem notícia de um ataque tecnológico 
sobre uma cultura que usa ferramenta. Nesse caso, o resultado não foi a 
modificação de uma cultura, mas sua erradicação. 
Não obstante, depois que se reconhece que nenhuma taxionomia 
jamais se ajusta perfeitamente às realidades de uma situação e que, em 
particular, a definição de cultura usuária de ferramentas carece de 
precisão, ainda assim é possível e útil distinguir uma cultura usuária de 
ferramentas de uma tecnocracia. Em uma tecnocracia, as ferramentas 
desempenham um papel central no mundo das idéias da cultura. Tudo 
precisa dar passagem, em algum nível, ao desenvolvimento delas. Os 
mundos social e simbólico tornam-se cada vez mais sujeitos às exigências 
desse desenvolvimento. As ferramentas não são integradas à cultura, elas 
atacam a cultura. Elas desafiam para se tomarem a cultura. Como 
conseqüência, a tradição, os costumes sociais, os mitos, a política, o ritual 
e a religião têm de lutar por suas vidas. 
As tecnocracias modernas do Ocidente têm suas raízes no mundo 
medieval europeu, do qual emergiram três grandes invenções: o relógio 
mecânico, que proporcionou uma nova concepção de tempo; a prensa 
tipográfica, que atacou a epistemologia da tradição oral; e o telescópio, 
que atacou as proposições fundamentais da teologia judaico-cristã. Cada 
uma delas foi importante para a criação de uma nova relação entre as 
ferramentas e a cultura. Mas, como é permitido dizer que entre a fé, a 
esperança e a caridade esta última é a mais importante, eu ousaria dizer 
que entre o relógio, a imprensa e o telescópio este último também é mais 
importante. Para ser mais exato (já que Copérnico, Tycho Brahe e em certa 
extensão Kepler fizeram seu trabalho sem o benefício do telescópio), 
instrumentos de observação um pouco mais grosseiros do que o 
telescópio permitiram ao 
58 
homem ver, medir e especular sobre os céus de maneiras que não eram 
possíveis antes. Mas o refinamento do telescópio tornou seu 
conhecimento tão preciso que se seguiu um colapso, se é que se pode 
chamar assim, do centro de gravidade moral do Ocidente. O centro moral 
havia permitido que as pessoas acreditassem que a Terra era o centro 
estável do universo, e, por conseguinte, que a humanidade era do 
interesse especial de Deus. Depois de Copérnico, Kepler e, em especial, 
Galileu, a Terra tornou-se viajante solitária em uma galáxia obscura, em 
algum canto escondido do universo, e isso levou 
o mundo ocidental a perguntar se Deus tinha algum interesse em nós. 
Embora John Milton fosse apenas um menino quando, em 1610, foi 
impresso Mensageiro das Estrelas, ele foi capaz de, anos depois, descrever a 
desolação psíquica de um universo insondável que a visão do telescópio 
de Galileu lançou sobre uma teologia despreparada. Milton escreveu em 
Paraíso Perdido: 
Diante [de seus] olhos em súbita visão aparecem 
Os segredos da profundeza venerável — um escuro 
Oceano infinito, sem fronteira, 
Sem dimensão... 
De fato, um paraíso perdido. Mas não foi intenção de Galileu — nem 
de Copérnico ou Kepler — desarmar sua cultura. Eles eram homens 
medievais que, como Gutenberg antes deles, não tinham o menor desejo 
de danificar os alicerces espirituais de seu mundo. Copérnico, por 
exemplo, era doutor em direito canônico, tendo sido eleito cônego da 
Catedral de Frauenburgo. Apesar de nunca haver terminado o curso, ele 
estudou medicina, foi médico particular de seu tio e entre muitas pessoas 
era mais conhecido como médico do que como astrônomo. Publicou 
apenas uma obra científica, Sobre a Revolução das Esferas Celestes, cujo primeiro 
exemplar completo chegou da gráfica poucas horas antes de sua morte, 
com a idade de 70 anos, em 24 de maio de 1543. Ele postergou por trinta 
anos a publicação da teoria heliocêntrica, em grande parte porque 
acreditava que ela era infundada, e não por recear represália por parte da 
Igreja. Na verdade, seu livro só foi colocado em catálogo 73 anos após sua 
publicação, e ainda assim por um curto espaço de tempo. (O julga- 
59 
a maioria das quais tem apenas relevância marginal para a qualidade de 
vida dos perdedores, mas que mesmo assim são impressionantes. Em 
dado momento, os perdedores capitulam, em parte porque acreditam, 
como profetizou Thamus, que o conhecimento especializado dos mestres 
de uma tecnologia nova seja uma forma de sabedoria. E, como Thamus 
também profetizou, os mestres também passam a acreditar nisso. O 
resultado é que certas questões não são levantadas. Por exemplo, a quem 
a tecnologia dará maior poder e liberdade? E o poder e a liberdade de 
quem serão reduzidos por ela? 
Talvez eu tenha feito tudo isso parecer uma conspiração bem 
planejada, como se os vencedores soubessem muito bem o que está sendo 
ganho e o que está sendo perdido. Mas não é bem assim que acontece. Em 
culturas que têm um espírito democrático, tradições relativamente fracas 
e alta receptividade a tecnologias novas, todo o mundo está inclinado a se 
entusiasmar com a mudança tecnológica, acreditando que seus benefícios 
se espalharão, em um dado momento, por igual sobre toda a população. 
Sobretudo nos Estados Unidos, onde não tem limites a ânsia pelo que é 
novo, encontramos mais amplamente difundida essa convicção infantil. 
De fato, na América, raras vezes a mudança social de qualquer tipo é vista 
como resultando em vencedores e perdedores, condição essa que se 
origina em parte do otimismo muito documentado dos americanos. 
Quanto à mudança causada pela tecnologia, esse otimismo nativo é explo-
rado por empresários, que trabalham duro para instilar na população 
uma unidade de esperança improvável, posto que sabem que do ponto de 
vista econômico não é sábio revelar o preço a ser pago pela mudança 
tecnológica. Então, poder-se-ia dizer que, se há conspiração de algum 
tipo, é a de uma cultura conspirando contra si mesma. 
Além disso, e mais importante que tudo, nem sempre está claro, pelo 
menos nos estágios iniciais da invasão de uma tecnologia em uma 
cultura, quem ganhará mais e quem perderá mais. Isto se dá porque as 
mudanças forjadas pela tecnologia são sutis, quando não são completos 
mistérios; e poder-se-ia dizer que são imprevisíveis. Entre as mais 
imprevisíveis estão aquelas que podem ser rotuladas de ideo-lógicas. É o 
tipo de mudança que Thamus tinha em mente, 
21 
mento de Galileu só ocorreu noventa anos após a morte de Copérnico.) 
Em 1543, os eruditos e filósofos não tinham motivo para temer 
perseguição por causa de suas idéias, desde que não desafiassem 
diretamente a autoridade da Igreja, coisa que Copérnico não tinha o 
menor desejo de fazer. Embora haja controvérsia sobre a autoria do 
prefácio de sua obra, ele indica, com clareza, que suas idéias devem ser 
encaradas como hipóteses, e que suas “hipóteses não precisam ser 
verdadeiras ou mesmo prováveis”. Podemos tercerteza de que Copérnico 
acreditava que a Terra de fato se movia, mas ele não acreditava que a 
Terra e os planetas se moviam à maneira descrita em seu sistema, que ele 
julgava consistir em ficção geométrica. E ele não acreditava que sua obra 
pudesse minar a supremacia da teologia. E verdade que Martinho Lutero 
chamou Copérnico de “um tolo que foi contra as Sagradas Escrituras”, 
mas Copérnico não pensava que agira assim — o que prova, suponho, 
que Lutero viu a coisa com mais profundidade que Copérnico. 
A história de Kepler é mais ou menos parecida. Nascido em 1571, ele 
começou a carreira publicando calendários astrológicos e terminou como 
astrólogo da corte do duque de Wallenstein. Embora fosse famoso por seu 
serviço de astrólogo, devemos dar-lhe crédito por acreditar que “a 
astrologia pode causar um enorme dano a um monarca se um astrólogo 
mais esperto explorar sua credulidade humana”. Kepler queria que a 
astrologia fosse mantida fora da vista de todos os cabeças do Estado, uma 
precaução que nem sempre foi tomada nos anos recentes. Sua mãe foi 
acusada de ser bruxa e, embora Kepler não acreditasse nessa acusação 
específica, era provável que ele não negasse, de maneira categórica, a 
existência das bruxas. Ele passava grande parte do tempo se 
correspondendo com sábios sobre questões relativas à cronologia na era 
de Cristo, e hoje em dia se aceita em geral sua teoria de que Cristo nasceu, 
na verdade, em 4 ou 5 a.C. Em outras palavras, Kepler era um homem de 
sua época, medieval dos pés à cabeça. Exceto em uma coisa: ele acreditava 
que a teologia e a ciência deviam ser mantidas separadas, e, em particu-
lar, que os anjos, os espíritos e as opiniões dos santos deveriam ser 
banidos da cosmologia. Em sua Nova Astronomia, escreveu: “Agora, 
40 
no que diz respeito às opiniões dos santos sobre essas questões da 
natureza, respondo em uma palavra que na teologia só é válido o peso da 
autoridade, mas que em filosofia só vale o peso da Razão”. Após rever o 
que vários santos disseram sobre a Terra, Kepler concluiu: “... mas para 
mim, mais sagrado do que tudo isso é aVerdade, quando, com todo o 
respeito pelos doutores da Igreja, eu demonstro a partir da filosofia que a 
Terra é redonda, habitada por antípodas, de uma pequenez a mais 
insignificante, e uma viajante rápida entre as estrelas”. 
Ao expressar sua idéia, Kepler estava dando o primeiro passo 
importante para a concepção de uma tecnocracia. Temos aqui um 
chamamento claro para uma separação que é um dos pilares de uma 
tecnocracia — um passo importante porém ainda pequeno. Antes de 
Kepler, ninguém havia perguntado por que os planetas viajam cm 
marchas variáveis. A resposta de Kepler foi que devia ser uma força que 
emanava do sol. Mas sua resposta ainda tinha espaço para 
I )eus. Em uma famosa carta enviada para seu colega Maestlin, Kepler 
escreveu: “O sol no meio de estrelas em movimento, ele mesmo em 
repouso e ainda assim a fonte do movimento, carrega a imagem de 
Deus, o Pai e Criador... Ele distribui sua força motriz através de um meio 
que contém corpos móveis mesmo enquanto o Pai cria através do Espírito 
Santo”. 
Kepler era luterano, e, embora mais tarde fosse excomungado de sua 
igreja, continuou sendo até o fim um homem de sincera convicção 
religiosa. Por exemplo, ele ficou descontente com sua descoberta das 
órbitas elípticas dos planetas, acreditando que uma elipse nada tinha a 
recomendar aos olhos de Deus. Com certeza, baseando-se na obra de 
Copérnico, Kepler estava criando algo novo, em que a verdade não era 
requerida para ganhar as boas graças aos olhos de Deus. Mas para ele não 
ficou de todo claro exatamente aonde levaria seu trabalho. Sobrou para 
Galileu a tarefa de tornar visíveis as contradições não resolvidas entre a 
ciência e a tecnologia, isto é, entre os pontos de vista intelectuais e morais. 
Galileu não inventou o telescópio, apesar de nem sempre se opor a 
essa atribuição. Um fabricante de óculos holandês chamado Johann 
41 
Lippershey foi provavelmente o verdadeiro inventor do instrumento; em 
todo caso, ele foi o primeiro a pedir uma licença para seu produto, em 
1608. (Talvez valha a pena lembrar aqui que a famosa experiência de 
deixar cair balas de canhão da Torre de Pisa não foi feita por Galileu, mas 
sim por um de seus adversários, Giorgio Coressio, que estava tentando 
confirmar — e não contestar — a opinião de Aristóteles de que os corpos 
maiores caem com mais velocidade do que os menores.) Não obstante, 
deve-se dar a Galileu todo o crédito por haver transformado o telescópio, 
de brinquedo que era, em instrumento de ciência. E também devemos dar 
a Galileu o crédito por haver tornado a astronomia em fonte de dor e 
confusão para a teologia predominante. Sua descoberta das quatro luas 
de Júpiter e a simplicidade e acessibilidade de seu estilo de escrita eram 
armas de seu arsenal. Mas mais importante foi a franqueza com que 
questionou as Escrituras. Em sua famosa Carta à Grã-Duquesa Cristina, ele 
usou argumentos desenvolvidos primeiro por Kepler sobre os motivos 
pelos quais a Bíblia não podia ser interpretada de maneira literal. Mas ele 
foi mais além ao dizer que nada físico que pudesse ser observado de 
forma direta ou que pudesse ser provado por demonstrações devia ser 
questionado apenas porque passagens bíblicas diziam o contrário. De 
uma maneira mais clara do que Kepler, Galileu desautorizou os doutores 
da Igreja de dar opiniões sobre a natureza. Ele acusou de insensatez a 
permissão para que eles dessem essas opiniões. Escreveu: “Seria como se 
um déspota absoluto que não é médico nem arquiteto, mas sabendo que é 
livre para ordenar, passasse a prescrever remédios e construir prédios de 
acordo com seu capricho — colocando em risco as vidas de seus pobres 
pacientes e acarretando o rápido desabamento de seus edifícios”. 
Os doutores da Igreja ficaram tontos com esta e outras afirmações 
audaciosas. Por conseguinte, é espantoso que a Igreja tenha feito 
persistentes esforços para acomodar suas crenças às observações e 
declarações de Galileu. Ela estava disposta, por exemplo, a aceitar a 
hipótese de que a Terra se move e o sol permanece parado. Aceitava 
porque era assunto dos matemáticos formular hipóteses interessantes. 
Mas não podia haver condescendência com a alegação 
42 
de Galileu de que o movimento da Terra é um fato da natureza. 
Definitivamente, tal crença era vista como ofensiva à Santa Fé ao 
contradizer as Escrituras. Desse modo, era inevitável o julgamento de 
Galileu por heresia, muito embora houvesse sido postergado por longo 
tempo. O julgamento ocorreu em 1633, resultando em sua condenação. 
Entre as punições estavam a de que Galileu devia abjurar a opinião de 
Copérnico, passar algum tempo em uma prisão formal e, durante três 
anos, repetir uma vez por semana sete salmos penitenciais. É provável 
que não seja verdade a crença de que Galileu tenha murmurado na 
conclusão de sua sentença: “Mas a Terra se move”, ou alguma expressão 
semelhante de desafio. Na realidade, em seu julgamento perguntaram 
quatro vezes se acreditava na visão de Copérnico, e todas as vezes Galileu 
disse que não. Todos sabiam que ele acreditava no contrário, e que a 
idade avançada, enfermidades e medo da tortura é que ditaram sua 
submissão. Em todo caso, Galileu não passou um único dia na prisão. A 
princípio, ele foi confinado na quinta do grão-duque em Trinità del 
Monte, depois no palácio do arcebispo Piccolomini em Siena e, por fim, 
em sua casa em Florença, onde permaneceu até o fim da vida. Galileu 
morreu em 1642, ano em que Isaac Newton nasceu. 
Copérnico, Kepler e Galileu instalaram a dinamite que iria explodir ateologia e a metafísica do mundo medieval. Newton acendeu o estopim. 
Na explosão que se seguiu, foi destruído o animismo de Aristóteles, junto 
com quase tudo o mais de Física. As Escrituras perderam muito de sua 
autoridade. A teologia, que antes era a Rainha das Ciências, foi reduzida 
agora ao status de. Bobo da Corte. Pior de tudo, o significado da existência 
em si tornou-se uma questão aberta. E como tudo isso era irônico! 
Enquanto os homens haviam olhado tradicionalmente para o céu para 
encontrar autoridade, objetivo e significado, os Sonâmbulos (como Arthur 
Koestler chamou Copérnico, Kepler e Galileu) não olharam para o céu, 
mas sim para o firmamento. E nele encontraram apenas equações 
matemáticas e padrões geométricos. Eles fizeram isso com coragem, mas 
não sem receios, posto que deram tudo de si para conservar a fé, e não 
voltaram as costas para Deus. Acreditavam em um Deus que havia pla 
45 
nejado e desenhado toda a Criação, um Deus que era mestre em 
matemática. Sua busca das leis matemáticas da natureza foi, funda-
mentalmente, uma procura religiosa. A natureza era o texto de Deus, e 
Galileu descobriu que o alfabeto de Deus consistia em “triângulos, 
quadrângulos, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras 
matemáticas”. Kepler concordou e até jactou-se de que Deus, o autor, teve 
que esperar seis mil anos por Seu primeiro leitor — o próprio Kepler. 
Quanto a Newton, ele passou a maior parte de seus últimos anos tentando 
contar as gerações desde Adão, com fé inabalável nas Escrituras. 
Descartes, cujo Discurso sobre o Método, publicado em 1637, proporcionou 
nobreza ao ceticismo e à razão e serviu como base de uma nova ciência, 
foi homem de profunda religiosidade. Embora visse o universo como 
sendo mecânico (“Dê-me matéria e movimento”, escreveu ele, “e eu 
construirei o mundo”), ele deduziu sua lei da imutabilidade do 
movimento a partir da imutabilidade de Deus. 
Todos eles se apegaram, até o fim, à teologia de seu tempo. Sem 
dúvida, eles não teriam ficado indiferentes por saber quando seria o Juízo 
Final, e não poderiam imaginar o mundo sem Deus. Além disso, a ciência 
que criaram preocupava-se quase por completo com questões da verdade, 
não do poder. Com esse propósito, desenvolveu-se no final do século XV 
o que pode ser descrito como uma paixão pela exatidão: datas exatas, 
quantidades, distâncias, proporções. Chegou-se a pensar que era possível 
determinar o momento exato da Criação, que, como se verificou, começou 
às 9 horas da manhã de 23 de outubro de 4004 a.C. Eram eles homens que 
pensavam da filosofia (que era o que eles chamavam de ciência) o mesmo 
que os gregos, acreditando que o verdadeiro objeto da investigação da 
natureza era a satisfação especulativa. Não estavam preocupados com a 
idéia de progresso e não acreditavam que suas especulações continham a 
promessa de algum aperfeiçoamento importante das condições de vida. 
Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Newton construíram os alicerces 
para o surgimento de tecnocracias, mas eles próprios eram homens de 
culturas usuárias de ferramentas. 
44 
Francis Bacon, nascido em 1561, foi o primeiro homem da era 
tecnocrática. Ao dizer isso, posso estar contestando nada menos que uma 
autoridade como Emmanuel Kant, que disse que era preciso um Kepler 
ou um Newton para descobrir a lei do movimento da civilização. Talvez. 
Mas foi Bacon quem viu primeiro, pura e serena, a relação entre ciência e 
melhoria da condição humana. O objetivo principal de seu trabalho foi 
aumentar “a felicidade da humanidade”, e várias vezes criticou seus 
predecessores por deixarem de compreender que o motivo real, legítimo e 
único das ciências é “dotar a vida humana de novas invenções e 
riquezas”. Ele fez com que as ciências descessem do céu, inclusive a 
matemática, que ele concebia como uma modesta criada da invenção. Em 
sua visão utilitária do conhecimento, Bacon foi o principal arquiteto de 
um novo edifício de pensamentos, no qual a resignação era jogada fora e 
Deus era destinado a um quarto especial. O nome do prédio era 
Progresso e Poder. 
Por ironia, Bacon não era cientista, ou pelo menos não era um grande 
cientista. Não fez nenhum trabalho pioneiro em algum campo da 
pesquisa. Não descobriu nenhuma lei nova da natureza, nem produziu 
uma única hipótese nova. Sequer era bem informado sobre as 
investigações científicas de seu tempo. E embora se orgulhasse de ser o 
criador de um progresso revolucionário no método científico, a 
posteridade não tolerou essa presunção. De fato, sua experiência mais 
famosa chama nossa atenção porque Bacon morreu como resultado dela. 
Ele e seu bom amigo, o Dr. Whiterborne, estavam fazendo um passeio de 
carruagem em um dia de inverno quando, ao ver a neve no solo, Bacon 
perguntou-se se a carne não poderia ser conservada na neve, assim como 
no sal. Os dois decidiram descobrir de imediato. Compraram uma 
galinha, retiraram suas entranhas e encheram o corpo de neve. O pobre 
Bacon nunca soube o resultado de sua experiência porque logo ficou 
doente por causa do frio, provavelmente atacado de bronquite, e morreu 
três dias depois. Por isso, às vezes ele é visto como mártir da ciência 
experimental. 
45 
Mas sua grandeza não está na ciência experimental. Embora outros de 
seu tempo ficassem impressionados com os efeitos das invenções práticas 
sobre as condições de vida, Bacon foi o primeiro a pensar na questão de 
maneira profunda e sistemática. Ele dedicou grande parte de seu trabalho 
para educar homens a verem os elos entre as invenções e o progresso. 
Bacon escreveu em Novum Organum. 
É bom observar a força, o efeito e as conseqüências das 
descobertas. Essas coisas podem ser vistas de forma mais notável 
nas três invenções que eram desconhecidas dos antigos, e cuja 
origem, apesar de recente, é obscura: a imprensa, a pólvora e o 
magneto. Pois essas três descobertas mudaram toda a face e estado 
de coisas no mundo inteiro; a primeira na literatura, a segunda na 
arte da guerra, a terceira na navegação; daí seguiram-se inúmeras 
mudanças, a tal ponto que nenhum império, nenhuma seita, 
nenhuma estrela parece ter exercido maior poder e influência nos 
assuntos humanos do que essas mudanças. 
Podemos detectar, nessa passagem, algumas das virtudes de Bacon e a 
fonte de sua grande influência. Aqui não há nenhum sonâmbulo. Ele sabe 
muito bem o que a tecnologia faz com a cultura, e coloca o 
desenvolvimento tecnológico no centro da atenção do leitor. Bacon 
escreve com convicção e verve. Está, afinal de contas, entre os grandes 
ensaístas do mundo; Bacon foi um propagandista-mestre que conhecia 
bem a história da ciência, mas via a ciência não como um registro de 
opinião especulativa, mas como o registro do que essa opinião permitiu 
que o homem fizesse. E se empenhou incessantemente em transmitir essa 
idéia para seus compatriotas, e para o mundo. Nos dois primeiros livros 
de Novum Organum, que consistem em 182 aforismos, Bacon estabelece 
nada menos que uma filosofia da ciência baseada no axioma de que “o 
aperfeiçoamento da mente dos homens e o aperfeiçoamento de seu 
destino são uma única e mesma coisa”. E nessa obra que ele denuncia os 
quatro ídolos infames que impediram que o homem ganhasse poder 
sobre a natureza: ídolos da Tribo, que nos levaram a acreditar que nossas 
percepções 
46 
são o mesmo que os fatos da natureza; Ídolos da Caverna, que nos 
levaram a confundir idéias derivadas da hereditariedade e do ambiente; 
Ídolos do Mercado, que nos levaram a ser iludidos por palavras; e Ídolos 
do Teatro, que nos levaram a corromper dogmas dos filósofos. 
Ler Bacon hoje em dia é ser constantemente

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