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REFERÊNCIA 2 Texto 1: POSTMAN, Neil. Tecnopólio: A rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994. (p.13-48) O JULGAMENTO DE THAMUS pessoas como nós, inclinadas (na frase de Thoreau) a ser ferramentas de nossas ferramentas, poucas lendas são mais instrutivas do que esta. A história, como Sócrates contou para seu amigo Fedro, desen- rolou-se da seguinte maneira: um dia Thamus recebeu o deus Theuth, que foi o inventor de muitas coisas, inclusive do número, do cálculo, da geometria, da astronomia e da escrita. Theuth exibiu suas invenções para o rei Thamus, afirmando que elas deviam ser ampla- mente conhecidas e disponíveis aos egípcios. Sócrates continua: Thamus indagou sobre o uso de cada uma delas, e, enquanto Theuth discorria sobre elas, expressava aprovação ou desa- provação, à medida que julgasse as afirmações de Theuth bem ou mal fundamentadas. Levaria tempo demais repassar tudo o que se relatou sobre o que Thamus disse a favor ou contra cada invenção de Theuth. Mas quando chegou na escrita, Theuth declarou: “Aqui está uma realização, meu senhor rei, que irá aperfeiçoar tanto a sabedoria como a memória dos egípcios. Eu descobri uma receita segura para a memória e 1 3 ocê encontrará em Fedro de Platão uma história sobre Thamus, o rei de uma grande cidade do Alto Egito. Para para a sabedoria”. Com isso, Thamus replicou: “Theuth, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor juiz para avaliar o bem ou dano que ela causará naqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é o pai da escrita, por afeição a seu rebento, atribuiu-lhe o oposto de sua verdadeira função. Aqueles que a adquirirem vão parar de exercitar a memória e se tornarão esquecidos; confiarão na escrita para trazer coisas à sua lembrança por sinais externos, em vez de fazê-lo por meio de seus próprios recursos internos. O que você descobriu é a receita para a recordação, não para a memória. E quanto à sabedoria, seus discípulos terão a reputação dela sem a realidade, vão receber uma quantidade de informação sem a instrução adequada, e, como conseqüência, serão vistos como muito instruídos, quando na maior parte serão bastante ignorantes. E como estarão supridos com o conceito de sabedoria, e não com a sabedoria verdadeira, se- rão um fardo para a sociedade”.1 Começo meu livro com essa lenda porque na resposta deThamus há vários sólidos princípios, com os quais podemos começar a aprender a pensar com sábia circunspecção sobre a sociedade tecnológica. Na verdade, há inclusive um erro no julgamento deThamus, com o qual também podemos aprender algo importante. O erro não está em sua afirmação de que a escrita irá prejudicar a memória e criar uma falsa sabedoria. É demonstrável que a escrita tem tido esse efeito. O erro de Thamus está em sua crença em que a escrita será um fardo para a sociedade, e nada mais que um fardo. Com toda a sua sabedoria, ele falha ao não imaginar quais poderiam ser os benefícios da escrita, que, como sabemos, têm sido consideráveis. Podemos aprender com isso que é um erro supor que qualquer inovação tecnológica tem um efeito unilateral apenas. Toda tecnologia tanto é um fardo como uma bênção; não uma coisa ou outra, mas sim isto e aquilo. Nada poderia ser mais óbvio, é claro, especialmente para aqueles que pensaram mais de dois minutos sobre a questão. Não obstante, atualmente estamos cercados por multidões de zelosos Theuth, pro 14 fetas de um olho só que vêem apenas o que as novas tecnologias podem fazer e são incapazes de imaginar o que elas irão desfazer. Podemos chamar essas pessoas de tecnófilos. Elas olham para a tecnologia como um amante para a amada, vendo-a sem defeitos e não sentindo apreensão alguma quanto ao futuro. Por conseguinte, cias são perigosas, e devem ser abordadas com cuidado. Por outro lado, alguns profetas de um só olho, como eu (ou pelo menos é do que me acusam), estão inclinados a falar apenas de fardos (ao modo de Thamus), e se calam sobre as oportunidades que as novas tecnologias tornam possíveis. Os tecnófilos precisam falar por si, e o fazem por toda a parte. Minha defesa é a de que às vezes é preciso uma voz discordante para moderar a gritaria feita pelas multidões entusiásticas. Se temos que errar, é melhor errar pelo lado do ceticismo de Thamus. Mas, ainda assim, é um erro. E eu poderia observar que, com exceção de seu julgamento sobre a escrita, Thamus não repete esse erro. Ao reler a lenda, você pode notar que ele dá argumentos a favor e contra cada invenção de Theuth. É, pois, inevitável que cada cultura precise negociar com a tecnologia, fazendo-o de maneira inteligente ou não. Chega-se a um acordo no qual a tecnologia dá e toma. O sábio sabe muito bem disso e raras vezes se impressiona com as dramáticas mudanças tecnológicas, e jamais se enche de satisfação. Aqui temos Freud, por exemplo, sobre a ques- tão, de seu sombrio Civilization and its Discontents. Gostaríamos de perguntar: então não há nenhum ganho positivo no prazer, nenhum aumento inequívoco em minha sensação de felicidade, se posso ouvir, quantas vezes quiser, a voz de um filho meu que está vivendo a centenas de quilômetros de distância, ou se posso saber no tempo mais curto possível que um amigo chegou a seu destino e que percorreu a longa e difícil viagem são e salvo? Não significa coisa alguma que a medicina tenha tido um enorme sucesso na redução da mortalidade infantil e no perigo de infecção para mulheres em trabalho de parto e em aumentar consideravelmente a média de vida do homem civilizado? 1 5 Freud sabia muito bem que os avanços técnicos e científicos não deviam ser encarados com leviandade, motivo pelo qual ele começa essa passagem reconhecendo-os. Mas ele termina lembrando-nos do que eles desfizeram: Se não houvesse nenhuma estrada de ferro para conquistar as distâncias, meu filho jamais teria saído de sua cidade natal, e eu não precisaria de telefone para ouvir a voz dele; se não tivesse sido iniciada a viagem de navio pelos oceanos, meu amigo não teria embarcado em sua viagem pelo mar e eu não precisaria de telegrama para aliviar minha ansiedade em relação a ele. De que adianta reduzir a mortalidade infantil quando é precisamente essa redução que nos impõe a maior limitação para gerar mais filhos, de forma que, em geral, ainda assim não temos mais filhos do que nos tempos antes do reinado da higiene, ao passo que ao mesmo tempo criamos condições difíceis para nossa vida sexual no casamento... E, por fim, de que nos serve uma vida longa, se ela é difícil e pobre de alegrias, e se é tão cheia de desgraça que só podemos acolher a morte como uma libertadora?2 Ao analisar o custo do progresso tecnológico, Freud assume uma postura bastante depressiva: a de alguém que concorda com a observação deThoreau, de que nossas invenções nada mais são que meios aperfeiçoados para se chegar a um fim não melhorado. Sem dúvida o tecnófilo responderia a Freud dizendo que a vida sempre foi pobre de alegrias e cheia de desgraça, mas que o telefone, os navios de carreira e em especial o reino da higiene não apenas aumentaram o tempo de vida, mas também tornaram-na uma proposta mais agradável. Esse é, com certeza, um argumento que eu apresentaria (desse modo, provaria que não sou um tecnófobo de um olho só), mas nesse momento não é necessário seguir essa linha. Eu trouxe Freud para a conversa apenas para demonstrar que um sábio — mesmo alguém com um semblante tão triste — precisa começar sua crítica à tecnologia reconhecendo seus sucessos. Se o rei Thamus fosse tão sábio como demonstravasua reputação, não teria esquecido de in 16 cluir em seu julgamento uma profecia sobre os poderes que a escrita ampliaria. Há um cálculo da mudança tecnológica que requer uma medida de imparcialidade. Chega do erro de omissão de Thamus. Há uma outra omissão digna de nota, mas que não é um erro. Thamus simplesmente aceita como certo — e, por conseguinte, não acha necessário dizer — que a escrita não é uma tecnologia neutra, cujo bem ou dano depende do uso que se faça dela. Ele sabe que os usos de qualquer tecnologia são determinados, em grande parte, pela estrutura da tecnologia em si, isto é, que suas funções resultam de sua forma. Esse é o motivo pelo qual Thamus não está preocupado com o que as pessoas vão escrever; ele está preocupado com o fato de que as pessoas irão escrever. É absurdo imaginar Thamus avisando, à maneira do tecnófilo-padrão de hoje, que os malefícios da escrita poderiam ser minimizados, desde que ela fosse usada apenas para a produção de certos tipos de textos (digamos que para a literatura dramática, mas não para a história ou para a filosofia). Ele veria tal aviso como uma extrema ingenuidade. Imagino que ele permitiria que se impedisse uma tecnologia de entrar em uma cultura. Mas podemos aprender o seguinte com Thamus: uma vez que uma tecnologia é aceita, ela atua de imediato; faz o que está destinada a fazer. Nossa tarefa é compreender o que é esse desígnio; vale dizer que, quando aceitamos uma tecnologia nova, devemos fazê-lo com os olhos bem abertos. Podemos deduzir tudo isso do silêncio de Thamus. Mas podemos aprender mais ainda com o que ele diz do que com o que não diz. Ele observa, por exemplo, que a escrita mudará o significado das palavras “memória” e “sabedoria”. Ele receia que a memória vá ser confundida com o que ele chama desdenhosamente de “recordação”, e se preocupa com que a sabedoria não possa ser diferenciada do mero conhecimento. Devemos levar a sério esse julgamento, posto que é uma certeza que as tecnologias radicais criam novas definições para velhos termos, e que esse processo ocorre sem que tenhamos plena consciência dele. Desse modo, é insidioso e perigoso, bem diferente do processo em que novas tecnologias introduzem novos 1 7 termos na linguagem. Em nosso tempo, temos acrescentado, de forma consciente, à nossa linguagem, milhares de palavras e frases novas que têm a ver com tecnologias novas — “VCR”, “dígito binário”, “software”, “tração nas rodas dianteiras”, “janela de oportunidade”, “walkman” etc. Não somos tomados de surpresa por isso. Coisas novas requerem palavras novas. Mas as coisas novas também modificam palavras velhas, palavras que têm significados com profundas raízes. O telégrafo e o jornal diário mudaram o que antes chamávamos de “informação”. A televisão muda o que antes chamávamos de “debate político”, “notícia” e “opinião pública”. O computador muda a “informação” mais uma vez. A escrita mudou o que antes chamávamos de “verdade” e “lei”; a imprensa mudou-as mais uma vez e agora a televisão e o computador tornam a mudá-las. Essas mudanças ocorrem com rapidez, sem dúvida, e em certo sentido em silêncio. Os lexicógrafos não fazem plebiscitos sobre a ques- tão. Não se escrevem manuais para explicar o que está acontecendo, e as escolas estão desatentas a isso. As velhas palavras ainda parecem ser as mesmas, ainda são usadas nos mesmos tipos de frases. Mas não têm mais os mesmos significados; em alguns casos, têm o significado oposto. E é isso o que Thamus nos deseja ensinar — que a tecnologia se apodera imperiosamente de nossa terminologia mais importante. Ela redefine “liberdade”, “verdade”, “inteligência”, “fato”, “sabedoria”, “memória”, “história” — todas as palavras com que vivemos. E ela não pára para nos contar. E nós não paramos para perguntar. Esse fato sobre a mudança tecnológica requer alguma elaboração e voltaremos ao assunto em um capítulo mais adiante. No momento, há vários outros princípios a serem explorados pelo julgamento de Thamus, que precisam ser mencionados porque pressagiam tudo sobre o que escreverei. Por exemplo, Thamus adverte que os discípulos de Theuth irão desenvolver uma reputação de sabedoria não merecida. Ele quer dizer que aqueles que cultivam a competência no uso de uma tecnologia nova tornam-se um grupo de elite ao qual aqueles que não têm essa competência garantem autoridade e prestígio imerecidos. Há maneiras diferentes de expressar as interessantes 18 implicações desse fato. Harold Innis, o pai dos estudos da comunicação moderna, falou repetidas vezes dos “monopólios do conhecimento” criados por importantes tecnologias. Ele referia-se precisamente ao que Thamus tinha em mente: aqueles que têm o controle do funcionamento de uma tecnologia particular acumulam poder e, de maneira inevitável, formam uma espécie de conspiração contra aqueles que não têm acesso ao conhecimento especializado, tornado disponível pela tecnologia. Em seu livro The Bias of Communication, Innis oferece muitos exemplos históricos de como uma tecnologia nova “dissolveu” o monopólio de um conhecimento tradicional e criou um novo, presidido por um grupo diferente. Uma outra maneira de dizer isso é que os benefícios e déficits de uma tecnologia nova não são distribuídos por igual. Há, por assim dizer, ganhadores e perdedores. É intrigante e comovente que em muitas ocasiões os perdedores, por ignorância, tenham aplaudido os vencedores, e alguns ainda aplaudam. Vamos tomar como exemplo o caso da televisão. Nos Estados Unidos, onde a televisão se firmou mais profundamente do que em qualquer outro lugar, muitas pessoas acham-na uma bênção, sobretudo aquelas que nela conquistaram carreiras bem pagas e gratifi- cantes, como executivos, técnicos, locutores e artistas de programas de variedades. Não deveria surpreender ninguém o fato de essas pessoas que formam um novo monopólio do conhecimento aplaudirem, defenderem e promoverem a tecnologia da televisão. Por outro lado, a longo prazo, a televisão pode pôr um fim gradual nas carreiras dos professores, posto que a escola foi uma invenção da prensa tipográfica e deve-se manter de pé ou cair conforme a importância que tenha a palavra impressa. Durante quatrocentos anos os professores fizeram parte do monopólio do conhecimento criado pela prensa tipográfica, e agora estão testemunhando o colapso desse monopólio. Ao que parece, eles pouco podem fazer para impedir esse colapso, mas com certeza há algo de perverso nos professores entusiasmados com o que está acontecendo. Esse entusiasmo sempre evocou em minha mente a imagem de algum ferreiro da virada do século, que não apenas canta os elogios ao automóvel, como também acre dita que seu negócio crescerá com ele. Nós sabemos agora que o negócio dele não cresceu; tornou-se obsoleto, como talvez o soubessem os ferreiros lúcidos. O que eles poderiam fazer? Chorar, se não tivessem outra opção. Temos uma situação semelhante no desenvolvimento e difusão da tecnologia do computador, pois aqui também há vencedores c vencidos. Não pode haver discussão sobre o fato de o computador ter aumentado o poder de organizações de larga escala, como as forças armadas, ou as empresas aéreas, bancos e órgãos coletores de impostos. E também está claro que agora o computador é indispensável para pesquisadores de alto nível na física e em outras ciências naturais. Mas em que extensão a tecnologia do computador tem sido uma vantagem para as massas? Para os operários siderúrgicos, proprietários de quitandas, professores, mecânicos de carro, músicos, pedreiros, dentistas e a maioria das pessoascujas vidas o computador está invadindo agora? Seus assuntos particulares foram tornados mais acessíveis para instituições poderosas. Eles são seguidos e controlados com mais facilidade; são submetidos a mais exames; são mistificados cada vez mais pelas decisões tomadas sobre eles; muitas vezes são reduzidos a meros objetos numéricos. São inundados por correspondência inútil. São alvos fáceis das agências de publicidade e de organizações políticas. As escolas ensinam seus filhos a operar sistemas computadorizados, em vez de ensinar coisas mais valiosas para crianças. Resumindo, para os perdedores não acontece quase nada do que precisam. E é por isso que são perdedores. Espera-se que os vencedores estimulem os perdedores a se entu- siasmar com a tecnologia do computador. É a maneira de ser dos vencedores, e assim às vezes eles dizem para os perdedores que com o computador pessoal a média das pessoas pode verificar o saldo no talão de cheques com mais exatidão, pode acompanhar melhor receitas e fazer listas de compras mais lógicas. Também dizem que suas vidas serão conduzidas com mais eficiência. Mas discretamente deixam de dizer do ponto de vista de quem será garantida a eficiência, ou qual pode ser seu custo. Se os perdedores ficam céticos, os vencedores os ofuscam com as maravilhosas façanhas dos computadores, 20 a maioria das quais tem apenas relevância marginal para a qualidade de vida dos perdedores, mas que mesmo assim são impressionantes. Em dado momento, os perdedores capitulam, em parte porque acre- ditam como profetizou Thamus, que o conhecimento especializado dos mestres de uma tecnologia nova seja uma forma de sabedoria. E, como Thamus também profetizou, os mestres também passam a acreditar nisso. O resultado é que certas questões não são levanta- das. Por exemplo, a quem a tecnologia dará maior poder e liberdade? E o poder c a liberdade de quem serão reduzidos por ela? Talvez eu tenha feito tudo isso parecer uma conspiração bem planejada, como se os vencedores soubessem muito bem o que está sendo ganho e o que está sendo perdido. Mas não é bem assim que acontece. Em culturas que têm um espírito democrático, tradições relativamente fracas e alta receptividade a tecnologias novas, todo o mundo está inclinado a se entusiasmar com a mudança tecnológica, acreditando que seus benefícios se espalharão, em um dado momen- to por igual sobre toda a população. Sobretudo nos Estados Uni- dos, onde não tem limites a ânsia pelo que é novo, encontramos mais amplamente difundida essa convicção infantil. De fato, na América, raras vezes a mudança social de qualquer tipo é vista como resultando em vencedores e perdedores, condição essa que se origina em parte do otimismo muito documentado dos americanos. Quan- to à mudança causada pela tecnologia, esse otimismo nativo é explo- rado por empresários, que trabalham duro para instilar na popula- ção uma unidade de esperança improvável, posto que sabem que do ponto de vista econômico não é sábio revelar o preço a ser pago pela mudança tecnológica. Então, poder-se-ia dizer que, se há conspiração de algum tipo, é a de uma cultura conspirando contra si mesma. A L É M disso, e mais importante que tudo, nem sempre está claro, pelo menos nos estágios iniciais da invasão de uma tecnologia em uma cultura, quem ganhará mais e quem perderá mais. Isto se dá porque as mudanças forjadas pela tecnologia são sutis, quando não são completos mistérios; e poder-se-ia dizer que são imprevisíveis. Entre as mais imprevisíveis estão aquelas que podem ser rotuladas de ideológicas. É o tipo de mudança que Thamus tinha em mente, 21 quando advertiu que os escritores passariam a confiar em sinais externos em vez de confiar em seus próprios recursos internos, e que iriam receber grandes quantidades de informação sem instrução adequada. Ele quis dizer que as novas tecnologias mudam aquilo que entendemos como “conhecimento” e “verdade”; elas alteram hábitos de pensamento profundamente enraizados, que dão a uma cultura seu senso de como é o mundo — um senso do que é a ordem natural das coisas, do que é sensato, do que é necessário, do que é inevitável, do que é real. Como essas coisas são expressas em sentidos modificados de velhas palavras, deixarei de lado, até discussão posterior, a maciça transformação ideológica que está ocorrendo agora nos EUA. Por enquanto, gostaria de dar apenas um exemplo de como a tecnologia cria novas concepções do que é real e, durante o processo, mina as concepções mais velhas. Refiro- me à prática aparentemente inofensiva de atribuir notas ou graus às respostas que os estudantes dão nos exames. Esse procedimento parece tão natural para a maioria de nós que mal temos consciência de seu significado. Podemos achar difícil imaginar que o número e a letra sejam ferramentas, ou, se quiserem, uma tecnologia; contudo, quando usamos tal tecnologia para julgar o comportamento de alguém, fazemos algo peculiar. Na realidade, o primeiro exemplo de se dar nota a papéis dos estudantes ocorreu na Universidade de Cambridge, em 1792, por sugestão de um tutor chamado William Farish.3 Ninguém sabe muita coisa sobre William Farish; apenas um punhado de pessoas já ouviu falar dele. No entanto, sua idéia de que um valor quantitativo deveria ser atribuído aos pensamentos humanos foi um grande passo em direção à construção de um conceito matemático de realidade. Se se pode dar um número à qualidade de pensamento, então, pode-se atribuir um número à qualidade da compaixão, do amor, da beleza, do ódio, da criatividade, da inteligência e até mesmo da sanidade. Quando Galileu disse que a linguagem da natureza estava escrita em matemática, ele não tencionava incluir o sentimento humano, a realização ou a perspicácia. Mas agora a maioria de nós está inclinada a fazer essas inclusões. Nossos psicólogos, sociólogos e educadores acham quase impossível fazer seu trabalho sem 22 os números. Acreditam que sem eles não podem atingir ou expressar o conhecimento autêntico. Não vou discutir aqui se essa idéia é estúpida ou perigosa, apenas que é peculiar. O que é mais peculiar ainda é que muitos de nós não acham essa idéia peculiar. Dizer que alguém devia estar fazendo um trabalho melhor porque tem um QI de 134, ou que alguém tem 7,2 na escala de sensibilidade, ou que o ensaio de Fulano sobre o crescimento do capitalismo merece nota 10 e o de Beltrano merece 6, teria parecido algaravia para Galileu, Shakespeare ou Thomas Jefferson. Se faz sentido para nós, é porque nossas mentes foram condicionadas pela tecnologia dos números, de forma que vemos o mundo de maneira diferente da deles. Nosso entendimento do que é real é diferente — o que é uma outra maneira de dizer que toda ferramenta está impregnada de um viés ideológico, de uma predisposição a construir o mundo como uma coisa e não como outra, a valorizar uma coisa mais que outra, a amplificar um sentido ou habilidade ou atitude com mais intensidade do que outros. Foi isso que Marshall McLuhan quis dizer com seu famoso aforismo “O meio é a mensagem”. Foi o que Marx quis dizer quando afirmou: “A tecnologia revela a maneira como o homem lida com a natureza” e cria as “condições de intercurso” com as quais nos relacionamos uns com os outros. Foi o que Wittgenstein quis dizer quando afirmou, ao referir-se à nossa tecnologia mais fundamental, que a linguagem não é apenas um veículo do pensamento, mas também o motorista. E foi o que Thamus quis que o inventor Theuth visse. Resumindo, essa é uma sabedoria antiga e persistente, expressada talvez da maneira mais simples no velho adágio,segundo o qual tudo parece prego para um homem com um martelo. Sem sermos literais demais, podemos estender o truísmo: para um homem com uma caneta, tudo parece uma lista. Para um homem com uma câmera, tudo parece uma imagem. Para um homem com um computador, tudo parecem dados. E para alguém com uma folha pautada, tudo parece número. No entanto, tais preconceitos nem sempre são aparentes no começo de uma jornada da tecnologia, motivo pelo qual ninguém pode 25 conspirar com segurança para ser o vencedor numa mudança tecnológica. Quem iria imaginar, por exemplo, que interesses e que visão de mundo avançariam em última instância com a invenção do relógio mecânico? O relógio tem sua origem nos mosteiros beneditinos dos séculos XII e XIII. O impulso por trás da invenção era proporcionar uma regularidade mais ou menos precisa nas roti nas dos mosteiros, que requeriam, entre outras coisas, sete períodos de devoção no decorrer do dia. Os sinos do mosteiro deviam ser tocados para anunciar as horas canônicas; o relógio mecânico era a tecnologia que poderia proporcionar precisão para esses rituais de devoção. E de fato proporcionou. Mas o que os monges não previram foi que o relógio viria a ser um meio não apenas para acompanhar as horas, mas também para sincronizar e controlar as ações dos homens. E, assim, em meados do século XIV, o relógio foi além das paredes do mosteiro, levando uma nova e precisa regularidade à vida do trabalhador e do mercador. “O relógio mecânico”, como Lewis Mumford escreveu, “tornou possível a idéia da produção regular, das horas de trabalho regular e de um produto padronizado.” Resumindo, sem o relógio teria sido impossível haver capitalismo.4 O paradoxo, a surpresa e a curiosidade foi que o relógio foi inventado por homens que queriam dedicar-se mais rigorosamente a Deus; ele terminou como a tecnologia de maior uso para os homens, que desejavam dedicar-se à acumulação de dinheiro. Na eterna luta entre Deus e os bens materiais, o relógio favoreceu estes últimos, de maneira bastante imprevisível. Conseqüências imprevistas estão no caminho daqueles que pensam que vêem, com clareza, a direção para a qual uma nova tecnologia nos levará. Nem mesmo aqueles que inventam uma tecnologia podem presumir que são profetas confiáveis, como Thamus advertiu. Gutenberg, por exemplo, foi em todos os aspectos um católico devoto que teria ficado horrorizado ao ouvir que o execrável herege Lutero descreveu a imprensa como “o ato de graça mais alto de Deus, com o qual a causa do Evangelho foi impulsionada para a frente”. Lutero compreendeu, ao contrário de Gutenberg, que o livro produzido em massa, ao colocar a Palavra de Deus na mesa de cada 24 cozinha, tornava cada cristão seu próprio teólogo — pode-se inclusive dizer seu próprio sacerdote ou, melhor ainda, do ponto de vista de Lutero, seu próprio papa. Na luta entre a unidade e a diversidade de crença religiosa, a imprensa favoreceu esta última, e podemos supor que essa possibilidade jamais ocorreu a Gutenberg. Thamus entendeu muito bem as limitações dos inventores para compreender a tendência social e psicológica — isto é, ideológica— de suas próprias invenções. Podemos imaginá-lo dirigindo-se a Gutenberg da seguinte maneira: “Gutenberg, meu exemplo de inventor, o descobridor de uma arte não é o melhor juiz do bem ou dano que pode ser causado àqueles que a pratiquem. Portanto, você, que é o pai da imprensa, por afeição a seu rebento, passou a acreditar que ele favorecerá a causa da Santa Sé Romana, ao passo que na verdade vai propagar a discórdia entre os fiéis; irá danificar a autenticidade de sua amada Igreja e destruirá seu monopólio”. Podemos imaginar que Thamus teria observado para Gutenberg, como fez para Theuth, que a nova invenção criaria uma vasta população de leitores que “irão receber uma quantidade de informação sem a instrução adequada... [que estarão] supridos do conceito de sabedoria e não da sabedoria verdadeira”; em outras palavras, que a leitura irá competir com outras formas de aprendizado. Este é outro princípio da mudança tecnológica que podemos deduzir do julgamento de Thamus: as novas tecnologias competem com as antigas — pelo tempo, por atenção, por dinheiro, por prestígio, mas sobretudo pela predominância de sua visão de mundo. Essa competição é implícita, uma vez que reconheçamos que um meio contém uma tendência ideológica. É uma competição feroz, como apenas as competições ideológicas conseguem ser. Não é mera questão de ferramenta contra ferramenta—o alfabeto atacando a escrita ideográfica, a prensa tipográfica atacando o manuscrito iluminado, a fotografia atacando a arte da pintura, a televisão atacando a palavra impressa. Quando a mídia faz guerra entre si, é um caso de visões de mundo em colisão. Nos Estados Unidos podemos ver essas colisões por toda a parte — na política, na religião, no comércio — mas as vemos com mais 25 clareza nas escolas, onde duas grandes tecnologias confrontam-se em uma perspectiva descomprometida pelo controle das mentes dos estudantes. Por um lado, há o mundo da palavra impressa, com sua ênfase na lógica, na seqüência, na história, na exposição, na objetividade, na imparcialidade e na disciplina. Por outro lado, há o mundo da televisão, com sua ênfase na fantasia, na narrativa, na presença, na simultaneidade, na intimidade, na gratificação imediata e na resposta emocional rápida. As crianças vão para a escola depois de haver sido profundamente condicionadas pela influência da televisão. Lá elas encontram o mundo da palavra impressa. Ocorre uma espécie de batalha psíquica, e há muitas baixas — crianças que não conseguem ou não querem aprender a ler, crianças que não conseguem organizar seu pensamento em uma estrutura lógica mesmo em um único parágrafo, crianças que não conseguem prestar atenção às aulas ou às explicações orais por mais de alguns minutos de cada vez. São fracassos, mas não porque sejam estúpidas. São fracassos porque está havendo uma guerra da mídia, e elas estão do lado errado — pelo menos, por enquanto. Quem sabe como as escolas serão daqui a vinte e cinco anos? Ou cinqüenta? Até lá, o tipo de estudante que no momento é um fracasso pode ser considerado um sucesso. O tipo que agora é bem- sucedido pode ser visto como um estudante deficiente — lento na resposta, desapaixonado demais, carente de emoção, incapaz de criar imagens mentais da realidade. Considere: o que Thamus chamou de “conceito de sabedoria” — o conhecimento irreal adquirido por meio da palavra escrita — em dado momento tornou-se a forma de conhecimento preeminente apreciada pelas escolas. Não há nenhuma razão para supor que tal forma de conhecimento deva ser sempre apreciada em alta conta. Para tomar um outro exemplo: ao introduzir o computador pessoal na sala de aula, estaremos rompendo uma trégua de quatrocentos anos entre o gregarismo e a abertura, fomentados pela oralidade, e a introspecção e o isolamento, fomentados pela palavra impressa. A oralidade dá ênfase ao aprendizado em grupo, à cooperação e a um sentido de responsabilidade social, que é o contexto dentro do qual Thamus acreditava que a instrução adequada e o conhecimento ver dadeiro deviam ser comunicados. A imprensa enfatiza o aprendizado individualizado, a competição e a autonomia pessoal. Durante quatrocentos anos, os professores, enquanto enfatizavam a imprensa, permitiram que a oralidade ocupasse seu espaço na sala de aula e, por conseguinte, atingiram uma espécie de paz pedagógica entre essas duas formas de aprendizado, de tal modo que pudesse ser maximizado aquiloque era apreciado em cada forma. Agora chega o computador, carregando mais uma vez a bandeira do aprendizado privado e da solução individual do problema. Será que o uso difundido dos computadores derrotará de uma vez por todas as pretensões do discurso comunal? Irá o computador elevar o egocentrismo à categoria de virtude? Esses são os tipos de perguntas que a mudança tecnológica traz à mente quando se percebe, como Thamus percebeu, que a competição tecnológica desencadeia uma guerra total, que significa que não é possível confinar os efeitos de uma tecnologia nova em uma esfera limitada da atividade humana. Se essa metáfora apresenta a questão de maneira brutal demais, podemos tentar uma mais suave e delicada: a mudança tecnológica não é nem aditiva nem subtrativa. É ecológica. Refiro-me à “ecológica” no mesmo sentido em que a palavra é usada pelos cientistas do meio ambiente. Uma mudança significativa gera uma mudança total. Se você retira as lagartas de dado habitat, você não fica com o mesmo meio ambiente menos as lagartas, mas com um novo ambiente e terá reconstituído as condições da sobrevivência; o mesmo se dá se você acrescenta lagartas a um ambiente que não tinha nenhuma. É assim que a ecologia do meio ambiente funciona. Uma tecnologia nova não acrescenta nem subtrai coisa alguma. Ela muda tudo. No ano de 1500, cinqüenta anos depois da invenção da prensa tipográfica, nós não tínhamos a velha Europa mais a imprensa. Tínhamos uma Europa diferente. Depois da televisão, os Estados Unidos não eram a América mais a televisão; esta deu um novo colorido a cada campanha política, a cada lar, a cada escola, a cada igreja, a cada indústria. E é por esse motivo que a competição entre os meios de comunicação é tão feroz. Cercando cada tecnologia estão instituições cuja organização — para não men 27 cionar sua razão de ser — reflete a visão de mundo promovida pela tecnologia. Por conseguinte, quando uma tecnologia velha é atacada por uma nova, as instituições ficam ameaçadas. Quando as instituições são ameaçadas, uma cultura se encontra em crise. Trata-se de um assunto sério, que é o motivo pelo qual nada aprendemos quando os educadores perguntam: os estudantes aprenderão matemática melhor com computadores ou com livros didáticos? Ou quando os homens de negócios perguntam: por que meio podemos vender mais produtos? Ou quando os pregadores perguntam: podemos atingir mais pessoas por meio da televisão ou do rádio? Ou quando os políticos perguntam: que eficiência têm as mensagens enviadas pelos diferentes meios de comunicação? Essas perguntas têm um valor prático imediato para aqueles que as fazem, mas são dispersivas. Elas desviam nossa atenção da séria crise social, intelectual e institucional que o novo meio fomenta. Talvez aqui uma analogia ajude a sublinhar a questão. Ao falar sobre o significado de um poema, T. S. Eliot observou que o principal uso do conteúdo patente da poesia é “satisfazer um hábito do leitor, manter sua mente distraída e quieta, enquanto o poema trabalha nele: assim como o ladrão imaginário está sempre munido de um belo pedaço de carne para o cão da casa”. Em outras palavras, ao fazerem suas perguntas práticas, os educadores, empresários, pregadores e políticos são como o cachorro da casa, que masca pacificamente a carne enquanto a casa é saqueada. Talvez alguns deles saibam disso e não tomem nenhum cuidado especial. Afinal de contas, um belo pedaço de carne oferecido de graça resolve o problema de como conseguir a próxima refeição. Mas para nós outros não é aceitável que a casa seja invadida sem protesto ou pelo menos sem conscientização. O que precisamos para refletir sobre o computador nada tem a ver com sua eficiência como ferramenta de ensino. Precisamos saber de que maneira ele vai alterar nossa concepção de aprendizado e como, em conjunção com a televisão, ele minará a velha idéia de escola. Quem se importa com a quantidade de caixas de cereal que pode ser vendida pela televisão? Precisamos saber se a televisão muda 28 nossa concepção da realidade, o relacionamento entre ricos e pobres, a idéia de felicidade em si. Um pregador que se confina para pensar como um meio de comunicação pode aumentar sua audiência deixará de notar a questão significativa: em que sentido um novo meio de comunicação altera o significado de religião, de igreja e até mesmo de Deus? E se o político não consegue pensar além das próximas eleições, então temos que nos perguntar sobre o que o novo meio de comunicação faz com a idéia de organização política e com o conceito de cidadania. Para ajudar-nos a fazer isso temos o julgamento de Thamus, que, à maneira das lendas, nos ensina o que Harold Innis tentou à sua maneira ensinar. As novas tecnologias alteram a estrutura de nossos interesses: as coisas sobre as quais pensamos. Alteram o caráter de nossos símbolos: as coisas com que pensamos. E alteram a natureza da comunidade: a arena na qual os pensamentos se desenvolvem. Como Thamus falou para Innis através dos séculos, é essencial que ouçamos a conversa deles, que entremos nela, que a revitalizemos. Pois aconteceu na América algo que é estranho e perigoso, e só há uma percepção vaga e até estúpida do que foi — em parte porque não tem nenhum nome. Chamarei de tecnopólio. Notas 1 Platão, p. 96. ² Freud, pp. 38-9. 3 Esse fato é documentado em “The Examination, Disciplinary Power and Rational Schooling”, de Keith Hoskin, in History ofEducation, voL VIII, na 2 (1979), pp. 135-46. O prof. Hoskin apresenta a seguinte história sobre Farish: Farish era professor de engenharia em Cambridge, e desenhou e instalou uma parede divisória móvel em sua casa em Cambridge. A parede movia-se em roldanas entre o andar de baixo e o de cima. Uma noite, enquanto trabalhava até tarde e sentindo frio, Farish puxou a divisória para baixo. Isso não é lá uma história, e não foi revelado o que aconteceu em seguida. Tudo isso mostra quão pouco se sabe sobre William Farish. * Para uma detalhada exposição da posição de Mumford sobre o impacto do relógio mecânico, veja sua obra Technics and Civilization. 29 DAS FERRAMENTAS À TECNOCRACIA Entre os famosos aforismos produzidos pela impertinente ca- neta de Karl Marx está sua observação em A Miséria da Filosofia, de que “o tear manual nos deu a sociedade com o senhor feudal; o moinho a vapor, a sociedade com o capitalista indus- trial ”. Pelo que sei, Marx não disse que tecnologia nos dá o tecnocrata, e tenho certeza de que sua visão não incluía o surgimento do tecno- polista. Não obstante, a observação é útil. Marx compreendeu bem que além das implicações econômicas, as tecnologias criam as manei- ras com as quais as pessoas percebem a realidade, e que essas ma- neiras são a chave para compreender diversas formas de vida social e. Em A Ideologia Alemã ele diz: “Os indivíduos são como ex- pressam sua vida”, que soa muito parecido com Marshall McLuhan ou, no que diz respeito ao assunto, como Thamus poderia soar. De fato, no final desse livro, Marx inclui um parágrafo notável que fica- ria bem à vontade em Understanding Media de McLuhan. Pergunta ele: "É Aquiles possível quando foram inventadas a pólvora e a bala? E é possível a Ilíada quando existem a prensa tipográfica e as máqui- nas impressoras? Não é inevitável que com o surgimento da impren- sa cessem o canto, a narrativa e a musa, ou seja, desapareçam as condições para a poesia épica?”1 51 Ao vincular as condições tecnológicas à vida simbólica e aos hábitos psíquicos, Marx não estava fazendo nada de incomum. Antes dele, os eruditos achavam útilinventar taxionomias da cultura, baseados no caráter tecnológico de uma era. E ainda fazem isso, pois a prática é algo de uma persistente indústria da erudição. Pensamos de cara na classificação mais conhecida: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze, a Idade do Ferro, a Idade do Aço. Falamos facilmente da Revolução Industrial, termo popularizado por Arnold Toynbee, e, há pouco tempo, da Revolução Pós- Industrial, assim chamada por Daniel Bell. Oswald Spengler escreveu sobre a Idade das Técnicas da Máquina, e C. S. Peirce chamou o século XIX de Era da Estrada de Ferro. Lewis Mumford, vendo a questão com uma perspectiva mais longa, deu-nos a Era Eotécnica, a Paleotécnica e a Neotécnica. Com a mesma perspectiva telescópica, José Ortega y Gasset escreveu sobre três estágios no desenvolvimento da tecnologia: a era da tecnologia do acaso, a era da tecnologia do artesão, a era da tecnologia do técnico. Walter Ong escreveu sobre as culturas orais, as culturas quirográficas, as culturas tipográficas e as culturas eletrônicas. O próprio McLuhan introduziu a expressão “a Era de Gutenberg” (que, acreditava ele, fora substituída agora pela Era da Comunicação Eletrônica). Com o objetivo de esclarecer nossa situação atual e indicar os perigos que estão à frente, acho necessário criar mais uma taxionomia. As culturas podem ser classificadas em três tipos: as que usam ferramentas, as tecnocracias e os tecnopólios. No momento atual, cada tipo pode ser encontrado em algum lugar do planeta, embora o primeiro esteja em rápido processo de desaparecimento; somos obrigados a viajar a lugares exóticos para encontrar uma cultura que use ferramentas.2 Se fizermos isso, é bom irmos equipados com o conhecimento de que, até o século XVII, todas as culturas eram usuárias de ferramentas. Havia, é claro, variações consideráveis de uma cultura para a outra em termos das ferramentas disponíveis. Algumas tinham apenas lanças e utensílios para cozinhar. Outras tinham moinhos d’água e energia a carvão e cavalo a vapor. Mas a característica principal de todas as culturas usuárias de ferramentas é o fato de 52 Ao vincular as condições tecnológicas à vida simbólica e aos hábitos psíquicos, Marx não estava fazendo nada de incomum. Antes dele, os eruditos achavam útil inventar taxionomias da cultura, baseados no caráter tecnológico de uma era. E ainda fazem isso, pois a prática é algo de uma persistente indústria da erudição. Pensamos de cara na classificação mais conhecida: a Idade da Pedra, a Idade do Bronze, a Idade do Ferro, a Idade do Aço. Falamos facilmente da Revolução Industrial, termo popularizado por Arnold Toynbee, e, há pouco tempo, da Revolução Pós-Industrial, assim chamada por Daniel Bell. Oswald Spengler escreveu sobre a Idade dasTécnicas da Máquina, e C. S. Peirce chamou o século XIX de Era da Estrada de Ferro. Lewis Mumford, vendo a questão com uma perspectiva mais longa, deu-nos a Era Eotécnica, a Paleotécnica e a Neotécnica. Com a mesma perspectiva telescópica, José Ortega y Gasset escreveu sobre três estágios no desenvolvimento da tecnologia: a era da tecnologia do acaso, a era da tecnologia do artesão, a era da tecnologia do técnico. Walter Ong escreveu sobre as culturas orais, as culturas quirográficas, as culturas tipográficas e as culturas eletrônicas. O próprio McLuhan introduziu a expressão “a Era de Gutenberg” (que, acreditava ele, fora substituída agora pela Era da Comunicação Ele- trônica). Com o objetivo de esclarecer nossa situação atual e indicar os perigos que estão à frente, acho necessário criar mais uma taxionomia. As culturas podem ser classificadas em três tipos: as que usam ferramentas, as tecnocracias e os tecnopólios. No momento atual, cada tipo pode ser encontrado em algum lugar do planeta, embora o primeiro esteja em rápido processo de desaparecimento; somos obrigados a viajar a lugares exóticos para encontrar uma cultura que use ferramentas.2 Se fizermos isso, é bom irmos equipados com o conhecimento de que, até o século XVII, todas as culturas eram usuárias de ferramentas. Havia, é claro, variações consideráveis de uma cultura para a outra em termos das ferramentas disponíveis. Algumas tinham apenas lanças e utensílios para cozinhar. Outras tinham moinhos d’água e energia a carvão e cavalo a vapor. Mas a característica principal de todas as culturas usuárias de ferramentas é o fato de 52 que estas foram inventadas, em grande parte, para fazer duas coisas: resolver problemas específicos e urgentes da vida física, como no uso da força hidráulica, dos moinhos de vento e do arado de roda pesada; ou servir ao mundo simbólico da arte, da política, do mito, do ritual e da religião, como na construção de castelos e catedrais e no desenvolvimento do relógio mecânico. Em todos os casos, as ferramentas não atacavam (ou, com mais exatidão, não tinham a intenção de atacar) a dignidade e a integridade da cultura em que foram introduzidas. Com algumas exceções, as ferramentas não impediam as pessoas de acreditar em suas tradições, em seu Deus, em sua política, em seus métodos de educação ou na legitimidade de sua organização social. Na verdade, essas crenças direcionavam a invenção das ferramentas e limitavam os usos nos quais eram aplicadas. Mesmo no caso da tecnologia militar, as idéias espirituais e os costumes sociais atuavam como forças controladoras. É bastante conhecido, por exemplo, que o uso da espada pelos guerreiros samurais era meticulosamente governado por um conjunto de ideais conhecido como Bushido, ou a Maneira do Guerreiro. As regras e rituais que especificavam quando, onde e como o guerreiro devia usar alguma de suas duas espadas (a katana ou espada longa e a wakizashi ou espada curta) eram precisos, tinham um estreito vínculo com o conceito de honra e incluíam o requisito de que o guerreiro cometesse o seppuku ou haraquiri caso sua honra fosse comprometida. Esse tipo de governo sobre a tecnologia militar não era desconhecido no mundo Ocidental. O uso da letal balista foi proibido, sob a ameaça de anátema, pelo papa Inocêncio II no começo do século XII. A arma foi julgada “odiosa para Deus”, e, por conseguinte, não poderia ser usada contra cristãos. O fato de poder ser usada contra muçulmanos e outros infiéis não invalida a questão de que, em uma cultura que usa ferramentas, a tecnologia não é vista como autônoma, e está sujeita à jurisdição de vínculo social ou sistema religioso. Tendo definido dessa maneira as culturas que usam ferramentas, preciso acrescentar dois pontos para evitar a supersimplificação ex- cessiva. Primeiro, a quantidade de tecnologias disponíveis para uma c ultura usuária de ferramenta não é sua característica definidora. 55 Mesmo um estudo superficial do Império Romano, por exemplo, revela em que extensão dependia de estradas, pontes, aquedutos, túneis e esgotos, tanto para sua vitalidade econômica como para suas conquistas militares. Ou, para tomar um outro exemplo, sabemos que, entre os séculos X e XIII, a Europa passou por um boom tecnológico: o homem medieval foi cercado por máquinas.3 Podemos ir tão longe quanto Lynn White Jr., que disse que a Idade Média nos deu, pela primeira vez na história, “uma civilização complexa não nas costas de escravos suados ou cules, mas sobretudo em energia não humana”.4 Em outras palavras, as culturas usuárias de ferramentas podem ser engenhosas e produtivas na solução de problemas do ambiente físico. Os moinhos de vento foram inventados no final do século XII. Os óculos para miopia apareceram na Itália em 1280. No século XI, a invenção de rígidas coelheiras acolchoadas parase apoiar nas omoplatas dos cavalos resolveu o problema de como aumentar a força de tração dos animais sem diminuir sua capacidade respiratória. De fato, já no século IX, na Europa, foram inventadas as ferraduras, e alguém imaginou que, se os cavalos fossem atrelados um atrás do outro, sua força de tração seria enormemente aumentada. Moinhos de grãos, fábricas de papel e pisões faziam parte da cultura medieval, assim como as pontes, castelos e catedrais. A famosa agulha da torre da Catedral de Estrasburgo, construída no século XIII, erguia-se a uma altura de 140 metros, o equivalente a um arranha-céu de quarenta andares. E, para ir mais atrás no tempo, não se devem deixar de mencionar as notáveis façanhas de engenharia de Stonehenge e das pirâmides (cuja construção, Lewis Mumford insiste, significa o primeiro exemplo de megamá- quina em ação). Dados os fatos, devemos concluir que as culturas usuárias de ferramentas não são necessariamente empobrecidas de tecnologia, e para nossa surpresa até podem ser sofisticadas. Claro que algumas dessas culturas tinham (e ainda têm) tecnologia primitiva, e algumas até demonstraram certo desprezo pelos ofícios e pela maquinaria. A Idade do Ouro da Grécia, por exemplo, não produziu nenhuma invenção técnica importante, nem sequer conseguiu inventar 54 maneiras de usar a força do cavalo com eficiência. Tanto Platão como Aristóteles desprezavam as “artes mecânicas de base”, talvez por acre- ditar que a nobreza da mente não era acentuada pelos esforços para aumentar a eficiência ou a produtividade. Eficiência e produtividade eram problemas dos escravos, não dos filósofos. Encontramos uma visão mais ou menos parecida na Bíblia, que é o relato mais longo e detalhado que temos de uma antiga cultura que usava ferramentas. No Deuteronômio, nada menos que uma autoridade como Deus diz: “Amaldiçoado seja o homem que fizer uma imagem gravada ou fundida, uma abominação para o Senhor, uma coisa feita pelas mãos de um artífice, e a montar em segredo”. Então, as culturas que usam ferramentas podem ter muitas ou poucas ferramentas, podem ser entusiasmadas ou desdenhosas em relação a elas. O nome “cultura que usa ferramentas” deriva do relacionamento em dada cultura entre as ferramentas e o sistema de crença ou a ideologia. As ferramentas não são invasoras. Estão integradas à cultura de maneira a não impor contradições significativas em sua visão de mundo. Se tomarmos a Idade Média européia como exemplo de cultura usuária de ferramentas, encontraremos um nível muito alto de integração entre suas ferramentas e sua visão de mundo. Os teólogos medievais desenvolveram uma descrição elaborada e sistemática da relação do homem com Deus, do homem com a natureza, do homem com o homem e do homem com suas ferramentas. Sua teologia assume como primeiro e último princípio que todo o conhecimento e bondade vem de Deus, e que, por conse- guinte, todo empreendimento humano deve ser direcionado para servir a Deus. A teologia, e não a tecnologia, dá às pessoas autorização para o que fazer ou pensar. Talvez tenha sido por isso que Leonardo da Vinci manteve em segredo seu desenho de um submarino, acreditando que fosse uma ferramenta nociva demais para se expandir, que ela não cairia nas graças de Deus. Em todo caso, as suposições teológicas serviram como ideologia controladora, e qualquer ferramenta que fosse inventada teria que, cm última instância, adequar-se a essa ideologia. Podemos dizer que iodas as culturas usuárias de ferramentas — desde a mais primitiva 55 do ponto de vista tecnológico até a mais sofisticada—são teocráticas, ou, quando não, estão unidas por alguma teoria metafísica. Tal teologia ou metafísica estabelece ordem e significado à existência, tornando quase impossível para os técnicos subordinar as pessoas às suas próprias necessidades. O “quase” é importante. Ele leva à minha segunda classificação. Como o espírito de Thamus nos lembra, as ferramentas têm uma maneira de impor-se até mesmo ao conjunto mais unido de crenças culturais. Há limites para o poder tanto da teologia como da metafísica, e a tecnologia tem negócios a fazer que às vezes não podem ser impedidos por força alguma. Talvez o exemplo mais interessante de drástica ruptura tecnológica de uma cultura usuária de ferramentas tenha sido o uso, no século VIII, do estribo pelos francos sob a liderança de Charles Martel. Até essa época, o principal uso dos cavalos em combate era para o transporte dos guerreiros ao cenário da batalha, onde eles desmontavam para ir ao encontro do inimigo. O estribo tornou possível combater no lombo do cavalo, e isso criou uma nova e tremenda tecnologia militar: o combate do choque montado. A nova forma de combate, como Lynn White Jr. detalhou de maneira meticulosa, aumentou a importância da classe dos cavaleiros e mudou a natureza da sociedade feudal.5 Os proprietários de terra acharam necessário obter os serviços de uma cavalaria para sua proteção. Em dado momento, os cavaleiros assumiram o controle das terras da igreja e distribuíram-nas a vassalos, com a condição de que estes continuassem a seu serviço. Se nos permitem um jogo de palavras aqui, o estribo assumiu as rédeas e levou a sociedade feudal aonde ela jamais chegaria de outra forma. Para tomarmos um exemplo posterior: já fiz referência à trans- formação do relógio mecânico, no século XIV, de instrumento de observância religiosa em instrumento de empresa comercial. Às vezes se dá uma data específica para essa transformação — 1370 — quando o rei Carlos V ordenou a todos os cidadãos de Paris que regulassem sua vida privada, comercial e industrial pelos sinos do relógio do Palácio Real, que batiam a cada sessenta minutos. Também se pediu a todas as igrejas de Paris que regulassem seus relógios, 56 desconsiderando as horas canônicas. Desse modo, a igreja foi obrigada a ceder aos interesses materiais, em detrimento das necessidades espirituais. Aqui está um exemplo claro de uma ferramenta sendo empregada para afrouxar a autoridade de uma instituição central da vida medieval. Há outros exemplos de como as tecnologias criaram problemas para a vida espiritual da Europa medieval. Por exemplo, os moinhos para os quais os agricultores se dirigiam para preparar o grão tornaram-se o local favorito para as prostitutas atraírem seus fregueses. O problema cresceu a proporções tais que São Bernardo, o líder da Ordem de Císter no século XII, tentou fechar os moinhos. Foi malsucedido, porque os moinhos se haviam tornado importantes demais para a economia. Em outras palavras, é mais ou menos uma supersimplificação dizer que as culturas usuárias de ferramentas nunca tiveram seus costumes e vida simbólica reorientados pela tecnologia. E, assim como há exemplos de tais casos no mundo medieval, podemos encontrar exemplos bizarros porém significativas nas sociedades tecnologicamente primitivas, de ferramentas atacando a supremacia dos costumes, da religião ou da metafísica. Egbert de Vries, um sociólogo holandês, contou que a introdução de fósforos em uma tribo africana alterou seus hábitos sexuais.6 Membros dessa comunidade acreditavam que era necessário acender um fogo novo na fogueira após cada ato sexual. Esse costume significava que cada relação sexual era um acontecimento mais ou menos público, pois quando era concluída alguém tinha que ir a uma cabana vizinha para pegar um galho aceso a fim de começar um fogo novo. Nessas condições, era difícil esconder o adultério, o que provavelmente deu origem ao costume, para começo de conversa. A introdução dos fósforos mudou tudo isso. Passoua ser possível acender um fogo novo sem ter que ir a uma cabana vizinha, e, desse modo, de uma hora para outra, uma longa tradição desapareceu. Ao relatar a descoberta de de Vries, Alvin Toffler levanta várias questões intrigantes: os fósforos redundaram em uma mudança de valores? Como resultado disso, o adultério passou a ser mais ou menos desaprovado? Ao facilitar a privacidade do sexo, os fósforos alteraram o valor 57 atribuído a ele? Podemos ter certeza de que ocorreram algumas mudanças nos valores culturais, embora elas não possam ter sido tão drásticas quanto o que aconteceu com a tribo Ihalmiut no começo do século XX, após a introdução do rifle. Como Farley Mowar descreveu em The People ofthe Deer a substituição de arcos e flechas pelos rifles é um dos relatos mais deprimentes de que se tem notícia de um ataque tecnológico sobre uma cultura que usa ferramenta. Nesse caso, o resultado não foi a modificação de uma cultura, mas sua erradicação. Não obstante, depois que se reconhece que nenhuma taxionomia jamais se ajusta perfeitamente às realidades de uma situação e que, em particular, a definição de cultura usuária de ferramentas carece de precisão, ainda assim é possível e útil distinguir uma cultura usuária de ferramentas de uma tecnocracia. Em uma tecnocracia, as ferramentas desempenham um papel central no mundo das idéias da cultura. Tudo precisa dar passagem, em algum nível, ao desenvolvimento delas. Os mundos social e simbólico tornam-se cada vez mais sujeitos às exigências desse desenvolvimento. As ferramentas não são integradas à cultura, elas atacam a cultura. Elas desafiam para se tomarem a cultura. Como conseqüência, a tradição, os costumes sociais, os mitos, a política, o ritual e a religião têm de lutar por suas vidas. As tecnocracias modernas do Ocidente têm suas raízes no mundo medieval europeu, do qual emergiram três grandes invenções: o relógio mecânico, que proporcionou uma nova concepção de tempo; a prensa tipográfica, que atacou a epistemologia da tradição oral; e o telescópio, que atacou as proposições fundamentais da teologia judaico-cristã. Cada uma delas foi importante para a criação de uma nova relação entre as ferramentas e a cultura. Mas, como é permitido dizer que entre a fé, a esperança e a caridade esta última é a mais importante, eu ousaria dizer que entre o relógio, a imprensa e o telescópio este último também é mais importante. Para ser mais exato (já que Copérnico, Tycho Brahe e em certa extensão Kepler fizeram seu trabalho sem o benefício do telescópio), instrumentos de observação um pouco mais grosseiros do que o telescópio permitiram ao 58 homem ver, medir e especular sobre os céus de maneiras que não eram possíveis antes. Mas o refinamento do telescópio tornou seu conhecimento tão preciso que se seguiu um colapso, se é que se pode chamar assim, do centro de gravidade moral do Ocidente. O centro moral havia permitido que as pessoas acreditassem que a Terra era o centro estável do universo, e, por conseguinte, que a humanidade era do interesse especial de Deus. Depois de Copérnico, Kepler e, em especial, Galileu, a Terra tornou-se viajante solitária em uma galáxia obscura, em algum canto escondido do universo, e isso levou o mundo ocidental a perguntar se Deus tinha algum interesse em nós. Embora John Milton fosse apenas um menino quando, em 1610, foi impresso Mensageiro das Estrelas, ele foi capaz de, anos depois, descrever a desolação psíquica de um universo insondável que a visão do telescópio de Galileu lançou sobre uma teologia despreparada. Milton escreveu em Paraíso Perdido: Diante [de seus] olhos em súbita visão aparecem Os segredos da profundeza venerável — um escuro Oceano infinito, sem fronteira, Sem dimensão... De fato, um paraíso perdido. Mas não foi intenção de Galileu — nem de Copérnico ou Kepler — desarmar sua cultura. Eles eram homens medievais que, como Gutenberg antes deles, não tinham o menor desejo de danificar os alicerces espirituais de seu mundo. Copérnico, por exemplo, era doutor em direito canônico, tendo sido eleito cônego da Catedral de Frauenburgo. Apesar de nunca haver terminado o curso, ele estudou medicina, foi médico particular de seu tio e entre muitas pessoas era mais conhecido como médico do que como astrônomo. Publicou apenas uma obra científica, Sobre a Revolução das Esferas Celestes, cujo primeiro exemplar completo chegou da gráfica poucas horas antes de sua morte, com a idade de 70 anos, em 24 de maio de 1543. Ele postergou por trinta anos a publicação da teoria heliocêntrica, em grande parte porque acreditava que ela era infundada, e não por recear represália por parte da Igreja. Na verdade, seu livro só foi colocado em catálogo 73 anos após sua publicação, e ainda assim por um curto espaço de tempo. (O julga- 59 a maioria das quais tem apenas relevância marginal para a qualidade de vida dos perdedores, mas que mesmo assim são impressionantes. Em dado momento, os perdedores capitulam, em parte porque acreditam, como profetizou Thamus, que o conhecimento especializado dos mestres de uma tecnologia nova seja uma forma de sabedoria. E, como Thamus também profetizou, os mestres também passam a acreditar nisso. O resultado é que certas questões não são levantadas. Por exemplo, a quem a tecnologia dará maior poder e liberdade? E o poder e a liberdade de quem serão reduzidos por ela? Talvez eu tenha feito tudo isso parecer uma conspiração bem planejada, como se os vencedores soubessem muito bem o que está sendo ganho e o que está sendo perdido. Mas não é bem assim que acontece. Em culturas que têm um espírito democrático, tradições relativamente fracas e alta receptividade a tecnologias novas, todo o mundo está inclinado a se entusiasmar com a mudança tecnológica, acreditando que seus benefícios se espalharão, em um dado momento, por igual sobre toda a população. Sobretudo nos Estados Unidos, onde não tem limites a ânsia pelo que é novo, encontramos mais amplamente difundida essa convicção infantil. De fato, na América, raras vezes a mudança social de qualquer tipo é vista como resultando em vencedores e perdedores, condição essa que se origina em parte do otimismo muito documentado dos americanos. Quanto à mudança causada pela tecnologia, esse otimismo nativo é explo- rado por empresários, que trabalham duro para instilar na população uma unidade de esperança improvável, posto que sabem que do ponto de vista econômico não é sábio revelar o preço a ser pago pela mudança tecnológica. Então, poder-se-ia dizer que, se há conspiração de algum tipo, é a de uma cultura conspirando contra si mesma. Além disso, e mais importante que tudo, nem sempre está claro, pelo menos nos estágios iniciais da invasão de uma tecnologia em uma cultura, quem ganhará mais e quem perderá mais. Isto se dá porque as mudanças forjadas pela tecnologia são sutis, quando não são completos mistérios; e poder-se-ia dizer que são imprevisíveis. Entre as mais imprevisíveis estão aquelas que podem ser rotuladas de ideo-lógicas. É o tipo de mudança que Thamus tinha em mente, 21 mento de Galileu só ocorreu noventa anos após a morte de Copérnico.) Em 1543, os eruditos e filósofos não tinham motivo para temer perseguição por causa de suas idéias, desde que não desafiassem diretamente a autoridade da Igreja, coisa que Copérnico não tinha o menor desejo de fazer. Embora haja controvérsia sobre a autoria do prefácio de sua obra, ele indica, com clareza, que suas idéias devem ser encaradas como hipóteses, e que suas “hipóteses não precisam ser verdadeiras ou mesmo prováveis”. Podemos tercerteza de que Copérnico acreditava que a Terra de fato se movia, mas ele não acreditava que a Terra e os planetas se moviam à maneira descrita em seu sistema, que ele julgava consistir em ficção geométrica. E ele não acreditava que sua obra pudesse minar a supremacia da teologia. E verdade que Martinho Lutero chamou Copérnico de “um tolo que foi contra as Sagradas Escrituras”, mas Copérnico não pensava que agira assim — o que prova, suponho, que Lutero viu a coisa com mais profundidade que Copérnico. A história de Kepler é mais ou menos parecida. Nascido em 1571, ele começou a carreira publicando calendários astrológicos e terminou como astrólogo da corte do duque de Wallenstein. Embora fosse famoso por seu serviço de astrólogo, devemos dar-lhe crédito por acreditar que “a astrologia pode causar um enorme dano a um monarca se um astrólogo mais esperto explorar sua credulidade humana”. Kepler queria que a astrologia fosse mantida fora da vista de todos os cabeças do Estado, uma precaução que nem sempre foi tomada nos anos recentes. Sua mãe foi acusada de ser bruxa e, embora Kepler não acreditasse nessa acusação específica, era provável que ele não negasse, de maneira categórica, a existência das bruxas. Ele passava grande parte do tempo se correspondendo com sábios sobre questões relativas à cronologia na era de Cristo, e hoje em dia se aceita em geral sua teoria de que Cristo nasceu, na verdade, em 4 ou 5 a.C. Em outras palavras, Kepler era um homem de sua época, medieval dos pés à cabeça. Exceto em uma coisa: ele acreditava que a teologia e a ciência deviam ser mantidas separadas, e, em particu- lar, que os anjos, os espíritos e as opiniões dos santos deveriam ser banidos da cosmologia. Em sua Nova Astronomia, escreveu: “Agora, 40 no que diz respeito às opiniões dos santos sobre essas questões da natureza, respondo em uma palavra que na teologia só é válido o peso da autoridade, mas que em filosofia só vale o peso da Razão”. Após rever o que vários santos disseram sobre a Terra, Kepler concluiu: “... mas para mim, mais sagrado do que tudo isso é aVerdade, quando, com todo o respeito pelos doutores da Igreja, eu demonstro a partir da filosofia que a Terra é redonda, habitada por antípodas, de uma pequenez a mais insignificante, e uma viajante rápida entre as estrelas”. Ao expressar sua idéia, Kepler estava dando o primeiro passo importante para a concepção de uma tecnocracia. Temos aqui um chamamento claro para uma separação que é um dos pilares de uma tecnocracia — um passo importante porém ainda pequeno. Antes de Kepler, ninguém havia perguntado por que os planetas viajam cm marchas variáveis. A resposta de Kepler foi que devia ser uma força que emanava do sol. Mas sua resposta ainda tinha espaço para I )eus. Em uma famosa carta enviada para seu colega Maestlin, Kepler escreveu: “O sol no meio de estrelas em movimento, ele mesmo em repouso e ainda assim a fonte do movimento, carrega a imagem de Deus, o Pai e Criador... Ele distribui sua força motriz através de um meio que contém corpos móveis mesmo enquanto o Pai cria através do Espírito Santo”. Kepler era luterano, e, embora mais tarde fosse excomungado de sua igreja, continuou sendo até o fim um homem de sincera convicção religiosa. Por exemplo, ele ficou descontente com sua descoberta das órbitas elípticas dos planetas, acreditando que uma elipse nada tinha a recomendar aos olhos de Deus. Com certeza, baseando-se na obra de Copérnico, Kepler estava criando algo novo, em que a verdade não era requerida para ganhar as boas graças aos olhos de Deus. Mas para ele não ficou de todo claro exatamente aonde levaria seu trabalho. Sobrou para Galileu a tarefa de tornar visíveis as contradições não resolvidas entre a ciência e a tecnologia, isto é, entre os pontos de vista intelectuais e morais. Galileu não inventou o telescópio, apesar de nem sempre se opor a essa atribuição. Um fabricante de óculos holandês chamado Johann 41 Lippershey foi provavelmente o verdadeiro inventor do instrumento; em todo caso, ele foi o primeiro a pedir uma licença para seu produto, em 1608. (Talvez valha a pena lembrar aqui que a famosa experiência de deixar cair balas de canhão da Torre de Pisa não foi feita por Galileu, mas sim por um de seus adversários, Giorgio Coressio, que estava tentando confirmar — e não contestar — a opinião de Aristóteles de que os corpos maiores caem com mais velocidade do que os menores.) Não obstante, deve-se dar a Galileu todo o crédito por haver transformado o telescópio, de brinquedo que era, em instrumento de ciência. E também devemos dar a Galileu o crédito por haver tornado a astronomia em fonte de dor e confusão para a teologia predominante. Sua descoberta das quatro luas de Júpiter e a simplicidade e acessibilidade de seu estilo de escrita eram armas de seu arsenal. Mas mais importante foi a franqueza com que questionou as Escrituras. Em sua famosa Carta à Grã-Duquesa Cristina, ele usou argumentos desenvolvidos primeiro por Kepler sobre os motivos pelos quais a Bíblia não podia ser interpretada de maneira literal. Mas ele foi mais além ao dizer que nada físico que pudesse ser observado de forma direta ou que pudesse ser provado por demonstrações devia ser questionado apenas porque passagens bíblicas diziam o contrário. De uma maneira mais clara do que Kepler, Galileu desautorizou os doutores da Igreja de dar opiniões sobre a natureza. Ele acusou de insensatez a permissão para que eles dessem essas opiniões. Escreveu: “Seria como se um déspota absoluto que não é médico nem arquiteto, mas sabendo que é livre para ordenar, passasse a prescrever remédios e construir prédios de acordo com seu capricho — colocando em risco as vidas de seus pobres pacientes e acarretando o rápido desabamento de seus edifícios”. Os doutores da Igreja ficaram tontos com esta e outras afirmações audaciosas. Por conseguinte, é espantoso que a Igreja tenha feito persistentes esforços para acomodar suas crenças às observações e declarações de Galileu. Ela estava disposta, por exemplo, a aceitar a hipótese de que a Terra se move e o sol permanece parado. Aceitava porque era assunto dos matemáticos formular hipóteses interessantes. Mas não podia haver condescendência com a alegação 42 de Galileu de que o movimento da Terra é um fato da natureza. Definitivamente, tal crença era vista como ofensiva à Santa Fé ao contradizer as Escrituras. Desse modo, era inevitável o julgamento de Galileu por heresia, muito embora houvesse sido postergado por longo tempo. O julgamento ocorreu em 1633, resultando em sua condenação. Entre as punições estavam a de que Galileu devia abjurar a opinião de Copérnico, passar algum tempo em uma prisão formal e, durante três anos, repetir uma vez por semana sete salmos penitenciais. É provável que não seja verdade a crença de que Galileu tenha murmurado na conclusão de sua sentença: “Mas a Terra se move”, ou alguma expressão semelhante de desafio. Na realidade, em seu julgamento perguntaram quatro vezes se acreditava na visão de Copérnico, e todas as vezes Galileu disse que não. Todos sabiam que ele acreditava no contrário, e que a idade avançada, enfermidades e medo da tortura é que ditaram sua submissão. Em todo caso, Galileu não passou um único dia na prisão. A princípio, ele foi confinado na quinta do grão-duque em Trinità del Monte, depois no palácio do arcebispo Piccolomini em Siena e, por fim, em sua casa em Florença, onde permaneceu até o fim da vida. Galileu morreu em 1642, ano em que Isaac Newton nasceu. Copérnico, Kepler e Galileu instalaram a dinamite que iria explodir ateologia e a metafísica do mundo medieval. Newton acendeu o estopim. Na explosão que se seguiu, foi destruído o animismo de Aristóteles, junto com quase tudo o mais de Física. As Escrituras perderam muito de sua autoridade. A teologia, que antes era a Rainha das Ciências, foi reduzida agora ao status de. Bobo da Corte. Pior de tudo, o significado da existência em si tornou-se uma questão aberta. E como tudo isso era irônico! Enquanto os homens haviam olhado tradicionalmente para o céu para encontrar autoridade, objetivo e significado, os Sonâmbulos (como Arthur Koestler chamou Copérnico, Kepler e Galileu) não olharam para o céu, mas sim para o firmamento. E nele encontraram apenas equações matemáticas e padrões geométricos. Eles fizeram isso com coragem, mas não sem receios, posto que deram tudo de si para conservar a fé, e não voltaram as costas para Deus. Acreditavam em um Deus que havia pla 45 nejado e desenhado toda a Criação, um Deus que era mestre em matemática. Sua busca das leis matemáticas da natureza foi, funda- mentalmente, uma procura religiosa. A natureza era o texto de Deus, e Galileu descobriu que o alfabeto de Deus consistia em “triângulos, quadrângulos, círculos, esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas”. Kepler concordou e até jactou-se de que Deus, o autor, teve que esperar seis mil anos por Seu primeiro leitor — o próprio Kepler. Quanto a Newton, ele passou a maior parte de seus últimos anos tentando contar as gerações desde Adão, com fé inabalável nas Escrituras. Descartes, cujo Discurso sobre o Método, publicado em 1637, proporcionou nobreza ao ceticismo e à razão e serviu como base de uma nova ciência, foi homem de profunda religiosidade. Embora visse o universo como sendo mecânico (“Dê-me matéria e movimento”, escreveu ele, “e eu construirei o mundo”), ele deduziu sua lei da imutabilidade do movimento a partir da imutabilidade de Deus. Todos eles se apegaram, até o fim, à teologia de seu tempo. Sem dúvida, eles não teriam ficado indiferentes por saber quando seria o Juízo Final, e não poderiam imaginar o mundo sem Deus. Além disso, a ciência que criaram preocupava-se quase por completo com questões da verdade, não do poder. Com esse propósito, desenvolveu-se no final do século XV o que pode ser descrito como uma paixão pela exatidão: datas exatas, quantidades, distâncias, proporções. Chegou-se a pensar que era possível determinar o momento exato da Criação, que, como se verificou, começou às 9 horas da manhã de 23 de outubro de 4004 a.C. Eram eles homens que pensavam da filosofia (que era o que eles chamavam de ciência) o mesmo que os gregos, acreditando que o verdadeiro objeto da investigação da natureza era a satisfação especulativa. Não estavam preocupados com a idéia de progresso e não acreditavam que suas especulações continham a promessa de algum aperfeiçoamento importante das condições de vida. Copérnico, Kepler, Galileu, Descartes e Newton construíram os alicerces para o surgimento de tecnocracias, mas eles próprios eram homens de culturas usuárias de ferramentas. 44 Francis Bacon, nascido em 1561, foi o primeiro homem da era tecnocrática. Ao dizer isso, posso estar contestando nada menos que uma autoridade como Emmanuel Kant, que disse que era preciso um Kepler ou um Newton para descobrir a lei do movimento da civilização. Talvez. Mas foi Bacon quem viu primeiro, pura e serena, a relação entre ciência e melhoria da condição humana. O objetivo principal de seu trabalho foi aumentar “a felicidade da humanidade”, e várias vezes criticou seus predecessores por deixarem de compreender que o motivo real, legítimo e único das ciências é “dotar a vida humana de novas invenções e riquezas”. Ele fez com que as ciências descessem do céu, inclusive a matemática, que ele concebia como uma modesta criada da invenção. Em sua visão utilitária do conhecimento, Bacon foi o principal arquiteto de um novo edifício de pensamentos, no qual a resignação era jogada fora e Deus era destinado a um quarto especial. O nome do prédio era Progresso e Poder. Por ironia, Bacon não era cientista, ou pelo menos não era um grande cientista. Não fez nenhum trabalho pioneiro em algum campo da pesquisa. Não descobriu nenhuma lei nova da natureza, nem produziu uma única hipótese nova. Sequer era bem informado sobre as investigações científicas de seu tempo. E embora se orgulhasse de ser o criador de um progresso revolucionário no método científico, a posteridade não tolerou essa presunção. De fato, sua experiência mais famosa chama nossa atenção porque Bacon morreu como resultado dela. Ele e seu bom amigo, o Dr. Whiterborne, estavam fazendo um passeio de carruagem em um dia de inverno quando, ao ver a neve no solo, Bacon perguntou-se se a carne não poderia ser conservada na neve, assim como no sal. Os dois decidiram descobrir de imediato. Compraram uma galinha, retiraram suas entranhas e encheram o corpo de neve. O pobre Bacon nunca soube o resultado de sua experiência porque logo ficou doente por causa do frio, provavelmente atacado de bronquite, e morreu três dias depois. Por isso, às vezes ele é visto como mártir da ciência experimental. 45 Mas sua grandeza não está na ciência experimental. Embora outros de seu tempo ficassem impressionados com os efeitos das invenções práticas sobre as condições de vida, Bacon foi o primeiro a pensar na questão de maneira profunda e sistemática. Ele dedicou grande parte de seu trabalho para educar homens a verem os elos entre as invenções e o progresso. Bacon escreveu em Novum Organum. É bom observar a força, o efeito e as conseqüências das descobertas. Essas coisas podem ser vistas de forma mais notável nas três invenções que eram desconhecidas dos antigos, e cuja origem, apesar de recente, é obscura: a imprensa, a pólvora e o magneto. Pois essas três descobertas mudaram toda a face e estado de coisas no mundo inteiro; a primeira na literatura, a segunda na arte da guerra, a terceira na navegação; daí seguiram-se inúmeras mudanças, a tal ponto que nenhum império, nenhuma seita, nenhuma estrela parece ter exercido maior poder e influência nos assuntos humanos do que essas mudanças. Podemos detectar, nessa passagem, algumas das virtudes de Bacon e a fonte de sua grande influência. Aqui não há nenhum sonâmbulo. Ele sabe muito bem o que a tecnologia faz com a cultura, e coloca o desenvolvimento tecnológico no centro da atenção do leitor. Bacon escreve com convicção e verve. Está, afinal de contas, entre os grandes ensaístas do mundo; Bacon foi um propagandista-mestre que conhecia bem a história da ciência, mas via a ciência não como um registro de opinião especulativa, mas como o registro do que essa opinião permitiu que o homem fizesse. E se empenhou incessantemente em transmitir essa idéia para seus compatriotas, e para o mundo. Nos dois primeiros livros de Novum Organum, que consistem em 182 aforismos, Bacon estabelece nada menos que uma filosofia da ciência baseada no axioma de que “o aperfeiçoamento da mente dos homens e o aperfeiçoamento de seu destino são uma única e mesma coisa”. E nessa obra que ele denuncia os quatro ídolos infames que impediram que o homem ganhasse poder sobre a natureza: ídolos da Tribo, que nos levaram a acreditar que nossas percepções 46 são o mesmo que os fatos da natureza; Ídolos da Caverna, que nos levaram a confundir idéias derivadas da hereditariedade e do ambiente; Ídolos do Mercado, que nos levaram a ser iludidos por palavras; e Ídolos do Teatro, que nos levaram a corromper dogmas dos filósofos. Ler Bacon hoje em dia é ser constantemente
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