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Sabores do Brasil 7 Eddy Stols A mestiçagem dos alimentos 8 Textos do Brasil . Nº 13 O purê de mandioquinha acaba de conseguir nas mesas parisienses sua consagração gas-tronômica por chefes estrelados, ao passo que, em Bruxelas, nas recepções dos tecnocratas europeus, circulam bandejas de empadinhas de camarão fornecidas por cozinheiras brasileiras anônimas. Junto com a reedição das obras pio- neiras de Luís da Câmara Cascudo e Eduardo Frieiro e com publicações premiadas internacio- nalmente como a série A Formação da Culinária Brasileira do Senac, não faltam indicações de que a culinária brasileira reivindica seu lugar dentro da cozinha mundial. Na realidade, já no século XIX, os cardá- pios europeus apresentavam os consommés à la tapioca� (caldos engrossados com bolinhas de farinha de mandioca) e as brésiliennes (tortas ou sorvetes com coberturas de castanhas-do-pará). Sem falar dos primeiros séculos do período co- lonial, quando as terras brasileiras lideraram a mundialização dos alimentos, desde que se con- sidere o intercâmbio da América não somente com a Europa, mas também com a Ásia e com a África. Pelas mãos dos portugueses, a mandioca se torna substância de base na África, a castanha de caju se familiariza nos caris� da Índia, a bata- ta-doce se implanta na ilha japonesa de Kiushu, ao mesmo tempo em que as broas do Minho to- mam a dianteira na substituição dos cereais eu- ropeus pela farinha de milho, como na polenta do Veneto. Sobretudo, beneficiam as costas bra- sileiras com coqueiros, bananeiras, mangueiras, jaqueiras, jambeiros, pimentas, dendezeiros e in- troduzem a criação do gado e a avicultura, não 1 Espécie de caldo feito de tapioca, uma goma granulosa extra- ída da mandioca. 2 Condimento indiano feito de mistura de diversas especiarias, com destaque para o açafrão. Também conhecido pelo nome inglês curry. somente de origem européia, mas também as ga- linhas-d’angola ou os zebus. A culinária brasileira nasce híbrida e in- tegra nesta mestiçagem contínua não somente produtos e preparos portugueses e indígenas, mas também africanos e asiáticos. Como tal, desenvolve-se muito cedo como uma das mais mundializadas, implicando todas as regiões e ca- madas sociais, sem entretanto ceder em originali- dade às mais reputadas culinárias das Américas, a mexicana e a peruana. Sem dúvida, estas ganham maior fama, por se tratarem de culturas mais estruturadas e, conseqüentemente, mais bem descritas pelos cronistas da conquista. Bernardino de Sahagún e Bernal Díaz del Castillo decantam a riqueza dos mercados indígenas e a magnificência dos festins de Montezuma, com produtos como o chocolate. Até as tapeçarias flamengas entronizam na de- coração prestigiosa o majestoso peru e o lhama, “o cordeiro dos Andes”. Ao mesmo tempo, os conquistadores espanhóis organizaram mais sis- tematicamente a transferência de sua agricultura e criação de gado para o Novo Mundo. O grande banquete organizado em 1538 pelo conquistador Hernán Cortés na capital da Nova Espanha evi- dencia esta auto-suficiência. Naquela altura, já funciona lá a primeira taverna de estilo espanhol. Pouco depois, grandes conventos femininos ela- boraram receituários sofisticados para receber seus visitantes masculinos. Em comparação, a culinária luso-brasileira faz figura de modesta e rasteira. Se na Espanha o movimento editorial de livros de cozinha é tão precoce e abundante como na Itália ou Flandres, espera-se em Portugal até 1680 a Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, e até 1780 o Cozinheiro Moderno, de Lucas Rigaud, os dois únicos livros de culinária publicados durante todo o período colonial. Se o milho merece dos jesuítas espa- Sabores do Brasil 9 nhóis em pinturas e esculturas um status eucarís- tico de pão divino, a mandioca nunca se presti- gia na iconografia e fica relegada como uma raiz quase diabólica para fomentar a preguiça. Quase desconhecidas ou manuscritas continuam obras gerais, que exploram a comestibilidade das gene- rosas fauna e flora brasileiras como o Tratado Des- critivo do Brasil (1587), de Gabriel Soares de Sou- za, ou os Diálogos das Grandezas do Brasil (1618), de Ambrósio Fernandes Brandão. Esse descaso se poderia atribuir à fami- gerada política de sigilo, já que não convinha à Coroa portuguesa desvendar ainda mais o rico potencial nutritivo das capitanias brasileiras, ventilado em publicações de viajantes ou nas cartas jesuíticas. O valor estratégico da mandio- ca – que providenciava víveres baratos e sadios tanto para soldados, quanto para escravos – não devia ser trombeteado aos quatro cantos. Outra explicação possível é que Portugal dava mais atenção às especiarias e frutas das Índias orien- tais – permitindo mesmo que se imprimisse em Goa, na Índia, os Colóquios dos simples e drogas da Índia (1563), de Garcia da Orta. Nada similar sai do prelo sobre a culinária luso-brasileira. Essa visibilidade menor decorre em boa parte de sua própria criação: um processo lento e difuso, com menor intervenção das elites e maior participação popular – notadamente feminina e africana e até indiana. Em Grandeza e Abastança de Lisboa em �55�, João Brandão apresenta sua cidade como uma imensa praça de alimentação. Brandão conta, além dos taverneiros, pasteleiros, carniceiros, confeiteiros, “quinhentos fornos de cozer pão e mil mulheres que vivem de vender pão cozido e padejar, por si ou à vendagem”, e mais centenas de cuscuzerias, farteleiras, tripei- ras. Outras mulheres vendem queijo fresco, man- teiga crua e cozida, aletria, favas e ameixas cozi- das, postas de peixe frito, patos, lebres e outras caças, camarões e caramujos, alféloas�, gergilada�, pinhoada5, frutas de conserva, marmeladas e la- ranjadas às pessoas que vão à Índia e Guiné ou assam sardinhas na Ribeira. Limpas, ricas, com suas “cadeias ao pescoço, jóias, manilhas nos braços”, muitas são africanas, escravas ou forras, anunciando as negras do tabuleiro no Brasil. Em tantos pequenos navios saindo dos portos do norte de Portugal para as costas africa- nas ou brasileiras, seus marinheiros improvisam 3 Massa de açúcar ou melaço, em ponto grosso, que amassada com as mãos torna-se branca. É usada para fazer balas. � Doce feito com as sementes do gergelim. 5 Doce feito com mel e pinhões. Frutas. J. B. Debret. 10 Textos do Brasil . Nº 13 Sabores do Brasil 11 aí mesmo boa parte dos mantimentos. Comen- sais estrangeiros, como o veneziano Cadamosto (1455) ou o flamengo Eustache Delafosse (1479), contam orgulhosos como experimentaram assim o vinho de palmeira, os ovos de avestruz, a car- ne de tartaruga, cortada e salgada como se fosse toucinho, ou mesmo de elefante, bem menos sa- borosa. Enquanto os marinheiros da Companhia das Índias Orientais comiam em grupos de sete, numa única tina, com alimentos estritamente re- gulados, as naus portuguesas partiam sobrecar- regadas com grande variedade de iguarias, e cada um cozinhava sua própria refeição ao seu gosto, se bem que disposto a compartilhar. A bordo, passavam o tempo pescando; em terra, caçando ou coletando. Essa gula – e as frutas cítricas que combatiam o escorbuto – explica a mortalidade menor nos navios portugueses. Desde o início dos descobrimentos, a ali- mentação portuguesa já se caracteriza por um raro ecletismo, equilibrado entre os produtos dos mundo atlântico e mediterrâneo. Com terras altas e baixas, climas diferentes, muito rios e o mar a curta distância, os portugueses combinam a agricultura, o pastoreio e a pesca com a caça e com a coleta. Suas cozinhas alternam cozidos, guisados� e assados, fornos e grelhas, banha de porco, azeite, óleos e manteiga. Compensam os cereais caros com castanhas, leguminosas e raízes mais baratas. Poucas dietas européiascomportam tantas hortaliças, couves, abóboras, nabos e cebolas. Seus temperos misturam espe- ciarias preciosas como o açafrão-de-castela e o cravo com alhos, coentros, ervas-doces, cheiros e outras ervas recolhidas no campo. Suas frutas variam da delicadeza nórdica das maçãs, pêras e cerejas à exuberância meridional dos figos, me- lões, romãs, amêndoas. Não desprezam nenhu- 6 Ensopado que se prepara refogando os ingredientes. ma carne, destacando-se na matança ritual do porco e na charcutaria de sarrabulho� e chouriços. Ainda que prezem leitões, cordeiros e cabritos, raramente comem bezerros e vitela, talvez por usarem o gado mais para tração e laticínios. No mar nenhum peixe lhes escapa, do atum até as sardinhas – passando por todos os moluscos. Com esta “gastronomia da água”, são pioneiros na substituição dos excessos carnívoros medie- vais pela nova moda piscívora da época moder- na. Além do mais, a influência do Oriente Mé- dio, por meio da presença árabe e judaica, os fa- miliariza com o arroz, doce ou frito de panela, com a massa folhada e a conserva de frutas em mel e açúcar, aproveitando produtos quase in- sípidos, como cidras e marmelos. A reconquista rápida facilita a circulação interna e as feiras, de maneira que os portugueses se encontram entre os primeiros mercadores a negociar grandes car- gas de comestíveis, em vez de se dedicarem mais ao têxteis. No seu comércio com o norte da Eu- ropa, valorizavam suas frutas secas, seus cítricos e vinhos, que trocam por arenques secos do Mar do Norte, toucinhos e queijos flamengos, talvez menos saborosos, mas de boa conserva em lon- gas viagens. Por esta gula indiscriminada, os onívoros portugueses estavam mais preparados para se aventurar nas incógnitas alimentares dos novos mundos. Para a sobrevivência, mas também por curiosidade, experimentaram todos os produ- tos comestíveis e similares, suscetíveis de servir à aplicação de suas técnicas culinárias. Não se contentaram com os substitutos da comida mais apreciada em Portugal, ousaram também provar novidades, sem sentimento de culpa por tanta abundância paradisíaca, quase pecaminosa. 7 Guisado de miúdos e sangue de carneiro ou porco. 12 Textos do Brasil . Nº 13 Nem todos apreciavam as iguarias locais. O marquês do Lavradio já reclamava, logo ao chegar, em 1768, dos alimentos da terra “insu- portáveis, pepinos-de-são gregório”�. O ilustrado baiano Vilhena despreza as “viandas� tediosas, como sejam mocotós, isto é, mãos de vaca, caru- rus�0, vatapás��, mingau, pamonha, canjica, isto é papas de milho, acaçá��, acarajé, bobó, arroz de coco, feijão de coco, angu, pão-de-ló de arroz, o mesmo de milho, roletes de cana, doces de infi- nitas qualidades”, se bem que sua lista desvenda um primeiro inventário da culinária brasileira. 8 Conhecido também como “pepino-do-diabo”, é uma planta nativa do Mediterrâneo. 9 Qualquer espécie de comida ou quitute. 10 Comida afro-baiana à base de quiabo, camarão seco e amen- doim. 11 Tradicional prato da cozinha afro-baiana, com peixe ou crus- táceos misturados a uma papa de farinha de mandioca, molho de dendê e pimenta. 12 Espécie de bolo de arroz ou de milho, comum na comida afro- baiana. Pior ainda é a bebida: “é uma água suja feita com mel, e certas misturas a que chamam de aluá��, que faz vezes de limonada para os negros”. Felizmente não faltam observadores letra- dos como frei Cristóvão de Lisboa na História dos animais e árvores do Maranhão (1627), o soldado saxônico Zacharias Wagener no seu Zoobiblion, livro de animais do Brasil (c. 163�-16�1) ou o jesuíta João Daniel no Tesouro Descoberto no máximo Rio Amazonas (por volta de 1758-1776), que registram com água na boca essa maestria padeira para ti- rar todos os proveitos da mandioca para farinhas finas, bolos de carimã�� e beijus�5. Destilam vinhos e licores do caju, do abacaxi ou do jenipapo. O suco do maracujá em vinagre acompanha bem 13 Bebida refrigerante feita com abacaxi ou arroz, açúcar e li- mão, vendida comumente pelas negras nas cidades coloniais. 1� Bolo preparado com massa gorda de mandioca, em forma de discos achatados, secos ao sol. 15 Espécie de biscoito de mandioca ou tapioca, assado e enrola- do em forma de canudo. Colonos. Di Cavalcanti (1940). Sabores do Brasil 13 o peixe, numa receita recuperada quatro séculos mais tarde por chefes pernambucanos. Encon- tram pássaros pernaltas de boa carne branca, em tanta quantidade como os capões e tão fina como as perdizes. Por pouco, o guaiamum seria com- parável ao dazha, um caranguejo exaltado por poetas e pintores chineses. Do peixe-boi, fazem manteiga da banha, “cada uma de trinta e mais potes, e ainda muito azeite da cauda”, e da car- ne, parecida com a do porco, “se fazem lingüiças, chouriços e paios, que salpresos�� têm o gosto dos melhores presuntos de Lamego” – esses embuti- dos de peixe-boi chegam a ser enviados para Por- tugal. Frei Cristóvão demonstra ainda um senso invulgar para distinguir entre as preferências alimentares de índios e africanos, que conside- ra como parceiros confiáveis nestas experiências gustativas. Os negros, por exemplo, apreciam, o yoroti, um tipo de pomba do mato, que, como as pombas do velho continente, mantém fidelidade ao companheiro para a vida toda. Por causa des- se comportamento das aves, os africanos davam- nas de comer às suas mulheres “para não terem conversação com outro homem”. Exilado na sua prisão portuguesa, o jesuíta Daniel sonha com o tacacá, “um pouco de água engrossada ao fogo com farinha carimã, e com seus raios de tucupi e picante da malagueta”, o açaí, a maniçoba, “melhor que a couve na olha” e a geléia do maracujá, que engole “como quem come ovos quentes”. Nas laranjas brasileiras “as maiores da Europa lhe chocalhariam dentro”. As castanhas de caju “assadas dão vaia às cas- tanhas da Europa”, se misturam aos legumes ou “às amêndoas e confeitos, cobrindo as torradas de açúcar”. Nas colheitas do sertão, os habitantes “banqueteiam-se” com as tartarugas pequeninas, que, apenas saídas dos ovos, “assadas são uns 16 Carnes conservadas em sol. torresmos sem inveja dos do porco. Com alguns meses, de um palmo ou pouco mais, com uma brecha no peito para limpar e encher de tempe- ros, vinagre, cebola e assadas são um pasmo”. De cada grande tartaruga fazem “sete ou mais menestras diversas: primeira o sarapatel��, segun- da o sarrabulho, terceira o peito assado, quarta fricassé��, quinta o cozido, sexta a sopa, sétima o arroz. Isso é o mais usual, que em casa particula- res ainda fazem mais guisados. Se é das maiores, uma só pode dar de comer a uma comunidade”. Como qualquer português, adora com excesso as gemas de ovos e precisamente os ovos de tartaru- gas são “quase tudo gema, com um pequeno cír- culo de clara, excelentes para fazer ovos moles”. Os alimentos brasileiros se valorizam nes- sas evocações nostálgicas, que parecem louvá-los da mesma forma como as palavras de Marcel Proust celebraram a madeleine da doçaria fran- cesa. Na falta de receituários e livros de cozinha, uma abundante documentação colonial pode resgatar a história da culinária luso-brasileira. Textos indispensáveis para realçar sua auto-esti- ma, que estava baixa demais, sufocada pelo es- trangeirismo nos templos paulistas e cariocas da gastronomia ou culpabilizada sob o ângulo da fome e da subnutrição. Eddy Stols Doutor em História pela Universidade Católica de Leuven, na Bélgica Artigo originariamente publicado na revista Nossa História Ano 3/ n° 29 Março de 2006, pp. 14-19 17 Prato feito com sangue e miúdos de porco ou outro animal, condimentado com salsa, louro, cebola, alho, cominho, cravo e suco de limão. 18 Qualquer preparo culinário feito de carne, peixe ou frangopicados, cozidos em fogo brando com cebola, salsa, pimenta, noz-moscada e outros temperos.
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