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COZINHA BRASILEIRA 1 Apresentação Ao estudarmos a fundo a cozinha brasileira, também temos contato com os principais povos que fazem parte da história deste país e que inevitavelmente trouxeram um pedacinho de suas raízes para solo brasileiro. Assim, ao longo do estudo desse tema, passaremos de forma sucinta pela história do Brasil articulada ao desenvolvimento da gastronomia, bem como as características de cada região e as influências que as tornam tão peculiares. Convidamos você, leitor, a fazer parte desta jornada pelos ingredientes e pratos típicos dessa culinária colorida, cheirosa e cheia de sabores. Primeiro trataremos da tríplice de culturas que formam a base de nossa gastronomia. Os indígenas desmistificaram o uso da mandioca e os segredos da Amazônia, da caatinga, do cerrado, do pantanal e dos pampas. Os portugueses e africanos, por sua vez, contribuíram com técnicas culinárias e trouxeram matérias-primas não só da Europa e da África, mas também da Ásia. A partir daí, cada imigrante traz consigo outros ingredientes, pratos e técnicas, para enriquecer ainda mais nosso saboroso enredo culinário e ajudar a caracterizar as regiões do país, as quais também abordaremos de forma mais aprofundada. Tal mistura é o que torna o Brasil um país todo especial, e é nessa jornada pela nossa diversidade cultural e gastronômica, com os mais variados ingredientes e temperos, que adentraremos agora. Bons estudos! COZINHA BRASILEIRA 2 UNIDADE 1 – HISTÓRIA, COLONIZAÇÃO, ESCRAVATURA E INFLUÊNCIAS REGIONAIS. Página 5 Regiões brasileiras: cultura e historicidade // A interação do europeu com os nativos - // A gastronomia brasileira contemporânea - Introdução: norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudeste // Região norte // Região nordeste // Região centro-oeste // Região sudeste // Região sul Cozinha afro-brasileira // A chegada dos africanos ao Brasil // Cultura e costumes africanos // As mulheres de tabuleiros // A religião // Comidas de santo Alimentação indígena // Hábitos alimentares // Técnicas de preparo // Produtos Contribuição de Portugal em nossas mesas // O catolicismo // O açúcar // Tradição de família // Doçaria portuguesa // Doceria conventual COZINHA BRASILEIRA 3 UNIDADE 2 – INGREDIENTES E PRODUTOS DA MESA DO BRASILEIRO- Pagina 30 Origem e uso na gastronomia: café, dendê, pequi, açaí, guaraná, coco // Café: origem, chegada ao Brasil e métodos de preparo // Dendê: origem, utilização e simbologia // Pequi: fruto, região e produtos // Açaí: palmeira, fruto e palmito // Guaraná: a lenda e a semente // Coco: origem e seus produtos Os produtos da mesa brasileira: mandioca, milho, feijão, arroz, carne seca, açúcar, macarrão // Mandioca, rainha do Brasil // Milho, o cereal das Américas que conquistou o mundo // Arroz e feijão // Carne seca // Açúcar // Macarrão Mandioca, o pão do Brasil UNIDADE 3 – REGIÕES NORDESTE E SUDESTE DO BRASIL-Pagina 57 Região Nordeste: clima, geografia, economia, gastronomia e principais produtos // Maranhão // Piauí // Bahia // Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba // Pernambuco, Alagoas e Sergipe Região Sudeste: clima, geografia, economia, gastronomia e principais produtos // Minas Gerais // São Paulo // Rio de Janeiro // Espírito Santo COZINHA BRASILEIRA 4 UNIDADE 4 –REGIÕES NORTE, CENTRO-OESTE E SUL DO BRASIL- Pagina 80 Região Norte (clima, geografia e economia): gastronomia e principais produtos // Amazonas e Pará // Acre, Amapá, Roraima, Rondônia e Tocantins Região Centro-Oeste (clima, geografia e economia): gastronomia e principais produtos // Goiás e Distrito Federal // Mato Grosso // Mato Grosso do Sul Região Sul (clima, geografia e economia): gastronomia e principais produtos // Paraná // Santa Catarina // Rio Grande do Sul COZINHA BRASILEIRA 5 UNIDADE 1 História, colonização, escravatura e influências regionais Carla Keiko Mochizuki Ishizaka OBJETIVOS DA UNIDADE Introduzir a história da cozinha brasileira e sua evolução; Apresentar costumes, técnicas, hábitos alimentares e heranças culinárias dos indígenas; Abordar os primeiros povos colonizadores, suas heranças e adaptações culinárias; Tratar da miscigenação do povo brasileiro; Explicar conceitos iniciais de cozinha brasileira; Expor um panorama geral da evolução da gastronomia brasileira. Regiões brasileiras: cultura e historicidade O Brasil possui valores culturais de dimensões tão grandes quanto sua extensão territorial, de abrangência continental. A culinária dos nativos de diferentes tribos indígenas, adaptados aos variados biomas, se mesclou aos costumes e hábitos alimentares dos colonizadores portugueses e ganhou influências africanas, por meio dos escravos trazidos ao longo de séculos, e de outras culturas que adentraram a nossa, miscigenando os hábitos e costumes alimentares deste país. Sergio Buarque de Holanda, na obra seminal Raízes do Brasil, publicada pela primeira vez em 1936, e desde então republicada em muitas outras edições, sendo uma das mais famosas o relançamento de 1995, afirma que Espanha e Portugal são territórios-ponte pelos quais a Europa se comunica com outros mundos, constituindo uma espécie de zona fronteiriça, de transição, menos carregada, em alguns casos, de europeísmos. Esse raciocínio evidencia que os COZINHA BRASILEIRA 6 portugueses já tinham suas misturas antes de virem ao Brasil, além de contato com outras nações e culturas em busca do comércio de mercadorias. A influência portuguesa inicia o processo de formação da cozinha brasileira como conhecemos hoje, por meio da adaptação de técnicas e pratos tradicionalmente europeus ao cenário brasileiro e suas matérias-primas. O Brasil, portanto, não oferece uma culinária única, comum em todo o território, mas maneiras singulares na forma de usar os ingredientes, cozinhar e temperar. Essa diversidade resulta em diversas gastronomias que refletem suas populações locais: sertanejos, caiçaras, caipiras, matutos, ribeirinhos, interioranos, metropolitanos etc. A INTERAÇÃO DO EUROPEU COM OS NATIVOS O primeiro contato do indígena com a culinária portuguesa é descrito por Pero Vaz de Caminha em sua carta a El Rei Dom Manuel, de 24 de abril de 1500, conforme disponibilizado pela Fundação Biblioteca Nacional (p. 3): Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora. Sheila Moura Hue, no livro Delícias do Descobrimento – A Gastronomia Brasileira no século XVI, de 2008, afirma que o paladar europeu se ampliou ao ser apresentado a iguarias indígenas, como tanajura frita, rãs, cágados, cobras e bicho-de-taquara. Mas os indígenas não assimilaram as plantas e animais introduzidos pelos portugueses na culinária: criavam galinhas para vendê-las, mas não as comiam. Dessa forma, os portugueses utilizaram o conhecimento e produtos dos indígenas, mas o indígena não o fez necessariamente da mesma forma, salvo utensílios e adereços nunca antes vistos e imaginados por eles, como espelhos e pentes, que se tornaram moeda de troca por grande quantidade de comida. Raul Lody cita no livro Dendê: símbolo e sabor da Bahia, de 2009, que produtos nativos do Brasil são chamados "da terra": amendoim, mandioca, cará, caju, mamão etc.; os que vieram da África são chamados "da costa" (costa COZINHA BRASILEIRA7 africana, costa dos escravos): dendê, inhame, galinha d’angola; e os que foram trazidos pelos portugueses, também da Europa e Ásia, são chamados "do reino": da Europa, havia laranja, limão, alface, salsinha, coentro etc.; e da Ásia, gengibre, cana-de-açúcar, coco, entre outras. A GASTRONOMIA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA A chegada de chefs franceses herdeiros da Nouvelle cuisine, no Brasil, nos anos 80, como Claude Troisgros e Laurent Suaudeau, inseriu na gastronomia brasileira outros elementos e técnicas, conferindo mais leveza aos pratos, valorização e utilização de ingredientes frescos, naturais e locais. Assim, técnicas francesas modernas destacaram os produtos brasileiros nas preparações, evidenciando e valorizando nossa cultura de maneira diferente. EXPLICANDO A Nouvelle cuisine foi um movimento da gastronomia francesa originado nos anos 1960 com uma nova maneira de cozinhar e apresentar pratos da alta gastronomia. Valoriza o sabor original dos alimentos, preservando seu frescor, sabor e qualidade. Os pesados molhos clássicos dão espaço a molhos mais leves e menos condimentados, e a apresentação dos pratos deixa de ser exagerada para ser individual, mais enxuta e com uma aparência clean. Entre os chefs que iniciaram esse movimento estão os irmãos Troisgros, Michel Guérard e Paul Bocuse. Esse olhar para a gastronomia intensificou a falta de profissionais qualificados ou sem o treinamento necessário para executar esse tipo de prática gastronômica. A formação desses profissionais no Brasil tornou-se imprescindível – escolas iniciaram formações profissionais, reconhecendo a gastronomia como uma profissão de formação acadêmica, e não mais um trabalho de mão de obra meramente braçal. Trabalhos de pesquisa e estudos da gastronomia brasileira fizeram com que ingredientes nacionais ganhassem não só o mundo, mas reconhecimento e valor no próprio país. Trabalhar a alta gastronomia, utilizando técnicas clássicas e contemporâneas, com ingredientes exclusivamente brasileiros, se tornou o objetivo de chefs como Alex Atala, Roberta Sudbrack, Helena Rizzo, Mara COZINHA BRASILEIRA 8 Sales, Rodrigo Oliveira e muitos outros que vêm sendo reconhecidos pelo seu trabalho. ASSISTA Chefs de cozinha renomados mostram como a cozinha tradicional brasileira evoluiu e vem se transformando com a valorização dos ingredientes e da profissão. Assista ao episódio da série Mundo à Mesa, produzida pela TV Gazeta, dedicado ao Brasil. A vinda dos imigrantes de vários lugares do mundo moldou nossas culinárias regionais e, com a globalização, a facilidade da informação e do acesso a produtos do mundo todo fez dos centros urbanos verdadeiros polos gastronômicos. O hábito alimentar do brasileiro continua sendo moldado com a chegada de imigrantes e refugiados de diversas partes do mundo, como Síria, Congo, Venezuela, Líbano, Camarões, entre outros povos, que trazem componentes da cultura de seu país e contribuem ainda mais para uma gastronomia diversificada. Ao mesmo tempo que esses povos chegam, o movimento de emigração de brasileiros para diversos continentes também ajuda a disseminar a culinária típica brasileira ao redor do mundo. Introdução: norte, nordeste, centro-oeste, sul e sudeste As regiões brasileiras são divididas em agrupamentos de estados segundo suas particularidades e características geográficas, sociais e econômicas, que diferem tanto umas das outras, que a cultura gastronômica, aqui, aparenta ser de distintas nacionalidades dentro de um mesmo país. Apesar da separação dos estados, observa-se entre eles algumas características semelhantes, quando não idênticas, na culinária. Isso se dá pela exploração, migração, imigração, geografia dos biomas e das fronteiras. Os tropeiros transportavam alimentos de um estado a outro e, juntamente a isso, os seus COZINHA BRASILEIRA 9 costumes. O mesmo bioma proporciona a mesma fauna e flora. A migração e imigração levam consigo os costumes de um povo, e as fronteiras, muitas vezes, só existem no mapa. Na Figura 1 é possível ver o mapa do Brasil, com a divisão bem demarcada dos estados e, além disso, das regiões, separadas por cores. Figura 1. Mapa das regiões e estados brasileiros. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 18/12/2019. A seguir, comentaremos de forma introdutória os hábitos culinários de cada uma dessas regiões. REGIÃO NORTE A região norte do Brasil é composta pelos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, constituindo um Brasil pouco conhecido até mesmo por alguns brasileiros. Com notória herança indígena, a região se destaca pelo ecoturismo e possui festas folclóricas, como o Festival do Boi- Bumbá, em Parintins (AM), e Círio de Nazaré, em Belém (PA). COZINHA BRASILEIRA 10 Peixes de água doce têm destaque na região, como o pirarucu, também chamado de “bacalhau da Amazônia”, que pode chegar a três metros de comprimento; o filhote, que pode ser servido frito e acompanhado de açaí, disposto como na Figura 2; o tambaqui, que ganha fama com suas costelas, e o também apreciado tucunaré. Figura 2. Peixe frito com açaí e farinha de mandioca. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 18/12/2019. A mandioca, um dos ingredientes mais representativos do Brasil, confundida precipitadamente com inhame pelos portugueses, é a base da alimentação de tribos de várias etnias na bacia tropical do Amazonas. Nessa região, ela é utilizada de todas as maneiras possíveis e valorizada ao máximo. Existe uma quantidade grande de frutas de características marcantes, como açaí, buriti, cupuaçu, abiu, graviola, taperebá, murici, mangaba, pupunha, entre outras. Entre seu pratos mais emblemáticos estão: pato no tucupi, tacacá, torta de castanha do Pará, torta de cupuaçu, maniçoba, pirarucu de casaca, pudim de tapioca etc. REGIÃO NORDESTE O nordeste possui uma culinária bastante marcada pelo uso de temperos, sabores, cores e aromas. Formado pelos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, as características culinárias dessa região vem da mistura dos indígenas, africanos e portugueses e, no mais tardar, com alguma sutileza, da cultura holandesa. A culinária do nordeste difere em cada estado, mas pode ser dividida de forma geral em litorânea, rica em peixes e frutos do mar, com a utilização de dendê e leite de coco; e sertaneja, com suas carnes de sol e seca, farinha, rapadura e queijo coalho, que contribui para a produção de manteiga de garrafa. COZINHA BRASILEIRA 11 Segundo Vivaldo da Costa Lima, professor emérito da Universidade Federal da Bahia, contribuinte do livro Viagem gastronômica através do Brasil, de 2002, organizado por Caloca Fernandes, a influência africana é definida iconicamente pelo uso do azeite de dendê na comida afro-brasileira, cozinha regional que se formou no recôncavo baiano. A “cozinha baiana” é também chamada de “comida do azeite”, devido à importância do azeite extraído do fruto da palmeira trazida pelos africanos no início do século XVII. Observa-se também a utilização da pimenta e o comércio de comidas tipicamente africanas nas ruas da Bahia no fim do século XVIII, como acarajé, acaçá, vatapá e abará. Imagens da preparação do acarajé nas ruas de Salvador, como na Figura 3, constituem uma das faces da identidade visual da cultura local. Repare, na imagem, que, enquanto o acarajé é recheado, a massa é frita no já mencionado azeite de dendê. Figura 3. Preparação do acarajé. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 10/12/2019. Influências africanas nessa região se mostram em diversos níveis: em palavras adotadas no vocabulário usual da região, como: cachimbo, berimbau, batuque, quitute e outras; ou a comida de santo, que traz preparações e ingredientes oferecidos aos orixás, como pipoca, caruru, efó, xinxim, mel e inhame, cada qual com seus gostos e preferências. A herança portuguesa foi deixadaem doces feitos com o açúcar dos engenhos, ovos, farinha de trigo, queijo e manteiga, dando origem a bolos, geleias, compotas de frutas e outras delícias da doçaria portuguesa. As frutas do nordeste também são extremamente aromáticas: cajá, seriguela, umbu, caju, jambo, bacuri etc. Entre os pratos típicos estão ainda arroz de cuxá, galinha de cabidela, paçoca de carne, acarajé, moqueca baiana, bobó de camarão, caruru, buchada de bode, patinhas de caranguejo, bolo Souza Leão, bolo de rolo, entre outras delícias. COZINHA BRASILEIRA 12 REGIÃO CENTRO-OESTE O centro-oeste é uma região que teve sua colonização mais tardia que as demais, e é composta por imigrantes e migrantes de outros locais do Brasil. Compreende os estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o Distrito Federal. Na região, se destaca o Pantanal, cuja beleza estonteante abrange do sul do Mato Grosso ao noroeste do Mato Grosso do Sul. Sua culinária, considerada rural, por estar longe dos centros urbanos, é composta por carne bovina da pecuária local, representados pela carne seca e de sol, sempre presentes na alimentação dos pantaneiros; peixes de água doce, como a piranha, em seu delicioso caldo; o pacu, ainda preparado no moquém de influência indígena; e demais peixes encontrados em seus rios, como o pintado e o dourado. Já na culinária urbana ocorre uma miscigenação muito maior, justificada pela variedade de povos que firmaram suas raízes na cidade. É o caso de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul, que recebeu imigrantes italianos, libaneses, japoneses, paraguaios, bolivianos e migrantes mineiros. Um ingrediente emblemático desta região, com toda a certeza, é o pequi, típico de toda a região central do Brasil, marcante no sabor e muito utilizado no representativo arroz de pequi (Figura 4), principalmente em Goiás e no Distrito Federal. Figura 4. Galinhada com pequi. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 12/12/2019. COZINHA BRASILEIRA 13 Representando a região, podemos citar ainda linguiça de Maracaju, arroz com guariroba, caribéu, macarrão de comitiva, furrundum, peixe na telha, empadão goiano, pamonhas salgadas e doces, fritas, assadas ou cozidas, arroz de puta rica e arroz de puta pobre. REGIÃO SUDESTE No sudeste, cada estado possui sua peculiaridade de forma mais visível. A região é composta por Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Mesmo tendo características distintas, alguns pratos também se repetem, disseminados pelos bandeirantes e pelos tropeiros. Além disso, o bioma da Mata Atlântica passa por todos os estados, uniformizando aspectos da fauna e da flora. Sendo assim, São Paulo divide alguns pratos típicos com Minas Gerais, como o feijão tropeiro e os farnéis que, como Caloca Fernandes afirma no livro Viagem gastronômica através do Brasil, de 2002, deram origem aos atuais virados e cuscuzes paulistas. A cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro, é berço da apreciada comida de boteco, com seus quitutes acompanhados de um chope gelado e pratos típicos que homenageiam homens públicos brasileiros, como o filé Oswaldo Aranha e a sopa Leão Veloso. O prato-símbolo do Brasil, a feijoada, também tem fortes raízes no Rio. Em São Paulo, observa-se duas vertentes: a capital moderna, funcionando como um polo gastronômico de apelo internacional, e o interior, preservando suas tradições. O estado teve forte influência de imigrantes à procura de oportunidades nas fazendas de café, como italianos e japoneses, que chegaram como mão de obra e se fixaram. Minas Gerais é marcada pela comida de fazenda que remete à hospitalidade de seus cidadãos, à ideia de comida farta e à presença de doces artesanais, como os doces de tacho, e queijos deliciosos, que levam os nomes de seus locais de origem: Serra da Canastra, do Serro e Minas. Ícone brasileiro, o pão de queijo pode ser consumido puro ou recheado de linguiça, pernil – e por que não com mais queijo, acompanhado de café adoçado com rapadura? Consome-se ainda carne de porco preparada de várias maneiras, galinha, feijão, milho e mandioca. A gastronomia capixaba, do Espírito Santo, recebe influências do indígena, da região serrana e do litoral. Possui semelhanças com as regiões que fazem COZINHA BRASILEIRA 14 fronteira, e alguns povos, arraigados nas vilas locais, mantêm tradições alemãs e italianas. Entre os pratos típicos estão a moqueca e a torta capixaba. REGIÃO SUL Considerada a região mais europeia do Brasil, devido à colonização marcada pela presença de imigrantes, como alemães, italianos, poloneses e ucranianos, o sul é composto por Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul. Recebeu imigrantes alemães, italianos, poloneses, portugueses, ucranianos e sofre influência dos países vizinhos de fronteira: Argentina, Uruguai e Paraguai. A região sul é muito associada ao churrasco e ao chimarrão. O churrasco é comumente preparado com carne de boi e de carneiro, assada lentamente, com uma distância certa da brasa. O chimarrão é proveniente da erva-mate, e comumente temos a imagem típica do gaúcho com a cuia em uma mão e a garrafa térmica com água quente na outra, como mostra a Figura 5. Além disso, no litoral catarinense se encontram as melhores ostras brasileiras, enviadas para todo o país. Na Serra Gaúcha se produz muito vinho, e espumantes que vêm sendo premiados entre os melhores do mundo, ficando ao lado dos condecorados champagnes franceses. Cozinha afro-brasileira Os povos africanos trazem elementos que influenciam de forma marcante o Brasil, principalmente o nordeste e, mais precisamente, a Bahia. No candomblé, por exemplo, a fé dos devotos é guiada por seus respectivos orixás, o que tem influência inclusive nas preferências alimentares: se o santo não gosta de algum alimento, o devoto dele não se alimentará. A mão de obra escrava, durante séculos, esteve presente em todos os âmbitos da vida e do cotidiano do país: dentro das casas-grandes, os escravos preparavam alimentos e cuidavam dos filhos dos senhores e da casa; nos engenhos, eram responsáveis pela plantação, colheita e processamento da cana, fosse para virar açúcar ou cachaça; nas lavouras de café, atuavam em todos os processos de plantio, colheita e beneficiamento. COZINHA BRASILEIRA 15 Até a escravatura ser abolida, portanto, como os africanos estavam presentes em todos os locais no serviço braçal, não havia maneira deste fato não influenciar a adaptação de outras culinárias, pois, por mais que as receitas fossem de origem portuguesa, as mãos que preparavam os pratos eram de escravas africanas, que carregavam consigo uma bagagem e conhecimentos culinários próprios de seus países de origem. Mais adiante nos aprofundaremos neste tema. A CHEGADA DOS AFRICANOS AO BRASIL Segundo Raul Lody no livro Dendê: símbolo e sabor da Bahia, de 2009, a África chega ao Brasil por duas vertentes, sendo uma formação “biafricana”: a primeira, com os portugueses, devido ao contato destes com o norte da África, Magreb; e a segunda, com o hediondo tráfico de escravos por 350 anos a partir do século XVI. Para os portugueses, que já utilizavam a mão de obra escrava, não havia preocupação em registrar os hábitos dos africanos, visto que eram considerados de valor desumanamente equivalente ao de animais domésticos. Os africanos que comandavam o tráfico chegavam a aceitar como moeda de troca a cachaça, ironicamente produzida pelos próprios escravos, que plantavam, colhiam e moíam a cana-de-açúcar nos engenhos. Estima-se que vieram cerca de 4 a 5 milhões de escravos ao Brasil – estima-se, pois não existe registro oficial de todos os escravos comercializados, muito menos de quantos perderam suas vidas durante o percurso. A introdução dos escravos se fez presente com o aumento da produção agrícola e, consequentemente, com a necessidade de mão de obra massiva que se firmou após a tentativa frustrada de utilizar a mão de obra indígena.O negro era mais resistente em relação à saúde, enquanto o índio era dizimado por doenças contraídas no contato com os portugueses. Chegou o ponto extremo de não haver oferta de alimentos a serem comprados por falta de mão de obra para produzi-los. Eram então vendidos como mão de obra nas casas-grandes e fazendas, onde cuidavam da limpeza, serviços gerais e da cozinha, e atuavam na agricultura e pecuária, nos engenhos e na extração de ouro e diamante. CULTURA E COSTUMES AFRICANOS COZINHA BRASILEIRA 16 Nos registros, pouco se fala a respeito dos grupos étnicos africanos, se referindo a eles apenas como africanos e escravos, como se não houvessem diferenças culturais e costumes em seu continente. Vieram povos como os fon, iorubá e bantos, exemplos de povos que contribuíram inclusive para que nosso português se tornasse diferente do de Portugal. Os africanos trouxeram suas heranças culinárias no preparo de galinhas de vários modos, nos assados, no caruru angolano, no sarapatel e muitos outros. No Brasil, introduziram o azeite de dendê, o quiabo e a pimenta malagueta e, apesar de os indígenas já utilizarem as pimentas do gênero Capsicum, nativas da América pré-colombiana, foram os africanos que fixaram sua utilização nos pratos típicos brasileiros. Também não há registros que documentem a alimentação dos escravos, mas há relatos de vários cronistas que escreveram sobre a alimentação de “gente de serviço”, escravos e trabalhadores, com abundância de farinha, vários tipos de peixes salgados, bananas e outras frutas, como cita Sheila Moura Hue no livro Delícias do descobrimento – a gastronomia brasileira no século XVI, de 2008. A farinha de mandioca era alimento essencial para sustentar os escravos nos navios negreiros em suas vindas dos países africanos. Assim, era também alimento dos tripulantes das embarcações, acabando introduzido na dieta de alguns povos daquele continente e gerando uma nova cadeia produtiva de mandioca fora do Brasil. AS MULHERES DE TABULEIROS Há quem diga que a comida de rua tem sua origem nos tabuleiros de quitutes vendidos pelas negras nas ruas da Bahia. No final do século XVIII, o cronista Luís dos Santos Vilhena relata, em uma de suas cartas publicadas no livro Recopilações de notícias soteropolitanas e brasílicas, de 1802, republicado em 1921 pela Imprensa Oficial do Estado da Bahia, a venda de vários alimentos que variavam entre influências indígenas, africanas e portuguesas produzidas pelos negros: mocotós (mãos de vacas), carurus, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas (papas de milho), acaçás, acarajés, abarás, arroz de coco, feijão de coco, angus, pão de ló de arroz e de milho, roletes de cana e ainda aluá, definida como água suja feita com mel e outras misturas. COZINHA BRASILEIRA 17 Fato é que esse se tornou o ofício de muitas mulheres que mantinham suas casas e famílias com o comércio. Gilberto Freyre, autor da importante obra Casa- grande & senzala, publicada em 1933 e revisada, dentre outras edições, em 2003, conta que as senhoras das casas-grandes e abadessas do convento entregavam-se, às vezes, ao comércio de doces e quitutes das negras doceiras, algumas tão boas que conseguiam juntar dinheiro vendendo bolos. A doçaria de rua, segundo Freyre, se desenvolvera na Bahia como em nenhum outro estado brasileiro, oferecendo bolos de tabuleiro, doces secos, bolinhos de goma, sequilhos confeitos e outras guloseimas. A RELIGIÃO Ao contrário dos indígenas, os africanos não foram alvo da catequese dos jesuítas no Brasil, sendo assim, precisavam se firmar na religião que conheciam de origem. As classes sacerdotais recriaram seus rituais de dança, música, cânticos, iniciações conventuais, sacrifícios e oferendas em seus cultos, se reunindo em sistemas religiosos dos escravos de origem fon e iorubá, citado por Vivaldo da Costa Lima, em 2002, no livro Viagem gastronômica através do Brasil, de Caloca Fernandes. Na Bahia do final do século XVIII, alguns anos antes de o Brasil conquistar sua independência, se inicia uma organização social unindo diferentes grupos étnicos de escravos, libertos e crioulos que, adotados por grupos religiosos iniciantes, fundam o candomblé. Seja para ofuscar a atenção da Igreja católica ou não, há uma associação direta entre orixás e santos católicos, seguindo calendários semelhantes quanto aos dias de festas e comemorações. A fé do baiano se faz tão presente na cultura religiosa que não é à toa que o estado é conhecido como a “Bahia de todos os santos”, onde cada devoto tem um orixá, e o costume é que se façam oferendas para que suas preces sejam atendidas. Não somente os orixás devem ter seus gostos atendidos, como o próprio devoto segue a preferência de sua divindade africana em alguns costumes e na alimentação, sendo excluídos os ingredientes impugnados. A Figura 6 mostra um terreiro de candomblé em Simões Filho na Bahia, onde orixás são recebidos em rituais que envolvem dança, canto e comida, a comida de santo. COMIDAS DE SANTO COZINHA BRASILEIRA 18 A comida de santo, da senzala, foi parar nas mesas dos senhores e, depois, difundida pelas negras quituteiras, passou a ser servida em dias de festas. Foi conquistando paladares e se tornou a comida afro-baiana, também considerada afro-brasileira, por manter as raízes africanas ainda preservadas. Seu preparo exige rituais que devem ser seguidos com respeito e asseio. Nem todo utensílio e equipamento podem ser utilizados, sendo somente permitidos objetos exclusivos para este fim, abolindo os que são empregados no dia a dia. A chef de cozinha Dadá, com o auxílio de Mãe Cléo, participou do livro Sabor do Brasil, escrito por Alice Granato em 2012, apontando as preferências dos orixás: • Oxum – ama peixe-vermelho e gosta de feijão-fradinho com cebola e camarão no azeite de dendê; • Xangô – adora quiabo; • Iansã – recebe acarajé grande com camarão em cima; • Oxalá – milho branco (canjica) com mel; • Iemanjá – é servida com feijão branco, bem temperado com azeite de oliva (aqui, se mostrando uma adaptação da cozinha africana à baiana); • Nanã – aprecia mingau de carimã (farinha finíssima de mandioca); • Ogum – feijoada e inhame, acompanhado de cerveja ou vinho; • Exu – carne de bode e xinxim de bofe com camarão e cebola. O orixá masculino aprecia charuto e uísque, e o feminino, champanhe e boas marcas de cigarro; • Oxumaré – arroz e milho-vermelho; • Logun Edé – feijão com milho ao lado; • Obá – canjica com mel, enfeitada com rosas brancas; COZINHA BRASILEIRA 19 • Omolu – pipoca, coco e mel; • Loko – frango e moranga. Na oferenda, colocar alpiste; • Ossain – adora frutas como o melão caboclo; • Ifá – melão branco com bastante mel; • Todos os orixás gostam de acaçá (massa de milho branco enrolada na folha de bananeira). Prato famoso na popular festa de São Cosme e Damião, o caruru de São Cosme ou caruru de Cosme (preparado com quiabo, camarão seco, feijão-fradinho, azeite de dendê, sal, cebola e outros ingredientes) é oferecido ao orixá Ibeji e também pode ser chamado de caruru-dos-Ibejis. Ele acompanha outros pratos típicos e transforma a refeição em um verdadeiro banquete. Alimentação indígena Assim como não se deve fazer alusão aos povos da África meramente como africanos, os povos indígenas do Brasil deveriam ser acurados também pelas suas variadas tribos, cada qual com sua linguagem, etnia e costumes. Quando Cabral e seus marinheiros foram recebidos pelos indígenas, o conhecimento dos nativos tornou sua estadia e adaptação confortável e regada em abundância alimentar. Alguns não tiveram a mesma sorte, não se adaptaram bem aos alimentos que encontraram ou, segundo algumas histórias, teriam virado alimento a tribos praticantes do canibalismo. A seguir vamos observar mais de perto alguns hábitos e técnicas comuns a algumas tribos indígenas. HÁBITOS ALIMENTARES A alimentaçãodo indígena é baseada nos ingredientes da natureza, além da fauna e flora oferecidas pela riqueza dos biomas brasileiros. Tal versatilidade faz da mandioca um dos principais ingredientes da alimentação indígena, junto de milho, pimenta, caça e frutos. COZINHA BRASILEIRA 20 O índio saía para caçar e pescar, enquanto as índias se encarregavam de coletar plantas silvestres e água, cuidar da roça, dos filhos e do marido, fabricar utensílios de cozinha e os utilizar no preparo dos alimentos. TÉCNICAS DE PREPARO Fazem parte do conhecimento indígena algumas técnicas utilizadas até hoje. A paçoca de carne ou peixe com farinha deu origem à paçoca de carne seca – muito consumida na região nordeste –, feita no pilão até ficar homogênea. Métodos e técnicas de conservação foram desenvolvidos pelas índias, como o emprego de fumo, para fazer a cura do jerimum e prolongar sua validade; e o processo da mixiria, que consiste em assar a carne de caça ou peixe em fogo brando, na própria gordura e, posteriormente, armazená-la em potes de barro fechados, próprios para este fim, método muito semelhante ao confit dos franceses. Há ainda o moquém (mokaen), método de cocção indígena adotado até por piratas franceses. Alguns dizem ser uma vertente de origem do churrasco, já que se trata de uma técnica de assar e defumar os alimentos, geralmente peixe, sobre uma “grelha” alta, montada com troncos de madeira e colocada acima da brasa, que pode levar cascas de árvore para dar mais sabor à carne. Os peixes moqueados podem ser consumidos diretamente, virar mojicas (também pode ser feito com peixe cozido, sendo retiradas as espinhas, desfiado e cozido no próprio caldo com farinha d’água ou polvilho) ou virar piracuís, pelo qual o peixe moqueado por mais tempo fica torrado, é pilado e dá origem a uma farinha, que pode ser feita com qualquer peixe. A mojica de pintado e o piracuí de bodó (uma espécie de cascudo) ou de pirarucu são, respectivamente, prato e ingredientes típicos da região norte do Brasil. PRODUTOS A mandioca é, sem dúvidas, o ingrediente mais importante e versátil para o nativo. Dela se aproveita tudo. É o alimento que compõe a mesa do brasileiro do norte ao sul e de leste a oeste até a atualidade. Foi difundida pelo mundo e se tornou alimento-base também de outras culturas. O indígena, dominando a mandioca brava, aprendeu a retirar todo o ácido cianídrico, tornando-a um alimento seguro e fonte de energia para o corpo. O beiju e as farinhas fazem parte da alimentação diária dos indígenas, que extraem outros vários produtos da mandioca, não só da brava, como também da mansa. COZINHA BRASILEIRA 21 Assim, com auxílio do tipiti, o caldo venenoso é extraído da polpa da mandioca brava ralada, cozido várias vezes e temperado, originando o tucupi. Com suas folhas, que devem ser fervidas por pelo menos sete dias para serem consumidas, eliminando completamente o ácido cianídrico, dá origem à maniçoba, que substitui o feijão em seu preparo, considerada a feijoada do paraense. A mandioca mansa (Figura 7), também conhecida como mandioca doce, macaxeira ou aipim, dependendo da região, também é muito utilizada. Dela se extrai a fécula, chamada de goma ou polvilho, que pode ser doce ou azeda, dependendo do processo que recebe. Em seus subprodutos existem inúmeras farinhas (carimã, farinha d’água, farinha de mandioca de Cruzeiro do Sul), puba, tapioca e beijus, que dão origem a pratos típicos como pudins, bolos e doces. Figura 7. Mandioca, macaxeira ou aipim. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 19/12/2019. A antropoentomofagia é parte dos hábitos indígenas e uma boa maneira de obter outra fonte de proteína. Atualmente, essa herança se manteve em algumas regiões do Brasil, como no Vale do Paraíba, onde se aprecia a içá (Atta sexdena), também conhecida como tanajura, preparada fritinha e geralmente servida como farofa. O abdômen da fêmea da saúva, onde ficam suas ovas, é separado para o consumo, fazendo a alegria de seus apreciadores. Aos poucos, essa culinária considerada exótica vem ganhando espaço na dispensa de restaurantes, para compor pratos da cozinha contemporânea brasileira. COZINHA BRASILEIRA 22 EXPLICANDO Segundo Ramon Santos de Minas no livro Antropoentomofagia ou entomofagia: insetos, a salvação nutricional da humanidade, de 2016, entomofagia é conceituada, de maneira simples, como o hábito de alimentar-se de insetos. Segundo o autor, o processo evolutivo do homem fez com que ele passasse por diversos estágios, sempre driblando as adversidades em busca da manutenção e não extinção de sua espécie. Assim, na condição de caçadores, perceberam que, se os insetos se alimentavam das mesmas coisas que eles, os próprios poderiam ser também ótima fonte de alimento e atender também à parte nutricional humana. Dos alimentos consumidos pelos nativos, estão: palmito fresco e cozido, cará, milho, batata, cacau, guaraná, pimentões e pimentas, amendoim (mindubi), tomate, diversas frutas como caju, mamão, abacate etc. Entre as carnes, consomem anta, peixe-boi, porcos-do-mato, cobras, jacarés e lagartos. A tartaruga sempre foi muito apreciada pelos indígenas e caiu no gosto dos portugueses, elaborada de várias maneiras, desde o ovo até sua carne. Verdadeiras iguarias, como Gilberto Freyre afirma em Casa-grande & senzala, tal como republicado em 2003, elas dão origem a uma variedade de quitutes no extremo-norte. Entre os quitutes oferecidos pelos nativos estão o arabu, feito com as gemas dos ovos de tartaruga ou tracajá e farinha; o abunã, ovos de tartaruga ou tracajá moqueados antes de completa gestação e servidos com sal e pimenta; o mujanguê, um mingau das gemas dos ovos, também de tartaruga ou tracajá, com farinha de mandioca mole intumescida de água, que ganhou o acréscimo do sal ou açúcar dos europeus; e paxicá, picado de fígado de tartaruga temperado com sal, limão e pimenta-malagueta, recebendo as influências dos outros povos. CURIOSIDADE Tamanho é o apreço do brasileiro pela carne de tartaruga que passou a ser um problema a caça desenfreada destes quelônios, até algumas COZINHA BRASILEIRA 23 espécies serem consideradas em extinção na década de 1970 e terem sua comercialização e caça proibidas sob penalidade prevista em lei. Em 1979, o Governo Federal criou o Programa Quelônios da Amazônia (PQA), com o objetivo de promover o consumo sustentável pelas comunidades locais e aumentar a conservação da região amazônica, segundo a matéria "Programa quelônios da Amazônia (PQA) monitora milhares de tartarugas em GO", publicada em 2017 no site do IBAMA. O consumo de tartaruga é comum pelos nativos da Amazônia. Contribuição de Portugal em nossas mesas Portugal é historicamente um país de crenças religiosas voltadas ao catolicismo. Muitos de seus alimentos e bebidas giram em torno da Igreja – também fora de Portugal –, também fora de Portugal, que sempre se interessou em ser detentora das técnicas de preparo e fabricação de pães, bolos e doces, cervejas e vinhos. A alimentação conventual, herança dos portugueses, permeia as Igrejas e catedrais católicas até os dias de hoje, tendo um papel imprescindível na história da alimentação em todos os países em que foram difundidos. Como dito, os portugueses introduziram, no Brasil e em outros países com os quais realizaram trocas ou se fixaram em colônias, vários ingredientes não só da Europa, mas também da Índia, África e outros países e povos com que tiveram contato, como a farinha de trigo, junto da técnica de fritura por imersão no Japão, que deu origem ao tempura, tão tradicional nos restaurantes japoneses do mundo todo. No Brasil, essa técnica foi levada pelos portugueses, que apresentaram aos indígenas a fritura em si. O português levou os negros escravizados ao Brasil para explorar sua mão de obra e, a partir daí, ergueram-se vilas e portos. Os cozinheiros da época eram europeus com ajudantes africanos.Logo, era impossível não haver uma troca de experiências. A agricultura e a pecuária foram atividades introduzidas por portugueses. Houve contribuição dos escravos também nas lavouras e hortas em que COZINHA BRASILEIRA 24 trabalhavam. Estes locais abasteciam cidades com alimentos frescos, sementes e mudas de plantas. A pecuária levou ao Brasil a criação de bodes, cabra e cabritos. Do bode se faz farnel, e da cabra se tira o leite, através do qual se produz queijo. Dominava-se ainda a produção de embutidos (paio, presunto, linguiça), queijos, defumados, carnes secas e salgadas e outros métodos. Os portugueses trouxeram pães e cereais, como trigo, cevada, aveia e arroz; frutas, como uva, figo, maçã, marmelo, pêssego, romã, cidra, tâmaras, melão, melancia e coco; e condimentos como mostarda, ervas e especiarias. O CATOLICISMO Ao chegar no Brasil, os portugueses quiseram doutrinar os indígenas segundo suas crenças. Os jesuítas se incumbiram da missão de catequizar os indígenas e convertê-los à nova religião. A religião católica se faz uma importante influência da alimentação dos países que a praticam. A doçaria conventual e a produção de bebidas alcoólicas nunca foram exclusividades da Igreja católica, porém, o domínio do preparo e a tradição mantiveram muitas dessas produções artesanais conservadas até os dias de hoje, como licores produzidos em abadias na Europa, fabricados desde antes de o Brasil ser encontrado por Pedro Álvares Cabral. Havia também as festas comemoradas pelos cidadãos, fossem homenagens aos santos ou comemorações socais da população, como casamentos. Cada comemoração possuía seus doces específicos e tradicionais. Comemoravam o São João, o Espírito Santo, o Natal e a Páscoa. O AÇUCAR Segundo Luís da Câmara Cascudo em A história da alimentação no Brasil, publicado em 1983, o cultivo da cana de açúcar era feito pelos árabes em Granada. Na Ilha da Madeira, território de Portugal, o plantio de cana de açúcar era feito em meados de 1454, ou seja, antes da descoberta do Brasil. O gosto do português pelo açúcar teria sido conquistado gradualmente, primeiro pelo fidalgo, chegando a ser utilizado com canela. Mais tarde, se tornou mais acessível e conquistou o gosto das classes mais humildes. COZINHA BRASILEIRA 25 Os portugueses trouxeram esse cultivo para a Bahia e, mais tarde, o Brasil se torna referência em qualidade de açúcar. Muito antes das plantações de cana-de-açúcar na Ilha da Madeira, a doçaria portuguesa era rica e não utilizava açúcar em suas receitas. O mel era a estrela dos doces. Junto das frutas, ele foi o primeiro ingrediente a adoçar a alimentação do ser humano. TRADIÇÃO DE FAMÍLIA Os costumes portugueses incluíam a hospitalidade e a etiqueta social. Deles, criamos o hábito de oferecer um café para quem pernoitasse hospedado em nossa casa. Para os portugueses da época, era considerado um ato de incivilidade recusar o café da manhã oferecido. Quando se recebia visitas ou se visitava vizinhos, era comum oferecer um bolo, feito pelas próprias mãos, como agrado. Os nobres apreciavam seus banquetes fartos com o serviço completo à francesa, onde se incluíam pratos como entradas diversas, entremets, pratos principais com proteínas variadas, sobremesas diversas e o fechamento com licores digestivos e café. Existem várias heranças culinárias trazidas das casas portuguesas para o Brasil, que se firmaram e se tornaram parte cultural da alimentação diária, do pobre até o milionário, como Dolores Freixa e Guta Chaves contam em Gastronomia no Brasil e no mundo, republicado em 2012. Para elas, um prato tipicamente português é o cozido. Assim como o sarapatel (feito com sangue, miúdos e toucinho de porco cortado em pedaços), a buchada também se incorporou à cultura nordestina. A diferença está na carne utilizada: Portugal costuma usar o "bucho" do porco, para recheá-lo, enquanto aqui usamos bode. O Brasil também contribuiu com a cultura dos colonizadores. O português incluiu a batata à sua alimentação: no bacalhau, elaborado de várias formas, no caldo verde, em guisados e em cozidos. DOÇARIA PORTUGUESA Fartes estavam entre os primeiros alimentos oferecidos aos nativos pelos portugueses, como relatado na carta de Pero Vaz de Caminha. Consiste em um doce feito com bolo e recheio de creme. Um dos primeiros registros da receita é de Lisboa, por José de Aquino Bulhoens em Arte nova, e curiosa, para COZINHA BRASILEIRA 26 conserveiros, confeiteiros, e copeiros, e mais pessoas que se occupão em fazer doces, e conservas com frutas de varias qualidades, e outras muitas receitas particulares, que pertencem à mesma arte, de 1788. Fartes são feitos em poucos lugares no Brasil atualmente. As receitas foram se modificando com o passar dos séculos, e doces semelhantes tomaram seu lugar. A receita a seguir, adaptada da receita da chef Lucia Soares no portal do Museu do Açúcar e Doce, é feita no Brasil moderno, em que os fartes já viraram uma espécie de pastelzinho assado, um pouco diferente da receita original. FARTES Recheio de espécie 400g de açúcar 200ml de água 200g de farinha de amêndoas 200g de cidra ralada 100g de farinha de rosca Casca ralada (sem a parte branca) de ½ laranja Bahia ¼ de colher de café de cravos da Índia em pó ½ de colher de sopa de canela em pó ½ de colher de café de erva doce 1 pitada de sal Massa 450g de farinha de trigo 150g de manteiga sem sal gelada cortada em cubos 3 gemas 100ml de água gelada 1 pitada de sal Para pincelar: 100ml de leite 50g de açúcar Para pincelar 100ml de leite 50g de açúcar // Modo de preparo: Recheio Leve ao fogo a água com o açúcar e deixe-os aquecer até chegar em 107 ºC; Adicione a farinha de amêndoas, a cidra ralada e as especiarias, mexendo sempre, até soltar-se do fundo da panela. Deixe esfriar e reserve. Massa Em um bowl, peneire a farinha de trigo com o sal; Com a ponta dos dedos, misture a manteiga com a farinha, delicadamente e aos poucos, até formar uma farofa; Junte metade da água gelada e a gema e, novamente, agregue à massa, delicadamente, com a ponta COZINHA BRASILEIRA 27 dos dedos. Caso fique muito seca, coloque mais água; Abra a massa com um rolo e corte círculos com o auxílio de um aro redondo; Coloque um pouco do recheio no centro da massa, molhe as bordas com um pouco de água e feche-as, formando uma meia-lua; Em uma vasilha, misture o leite com o açúcar e leve ao forno a 180 ºC, por aproximadamente 25 minutos, ou até dourar levemente. Segundo Luís Câmara Cascudo no livro História da alimentação no Brasil, de 1983, o preparo do bolo era repassado das avós para as netas e fez parte da educação feminina no Brasil. Seu preparo tinha o objetivo de agradar, seja para prestigiar os vizinhos, agradar ao paladar de um futuro marido, fazer a alegria dos filhos ou comercializar nas cidades. Essa herança dos portugueses trouxe à terra do açúcar renome às quituteiras, que utilizavam as frutas tropicais no preparo de compotas e geleias. Entre os doces trazidos pelos portugueses também se encontrava o alfenim, de influência árabe. DOCERIA CONVENTUAL O papel das freiras com a doçaria fez com que os preparos fossem refinados e aperfeiçoados, e permitiu que estas tradições se perpetuassem até hoje, da mesma maneira que à época do Brasil Colônia. Vieram das tradições doceiras das freiras: sonho, queijadinha de amêndoas, pão-de-ló, farófias, manjar- branco, fartes e outros. CURIOSIDADE Luís Câmara Cascudo cita, em História da alimentação no Brasil, que o manjar-branco era feito originalmente com carne de galinha, cozida e desfiada e que, nos dias de jejum, os frades substituíam a galinha por peixe e, na cidade de Porto, por amêndoas. O pão de ló era consumido na Páscoa, dia de Nossa Senhora e no Natal. Era um doce de famílias abastadas paradias de festa, pois rendia pouco, portanto, não era popular. COZINHA BRASILEIRA 28 Santo Antônio era homenageado com o bolo que leva seu nome. Adaptado ao Brasil, levou farinha de cará. Outros santos recebem a mesma homenagem, como São João. Existiam os doces que recebem nomes conventuais, citados por Luís Câmara Cascudo ao longo da História da alimentação no Brasil, como beijos-de-freira, triunfos-de-freira, fatias-de-freira, capela-de-freira, creme-da- abadessa, toucinho-de-céu, cabelos-de-virgem, papo-de-anjo, celestes, queijinho-de-hóstia etc. Ainda havia, segundo ele, os satíricos: barriga-de- freira, conselheiros, velhotes, orelhas-de-abade, galhofas, lérias, casadinhos, viúvas, jesuítas, arrufadas e sopapos; os cerimoniáticos: capelos-de-Coimbra, manjar real, bolo-rei, manjar-imperial, príncipes, marqueses; e os sussurrados, que eram confissões, apelos, críticas, murmúrios e queixas: bolinhos de amor, esquecidos, melindres, paciências, raivas, sonhos, beijos, suspiros, abraços, caladinhos, saudades. O manjar-branco, segundo Câmara Cascudo em seu livro, é um doce cortado em cubos feito com leite, galinha desfiada, açúcar e farinha de arroz cozidos até dar o ponto. Há ainda a versão de manjar real que mistura a galinha com amêndoas. Foi um prato proibido por Dom Sebastião por ser demasiadamente luxuoso. nessa unidade. Vamos lá?! SINTETIZANDO Nessa unidade, vimos que os três pilares do povo e da cultura brasileiro são: o indígena, nativo desta terra, que já conhecia a fauna e a flora, dominava técnicas de preparo dos alimentos locais e possuía seus próprios costumes; os portugueses, que desembarcaram no Brasil trazendo seus costumes, modo de se organizar em sociedade, animais, plantas, especiarias, técnicas e tecnologias da época, não só originárias da Europa, mas também de outros continentes com os quais já tinham tido contato; e os povos africanos, trazidos como mão de obra escrava pelos portugueses, e que também contribuíram com costumes culinários, culturais e religiosos, e conhecimentos quanto ao cultivo da terra e no preparo dos alimentos na cozinha das casas-grandes. Essa base cultural fez com o que o Brasil criasse linguagens, religiões e culinárias muito peculiares. Após alguns anos, imigrantes chegaram ao Brasil procurando novas oportunidades de vida e agregaram ainda mais cultura, contribuindo com técnicas e ingredientes novos. A chegada de simpatizantes da nossa terra valorizou nossa cultura e tornou a gastronomia brasileira reconhecida e diversa. COZINHA BRASILEIRA 29 Assim, vimos que cada região conta com suas próprias características e hábitos alimentares, Dessa forma, é possível pensar em diferentes cozinhas no território brasileiro: caipira, caiçara, interiorana, litorânea, sulista, nortista, e assim por diante. COZINHA BRASILEIRA 30 UNIDADE 2. Ingredientes e produtos da mesa do brasileiro Carla Keiko Mochizuki Ishizaka OBJETIVOS DA UNIDADE Conhecer os ingredientes das diversas regiões que compõem a gastronomia brasileira; Conhecer as histórias e lendas dos principais ingredientes utilizados na cozinha brasileira; Conhecer a origem dos principais ingredientes; Identificar os subprodutos dos principais ingredientes; Identificar pratos típicos que utilizam os principais ingredientes da cozinha brasileira. Origem e uso na gastronomia: café, dendê, pequi, açaí, guaraná, coco O Brasil é conhecido por produzir um dos melhores cafés do mundo, e alguns estrangeiros acreditam que as famílias brasileiras tomam um café de excelente qualidade no dia a dia. Porém, sabemos que esta realidade não é a vivenciada por todos. É muito comum que as pessoas não saibam diferenciar um café arábica de um robusta, tomando um café torrado ao extremo, demasiadamente quente e cheio de açúcar. Brasil, terra das baianas que se vestem de branco nas ruas vendendo seus acarajés fritos nos tachos de dendê; de frutas como o açaí – que até tentaram patentear em outro país, mas foi constatado ser brasileiro; do guaraná, dos tupiniquins, que parecem olhos e dos coqueiros que forram as praias oferecendo seu fruto refrescante. COZINHA BRASILEIRA 31 Muitas lendas e histórias são contadas sobre as origens desses ingredientes, com especulações de origens incertas. Por sorte, cronistas do mundo todo descreveram e ilustraram algumas dessas histórias, possibilitando que esses conhecimentos chegassem até nossas mãos. O café foi fonte de renda das elites no Brasil Colônia. O azeite de dendê é um símbolo forte da comida baiana, um dos principais ingredientes que difere a moqueca baiana da capixaba. O pequi é um fruto particularmente distinto, quem o prova pode amar ou pode repudiar seu sabor. Já o açaí conquistou a maior parte dos brasileiros e tem ganhado o mundo, e enquanto o nativo o consome como acompanhamento de pratos salgados, nos estados distantes do Pará – ou em outros países, consome-se o açaí adoçado, servido como sorvete ou em doces. O guaraná é procurado por amantes de refrigerante ou por quem busca mais vigor e energia. Por fim, temos o coco, que está presente na cultura de vários povos e pode ser consumido como salgado, sobremesa, docinho, pode compor o prato principal, pode substituir o leite de vaca em dietas veganas, pode ser usado como soro fisiológico e hidratante, e vez ou outra integra as dietas da moda, mas também já foi vilão. CAFÉ: ORIGEM, LENDA, CHEGADA AO BRASIL E MÉTODOS DE PREPARO Muitas lendas contam como o café foi descoberto e quando começou seu consumo. Um dos mitos mais encantadores é a de Kaldi, um pastor de cabras. Em suas caminhadas com o rebanho, Kaldi não pôde deixar de reparar que seus animais consumiam uma frutinha avermelhada, proveniente de arbustos e que ficavam no percurso do pastoreio. Quando as cabras se alimentavam das frutinhas, tinham mais energia, ficavam mais animadas e conseguiam andar por longas distâncias e por mais tempo. Kaldi Ficou curioso com as frutinhas e as levou a um monge, que secou os grãos e os tornou em água fervente, tomando a bebida quente. Percebeu que conseguia se manter acordado e mais disposto durante rezas COZINHA BRASILEIRA 32 noturnas e horas de leitura. Desta forma, o café teria sido difundido através dos monastérios islâmicos, sendo cultivado pela primeira vez na região onde hoje se encontra o Iêmen. O café é originário da Etiópia e os manuscritos mais antigos sobre o consumo do fruto datam do ano de 557, no Iêmen. Segundo a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), Kaffa, província no sudoeste da Etiópia, seria o local de origem da planta, mas seu nome se origina do árabe qahwa, que significa vinho. Era conhecido como “vinho da Arábia”, na Europa, e foram os árabes que difundiram a cultura de beber o café como alternativa às bebidas alcoólicas, pois o consumo de álcool é proibido pelo islamismo. O café foi plantado pela primeira vez no Brasil em 1727, no Pará. Com o favorecimento do clima, as plantações foram logo se alastrando e a produção de café ganhou, além do Pará, os estados do Maranhão, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Bahia e Rondônia. O Brasil é o maior produtor de café do mundo há mais de 150 anos e o segundo maior consumidor, perdendo apenas para os Estados Unidos. A primeira mão de obra que os barões do café utilizaram em suas plantações eram de africanos em situação de escravização. Em 1888, a escravidão foi legalmente abolida, mudando a forma de trabalho empregado nas fazendas. Foi criado o projeto de colonização agrícola, onde eram oferecidas terras aos imigrantes para povoar e demarcar o território. Chegaram poloneses, ucranianos, escandinavos, noruegueses, belgas, espanhóis, sírios, libaneses, japoneses e, principalmente, italianos. Existem dois tipos de café que são os mais difundidos no mercado: arábica (Coffea arabica)e robusta ou conilon (Coffea canephora), também chamados respectivamente de cafés especiais e de commodity. O Brasil produz os dois, porém o café arábica, que possui melhor qualidade, ganha mais prestígio fora do país, pois a maioria é exportado. Historicamente, o café de commodity liderou a produção cafeeira do Brasil, explicando, juntamente com a diferença monetária, a preferência e principalmente o costume do brasileiro de tomar o cafezinho feito todos os dias com grãos de conilon. CONTEXTUALIZANDO COZINHA BRASILEIRA 33 O café de commodity tem importante papel na economia brasileira e até que os cafés especiais ganhassem maior destaque, seu preço sofria altos e baixos. Na crise de 1929, quando a bolsa de Nova Iorque quebrou, o valor do café caiu bruscamente. Com o intuito de conter a queda, milhares de sacas de cafés foram queimadas para diminuir a oferta e aumentar o valor no comércio internacional, pois o Brasil era o maior exportador. No fim da crise, a produção voltou a crescer e o Brasil se manteve como maior produtor de café do mundo. A preferência de preparo do café do dia a dia no Brasil é o coado, utilizando coador de pano ou de papel. Também se consome muito café expresso e, atualmente, os cafés em cápsulas vêm ganhando mercado. Existem muitos outros métodos de preparo de café: com coadores e suportes diferenciados, prensa francesa, ibrik (turco), sifão (a vácuo) e cafeteira italiana. As primeiras cafeterias surgiram em Meca como locais para conversar e ouvir música tomando café. O hábito de tomar café coado com leite e adoçado foi criado em Veneza, em 1687. No Brasil, as cafeterias vêm conquistando espaço com cafés especiais preparados por baristas. Também se consome muito café ao final das refeições nos restaurantes. Nas padarias e botecos, é comum pedir um carioca – café expresso com mais água, parecido com o americano; um pingado – serve-se o leite em um copo americano com uma quantidade proporcional menor de café, que seriam os “pingos”; um expresso, que no Brasil possui 50 ml, enquanto em outros países não passa de 30 ml; ou uma média, conhecida como latte nos outros países, é o café expresso com leite vaporizado e uma fina camada de espuma. Essas são as maneiras brasileiras de beber o cafezinho. Na gastronomia, o café está no clássico italiano tiramissú e saboriza outras sobremesas como parfaits, panacotas, mousses, cheesecakes, tortas, suflês, bolos, e no Brasil varia o sabor do brigadeiro. Na Figura 1 temos a foto de um especialista em café fazendo a análise sensorial dos grãos torrados e moídos que receberão classificação segundo suas qualidades. COZINHA BRASILEIRA 34 Figura 1. Especialista em café analisando a qualidade do produto final. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 03/03/2020. DENDÊ: ORIGEM, UTILIZAÇÃO E SIMBOLOGIA O dendê é originário dos países da costa ocidental da África, de Guiné-Bissau a Angola. Os frutos da palmeira Elaeis guineensis teriam chegado ao Brasil com os africanos escravizados e foi na Costa do Dendê, local entre Salvador e Ilhéus, que o dendezeiro melhor se adaptou. O nome dendê vem do quimbundo dendém, como é chamado em Angola. Tanto na África quanto no Brasil, o óleo extraído do fruto recebe várias denominações, podendo ser chamado de “azeite de dendê”, “azeite de cheiro”, “óleo de dendê”, “óleo de palma”, “epó” ou somente pelas simples palavras “óleo” ou “azeite”, sendo o azeite de oliva o “azeite doce”. Da planta se utiliza tudo: as folhas servem de cobertura para casas; o palmito é comestível e é retirado do caule; da seiva se faz vinho; do óleo da semente se faz sabão, sabonete, velas, detergente ou pode ser utilizado para o consumo; da polpa do fruto se extrai o azeite de dendê e o óleo de palma. Foi usado pelos faraós do Egito e hoje é utilizado como cosmético e matéria prima para produção de biodiesel. O azeite de extração a frio é utilizado na África e no Brasil, enquanto o óleo – que passa por refino e perde totalmente as características que conhecemos do dendê como cor, aroma e sabor – é amplamente utilizado em produtos alimentícios por todo o mundo pela sua produtividade e seu valor de mercado. A presença do dendê é característica marcante da cultura africana na comida brasileira juntamente com os temperos e técnicas de preparo. O dendê está presente principalmente na cozinha baiana, mas também é utilizado em outros estados no Nordeste e no Norte. Seu uso foi repassado por africanos escravizados e afrodescentes e introduzido na mesa colonial, de forma que o COZINHA BRASILEIRA 35 dendê está presente em quase todos os pratos baianos, seja no preparo ou na finalização para decorar. Seus pratos fazem parte das festas de todas as religiões, das cozinhas residenciais às cozinhas dos terreiros. No candomblé, o dendê é tão importante que os orixás podem ser separados entre os que apreciam o azeite, chamados de orixás “quentes”, e os que não se agradam com ele, os chamados orixás “frios”. Raul Lody cita os pratos feitos com dendê no livro Bahia bem temperada, de 2013, (n.p.): Cardápios do azeite: abará, acarajé, amalá, amori, arroz de hauçá, axoxó, bobó de camarão, caruru de azedinha, caruru de bredo, caruru quioiô, caruru de vinagreira, caruru, doboru, ebô, efó, eguedé, farofa amarela, farofa de azeite, farofa de bambá, latipá, milho de iemanjá, moqueca de aratu, moqueca de bacalhau, moqueca de bebe-fumo, moqueca de camarão, moqueca de carne-seca, moqueca de fato, moqueca de folha, moqueca de maturi, moqueca de miolos, moqueca de ostras, moqueca de ovos com camarão seco, moqueca de peixe em postas, moqueca de peixe salgado, moqueca de peixe miúdo, moqueca de pitinga, moqueca de pitu, moqueca de siri-mole, moqueca de sururu, omolocum, peixe frito no azeite de cheiro, vatapá de bacalhau, vatapá de galinha, vatapá de peixe, xinxim de bode, xinxim de galinha. PEQUI: FRUTO, REGIÃO E PRODUTOS Figura 2. Pequizeiro e pequi. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 03/03/2020. A Figura 2 mostra o pequizeiro e seu fruto, o pequi. Os frutos possuem casca grossa e a polpa é a parte amarela que tem seu tamanho variado entre uma gema e um ovo inteiro. É necessário cuidado ao consumir o fruto, pois há espinhos que se localizam logo abaixo da polpa. Ela deve ser raspada com os dentes, roendo-a, e jamais deve ser mordida para não correr o risco de se machucar com os pequenos espinhos. COZINHA BRASILEIRA 36 Caryocar brasiliense é uma árvore nativa do bioma do cerrado que abrange São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Tocantins, Pará, Piauí, Ceará e Bahia. Pequi vem do tupi, e “py” quer dizer casca e “qui” significa espinho. Também é conhecido como “piqui”, “jiquiá”, “piquiá”, “amêndoa do espinho”, “piquirama”, “piquiá- bravo, “piqui do cerrado”, “grão-pequiá”, “pequerim”, “pequiá-pedra” e “suari”. Além de ingrediente, ele é um condimento que tempera cozidos e arroz devido ao seu sabor perfumado. Sua safra é de novembro a fevereiro, portanto, é encontrado com facilidade em conserva em lascas ou em creme, mas também pode ser encontrado congelado. Pequi é um fruto rico em lipídeos e tem seu óleo extraído e utilizado para consumo e para a indústria de cosméticos na fabricação de sabonetes e cremes. Suas preparações tradicionais são o arroz de pequi e a galinhada, mas também pode ser utilizado no preparo de licores, farofas, sorvetes, compotas, purês, molhos, doces e cozidos. A castanha, protegida pelos espinhos, também é muito apreciada. Crua, assada ou cozida, pode ser consumida pura, em farofas, doces e licores. AÇAÍ: PALMEIRA, FRUTO E PALMITO Euterpe oleracea é uma palmeira da família Arecaceae, a mesma do dendezeiro, da pupunheira e do coqueiro e seu caule também é comestível, oferecendo seu palmito. Seu nome se origina do tupi “yá-çai” que quer dizer “fruto que chora”. No Maranhão também é chamado de “juçara”ou “juçara de touceira”, mas se distingue da planta que quase entrou em extinção, o palmito juçara (Euterpe edulis). O açaí também ganha outros nomes na Amazônia, como “açaí verdadeiro”, “açaí de touceira”, “açaí do baixo amazonas” e “açaí de planta” segundo a EMBRAPA. O fruto açaí é consumido mundialmente como um creme, geralmente batido com xarope de guaraná com acréscimo de frutas, granola e os mais diversos toppings, dependendo do local. O açaizeiro é proveniente das regiões Centro- Oeste e Norte, principalmente do Pará, onde é consumido de forma diferente do restante do Brasil e outros países. Para o paraense, o açaí é acompanhamento de peixe fresco com farinha de mandioca. Comida diária dos ribeirinhos, deve ser consumido fresco, extraído no mesmo dia, com poucas horas, num creme COZINHA BRASILEIRA 37 liso. Também pode ser consumido como bebida, com farinha de mandioca e açúcar. Além do açaí mais conhecido, o roxo, existem outras espécies de açaí, como o açaí branco e o açaí solitário, sendo este nativo da floresta amazônica e faz parte dos alimentos brasileiros da arca do gosto do Slow Food Brasil. Muitas lendas fazem parte da cultura indígena e o açaí também tem a sua. A lenda do açaí conta que no local onde hoje está a cidade de Belém, no Pará, vivia uma populosa tribo que passava por um momento de escassez. Deste modo, o cacique decidiu que todos os bebês que nascessem a partir daquele momento seriam mortos, pois não haveria comida para sustentá-los. Porém, sua filha, Iaçã, deu à luz uma menina. O cacique não hesitou e matou sua neta. Iaçã chorou por muito tempo e em uma noite avistou sua filha ao pé de uma palmeira. Tomada de alegria, abraçou o bebê, que não passava de uma ilusão. No dia seguinte, Iaçã foi encontrada morta, abraçada ao tronco da palmeira e com um sorriso no rosto, olhando para os frutos da planta. O cacique mandou espremer os frutos para extrair seu suco e percebeu o quanto era nutritivo. Então, retirou sua ordem de executar os bebês, pois não iria mais faltar comida para a tribo. O nome dado ao fruto foi em homenagem a Iaçã, seu nome ao contrário, como agradecimento a Tupã. GUARANÁ: A LENDA E A SEMENTE O guaraná é um arbusto e seu fruto é considerado energético, pois possui cafeína. Representado em bebidas como o refrigerante, pode ser encontrado como xarope que é combinado com o açaí, em pó ou em bastão. Seu nome científico é Paullinia cupana e foi difundido pela tribo Sateré-Mawé, que beneficiam e comercializam em larga escala o pó de guaraná, feito com as sementes secas e moídas, e os bastões de guaraná, feitos com sementes do guaraná piladas que viram pó e, misturadas com água, viram uma pasta. Para ralar o bastão é utilizado um pedaço de cuia ou a língua de pirarucu seca. É tradição das tribos oferecerem água com guaraná de bastão ralado ao visitante. Existem algumas versões diferentes da lenda do guaraná. Uma delas conta a história de um casal que era infeliz pela falta de filhos. Pediram a Tupã e a mãe deu à luz um menino que trouxe muito orgulho aos pais, que era muito amado pela tribo e que se tornaria um grande guerreiro. O estimado curumim foi colher frutinhas na floresta sem avisar ninguém. Jurupari, entidade do mal, com inveja do menino se transformou em serpente e o atacou enquanto estava distraído com a coleta. Quando foi encontrado, estava morto e com os olhos abertos e COZINHA BRASILEIRA 38 serenos. Todos da tribo ficaram muito tristes e no mesmo momento caiu um raio, e era Tupã, que orientou a mãe do menino a enterrar seus olhos, pois traria felicidade para a tribo. Fizeram o que divindade aconselhou e alguns dias depois nascera o primeiro guaranazeiro, com frutos semelhantes aos olhos do curumim, trazendo longevidade e alegria a todos. ASSISTA Assista ao vídeo que mostra a fabricação do bastão de guaraná através de processo tradicional da tribo Sateré-Mawé. COCO: ORIGEM E SEUS PRODUTOS O coqueiro, Cocos nucifera, é originário da Ásia e foi trazido pelos portugueses que cultivavam a palmeira em Cabo Verde. Foi plantado em toda a orla baiana, ficando conhecido como “coco-da-bahia” e também “coco-da-índia”, se referindo às origens. O coco dá origem a vários subprodutos: do coco fresco se extrai a água, do coco seco se extrai o coco ralado (do fino ao grosso), lascas de coco, açúcar de coco, óleo de coco, coco em pedaços, fitas de coco e leite de coco. Em relação ao último item da lista, há o relato de Frei João dos Santos, feito na primeira década do século XVII, acerca da extração do leite de coco para o preparo do arroz de coco, citado por Luis da Câmara Cascudo em História da alimentação no Brasil, de 2004: Do miolo do coco fresco se tira leite com que cozem arroz, ralado com um ralo e bem lavado em duas ou três águas, e espremido entre as mãos, de modo que lhe façam lançar toda a umidade que tem. E d’esta maneira fica com o coco tão seco e miúdo, como farelo de pau, e pelo contrário a água em que foi lavado fica tão grossa, que parece leite de vacas muito alvo, ou de amêndoas, e com esta água se faz o arroz de leite tão bom que fica mais saboroso que pudera ficar, se fora cozido com qualquer outro leite (p. 182-183). Assim como na Índia, o Brasil utiliza o leite de coco como condimento e tempero, ainda que os indígenas consumissem somente a polpa da fruta. Dentre os pratos típicos, podemos citar o arroz de coco, o manjar de coco, a moqueca baiana, a canjica, os mingaus, o bolo, o sorvete e as peixadas. COZINHA BRASILEIRA 39 Os produtos da mesa brasileira: mandioca, milho, feijão, arroz, carne seca, açúcar, macarrão Os produtos que compõem a mesa brasileira têm influências das três populações que formaram as primeiras gerações de brasileiros: indígenas, portugueses e africanos. Além deles, outras culturas adentraram ao Brasil de várias maneiras e em várias épocas. As primeiras colonizações aconteceram com o cultivo de cana-de-açúcar e tinham o interesse em dominar as terras e demarcar o território português. Com o ciclo do ouro, mais portugueses vinham ao novo continente; depois é a vez da economia cafeeira e, até então, toda a mão de obra havia sido feita por africanos ou indígenas em situação de escravidão. Após a lei Áurea, a vinda de imigrantes foi incentivada, trazendo pessoas oriundas principalmente da Europa. Os franceses chegaram aos poucos, e alguns cozinheiros e chefs de cozinha que vieram com a monarquia haviam trazido seus menus da alta gastronomia. Os banquetes contavam com cardápios que Dom Pedro II gostava de colecionar, os serviços eram compostos sempre de entradas, entremets, pratos principais com proteínas variadas (peixe, pato, peru, porco), pelo menos duas sobremesas diferentes, frutas e, para finalizar, café, licores e até charutos, tudo isso para uma simples inauguração. Tudoservido no capricho e com o uso de porcelanas, cristais e pratarias. Assim como os franceses, os suíços também vieram em pequenos grupos, não como colonos, mas como missionários fugidos da perseguição religiosa em 1557. E assim, vieram soldados mercenários, padres jesuítas, desbravadores e pessoas sem expectativas de ficaram no país. A colônia que viria a se chamar Nova Friburgo imigraria ao Brasil apenas em 1819. Um grande número de imigrantes italianos vieram para trabalhar nos cafezais na virada do século XIX para o século XX, e trouxeram hábitos e pratos que se fixaram em nossos costumes. O costume de comer macarronada aos domingos, comer pizza e consumir queijo sã algumas das muitas influências italianas. Muitos estrangeiros vieram para trabalhar nas lavouras de café no oeste paulista, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Santa Catarina, Paraná e Rio COZINHA BRASILEIRA 40 Grande do Sul. No Paraná, as casas ganham arquitetura europeia, com telhas para dias de neve, por exemplo, que se tornaram mais ornamentais do que funcionais; os alemães trazem o associativismo, que maistarde seria adotado pelas cooperativas. Os japoneses chegaram em 1908 para trabalhar na agricultura e atualmente o Brasil é o país com a maior colônia de japoneses fora do Japão. Um ano depois, os holandeses chegaram e montaram cooperativas de laticínios que hoje são grandes indústrias com tecnologia de ponta. No período de 1870 a 1930, o Brasil teve um fluxo migratório intenso, sendo que cada imigrante saiu de sua terra por um motivo, seja político, religioso ou econômico, e procuravam por melhores condições. Nem sempre as promessas de se estabelecer em uma nova terra, com conforto de um lar, foram cumpridas. Muitos não resistiram ao percurso demorado nos navios e, ao chegar, se depararam com doenças como a malária e os desafios de se adaptarem em um novo continente. Durante a Segunda Guerra Mundial, o fluxo de imigrantes caiu e na década de 1980 se inicia o movimento de emigração, ou seja, os brasileiros saíram do Brasil para o exterior, onde seus destinos são Estados Unidos, Europa, outros países da América do Sul e Ásia. Ao mesmo tempo, uma leva de imigrantes de novos países chegou ao Brasil: bolivianos, chineses, paraguaios, chilenos, peruanos, coreanos e angolanos. Os povos que aqui se estabeleceram foram responsáveis pela formação e identidade do Brasil como um país culturalmente rico e etnicamente miscigenado, e as nacionalidades e etnias enriquecem a região no qual estão instaladas, depositando seus costumes, culturas e hábitos alimentares. Cada região do Brasil possui influências de outras nações que se enraizaram e se manifestam em pratos e ingredientes típicos de cada local. Já na década de 1990, houve a chegada de refugiados vindos de Angola, Serra Leoa, Libéria, República Democrática do Congo, Colômbia, Iraque e, em 2010, chegaram os haitianos. Esse processo de imigração e acolhimento de refugiados tende a continuar enquanto houver conflito em outros países. Os motivos de imigração, migração e refúgio têm hoje um significado e motivos muito distintos daqueles da época do Brasil Colônia ou do início do século XX. Os costumes dos últimos povos vêm se estabelecendo aos poucos e é possível encontrarmos restaurantes, food trucks e barraquinhas em feiras que oferecem comidas oriundas de países de ondas imigratórias recentes. Alguns comércios COZINHA BRASILEIRA 41 ainda se mantêm restritos e mais reservados às suas colônias, mas cada vez mais a curiosidade do brasileiro em conhecer as novas culturas que aqui se estabelecem faz com que a gama de sabores, técnicas e ingredientes se ampliem a cada dia. MANDIOCA, RAINHA DO BRASIL Denominada “rainha do Brasil” por Câmara Cascudo e confundida com o inhame pelos primeiros portugueses, ela recebe os mais variados nomes dependendo da região: cassava, macaxeira, aipim ou mandioca. A mandioca possui uma grande variedade de espécies e podemos dividi-las em mandioca mansa e mandioca brava. A mandioca brava possui ácido cianídrico, tóxico ao ser humano, precisando passar por alguns pré-preparos para eliminá- lo e se tornar comestível, tanto as folhas quanto a raiz. A mandioca mansa é a mandioca de mesa, que pode ser consumida tranquilamente, pois não é tóxica. EXPLICANDO O ácido cianídrico presente na mandioca brava (Manihot esculenta) ataca o sistema nervoso central e pode causar sintomas como vertigem, taquipneia, pulsação fraca, cefaleia, arritmia cardíaca, convulsões, vômitos e pode levar ao coma e à morte. Uma menor exposição pode causar tontura, falta de ar, indisposição e dores de cabeça. A exposição prolongada pode causar algumas doenças como a neuropatia tropical atáxica (NTA) que causa perda gradual da coordenação motora, da audição, da visão e sensorial; konzo, que causa uma paralisia súbita e irreversível nas pernas; bócio e hipertireoidismo. COZINHA BRASILEIRA 42 Figura 3. Tipiti. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 03/03/2020. A Figura 3 mostra a imagem do tipiti, uma prensa cilíndrica feita de palha pelos indígenas para extrair o caldo da mandioca ralada, matéria prima do tucupi. O tucupi é o sumo extraído da mandioca brava ralada, espremida no tipiti. Esse caldo é mantido em repouso e o que se deposita no fundo é a goma que seca, formando o polvilho. O caldo restante é cozido para eliminar o ácido cianídrico e temperado com chicória do Pará e pimenta de cheiro, acondicionado em garrafas, geralmente PET, e vendidos para o preparo de pratos como pato no tucupi e tacacá. O tucupi, quando é reduzido, ganha coloração escura e é chamado de tucupi negro, de aparência semelhante ao molho shoyu ou vinagre balsâmico. Para se obter meio litro, são necessários 10 litros do tucupi tradicional. A mandioca espremida é levada ao forno para virar farinha. A Figura 4 mostra o tucupi comercializado em Belém do Pará. Figura 4. Tucupi comercializado em Belém do Pará. Fonte: Shutterstock. Acesso em: 03/03/2020. As folhas da mandioca brava, a maniva, que cozinham por uma semana para deixarem de ser toxicas, são matérias-primas para a maniçoba, considerada a “feijoada paraense”. Ela é composta por carnes e miúdos de porco, COZINHA BRASILEIRA 43 acompanhada de arroz e farinha de mandioca. Também é apreciada no Recôncavo baiano. Câmara Cascudo em História da alimentação no Brasil, p. 97, cita como a farinha carimã é feita, também chamada de “farinha d’água”, “farinha de mandioca puba” ou “mandioca mole”: Põem a mandioca com casca e tudo em vasilhas com água ao sol durante 4 a 5 dias até amolecer e a casca afrouxar, largando pelo simples contato. Colocam essa mandioca dentro de um saco, pendurado para escorrer, um a dois dias. Tira-se a massa e espreme-se com a mão, fazendo-se bolinhos oblongos que vão secar numa urupema ao sol. Não se tira, pelo exposto, “goma” da carimã como se tira mandioca ralada. Aproveitam-na toda. Por isso a carimã, a farinha d’água no Maranhão, Pará, Amazonas, é mais forte e substancial. Antes de ser carimã, farinha d’água ou farinha de mandioca puba, é importante lembrar que a massa de puba é a massa obtida da mandioca fermentada, e conforme descrição de Cascudo, fica de quatro a cinco dias com água no sol. Além de dar origem às farinhas citadas, úmidas, ela é ingrediente usada para fazer bolo. Abaixo, vemos a imagem da farinha d’água que possui uma coloração amarelada e possui maior granulometria, e diferentemente da farinha de mandioca comum, essa farinha é muito comum na região norte. Figura 5. Farinha d’água. Fonte: Adobestock. Acesso em: 03/03/2020. Cada região brasileira tem sua preferência ou maneira de preparar sua farinha de mandioca. Além das já citadas, no Recôncavo baiano se prepara a farinha de copioba, levemente amarelada, fininha e mais crocante que a farinha comum, pois possui quase 10% menos teor de umidade. Sua coloração amarela pode ser artificial ou cúrcuma. Na Amazônia, muito se aprecia a farinha de Uarini e sua produção é muito parecida com a farinha d’água. A diferença entre elas é que COZINHA BRASILEIRA 44 antes da farinha de Uarini ser seca, ela é “boleada” para ficar redondinha como ovinhas e depois é torrada. A farinha de Cruzeiro do Sul é produzida no Acre e em 2019 virou patrimônio cultural. Ao contrário das farinhas d’água e de Uarini, a mandioca não fermenta e uma série de cuidados são tomados para que isso não ocorra na produção. Caso aconteça a fermentação, a produção é perdida. A farinha é granulada e seu sabor é levemente adocicado. Cada região tem sua preferência e no Sul e Sudeste a farinha mais fina e seca faz mais sucesso. A farinha de mandioca está presente em todas as regiões brasileiras e é base na alimentação desde que os povos nativos dominaram seu preparo. Fez parte da mesa dos colonizadores e dos africanos escravizados, do rico e do pobre, acompanhando os mais tradicionais pratos típicos e originando novos pratos. Muitos dos pratos feitos com a farinha de mandioca encontram na farinha de milho uma boa alternativa
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