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Parte 03 - GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS

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Parte 3
GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS E
GESTÃO DO USO DO SOLO
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Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
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Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
O ZONEAMENTO ECOLÓGICO-ECONÔMICO E A GESTÃO DOS
RECURSOS HÍDRICOS
Herbert O. R. Schubart
1. Água, espelho da vida
A água representa, ao lado da energia solar, um dos requisitos essenciais
para a vida na Terra. De fato, a maior parte da massa dos organismos vivos é
constituída de água e sua nutrição e suas excreções se dão sob a forma de
soluções aquosas. Não admira, portanto, que o clima seja um dos fatores
importantes na distribuição geográfica dos tipos de vegetação e dos seres vivos
em geral sobre os continentes. Por exemplo, a distribuição das florestas pluviais,
dos cerrados e das caatingas no Brasil correlaciona-se com o total de precipitação
anual e com a duração da estação seca (Goodland e Irwin, 1977).
O estoque de água no planeta Terra é de 1.385.984 mil km³, dos quais
97,5% são águas salgadas e apenas 2,5% são águas doces. Estas ocorrem sob
a forma de neve permanente e geleiras (68,7%); de aqüíferos subterrâneos
(30,1%); na umidade do solo, pântanos, permafrost e na atmosfera (0.97%); e
apenas 0,27% nos lagos e rios, e 0,003% na composição dos seres vivos
(Shiklomanov, I. A. apud Cohen, 1995: 300). A energia solar é essencial,
também aqui, para manter em movimento o ciclo da água na Terra, causando
a evaporação da água dos oceanos, rios e lagos e a transpiração das plantas e
animais. O vapor gerado é transportado por correntes de convecção para a
alta atmosfera, onde se condensa e se precipita sob a forma de chuvas e neves
sobre os continentes, mantendo a umidade do solo, essencial para as plantas,
e abastecendo os rios, lagos, geleiras e lençóis freáticos e os aqüíferos do
subsolo. Eventualmente, toda essa água, quando não é armazenada, evaporada
ou transpirada, escoa para os oceanos por gravidade.
A água também é um poderoso solvente e reagente químico,
desempenhando papel fundamental nos processos de intemperismo dos
minerais da crosta terrestre, de lixiviação dos solos e de transporte de sais
minerais em solução. A água, portanto, é um dos mais importantes vetores de
transformação da superfície terrestre, alterando física e quimicamente as rochas
e transportando, por gravidade, partículas em suspensão e sais minerais em
solução para os fundos de vale, lagos, mares e oceanos.
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Desafios da Lei de Águas de 1997
As paisagens resultantes desse processo de alteração das rochas dependem,
também, de outros fatores, como dos tipos de rochas, da vegetação, do clima e,
em escala crescente, da ação humana. As rochas podem ser mais ou menos friáveis,
ou mais ou menos quimicamente reativas, resistindo diferencialmente à ação
erosiva da água, dando origem às mais distintas e às vezes espetaculares formas
de relevo, como os “pães-de-açúcar”, “inselbergs”, chapadas, cavernas, vales
encaixados, planícies etc. A vegetasção, por sua vez, ao mesmo tempo que depende
da água controla o fluxo da água na superfície da terra. As plantas, por meio da
fotossíntese, produzem a matéria orgânica que constitui a base das cadeias
alimentares dos animais e dos microrganismos decompositores. Nos ecossistemas
terrestres, a interação ao longo do tempo e sob condições climáticas determinadas,
entre os seres vivos, as rochas e o relevo, dá origem aos diversos tipos de solo. A
água, vale insistir, desempenha papel essencial nesse processo. Dependendo do
porte da vegetação, do relevo e do clima, a chuva que se precipita em determinada
área é em parte interceptada pela folhagem, evaporando-se em seguida; em parte
atinge o solo e se infiltra no mesmo; ou pode escoar pela superfície. Boa parte da
água que se infiltra no solo é absorvida pelas raízes no processo de nutrição das
plantas e retorna à atmosfera pela transpiração das mesmas. Na Amazônia, por
exemplo, até cerca de 55% das chuvas são recicladas na região pela
evapotranspiração da floresta (Salati, 1987).
A sociedade humana, finalmente, modifica as paisagens, intervindo de
diversas formas no ciclo hidrológico, substituindo a vegetação natural pela
Figura 1 *
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Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
agricultura, desviando grandes quantidades de água para a irrigação,
construindo barragens nos rios, drenando áreas úmidas ou usando os rios e
lagos para diluir esgotos urbanos ou efluentes industriais, entre outras
atividades. Com efeito, a humanidade utiliza hoje 26% da evapotranspiração
terrestre total e 54% do escoamento superficial acessível no espaço e no tempo.
O aumento do uso da evapotranspiração é limitado pelo fato da maior parte
das terras adequadas para a agricultura não irrigada já estarem em produção.
A construção de novas barragens poderia aumentar em 10% o acesso ao
escoamento superficial nos próximos 30 anos, enquanto a população está
projetada para aumentar mais de 45% no mesmo período (Postel et al. 1996)
Conclui-se que a água, além de representar um recurso essencial para a
vida e a sociedade humana, também representa um denominador comum em
qualquer análise e avaliação do meio ambiente e dos recursos naturais terrestres
e aquáticos de uma região (Postel e Carpenter, 1997). Isto significa dizer que
a gestão dos recursos hídricos, com vistas a garantir o suprimento de água em
quantidade e qualidade suficientes para atender às necessidades da sociedade,
deve ser conduzida de forma sistêmica (Fig. 1), considerando as interações
entre as intervenções humanas e o meio natural no âmbito das bacias
hidrográficas.
O zoneamento ecológico-econômico (ZEE) é um instrumento de
informação sobre o território que pode dar suporte a esta análise. O ponto que
procurarei defender neste trabalho é que o ZEE não só representa um
instrumento potencialmente interessante para a gestão dos recursos hídricos,
mas também que esta pode vir a dinamizar o ZEE pelo sentido de problema
fornecido pelo foco temático água.
2. Conceito e aspectos metodológicos do zoneamento ecológico-
econômico
Zoneamento é o ato ou efeito de dividir um território por zonas, segundo
objetivos e critérios predeterminados. O termo ‘zoneamento’ encerra duas
conotações que devem ser reconhecidas e mantidas em separado quando se
conceitua o zoneamento ecológico-econômico. Em primeiro lugar, zoneamento
denota o resultado técnico de uma descrição, análise e classificação em zo-
nas, de um dado território, consoante critérios predeterminados. Em segundo
lugar, zoneamento envolve o resultado de um processo político-administrativo,
em que o conhecimento técnico, ao lado de outros critérios, é utilizado para
fundamentar a adoção de diretrizes e normas legais, visando atingir objetivos
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Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
socialmente negociados, que implicam em um conjunto de sanções ou
incentivos sociais que restringem o uso de recursos e a ocupação do território.
Na prática do planejamento urbano, o termo zoneamento tem uma forte
conotação normativa, como se pode depreender da literatura sobre o direito
ambiental. “O zoneamento é um instrumento jurídico de ordenação do uso e
ocupação do solo” (Silva, 1998: 181). Ou então, “o zoneamento consiste em
dividir o território em parcelas nas quais se autorizam determinadas atividades
ou interdita-se, de modo absoluto ou relativo, o exercício de outras atividades”
(Machado, 1992: 96). Essa tradição jurídica, derivada do direito urbano,
confere ao termo zoneamento um aspecto aparentemente negativo, que sempre
diz não, e que estaria na origem de resistências freqüentemente observadas
em relação a este instrumento (Nitsch, 1994). Entretanto, este aspecto foi
ponderado por R. F. Babcock (1966: 65), quando apontou que o zoneamento,
se é ‘contra’ para alguns, é também ‘afavor’ para outros, explicitando assim
o caráter conflituoso das questões abordadas no processo de zoneamento,
recorrentes em qualquer processo de gestão territorial.
O zoneamento ecológico-econômico (ZEE) consiste na divisão do
território por zonas que podem ser denominadas de ecológico-econômicas,
delimitadas segundo critérios ecológicos e ambientais, e sócio-econômicos
(Becker e Egler, 1997). Direcionado para o planejamento regional (não apenas
urbano), o ZEE se configura essencialmente como um mapeamento não
prescritivo das limitações ecológicas, dos recursos naturais, dos vetores sócio-
econômicos e do uso do solo, a partir do qual se podem derivar alternativas
de ação para orientar o poder público na gestão do território. Malgrado sua
denominação de ‘zoneamento’, com as implicações normativas apontadas
acima, o ZEE tem mais afinidade com o que é chamado, nos países de língua
inglesa, de ‘land use planning’ do que com o que é chamado de ‘zoning’.
Entretanto, é necessário enfatizar que a motivação para o ZEE é política e o
mesmo só faz sentido se conduzido no contexto de um arcabouço político-
administrativo voltado para a gestão territorial.
Sob este prisma, o ZEE pode ser definido como a avaliação estratégica
dos recursos naturais, sócio-econômicos e ambientais, fundamentada no
inventário integrado desses recursos em um território determinado, com a
finalidade de prover o Poder Público e a sociedade de informações
georreferenciadas para orientar o processo de gestão territorial.
Infelizmente, persiste uma forte tendência, no discurso e na prática do
ZEE, de se visualizar seu resultado sob a forma de uma lei de zoneamento,
que estabeleceria de modo monolítico o que se pode e o que não se pode fazer
em diferentes zonas de um território, geralmente de grande extensão. Esta
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e Gestão do Uso do Solo
concepção normativa do ZEE, nesta escala de abrangência, é errônea e
totalmente contraproducente, tendo sido corretamente criticada por (Nitsch,
1994) no caso do zoneamento de Rondônia, concluído em 1988. O mesmo
procedimento também foi adotado em Mato Grosso, com relação ao
zoneamento de todo o Estado. Estes zoneamentos constituem componentes
de programas de desenvolvimento agroflorestal dos dois estados – Planafloro
e Prodeagro, respectivamente – financiados pelo Banco Mundial.
2.1 Aspectos metodológicos do ZEE
O ZEE, portanto, é um dos instrumentos do planejamento regional. Sua
finalidade é gerar informações territoriais para orientar, ao lado de outros critérios,
o sistema político-administrativo em suas decisões sobre o uso dos recursos
naturais e a ocupação do espaço de uma região determinada. O processo de
conciliação das políticas públicas setoriais, necessário para raciona-lizar o uso
dos recursos e a ocupação do espaço, constitui a essência da gestão do território,
cujo resultado é o ordenamento territorial. Como tal, o ZEE pode ser caracterizado
como um instrumento (a) técnico, de informação sobre o território, para avaliar
suas vulnerabilidades naturais e potencialidades sócio-econômicas; (b) político,
de regulação do uso do território, onde a negocia-ção entre os diversos níveis e
setores do governo, o setor privado e a sociedade civil tem papel essencial; (c) do
planejamento e da gestão do território para o desenvolvimento regional sustentável,
onde alternativas competitivas de uso dos recursos naturais são identificadas
(Becker e Egler, 1997; Schubart, 1994).
O ordenamento territorial é o resultado de um processo dinâmico de gestão
do território, liderado pelo poder político, tanto o poder constituído – o governo
– quanto o poder dos diversos setores sociais e grupos de interesse que integram
o próprio governo, a iniciativa privada e a sociedade civil organizada. A motivação
para a tomada de decisão em questões que afetam a ocupação do espaço e o uso
dos recursos naturais deriva de um processo de adaptação da sociedade na busca
de meios para a sobrevivência, em face de um aumento da demanda, resultante
do crescimento populacional, da distribuição desigual dos meios ou de mudanças
nos padrões de consumo da sociedade. Este processo de adaptação da sociedade
caracteriza o desenvolvimento econômico em sua concepção mais básica
(Wilkinson, 1974). A motivação para a decisão deriva ainda da busca de soluções
para problemas ambientais induzidos pela atividade econômica, que põem em
risco a manutenção dos processos produtivos e a qualidade de vida humana,
neutralizando eventualmente os benefícios iniciais obtidos pelo desenvolvimento
econômico.
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A Fig. 2 esquematiza este processo abrangente de gestão do território.
A tomada de decisões pelo poder político sobre os recursos naturais e a
ocupação do espaço gera uma configuração territorial (ordenamento), que
por sua vez, pode modificar as forças políticas, realimentando o processo. A
figura também situa o ZEE no contexto desse processo, evidenciando seu
papel como instrumento de informação sobre o território. Nesta figura, as
etapas de elaboração do ZEE são representadas, metaforicamente, como a
aplicação de distintos ‘filtros’, ou crivos, na análise e interpretação do
território. Como observaram Becker e Costa Gomes (1993: 149), é a cultura
humana “que fornece as lentes conceptuais através das quais são lidos e
interpretados o papel e a importância do ambiente natural como elemento de
realização social”. O território pode ser examinado e dividido pela ótica da
sua vulnerabilidade natural, de suas potencialidades sócio-econômicas, da
legislação atual e mesmo do próprio poder político.
Em primeiro lugar serão considerados os ‘filtros’ relativos às
vulnerabilidades naturais e às potencialidades sócio-econômicas, os quais,
ordenados segundo dois eixos ortogonais (Fig. 3), são usados na delimitação
das zonas ecológico-econômicas.
1) Critérios naturais. O critério natural adotado no roteiro
metodológico para a execução do ZEE pelos estados da Amazônia Legal
(Becker e Egler, 1997), e representado no eixo das abcissas no gráfico (Fig.
3), é a vulnerabilidade natural das unidades de paisagem à erosão. Este aspecto
da metodologia de ZEE foi desenvolvido pela equipe do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais – INPE, em cooperação com a Secretaria de Assuntos
Figura 2 *
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e Gestão do Uso do Solo
Estratégicos da Presidência da República – SAE-PR, que na época coordenava
o ZEE (Crepani et al. 1996).
Trata-se de um indicador agregado, que integra avaliações sobre
o substrato geológico, sobre o relevo, os solos, a vegetação e o clima, obtidas
pela análise de imagens TM-Landsat, composição colorida 5 (vermelho), 4
(verde) e 3 (azul), e que permite uma visão sinóptica e holística da paisagem,
segundo os princípios da ecodinâmica, desenvolvidos por J. Tricart (1977).
A análise e interpretação destas imagens é feita pelos padrões fotográficos,
delimitados segundo as variações de cores, textura, forma, padrões de drenagem
e relevo. A vulnerabilidade das unidades
de paisagem é estabelecida por uma escala
de valores, de acordo com a relação entre
a mor-fogênese e a pedogênese, variando
entre 1 (predomínio da pedogênese, meios
es-táveis) e 3 (predomínio da morfogênese,
meios instáveis), perfazendo um total de
21 classes, que podem ser representadas
por uma gradação de cores (do azul até o
vermelho) nos mapas resultantes (Crepani
et al. 1996; 1998). Observe-se que a
quantidade e a distribuição sazonal da
água, como um dos elementos do clima,
desempenha um papel essencial nesta
avaliação.
O mérito deste indicador consiste na relativa facilidade com que
é obtido. A partir da análise integrada de uma imagem de satélite, por uma
equipe multidisciplinar de especialistas com experiência na região sob estudo,
o método permite chegar rapidamentea uma classificação das unidades de
paisagem segundo sua maior ou menor fragilidade natural à erosão,
dispensando inicialmente estudos de campo mais detalhados sobre a
capacidade de uso dos solos para a agricultura, por exemplo.
2) Critérios sócio-econômicos. No segundo eixo, das ordenadas,
representa-se outro indicador extremamente agregado: a potencialidade sócio-
econômica das unidades territoriais. Este indicador é avaliado pela relação
entre fatores dinâmicos e fatores restritivos do desenvolvimento sócio-econômico,
levando em conta variáveis econômicas, sociais e políticas, a partir de quatro
grupos de parâmetros considerados como componentes básicos para o
desenvolvimento sustentável: i) potencial natural; ii) potencial humano; iii)
potencial produtivo; e iv) potencial institucional.
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Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
i) Potencial natural. Uma inovação na metodologia do ZEE proposta
por Becker e Egler (1997) é considerar o potencial natural das unidades
territoriais, caracterizado pela disponibilidade de uma base de recursos
naturais, no cômputo do indicador de potencialidade sócio-econômica.
Aspecto, aliás, já apontado por P. R. Haddad (1980: 63) “...o conceito
de potencial de recursos é econômico e não físico”. De fato, tomando-
se como exemplo o recurso solo, tem-se que sua aptidão agrícola,
embora determinada em primeiro lugar por fatores do meio natural,
como o relevo, o clima, a disponibilidade natural de nutrientes minerais,
a capacidade de troca de cátions e de retenção de água, é um conceito
que só faz sentido sob o viés pragmático da sociedade humana. Ou
seja, no mundo natural os solos são como são, apenas existem, e pronto.
A agricultura – “conjunto de operações que transformam o solo natu-
ral para produção de vegetais úteis ao homem” (Dicionário Aurélio,
Ed. Nova Fronteira, 1986) – é uma atividade humana, e apenas sob a
perspectiva cultural da espécie faz sentido o conceito de aptidão
agrícola. Inclusive, ao longo da história humana, a produtividade
agrícola dos solos vem sendo manipulada pela sociedade a seu favor,
por meio de inovações tecnológicas como a adubação química, o
combate às pragas, a irrigação, o cultivo mínimo, etc., ou então pela
seleção de cultivares de plantas melhor adaptados às condições
inicialmente restritivas do ambiente. A atual polêmica sobre as plantas
transgênicas, por exemplo, se insere neste contexto.
O mesmo argumento é válido para os demais recursos naturais (o próprio
conceito de recurso natural já é esclarecedor sob este aspecto: “fontes
de riquezas materiais que existem em estado natural, tais como florestas,
reservas minerais, etc.” Dicionário Aurélio, Ed. Nova Fronteira, 1986).
Entre estes recursos, contam-se os recursos florestais (madeiras e outros
produtos extrativos, como castanhas, óleos, látices etc.), recursos
minerais, recursos da biodiversidade e recursos hídricos (incluindo água
para abastecimento, para uso industrial, para irrigação, para diluição
de efluentes industriais e municipais, para geração hidrelétrica, bem
como para transporte hidroviário, para a pesca e o lazer).
Em síntese, a disponibilidade de uma base de recursos naturais
renováveis e não-renováveis, inclusive a água, é um fator positivo para
o desenvolvimento sócio-econômico. Entretanto, é necessário ainda
levar em conta o acesso social aos recursos naturais, que pode ser
avaliado, por exemplo, pelo índice de concentração fundiária (Índice
de Gini). Um elevado índice de concentração é considerado um fator
restritivo no caso do potencial natural.
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e Gestão do Uso do Solo
ii) Potencial humano. Este bloco de indicadores diz respeito à qualidade
de vida humana propriamente dita, expressa pelo acesso à educação, à
saúde, ao emprego e aos serviços coletivos, especialmente ao
abastecimento de água e ao saneamento. Estes índices geralmente estão
associados ao nível de urbanização, de tal modo que este fator é
considerado positivo para o desenvolvimento das populações, desde
que atendidos os serviços básicos mencionados.
iii) Potencial produtivo. Estes indicadores relacionam-se mais
diretamente com o desenvolvimento econômico, na medida em que
incluem a rentabilidade da produção do setor rural, a dinâmica do setor
urbano-industrial, a capacidade financeira da rede bancária local, bem
como o acesso às redes de circulação, incluindo hidrovias, aerovias,
rodovias e ferrovias. A dimensão e a diversificação da estrutura
produtiva implantada constituem fator positivo na avaliação do potencial
sócio-econômico, ponderado por sua capacidade de gerar empregos e
renda para a população local e de absorver inovações.
iv) Potencial institucional. Finalmente, este último bloco de parâmetros
e indicadores caracteriza o nível de organização social, fator positivo
para a avaliação do potencial sócio-econômico, expresso pela presença
de instituições governamentais e não-governamentais e potencializado
pelo grau de efetiva autonomia e prática social.
À semelhança da vulnerabilidade natural à erosão, os valores do
potencial sócio-econômico variam entre 1 (prevalecem os fatores restritivos;
potencial baixo) e 3 (prevalecem os fatores dinâmicos, positivos; potencial
alto), podendo ser subdivididos em classes, geralmente cinco: baixo,
moderadamente baixo, médio, moderadamente alto e alto, que podem ser
representadas por gama de cores para fins de mapeamento.
A interseção das cartas temáticas de vulnerabilidade natural e de
potencialidade sócio-econômica, por meio do uso de sistemas de informação
geográfica, delimita as zonas ecológico-econômicas segundo níveis de
sustentabilidade de uso do território (Fig. 2). Este resultado ainda não é por si
mesmo o ZEE, uma vez que outro ‘filtro’ muito importante, representado
pelo conjunto da legislação atual incidente sobre a ocupação do território,
deve ser considerado.
Por exemplo, o Código Florestal define como áreas de preservação
permanente as florestas situadas às margens dos rios e lagos, nas nascentes,
ou ainda em situações determinadas por critérios topográficos; as florestas
ou demais formas de vegetação natural destinadas a atenuar a erosão das
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Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
terras. Estabelece ainda áreas de Reserva Legal, como um percentual de
florestas nos imóveis rurais, imune ao corte raso e assim por diante. A
Constituição Federal cria a faixa de fronteira e estabelece critérios para a
demarcação de áreas indígenas. Outras áreas especiais, como os parques
nacionais e demais unidades de conservação, são criadas por leis ou decretos
federais, estaduais ou municipais.
Após o cruzamento dessas informações com as zonas ecológico-
econômicas, sobre uma base cartográfica comum, chega-se a uma carta de
subsídios à gestão territorial, que pode ser considerada como a conclusão da
etapa técnica do ZEE. Trata-se da representação cartográfica de uma base de
dados digitalizados e georreferenciados, numa escala adequada, a partir dos
quais, além de identificar conflitos de uso de recursos, podem-se desenvolver
cenários alternativos de desenvolvimento regional, para avaliar as necessidades
de conservação de recursos, de proteção da biodiversidade, de recuperação
de áreas degradadas, de expansão e consolidação de potencialidades
econômicas, etc.
Esta carta classifica o território em: (1) Áreas produtivas ,
caracterizadas por uma baixa vulnerabilidade natural à erosão, e que podem
ser de (a) consolidação ou fortalecimento do desenvolvimento humano, ou
(b) destinadas à expansão do potencial produtivo, dependendo do nível de
potencialidade social observado. (2) Áreas críticas, caracterizadas por elevada
vulnerabilidade natural à erosão, e que podem ser objeto de (a) conservação,
quando ainda pouco ocupadas (baixo potencial social) ou de (b) recuperação,
quando se observauma incongruência entre o potencial social elevado e a
alta vulnerabilidade natural. (3) Áreas institucionais, (a) de preservação
permanente, como as unidades de conservação de uso indireto, ou as áreas
assim determinadas pelo Código Florestal, (b) de uso restrito ou controlado,
como reservas indígenas e extrativistas, e (c) de interesse estratégico nacional,
como as áreas de fronteira (Becker e Egler, 1997).
É necessário deixar claro que esta classificação não é prescritiva, ou
seja, não é o ordenamento territorial. Ela também não determina ex natura o
que deve ser feito no território. Como um subsídio à gestão do território, ela
se submete ao ‘filtro’ representado pelo poder político (Fig. 2). Os recursos
naturais e ambientais disponíveis no território, a exemplo da terra agricultável,
dos minerais, da água, das florestas e, hoje em dia, cada vez mais, da
biodiversidade, constituem a base de sustentação biológica, econômica e
espiritual da vida humana no planeta. Em qualquer região específica, portanto,
o território é objeto de interesses privados e públicos, fonte de poder e objeto
de poder. Por esta razão, o poder político sempre preponderou na tomada de
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e Gestão do Uso do Solo
decisão sobre a ocupação do território e o uso dos seus recursos,
independentemente da existência explícita de uma base de informação que
aumentasse a racionalidade do processo decisório. O poder político, portanto,
é a instância que seleciona (ou não!) as alternativas compiladas pelo ZEE e,
por intermédio de diretrizes e normas legais negociadas, as implementa sob a
forma de políticas públicas, que irão configurar o ordenamento territorial.
Essas políticas públicas e seus efeitos sobre o território, por sua vez, atuam
sobre a composição de forças do poder político, realimentando de modo
dinâmico todo o ciclo.
Um exemplo hipotético servirá para ilustrar o caráter não prescritivo
da carta de subsídio à gestão do território. A carta pode indicar uma área com
solos férteis, elevada aptidão agrícola e que, ao mesmo tempo, abriga uma
espécie rara de primata. O que fazer nesse caso? A metodologia do ZEE em si
não tem resposta a essa pergunta, e muito menos determina o que deve ser
feito. O desfecho desta situação será o resultado de uma decisão política da
sociedade, sempre associada a custos e benefícios reais, tanto públicos como
privados, geralmente distribuídos de forma desigual entre os vários grupos
de interesse ou atores sociais envolvidos. A metodologia do ZEE, neste caso,
contribuiria com informações sobre a importância biológica da área, sobre as
pressões existentes no sentido de converter a floresta em área cultivada, etc.
Tragicamente, essas decisões com relação à biodiversidade, à proteção do
meio ambiente e ao uso sustentável de recursos naturais são muitas vezes
tomadas por omissão, quase sempre na ausência de informações. Uma situação
real, envolvendo conflitos de interesse entre madeireiros, ecologistas e
comunidades indígenas, é descrita por D. Oren (1988), no caso da criação da
Reserva Biológica de Gurupi, no Maranhão.
Ainda nesse contexto, observa-se que no discurso e na prática do ZEE
encontram-se, com freqüência, idéias antropocêntricas sobre a ‘vocação’ de
uma região, ou dos ecossistemas, ou do solo, para tais ou quais finalidades. A
função do ZEE consistiria na determinação dessas ‘vocações’, por meio do
estudo detalhado do objeto natural em questão (cf. Ab’Sáber, 1989: 4; Diegues,
1989: 35; Lanna, 1997: 6). Este aspecto recorrente em documentos sobre o
ZEE tem sido criticado, com razão, por M. Nitsch (1994), ao analisar o
zoneamento de Rondônia. Esse autor fundamenta sua crítica no que ele chama
de falso ‘holismo’, que implicitamente tende a deduzir o dever dos homens a
partir do ser do ‘ecossistema’ ou do ‘sistema ambiental’, ignorando as opções
da sociedade moderna, baseadas no uso da energia fóssil e de outros recursos
minerais não renováveis, nos mercados mundiais, nos meios de comunicação,
etc., que faz do território apenas um dos fatores, e não o mais importante, que
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Desafios da Lei de Águas de 1997
determina o que se faz sobre o mesmo. “Nenhum lugar da terra tem a ‘vocação’
de ser asfaltado”, ironiza M. Nitsch.
Entretanto, malgrado a facilidade com que se pode resvalar para uma
linguagem antropocêntrica, que projeta nos sistemas naturais características
determinantes do que se deve ou não se deve fazer em determinado lugar
(uma forma de determinismo ecológico), o que se busca com o ZEE é avaliar
os sistemas naturais sob a ótica pragmática da sociedade, quer sob a forma de
potencialidades econômicas diretas, derivadas da extração, uso ou conservação
de recursos naturais, quer sob o aspecto moderno da avaliação dos serviços
ambientais dos ecossistemas, que representa uma forma de valoração
econômica indireta da Natureza (Costanza et al., 1997; Daily, 1997; Seroa da
Motta, 1998).
3. Interfaces entre o zoneamento ecológico-econômico e a gestão
das águas
A Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela lei 9.433, de 8
de janeiro de 1997, apresenta diversas e nítidas interfaces com a gestão do território
e, portanto, com o zoneamento ecológico-econômico, tanto nos seus fundamentos,
objetivos e diretrizes, quanto nos sistemas de gestão de recursos hídricos e seus
instrumentos, que estabelece.
Nos seus fundamentos, objetivos e diretrizes, a Política estabelece a bacia
hidrográfica como unidade territorial de sua implementação e de atuação do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; a utilização racional
e integrada da água, que garanta a sustentabilidade do desenvolvimento e o
compromisso com a atual e as futuras gerações; a gestão sistemática dos recursos
hídricos, não dissociando os aspectos de quantidade e qualidade; a adequação da
gestão às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e
culturais das regiões do País; a integração da gestão dos recursos hídricos com a
gestão ambiental; a articulação do planejamento de recursos hídricos com o dos
setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional; a articulação
da gestão da água com a do uso do solo; e, finalmente, a integração da gestão das
bacias hidrográficas com a dos estuários e sistemas costeiros.
A Política estabelece, ainda, como ação do Poder Público, na esfera dos
Poderes Executivos Federal, Estaduais e do Distrito Federal, a promoção da
integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental; e, no caso dos
municípios e do Distrito Federal, a integração da políticas locais de saneamento
básico, de uso, ocupação e conservação do solo e do meio ambiente com as
políticas federal e estaduais de recursos hídricos.
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Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
De fato, como vimos na introdução, a água doce permeia todos os
sistemas ecológicos terrestres, e sua gestão como um recurso essencial para a
sociedade humana e fator de manutenção dos ecossistemas e da vida tout
court, tem que levar em conta suas interações com os sistemas naturais e
sócio-econômicos, no âmbito das bacias hidrográficas.
A gestão do território, por sua vez, atua na interseção de diferentes
políticas setoriais numa mesma área, na busca socialmente negociada de uma
distribuição ótima das atividades econômicas, da conservação do capital natu-
ral e da manutenção dos serviços dos ecossistemas, inclusive no que tange à
estabilidade da produção de água em quantidade e qualidade. A Fig. 4
esquematiza as interfaces entre algumas dessas políticas setoriais, indicando
a posição central do ZEE como um instrumento de ordenamento.
Nesse contexto, vale a pena resgatar o conceito de Gerenciamento de
Bacia Hidrográfica (GBH) oferecido por A. E. Lanna (1995), calcado na
definição de desenvolvimento sustentável da Comissão Mundial de Meio
Ambienteda ONU, que, ressalvada sua limitação às bacias hidrográficas,
guarda uma notável semelhança com o conceito de gestão do território
apresentado neste trabalho: “GBH – processo de negociação social, sustentado
por conhecimentos científicos e tecnológicos, que visa a compatibilização
das demandas e das oportunidades de desenvolvimento da sociedade com o
potencial existente e futuro do meio ambiente, na unidade espacial de
intervenção da bacia hidrográfica, no longo prazo”.
É necessário destacar que o Gerenciamento de Bacia Hidrográfica é distinto
do Gerenciamento de Recursos Hídricos, que é o gerenciamento de um só recurso
ambiental – a água –, objetivando conciliar as demandas e a oferta no âmbito de
uma bacia hidrográfica (Lanna, 1995).
Uma representação do Gerenciamento
dos Recursos Hídricos no contexto de
uma matriz de Gerenciamento de
Bacia Hidrográfica (Lanna, 1995), na
qual as colunas representam o
gerenciamento dos diferentes usos
setoriais da água (e dos demais
recursos ambientais, no caso geral),
e as linhas, o gerenciamento da oferta
da água, em qualidade e quantidade
(e dos demais recursos, no caso
geral), evidencia a importância que
o ZEE pode vir a ter nesse processo.
Figura 4 *
168
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
De fato, a seqüência desse processo de gerenciamento de recursos
hídricos é o Gerenciamento das Intervenções na Bacia Hidrográfica, que vem
a ser a projeção espacial, na bacia hidrográfica, do cruzamento entre as colunas
(usos setoriais) e a linha referente ao recurso ambiental água, da matriz
mencionada acima. Essa projeção espacial visa (1) conciliar os planos setoriais
oriundos do gerenciamento dos usos setoriais dos recursos hídricos na bacia
e os planos multissetoriais de uso dos recursos hídricos; e (2) integrar as
instituições, agentes e representantes da comunidade, atuantes na bacia em
relação ao planejamento do uso dos recursos hídricos e dos demais recursos
ambientais. Tal função deve ser atribuição de uma única entidade para cada
bacia (Lanna, 1995).
A interface entre o ZEE e a gestão das águas também pode ser constatada
na problemática das enchentes e do seu controle, a exemplo dos trabalhos
que vêm sendo desenvolvidos na bacia do Rio Itajaí, em Santa Catarina. Como
afirma B. Frank (1995), “As medidas que visam a atenuar as enchentes ou
seus efeitos têm sido propostas isoladamente, e conduzidas nos moldes da
ação setorial, como se o fenômeno enchente pudesse ser considerado de modo
independente da constituição física e da ocupação humana em toda a extensão
da bacia hidrográfica. Os benefícios alcançados com as obras acabam atingindo
níveis aquém dos esperados, justamente devido à perspectiva reducionista
com que o problema tem sido tratado”.
Para circunscrever analiticamente o problema, a autora lança mão de
um modelo de sistema sócio-econômico-ecológico regional (Fig. 5),
desenvolvido no Programa MAB da Suíça, no qual a intermediação entre o
sistema sócio-econômico e o sistema natural é feita por “uma variável
fisicamente palpável: a estrutura concreta de uso do solo da área estudada”
(Messerli, P. 1986 apud Frank, 1995). No caso, a relação homem-ambiente
“se reflete e concretiza nas formas de uso e ocupação do solo”, que é, então,
“a variável a ser otimizada entre as metas estabelecidas para o sistema natural
e para o sistema social” (Frank, 1995). Constata-se aqui o grande interesse que
este modelo apresenta para o ZEE.
Em seguida, a autora discute o dilema da abordagem sistêmica, quando
aplicada a uma situação empírica complexa. Para ser útil, o sistema deve
considerar apenas as relações mais importantes como representação da
realidade, o que depende do ponto de vista sob o qual o sistema é analisado,
ou seja, do objetivo do estudo. O dilema consiste nas opções de produzir
muito conhecimento pouco relevante, ou fornecer uma compreensão
abrangente de uma estrutura de relações, sob um ou poucos pontos de vista
(Frank, 1995). Conclui-se deste raciocínio que a alternativa mais promissora
169
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
ao se trabalhar com um sistema sócio-econômico-ecológico regional é fazer
pesquisa orientada para o problema ecológico, abandonando a pretensão de
atingir a compreensão total do sistema, o que não significa simplificar o
problema ou reduzi-lo (Frank, 1995).
O interesse dessa abordagem é a possibilidade de conduzir a pesquisa
como um encadeamento de indagações (proposições de pesquisa) a partir de
uma indagação inicial (no caso do vale do Rio Itajaí, esta indagação é se
ocorreu ou não um agravamento das enchentes ao longo do tempo; o que leva
a considerar as transformações do sistema, dando origem a outras perguntas,
e assim por diante). Este método de formulação de proposições de pesquisa
contorna a etapa dos diagnósticos tão usuais nas metodologias de planejamento.
No lugar do levantamento de muitas informações, às vezes, desnecessárias, a
pesquisa é dirigida para responder questões específicas, previamente
delimitadas pelo pesquisador, em função de seu conhecimento da área de
estudo (Frank, 1995). Este aspecto tem sido apontado também por P. R. Haddad
(1980: 54): “Há uma tendência muito generalizada na experiência brasileira
de planejamento em se realizarem diagnósticos longos, não-analíticos e
desnecessários”.
Na aplicação do modelo à situação específica do vale do Rio Itajaí, a
autora realiza, entre outras análises que não serão discutidas neste trabalho,
uma regionalização da bacia orientada por problemas, a partir de um
zoneamento ecológico-econômico resultante da análise conjunta do sistema
natural e do uso do solo pelo sistema sócio-econômico. Um levantamento dos
problemas de uso do solo e a regionalização da bacia, com vistas a gerar
dados para a compreensão do problema das enchentes, completam a análise.
O ponto de interesse aqui é a utilização de um macrozoneamento
ecológico-econômico (ZEE) na análise, entendido “como a setorização [do
espaço geográfico] em unidades de paisagem antrópica”. A autora utilizou a
caracterização do sistema natural na mesma área, e sua setorização em 14
unidades de paisagem, obtida a partir da análise multivariada dos geofatores
solo, água, rocha, clima e vegetação, sob a forma de um macrozoneamento
ecológico da bacia (Adami, R. M. 1995, apud Frank, 1995). O ZEE, por sua
vez, resultou da sobreposição dos dados de uso do solo às unidades de paisagem
natural, usando as mesmas técnicas de análise multivariada e cálculo de
parâmetros da teoria da informação.
Mais adiante, a autora (Frank, 1995) discute este seu conceito de ZEE,
afirmando que “a conceituação de zoneamento ecológico-econômico aqui
empregada difere totalmente daquela sustentada por Lanna (1994), que de-
fine o zoneamento como a ‘identificação de unidades territoriais equipotentes
170
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
e suas alternativas de uso’. Neste sentido o ZEE é o resultado de um processo
de planejamento e que se presta para realizar o ordenamento territorial. O
ZEE desenvolvido no âmbito do presente trabalho constitui um passo ante-
rior. Ele representa a configuração atual de uso e ocupação, incluindo eventuais
problemas decorrentes deste uso (conflitos) e, por isso mesmo, constitui um
insumo importante para o planejamento da bacia” (grifo meu).
Tem-se neste caso um exemplo de zoneamento com a conotação
exclusivamente técnica, mencionada na seção 2, acima. A autora está correta
na constatação que o seu conceito de ZEE constitui um passo anterior no
processo mais abrangente da gestão territorial enunciado por A. E. Lanna
(1994, apud Frank, 1995). E ela demonstra que o ZEE, quando orientado por
um problema concreto, pode contribuir efetivamente para a gestão da água.
Voltando às interfaces do ZEE com a Política Nacional de Recursos
Hídricos, observa-seuma diferença marcante nos aspectos político-
administrativos da gestão das águas e do território. A água doce, por sua
essencialidade na manutenção da vida humana, das plantas e dos animais, por
seu caráter integrador das ciências e do meio ambiente (Davis e Day, 1961),
especialmente quando um dano causado a montante afeta usuários situados a
jusante, e sobretudo por sua má distribuição e escassez relativa na face da
terra, gerando graves conflitos de uso em certas regiões, tem induzido os
homens ao entendimento, desde a Antigüidade. Um exemplo notável é o Tri-
bunal das Águas de Valência, na Espanha, que se reúne na Porta dos Apóstolos
da catedral, e cujos primórdios remontam aos romanos (Liebmann, 1976, il. 37).
Figura 5 *
171
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
O mesmo não acontece com a ocupação do solo. O território e os recursos
naturais que encerra sempre se prestaram mais à instituição da propriedade do
que no caso das águas. E a propriedade é tradicionalmente refratária à gestão
pelo Poder Público, visando o bem comum de toda a sociedade.
Em conseqüência, a gestão territorial se passa num contexto político-
administrativo muito mais disperso do que o arcabouço institucional atingido
pela Política Nacional de Recursos Hídricos. Apesar do ZEE ter sido criado
como um programa coordenado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República – SAE (decreto 99.540, de 21/09/90, que instituiu a
Comissão Coordenadora do Zoneamento Ecológico-Econômico do Território
Nacional), portanto no âmago do Poder Executivo Federal, o mesmo não
conseguiu ultrapassar a etapa técnica, assim mesmo de maneira fragmentada
e dispersa no vasto território do país.
É evidente que novas estratégias devem ser traçadas com relação à gestão
do território e seu instrumento, o ZEE. Com a recente reforma administrativa do
Governo federal, a SAE foi extinta e a condução do programa de zoneamento
ecológico-econômico foi atribuída ao Ministério do Meio Ambiente. O novo
endereço é certamente adequado, tendo em vista a abrangência das políticas
tratadas nesse ministério, relevantes para a gestão do território.
4. Conclusão
O ZEE não é um fim em si mesmo, mas sim um instrumento voltado
para a resolução de conflitos de uso de recursos naturais e de ocupação do
solo, orientado pela busca da sustentabilidade do desenvolvimento. Sob este
prisma, a abordagem sistêmica, guiada pela busca da solução de problemas
definidos, descrita sucintamente acima, parece-me fundamental para dar foco
à gestão do território e dinamizar a condução do ZEE. É necessário evitar os
diagnósticos extensos e demorados, que distanciam a pesquisa das motivações
iniciais, desacreditando todo o processo.
Estas observações sugerem uma ênfase num processo mais descentralizado
de gestão territorial, relegando ao segundo plano o enfoque globalizante que
almeja criar condições para resolver tudo em toda parte, sem chegar a lugar
algum. Isto, porém, não quer dizer que o processo não deva ter direção
estratégica na esfera do Governo federal e dos estados.
As interfaces do ZEE com a gestão dos recursos hídricos são
interessantes nesse contexto, sobretudo no que concerne à experiência dos
Comitês de Bacia e à institucionalização desse e de outros mecanismos
172
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
político-administrativos de gestão, encontrada na Política Nacional de
Recursos Hídricos. Pode-se pensar, por exemplo, nos Comitês de Bacia,
apoiados pela respectiva Agência de Água, gerindo parte do processo de ZEE
da bacia, talvez em articulação com representantes de outras áreas de interesse,
como biodiversidade ou produção agrícola.
Na mesma linha de raciocínio, por que não instituir, à semelhança dos
Comitês de Bacia, comitês de corredor biológico, orientados pelo problema
da proteção da biodiversidade e restauração de áreas degradadas, com vistas
a aumentar a conectividade e o fluxo gênico entre populações de plantas e
animais dos remanescentes de ecossistemas naturais, legalmente protegidos
ou não. Ou então, comitês de eixo nacional de integração, especialmente voltados
para as áreas de interseção dos eixos com os corredores biológicos (Schubart,
1998).
A otimização dos meios técnicos para a execução dos serviços de
geoprocessamento, por exemplo, para atender o ZEE, será uma necessidade
urgente sob o cenário de descentralização aqui visualizado. Já existem
experiências concretas nesse sentido, como nas associações de municípios,
em Santa Catarina, que realizam serviços técnicos comuns aos associados,
reduzindo custos. Trata-se aqui de uma centralização dentro da descentralização
da gestão, ou seja, de uma otimização. O mesmo princípio, aliás, está previsto
com relação às Agências de Água, na Política Nacional de Recursos Hídricos.
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Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
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Perfil curricular do autor
Herbert Otto Roger Schubart – schubart@uol.com.br - é Bacharel
e Licenciado em História Natural, pela UFRJ (1965). Doutor em Ciências
Naturais, pela Universidade de Kiel, Alemanha (1971). Foi pesquisador
do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), em Manaus,
na área de ecologia florestal e do solo (1972-91) e coordenador da pós-
graduação em Ecologia do INPA. Diretor Geral do INPA (1985-1990).
Coordenador do zoneamento ecológico-econômico (1991-1998), na SAE/
PR. Atualmente é pesquisador do MCT, assessorando o MMA no
zoneamento ecológico-econômico. Professor do Centro Integrado de
Ordenamento Territorial e do Centro de Desenvolvimento Sustentável,
da UnB.
176
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
A EXPERIÊNCIA DE PROGRAMAS DE MANEJO E
CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS EM
MICROBACIAS HIDROGRÁFICAS
Uma contribuição para o gerenciamento dos recursos hídricos
Nestor Bragagnolo
Waldir Pan
1. Introdução
O equilíbrio entre o desenvolvimento sócio-econômico e a preservação
da natureza vem se transformando, ao longo de décadas, em um dos mais
sérios desafios da humanidade. A cada nova iniciativa constata-se que as
intervenções ambientais, traduzidas por programas/projetos, devem ser tratadas
de forma holística, contemplando todos os elementos e suas interações no
meio. Nesse contexto, e considerando o tema a ser tratado, pode-se afirmar
que proteger o meio ambiente como um todo é a única forma de garantir a
proteção dos recursos hídricos, matéria que vem merecendo destaque no
presente momento.
O relato a seguir apresentado demonstra os avanços alcançados no
manejo dos recursos naturais, mais particularmente na questão do manejo do
solo agrícola, a partir do advento de programas especiais que definiram a
microbacia hidrográfica como unidade referencial de trabalho. Essas
iniciativas, intensificadas a partir da década de 80 em vários estados brasileiros,
estabeleceram um novo marco na abordagem das questões ambientais para o
meio rural. No entanto, esses avanços só foram obtidos com a efetiva
participação das comunidades rurais, que entendendo a possibilidade de
ganhos concretos nos seus negócios organizaram-se em associações,
comissões, conselhos e passaram a tratar o problema de forma integrada e
co-responsável.
Outro aspecto a ser destacado diz respeito a interface existente entre os
mecanismos operacionais adotados por esses programas e as estruturas e
estratégias preconizadas na lei 9433/97 - Lei das Águas. Não obstante tratar-
se de um instrumento legal, a lei, que se estende aos meios rural e urbano,
preconiza sistemas organizacionais e planos de intervenção muito próximos
àqueles utilizados pelos programas.
177
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
Portanto, o aprendizado acumulado em mais de duas décadas de estudos
e trabalhos práticos pode ser considerado por todos aqueles que se preocupam em
formular e implementar propostas de manejo e conservação do solo e água, bem
como traz importantes contribuições para a implementação da nova legislação.
Conforme mencionado, os exemplos referem-se a vários programas e/
ou projetos desenvolvidos no País, os quais - embora apresentem características
próprias, não serão particularizados, excetuando a apresentação de alguns
impactos constatados - serão tratados como o “Programa”. Objetivando o
ordenamento didático, o trabalho aborda sinteticamente os aspectos referentes
aos diagnósticos situacionais que motivaram a implantação do Programa, o
estabelecimento dos seus conceitos, objetivos, estratégias e os principais
resultados alcançados.
2. A ocupação do solo agrícola
Nas suas diferentes regiões, a utilização do solo no Brasil, desde o
início da colonização caracterizou-se pela implantação de sistemas agrícolas
imediatistas, fomentados quase sempre por estímulos econômicos facilitadores
da exploração cíclica e migratória.
Essa ocupação trouxe como conseqüência o empobrecimento do solo,
o que pode ser inferido na análise do Censo Agropecuário do IBGE-1996,
que aponta que, de um total de 227 milhões de hectares ocupados com
atividades agropecuárias no País, 78% constituem áreas de pastagem, atividade
que, de modo geral, é característica de solos pobres ou que sofreram
degradação pela ausência de práticas conservacionistas.
Dados da pesquisa demonstram que as perdas médias de solo
provocadas por erosão hídrica no País alcançam volumes de 15t/ha/ano. Outros
estudos apontam que se perde ao redor de 1.000.000 toneladas de solo por
ano. Essas perdas são atribuídas principalmente à erosão hídrica.
Dentre as principais causas apontadas como responsáveis pela erosão
hídrica e poluição dos mananciais no meio rural destacam-se três como as
principais, a saber:
1) Ocupação fundiária - com raríssimas exceções, a divisão fundiária
promovida pelo processo de ocupação ou adotada pelas empresas
colonizadoras em muitas regiões do País não contribuiu para o uso e manejo
adequado do solo. Isto trouxe como resultado graves problemas geradores de
erosão. Os principais aspectos negativos do processo da divisão e ocupação
dos solos estão a seguir relacionados:
178
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de1997
• propriedades muito estreitas, não permitindo eficiência nas operações
agrícolas em nível;
• alinhamento dos lotes no sentido da pendente;
• linhas divisórias que, ao estabelecerem os limites das propriedades,
desconsideraram as questões hídricas, o que fatalmente acarretou a
influência da água de uma propriedade sobre a outra;
• locação de estradas - a divisão fundiária adotada forçou a locação de
estradas sem planejamento e construídas através de práticas inadequadas,
sem considerar o comportamento hídrico, passando estas a serem também
importantes agentes de erosão nas propriedades agrícolas.
2) Uso do solo - A falta de planificação na ocupação do solo reduziu
drasticamente a cobertura florestal. A atividade agrícola ocupou tanto as áreas
que apresentavam boa aptidão como aquelas consideradas marginais,
ocasionando muitas vezes incompatibilidade de uso.
As principais observações que atestam a inadequação do uso do solo,
que por conseqüência, constituem-se em importantes fatores causadores/
agravadores da erosão, são:
• baixa ou inexistente cobertura vegetal, sejam florestas, bosques
sombreadores ou culturas perenes;
• inadequação das explorações ao potencial do recursos naturais;
• insuficiente cobertura do solo cultivado (viva ou morta) em períodos
críticos, principalmente na época de maior concentração de chuvas;
• deficiência nutricional do solo (acidez e baixa fertilidade);
• baixa diversidade de culturas (monocultura).
Reforçando os pontos acima destacados, pode-se atribuir às chuvas,
principalmente nas regiões onde ocorrem em alta intensidade e curta duração,
a grande responsabilidade pela aceleração do processo erosivo.
3) Preparo do Solo - Os sistemas mais adotados ainda utilizam os
discos (grades leves e pesadas), que apresentam como inconvenientes os
seguintes aspectos:
• mantêm pouca quantidade de resíduos desejáveis na superfície (menos
de 10%);
• formam camadas compactadas abaixo da profundidade de preparo do
solo (pé-de-grade);
• provocam o aparecimento de selamento superficial do solo;
179
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
• aceleram a decomposição dos resíduos;
• baixam a atividade biológica do solo a médio e longo prazo;
• destróem a estrutura superficial do solo;
• diminuem a produção vegetal a médio e longo prazo.
Além dos danos provocados pelos equipamentos em si, o preparo de
solo se caracteriza pela realização de um exagerado número de operações,
muitas vezes desnecessárias.
A falta do planejamento do uso do solo e o seu preparo inadequado
afetam diretamente a produtividade agrícola. Como primeira conseqüência
observa-se a redução da massa vegetal produzida, que exerce papel funda-
mental na cobertura do solo, fator preponderante na proteção da erosão hídrica.
Desse modo, a redução da cobertura vegetal, que num primeiro momento é uma
resultante do processo erosivo, num segundo momento passa atuar como causa.
Além das causas da erosão já citadas, ocorrem outros problemas no
meio rural que comprometem os recursos naturais:
• concentração e destino inadequado dos dejetos animais (suínos e
bovinos);
• descarte inadequado das embalagens de agrotóxicos vazias;
• local inadequado de abastecimento dos pulverizadores;
• aplicação incorreta de agrotóxicos;
• destino dos dejetos humanos.
A partir da constatação do avanço do processo erosivo e seus reflexos
econômicos e sociais, os governos estaduais, a começar pelos da região Sul
do Brasil, formularam projetos e buscaram apoio financeiro junto aos
organismos internacionais com vistas à reversão do quadro. Surgem então os
Programas de manejo integrado do solo e água.
3. Conceitos e objetivos do Programa
O desenho dos projetos estabeleceu como premissa que somente a partir
de um amplo processo de conscientização da população rural, que
demonstrasse claramente os benefícios das intervenções, principalmente os
econômicos, seria possível convencer a categoria dos produtores a adotar um
conjunto de práticas agrossilvopastoris combinadas que permitissem a
180
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
utilização do solo de maneira produtiva, preservacionista e ao mesmo tempo
recuperadora dos recursos naturais.
Tendo como referência este conceito, o Programa implantado nas
microbacias estabeleceu como objetivos geral e específicos os seguintes
aspectos:
3.1 Objetivo geral
Controlar a erosão hídrica e reverter o processo de degradação dos recursos
naturais nas microbacias, com base em alternativas tecnológicas que aumentem
a produção vegetal, a produtividade agrícola e a renda líquida do produtor rural.
3.2 Objetivos específicos
• estimular a organização formal ou informal da população, para
definição da política ambiental associada à produção de alimentos,
respeitando as peculiaridades regionais, municipais e comunitárias;
 • desenvolver mecanismos viáveis para aplicação da Lei de
Preservação do Solo Agrícola, já implantada em alguns estados;
• incentivar junto às instituições de pesquisa e assistência técnica a
geração de tecnologias alternativas para a recuperação de áreas em
processo de degradação;
• viabilizar levantamentos detalhados de solo para orientação de um
planejamento adequado;
• incentivar a introdução da agricultura biológica, em nível de
propriedade, adequando-a à capacidade de uso do solo;
• incentivar práticas que facilitem a preservação (infiltração) da água
das chuvas e a reposição da água no solo;
• integrar as ações ambientais em andamento ao Programa de Manejo
Integrado de Solo e Água;
• incentivar a geração e uso de tecnologias que promovam a preservação
e/ou recuperação dos recursos hídricos;
• incentivar a recuperação das áreas de preservação permanente: matas
ciliares, encostas, topos de morros e cabeceiras de cursos d’água -
incentivando o plantio de essências florestais nativas;
181
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
• desenvolver a capacidade de integração interinstitucional de todos os
atores envolvidos, evitando a dispersão de esforços e recursos;
• incentivar a adoção de mecanismos que permitam aos agentes públicos
e privados priorizarem as aspirações das comunidades, bem como
comprometê-las na implementação das práticas;
• racionalizar o uso dos recursos disponíveis visando a viabilização da
estratégia proposta e a otimização da exploração das atividades
agropecuárias.
4. Diretrizes e estratégias do Programa
O direcionamento das ações do Programa para o atingimento dos
objetivos propostos teve como norte um conjunto de diretrizes e estratégias,
a seguir enunciadas, que contaram com a participação de vários agentes dos
setores público e privado que, de forma direta ou indireta, assumiram a
responsabilidade da implantação dos trabalhos.
• adoção da microbacia hidrográfica como unidade geográfica de
planejamento e execução das ações em manejo e conservação de solo e
água;
• estímulo à participação dos produtores rurais e demais integrantes da
comunidade na efetiva execução do Programa, desde a identificação
dos problemas críticos à execução e avaliação do plano preconizado;
• ênfase na descentralização, conferindo às organizações comunitárias
formais e informais a possibilidade de desempenharem papéis relevantes
na organização e execução dos trabalhos, observadas as orientações
programáticas;
• flexibilização da estratégia de ação, adaptando-a às proposições
apresentadas pelas comunidades de produtores em função das
peculiaridades de cada microbacia e da característica sócio-econômica
dos beneficiários, procurando sempre a sustentabilidade dos
investimentos;
• adoção de uma perspectiva gradualista para implementação do
Programa, tendo sempre como meta atingir a área global da microbacia
ou mesmo da bacia hidrográfica de uma escala maior;
182
Interfaces da Gestão de Recursos HídricosDesafios da Lei de Águas de 1997
• implantação de unidades piloto como ponto referencial de difusão de
tecnologia e treinamento de recursos humanos.
5. Premissas básicas para sua execução
O processo de implantação do Programa demonstrou toda a sua
complexidade e a necessidade de uma ampla articulação institucional e
interinstitucional entre os agentes envolvidos. Da análise do seu desempenho
foi possível aprender muitas lições e estabelecer algumas premissas
importantes que devem ser consideradas na elaboração e implementação de
programas similares. Os principais aspectos desse aprendizado são
comentados a seguir e seguramente constituem-se referências valiosas para a
implementação da Política Nacional dos Recursos Hídricos.
5.1 Unidade de trabalho
Grande parte dos projetos e/ou programas governamentais implementados
no País nas últimas décadas utilizaram como unidade de trabalho o município
(unidade política) e/ou comunidade (unidade sociológica). No entanto, quando
se tratou de preservar os recursos naturais ou reverter seu processo de
degradação através do manejo e conservação, principalmente do solo e da
água, estas unidades de trabalho não se mostraram adequadas.
Baseado nessas experiências, o Programa elegeu como unidade de
planejamento e trabalho uma unidade geográfica capaz de compreender todas
as interações existentes no meio: as propriedades agrícolas, os agricultores e
suas famílias, bem como todos os equipamentos de infra-estrutura econômica
e social existentes. Outro aspecto considerado foi a adequação do tamanho
dessa unidade à capacidade de interação dos meios disponíveis e dos
instrumentos operacionais do Programa.
Surge então a microbacia hidrográfica como unidade referencial de
trabalho. Trata-se de uma área geográfica compreendida entre um fundo de
vale (rio, riacho, sanga, etc) e os espigões (divisores d´água) que delimitam
os pontos nos quais as águas da chuva concorrem.
A bacia hidrográfica pode ter, dependendo de sua ordem ou
classificação, diversos tamanhos (Figura 1). A cada tamanho pode
corresponder uma ou várias Unidades Políticas: País e/ou Estados; Regiões
e/ou Associações mesorregionais; e municípios, permitindo-se elaborar
183
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
determinados tipos de projetos que vão desde Planos Diretores e Planos
Regionais mais complexos até pequenos Projetos Executivos.
No caso do Programa, elegeu-se como unidade de trabalho pequenas
bacias hidrográficas (3.000 a 10.000 ha) e elaboraram-se projetos executivos
compatíveis para cada uma destas.
Para a definição do tamanho das microbacias definidas pelo Programa
também foram consideradas a diversidade de ocupação, problemas ambientais,
aspectos sócio-econômicos e institucionais, prazo de implantação e o potencial
humano disponível para execução dos trabalhos.
Figura 1 - Tamanho das bacias hidrográficas e unidades políticas envolvidas e tipos de projetos e/ ou
planos correspondentes
184
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
Constatou-se que quando se trabalha nesta escala os resultados são
mais rápidos e evidentes, pois há maior visualização dos problemas e
participação da comunidade e do município na solução e equacionamento
das questões ambientais.
No entanto, o planejamento de uma microbacia nesta escala não é tratado
de forma isolada e as interações com as microbacias vizinhas e o meio urbano
sempre devem ser consideradas. O que se estabelece junto com a comunidade
municipal é a perspectiva gradualista da intervenção, objetivando sempre no
final atingir uma bacia hidrográfica de maior escala.
Em relação aos comentários enfocados nesse item e sua interface com
a Política e o Sistema Nacional dos Recursos Hídricos, as lições demonstram
que é em nível de microbacias que ocorre a efetiva consolidação das propostas.
Desse modo, o sucesso na implantação da nova lei estará diretamente
relacionado ao envolvimento das comunidades na implementação dos
trabalhos.
5.2 Participação da sociedade
Os modelos de desenvolvimento sustentável devem considerar
primeiramente o interesse das comunidades envolvidas. Assim será possível
a incorporação de novas tecnologias seguras do ponto de vista ambiental, o
planejamento solidário das inversões e o entendimento do valor dos recursos
ambientais no processo de tomada de decisão.
O Programa Nacional de Microbacias foi estruturado nos níveis Nacional
e Estadual em colegiados, denominados Comissões. O envolvimento mais efetivo
da comunidade se deu através da constituição das Comissões Municipais, que
contou ainda com as entidades representativas do setor agrícola. Coube a essas
organizações várias responsabilidades, dentre as quais destacam-se: definição
das microbacias prioritárias a serem trabalhadas; estímulo à participação dos
produtores e suas organizações; acompanhamento da implementação das ações e
proposição de medidas corretivas; participação no planejamento e execução de
políticas de uso, manejo e conservação do solo e água; realização de estudos e
levantamento de informações para o planejamento dos trabalhos; articulação da
ação dos órgãos públicos e privados; servir de fórum para debates sobre o Programa
e mediar situações de conflito.
A experiência mostrou que o bom funcionamento da maioria dessas
Comissões, atuando em uma ou várias microbacias, facilitou a implementação
dos trabalhos pelo nível de participação e comprometimento de todos os
segmentos da sociedade na execução dos trabalhos.
185
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
Observa-se que, ao estabelecer a Política Nacional de Recursos Hídricos
e o seu sistema de gerenciamento, o Governo federal adotou como premissa
para sua implantação o gerenciamento compartilhado, integrando os vários
níveis das estruturas criadas, a saber: Conselho Nacional, os Conselhos
Estaduais, os Comitês de Bacias Hidrográficas e as Agências de Águas
Através dessa medida ficou evidenciada que a proposta sugere uma
nova postura por parte dos setores envolvidos, que objetiva harmonizar as
interrelações dos seus diversos níveis, baseado nos direitos e deveres de todos
como forma de garantir a sustentabilidade dos recursos hídricos.
A grande diferença entre o proposto pela Lei das Águas e o praticado
pelo Programa de Microbacias é a escala da área de intervenção (tamanho da
bacia hidrográfica) e o conseqüente maior desafio no processo de envolvimento
da comunidade. É fundamental o desenvolvimento de estratégias que assegu-
rem a participação das comunidades nos seus níveis mais descentralizados e
o seu envolvimento na definição, planejamento e execução das ações.
Não obstante, verifica-se uma estreita correlação entre as estruturas
adotadas pelo Programa de Microbacias e as definidas pelo Sistema Nacional
de Recursos Hídricos (Quadro 1).
5.3 Integração de práticas conservacionistas
5.3.1 Interação entre solo e água
A garantia da disponibilidade dos recursos naturais água e solo só estará
assegurada quando houver a clara percepção de suas interações. Esse processo
impõe que o manejo desses recursos não deve ser pensado de forma individua-
lizada. Na verdade, podemos visualizar três conjuntos de relacionamentos
entre solo e água na produção agropecuária: a complementaridade, a
adversidade e a similaridade.
Quadro 1 - Vinculação existente entre a estrutura do programa de microbacias e o proposto pelo sistema
nacional de recursos hídricos.
186
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
O relacionamento complementar dispõe que a água somente se torna
um insumo no processo da produção agrícola, excetuando as culturas
hidropônicas, quando disponível no solo.
Caso haja um relacionamento adverso entre o solo e a água, a
importância individual desses recursos é significativamente reduzida no
processode produção, podendo atuar ainda como agente desagregador do
sistema. Por exemplo, a água em volume excessivo ou insuficiente pode causar
a erosão do solo ou reduzir sua produtividade. A água pode também poluir
com sais e outros componentes nocivos que ela transporta e deposita no solo.
Por outro lado, o solo pode alterar a qualidade da água com seus sedimentos
e poluentes. O solo e a água são também relacionados em suas similaridades
em seus estados naturais. Ambos os recursos ocorrem em formas renováveis
e não-renováveis. Por exemplo, um solo cuja profundidade está limitada a
um metro, sendo a camada abaixo rocha pura, não é renovável e cessa sua
produtividade quando esse metro de solo é levado pela erosão; da mesma
maneira, um veio de água, cujo volume seja relativamente fixo, não é renovável
e cessa sua produtividade quando toda a água é removida. Naturalmente, cada
um dos recursos acima mencionados normalmente cessa de ser economicamente
produtivo um pouco antes de se tornar fisicamente indisponível, ou seja, antes
mesmo que o metro de solo seja levado pela erosão ou muito antes que toda a
água tenha sido removida do veio. Sob o ponto de vista econômico, o solo e a
água se tornam improdutivos quando o elevado custo da produção torna a
demanda de seus produtos proibitiva devido aos altos preços de mercado em
relação aos custos de produção.
Este raciocínio não significa necessariamente que o solo em um even-
tual estado não-renovável não possa ser manejado de tal maneira que a
produtividade seja mantida indefinidamente. Isto também não significa,
necessariamente, que a água em eventual forma não-renovável não possa ser
racionada, prolongando assim seu uso produtivo. Como alternativa, é
fisicamente possível que um veio d´água possa ser reabastecido ou substituído
com água vinda de um outra fonte, com suprimento mais volumoso e contínuo.
Eventualmente, entretanto, a degradação do solo e da água interferirá,
primeiro, com a produção econômica e, segundo, com a produção física, até
que essa produção cesse por completo.
5.3.2 Estratégia técnica adotada
Para enfrentar os problemas envolvendo o uso, manejo e conservação
dos recursos naturais (principalmente solo e água), foi adotada uma ação com
187
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
enfoque global, considerando toda a extensão e complexidade do processo e
recomendando a utilização de técnicas que contemplavam todas as fases do
processo erosivo (desagregação - transporte - deposição).
Assumindo a erosão hídrica do solo como o grande problema ambiental
do setor agrícola, a execução de ações pontuais que preconizam a adoção de
práticas isoladas (terraceamento, reflorestamento ciliar, etc.) tem-se mostrado
insuficiente para controlar o fenômeno, apesar de contribuir para a reversão
de parte dos problemas.
Dentro desse contexto, para o meio rural o Programa preconizou a
utilização de uma estratégia técnica direcionada para conter o processo erosivo
e a poluição das águas e do solo agrícola. Essa estratégia foi pautada em
quatro grandes enfoques:
• aumento da cobertura vegetal do solo - visando a redução da
energia do impacto das gotas de chuva contra a superfície e,
conseqüentemente, a redução da desagregação da sua estrutura;
• aumento da infiltração de água no perfil do solo - visando reduzir
o escorrimento superficial e promover uma maior disponibilidade de
água para as culturas, com conseqüente redução dos riscos e aumento
da produção vegetal;
• controle do escorrimento superficial - visando reduzir os danos
da erosão por transporte, regular o regime hídrico na bacia hidrográfica
e evitar a sedimentação nos mananciais;
• controle da poluição - visando a redução do transporte e poluição
dos corpos d´água causada principalmente por dejetos, fertilizantes e
agrotóxicos.
Torna-se importante salientar que os três primeiros enfoques estão
direcionados no sentido de proporcionar um uso, manejo e conservação
adequado do solo que possibilitem aumentar a produção vegetal dos sistemas
produtivos mais comuns envolvidos. Com o aumento da produção vegetal,
busca-se também alcançar maior cobertura média do solo ao longo do ano,
principalmente nos períodos críticos, além de proporcionar maior
produtividade, menor custo e risco, elevando conseqüentemente a renda do
agricultor. Com isto assegura-se maior índice de participação espontânea das
comunidades dos agricultores e uma série de impactos ambientais positivos,
notadamente a melhoria da qualidade dos recursos hídricos.
Para cada um desses enfoques existe um rol de tecnologias disponíveis
e recomendadas que devem ser previamente compiladas e disponibilizadas
188
Interfaces da Gestão de Recursos Hídricos
Desafios da Lei de Águas de 1997
para serem implantadas em nível de propriedade e/ou microbacia, de acordo
com as condições sócio-econômicas de cada produtor ou de sua comunidade
(Quadro 2).
Dependendo dos fatores ambientais, sócio-econômicos e dos próprios
sistemas de produção, algumas destas tecnologias poderão ter importância
diferenciada nos diversos níveis de planejamento a serem adotados
(propriedade/microbacia).
Desta forma, ao se estabelecer claramente a estratégia técnica a ser
adotada foi possível padronizar conceitos e o entendimento das intervenções
necessárias preconizadas pelo Programa. Entende-se que a Política Nacional
de Recursos Hídricos também poderá contemplar estratégias técnicas,
traduzidas em um conjunto de intervenções mínimas específicas para o meio
urbano, peri-urbano e rural, como forma de nortear os planos das bacias
hidrográficas.
Quadro 2 - Tecnologia disponíveis por enfoque técnico
189
Parte 3 : Gestão de Recursos Hídricos
e Gestão do Uso do Solo
5.4 Planejamento das ações
O processo de manejo e conservação de solo e água em microbacias é
um sistema que respeita a divisão natural da terra. Por isso não tem como
limites as cercas, estradas ou divisões de cada propriedade isolada. É um
trabalho de integração entre a comunidade e as instituições públicas e privadas,
que discutem conjuntamente os problemas existentes e buscam as melhores
soluções para esta área geográfica.
O planejamento é executado em dois níveis: microbacia hidrográfica e
propriedade agrícola.
No nível de microbacia, o Plano de trabalho é estabelecido junto com o
grupo de produtores ou, dependendo da situação, com grupos de interesse.
Entende-se por grupo de interesse aqueles cujas propriedades apresentem uma
interdependência elevada quanto ao comportamento hídrico, onde o
planejamento conjunto é condição indispensável.
As atividades de interesse comum, como adequação de estradas,
abastecedores comunitários, terraceamento, aquisição de máquinas e/ou
equipamentos em grupo, reflorestamento ciliar, construção de cercas para
proteção de mananciais, etc., devem ser planejadas neste nível.
Os beneficiários diretos das intervenções são os agricultores da
microbacia hidrográfica e os indiretos, às populações a jusante da mesma.
É importante lembrar que as comunidades situadas a jusante da
microbacia a ser trabalhada possuem interesses específicos e que estes também
são considerados por ocasião do planejamento do trabalho.
Da mesma forma, na fase de planejamento de uma microbacia são
consideradas as interações com as bacias vizinhas e o meio urbano. Neste
momento é que a participação da comunidade municipal, representada pelas
Comissões Municipais, torna-se fundamental e exerce importante papel no
estabelecimento, muitas vezes, de prioridades externas às bacias objeto da ação.
O planejamento das propriedades é o passo imediatamente posterior
ao da microbacia hidrográfica. O público, nesse caso, são os produtores
individualizados, cabendo quando muito o planejamento entre propriedades
vizinhas, dependendo das circunstâncias locais. Nesse nível, as tecnologias
recomendadas são aquelas que consideram

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