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1 JÉFERSON RICARDO ISIDÓRIO ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA E O PRÍNCIPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Processo Civil e Magistratura da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial à obtenção do título de Especialista em Processo Civil e Magistratura. Orientadora: Prof.a Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, Msc. Tubarão 2008 2 JÉFERSON RICARDO ISIDÓRIO ANÁLISE DA LEI MARIA DA PENHA E O PRÍNCIPIO CONSTITUCIONAL DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES Esta Monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Especialista em Processo Civil e Magistratura e aprovada em sua forma final pelo Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina. Tubarão/SC, 31 de dezembro de 2008. _________________________________________________________________ Prof.a e orientadora Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, Msc. Universidade do Sul de Santa Catarina 3 Dedico este trabalho a Grazieli Macedo Matos (Isidório), exemplo de superação e determinação! Que bom que estaremos juntos até o fim de nossos dias. Te amo! 4 AGRADECIMENTOS Agradeço muitíssimo à professora, “mestre”, orientadora e mulher Patrícia Uliano Effting Zoch de Moura, que apesar de todos os compromissos diários, resolveu compartilhar de seus conhecimentos e aceitou mais este desafio pela incessante busca da justiça social. Muito obrigado! Agradeço também à minha avó, Fausta Isidório Gomes, pelos ensinamentos do dia-a-dia e pela rica convivência. Símbolo de resistência e força, no auge dos seus 93 anos resolveu nos deixar... Quanta saudade! 5 “Nas favelas, no Senado/ Sujeira pra todo lado/ Ninguém respeita a constituição/ Mas todos acreditam no futuro da Nação/ Que país é este?” (RENATO RUSSO) 6 RESUMO O objeto deste trabalho trata da análise da Lei 11.340/06, que ficou conhecida como “Lei Maria da Penha”, cuja edição tem gerado intensa discussão. Tem por objetivo mostrar que a Lei afronta os princípios constitucionais da igualdade (isonomia) e da proporcionalidade, sendo, portanto, passível de vício de inconstitucionalidade, posto dar maior proteção à integridade física e moral da mulher no seio da relação conjugal, em detrimento da do homem. Trata, outrossim, de outros aspectos jurídicos adotados pela novel legislação, perpassando pela análise de seu conteúdo e aplicação, além dos resultados que tem gerado. Apresenta uma crítica ao vício do legislador brasileiro em usar demasiadamente o Direito Penal como subterfúgio ou medida paliativa para solucionar as questões polêmicas da sociedade. Define ações afirmativas, ou discriminações positivas, e sua aplicação com cautela. Este trabalho foi realizado com base na pesquisa bibliográfica, em especial de livros. Através de sua análise, observar-se-á os posicionamentos divergentes adotados pelos juízes e Tribunais pátrios quando da aplicação da Lei. Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Princípio igualdade. Princípio proporcionalidade. (In)constitucionalidade. Igualdade formal. Igualdade material. Ações afirmativas. Discriminações positivas. 7 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO......................................................................................................................8 2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE......................................................................................10 2.1 CONCEITO........................................................................................................................12 2.2 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL..................................................15 2.2.1 Igualdade formal............................................................................................................15 2.2.2 Igualdade material.........................................................................................................16 2.3 FINALIDADE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: NIVELAÇÃO SOCIAL.................17 2.4 DISCRIMINAÇÕES POSITIVAS: ATOS DE IGUALAR...............................................18 3 A “LEI MARIA DA PENHA”............................................................................................21 3.1 A LEI 11.340/06.................................................................................................................23 3.1.1 Breve histórico................................................................................................................24 3.1.2 Conceitos operacionais..................................................................................................26 3.2 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE...................................................................................27 3.2.1 A infração aos princípios da igualdade e da proporcionalidade...............................27 3.2.2 Casos práticos.................................................................................................................37 3.3 A NÃO APLICAÇÃO DA LEI N. 9.099/05......................................................................42 3.4 A DECRETAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA DO AGRESSOR.................................44 3.5 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA...............................................................46 4 IGUALDADE MATERIAL E AÇÕES AFIRMATIVAS................................................48 4.1 HOMENS X MULHERES: A REALIDADE BRASILEIRA............................................48 4.1.1 Realidade política...........................................................................................................49 4.1.2 Realidade educacional...................................................................................................52 4.1.3 Realidade no mercado de trabalho...............................................................................53 4.1.4 A mulher e o novo Código Civil....................................................................................54 4.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E IGUALDADE MATERIAL..................................................55 4.3 DA INTERPRETAÇÃO PARA AFERIÇÃO DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE......62 5 CONCLUSÃO......................................................................................................................64 REFERÊNCIAS......................................................................................................................66 ANEXOS..................................................................................................................................71 ANEXO A – Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006..............................................................72 ANEXO B – Poesia Desilusão ...............................................................................................82 8 1 INTRODUÇÃO O objetivo do presente trabalho é analisar a (in)constitucionalidade da Lei 11.340, editada em 7 de agosto de 2006, e que entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. A “Lei Maria da Penha”, comoficou conhecida, cujo objetivo primordial é proteger as mulheres dos maus tratos sofridos no bojo da relação conjugal, originou-se, talvez, mais da pressão popular, decisivamente influenciada pelos meios de comunicação, do que pela real necessidade legiferante, sendo, por isso, alvo das mais autênticas incongruências legais. Diante de tantas polêmicas que têm cercado a lei, sobressai-se a que trata de sua (in)constitucionalidade, por proporcionar às pessoas do sexo feminino uma proteção especial, seja ela de natureza física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial, em detrimento da do sexo masculino. Diante do exposto, o princípio da isonomia, tão enfatizado pela Constituição Federal de 1988, parece ter sido golpeado. Cuida-se, inicialmente, de discorrer a respeito do princípio da igualdade, seu significado, finalidade e de sua observação obrigatória quando da edição de diplomas legislativos, sobretudo os de cunho “discriminatório”. Trata-se, também, ainda que de forma breve, sobre a distinção entre o princípio da igualdade formal e o princípio da igualdade material, este que conduz ao fundamento teórico constitucional das medidas de desequiparação. No momento seguinte, analisa-se a Lei 11.340/06 como um todo, iniciando pelos conceitos operacionais por ela apresentados, tratando a seguir das pressões/questões históricas que impulsionaram sua edição. Aborda-se, aqui, as questões que cercam a potencial inconstitucionalidade da “Lei Maria da Penha”, sobretudo por ter afrontado os princípios constitucionais da igualdade (art. 5º, caput e inciso I, da CF/88) e da proporcionalidade, ao dar tratamento desigual ao homem quando autor de violência doméstica e familiar, beneficiando a mulher vítima. Para fundamentar a celeuma, cita-se textualmente trechos de recentes julgados de juízes e Tribunais pátrios, uns tratando a Lei como inconstitucional e outros primando por sua aplicação também ao ser masculino. Trata-se, outrossim, de alguns aspectos polêmicos adotadas pela Lei em questão, como a proibição da aplicação da Lei 9.099/95, a prisão preventiva do agressor, as medidas protetivas de urgência, etc. 9 Por derradeiro, faz-se referência às ações afirmativas (discriminações positivas), bem como ao princípio da igualdade material, com conceitos operacionais e a possibilidade de implementação de políticas de discriminação positiva no direito brasileiro, tendo em vista as diretrizes constitucionais sobre o princípio da igualdade e sobre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Chama-se a atenção, neste ponto, para que a adoção de tais medidas, ao argumento de se reequilibrar o jogo e alcançar o bem-estar e a justiça social, não se transforme em instrumento político de novas discriminações, criando privilégios através de leis que estabeleçam tratamento diferenciado a favor de uns e em detrimento de outros. O tema é inquietante e suscita problemas de aplicabilidade prática. Não é tão fácil quanto parece, pois se fácil fosse, não teria o Presidente da República, via Advocacia-Geral da União, impetrado uma Ação Declaratória de Constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para reconhecer a Lei 11.340/06 constitucional. 10 2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE Antes de se adentrar na discussão sobre alguns dos aspectos do princípio da igualdade, faz-se necessário conceituar “princípio” e “igualdade”, tomados isoladamente. A palavra “princípio” está associada à idéia de começo, início, origem. Pode ser empregada também no sentido de normas providas de alto grau de abstração. No entender de Mello, no âmbito jurídico, Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.1 Também neste sentido se posiciona Silva, para quem os princípios jurídicos, sem dúvida, “significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito.”2 (grifo do autor) Segundo Bonavides, “Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo o sistema normativo”3. Esclarece, ainda, a distinção entre normas e princípios, “tendo norma como gênero do qual são espécies as regras e os princípios, sendo que aquelas têm grau de generalidade relativamente baixo, ao passo que estes são dotados de alto grau de generalidade.”4 Os princípios apresentam também função orientadora, norteando o intérprete na busca de soluções jurídicas, bem como complementando o direito quanto às suas lacunas. A violação a um princípio seria, portanto, por esse tom, muito mais grave do que transgredir uma norma qualquer, posto que implicaria em ofensa não apenas a um mandamento específico, mas a todo o sistema de comandos. Constituir-se-ia na mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme a escala do princípio atingido. Já o termo “igualdade” tem motivado uma série de discussões ao longo da História da humanidade, discussão esta que tem perpassado por todas as áreas do conhecimento. Tentar compreendê-la no âmbito do pensamento jurídico-filosófico, como algo pronto e acabado, é negar a dinâmica, haja vista estar seu conceito em constante mutação. 1 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 230. 2 SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 15. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 639. 3 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 258. 4 Ibid., p. 148-150. 11 Fazendo-se uma incursão pelos pensamentos dos filósofos e juristas que marcaram época, a começar por Locke e seu “estado natural”, indo além das grandes Revoluções do século XVIII e do socialismo de Marx, e chegando ao direito constitucional ocidental5, perceber-se-á as várias nuanças que contornaram a idéia de “igualdade”. Há quem defenda, como Aristóteles, que ao lado da igualdade “a desigualdade parece ser vital para a existência da própria sociedade e condição precípua para que haja um equilíbrio na vida social”6. Trata da concessão de mecanismos de compensação de situações humanas de hipossuficiência numa sociedade de classes. Certo é que, para ser compreendido, o conceito de igualdade precisa estar situado dentro de um contexto histórico específico, tendo em vista tratar-se, como mencionado, de um conceito em constante construção. Bobbio, ao tratar do conceito político, afirma que, “é preciso que se especifique com que entes estamos tratando e com relação a que são iguais, ou seja, é preciso responder a duas perguntas: a) igualdade entre quem?; e b) igualdade em quê?”7 (grifos do autor) No contexto jurídico, portanto, a idéia de igualdade, segundo Comparato, ao fazer uma análise mais detalhada, significa uma medida de comparação, não podendo ser concebida a igualdade de um só. Segundo ele, Desta forma, aquela lei que viesse a ser confeccionada visando a um só caso, possuindo um destinatário ou destinatários predeterminados, vem a ser um caso de abuso do poder legislativo. Este, em razão da competência que lhe foi delegada pelo povo, a exerce não em conformidade com o interesse do povo, mas sim em razão de interesses pessoais. Trata-se, pois, de criação de uma desigualdade absoluta.8 Mas sabe-se que o ideal de igualdade entre os homens tem servido de sustentação, sobretudo político-jurídica, para fundamentar atitudese impedir mudanças. A idéia de “igualdade de natureza” deu lugar à idéia de “igualdade legal”, como fundamento das fontes de Poder. Para Moura, Tratar os homens com igualdade é alocá-los ao mesmo nível, ou seja, tratá-los como seres humanos. Não se admite que um ser humano seja tratado com desrespeito ou como “coisa”, por apresentar uma diferença física, social, cultural, econômica ou qualquer outra.9 (grifo da autora) 5 Para ilustrar, nas eleições municipais de Imaruí (SC), no ano de 1992, a derrubada de um grupo político que comandou a cidade por mais de sessenta anos, foi impulsionada pela defesa veemente da igualdade, uma das bandeiras levantadas pela oposição. 6 VILAS-BÔAS, Renata Malta. Ações afirmativas e o princípio da igualdade. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003. p. 1. 7 BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 3. ed. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 12. 8 COMPARATO, 1998 apud VILAS-BÔAS, op. cit., p. 3. 9 MOURA, Patrícia Uliano Effting Zoch de. A finalidade do princípio da igualdade: a nivelação social: interpretação dos atos de igualar. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2005. p. 23. 12 Galuppo, convergindo para os direitos sociais, ao ser citado por Moura, explica a igualdade de forma objetiva: “[...] a igualdade tem de ser concebida como um procedimento de inclusão formal e material nos discursos de justificação e aplicação das normas, e o direito só pode ter sido legítimo se garantir esta igualdade nos discursos que realiza.”10 2.1 CONCEITO O princípio da igualdade é considerado como um dos princípios estruturantes da ordem jurídico-constitucional, exprimindo, dentre outras coisas, a busca de inclusões. Para explicá-lo, Silva aponta três concepções distintas: A concepção nominalista reconhece entre os homens desigualdades naturais, concebendo ao princípio uma conotação apenas nominal, pois a desigualdade é o substrato da existência humana. Os adeptos da concepção idealista têm nos homens seres essencialmente iguais, sendo que as desigualdades surgem a partir do convívio social. Já a concepção realista prega a coexistência da igualdade e da desigualdade. Vê os homens iguais em essência, mas diferentes num contexto social.11 O princípio da igualdade, em âmbito nacional, está consagrado na Constituição Federal de 1988 dentre os direitos fundamentais. A ênfase a tal princípio vem enunciada já no Preâmbulo, espalhando-se por inúmeros outros dispositivos, ora reforçando a igualdade ora concedendo situações isonômicas aos desiguais. Para tanto, destaca-se o art. 3°, incisos III e IV, o art. 5º, caput e inciso I, e o art. 226, §§ 5º e 8º, que assim dispõem: Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; [...] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] 10 GALUPPO, 2002 apud MOURA, 2005, p. 38. 11 SILVA, Luis Renato Ferreira da. O princípio da igualdade e o código de defesa do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 08, p. 146-151, out./dez. 1993. p. 147. 13 § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. [...] § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.12 No entender de Moura, “O Texto consagra a igualdade como um dos objetivos da República Brasileira, além de dispô-la ora como princípio ora como regra.”13 É de se lembrar, outrossim, que o direito estrangeiro tratou pela primeira vez do princípio da igualdade na Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776, que veio a ser o primeiro documento político que reconheceu a existência de direitos que são inerentes a todos os seres humanos, seja qual for o seu sexo, raça, religião, cultura ou posição social. Desta forma, surgiu a Federação dos Estados Unidos da América do Norte sob a bandeira da liberdade e da igualdade de todos perante a lei14. A ela, seguiu-se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Nessa esteira, defende Moreira que este princípio constitucional “significa a proibição, para o legislador ordinário, de discriminações arbitrárias: impõe que a situações iguais corresponda um tratamento igual, do mesmo modo que a situações diferentes deve corresponder um tratamento diferenciado.”15 Mas se constituiria pura ingenuidade acreditar que realmente “todos são iguais perante a lei”, posto que a evolução dos tempos tende a criar, fortalecer e discriminar uns grupos em detrimento de outros. Uns passam a ser, diante das relações de domínio que formam a civilização humana – econômico, político ou religioso –, mais iguais que os outros. Ao se deparar com este tipo de situação, o Estado se vê pressionado a criar formas capazes de igualar os desiguais, objetivando, como exemplo, melhores condições de vida aos potencialmente mais fracos, e com isso reduzindo as ditas diferenças sociais. E é a via enviesada da redução das discriminações e desigualdades que o Estado usa, no mais das vezes, como fundamento para fragmentar o princípio da igualdade. Com sua indesejável voracidade legiferante, diz aproximar gêneros – idosos, homens, mulheres, crianças –, mas acaba os distanciando de forma flagrante. Neste diapasão, não são raros os momentos em que a lei serve de puro instrumento para garantir privilégios e perseguições, 12 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. p. 15 e 128-129. 13 MOURA, 2005, p. 19. 14 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 90. 15 MOREIRA, Rômulo de Andrade. A lei maria da penha e suas inconstitucionalidades. Atuação, Florianópolis, v. 5, n. 11, p. 203-226, jan./abr. 2007. Disponível em: <http://www.mp.sc.gov.br/portal/site/conteudo/cao/ceaf/revista_juridica/revista11internet.pdf.>. Acesso em: 10 abr. 2008. p. 216. 14 quando, pela lógica, deveria sim, era regular a vida social de modo a tratar todos os cidadãos de forma eqüitativa, evitando os favoritismos. Para os dias atuais, algumas situações são até aceitáveis, mas outras, imperdoáveis. Pergunta-se, então: quais critérios devem ser adotados no seio social para separar uma discriminação permitida daquela indesejada pelo princípio da igualdade? De acordo com os ensinamentos de Mello, ao se analisar o princípio da igualdade, “[...] é insuficiente recorrer à notória afirmação de Aristóteles, assaz de vezes repetida, segundo cujos termos a igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais”16, indagando: [...] o que permite radicalizar alguns sob a rubrica de iguais e outros sob a rubrica de desiguais? Em suma: qual o critério legitimamente manipulável – sem agravos à isonomia – que autoriza distinguir pessoas e situações em grupos apartados para fins de tratamentos jurídicosdiversos? Afinal, que espécie de igualdade veda e que tipo de desigualdade faculta a discriminação de situações e de pessoas, sem quebra e agressão aos objetivos transfundidos no princípio da isonomia?17 (grifou-se) No entender de Arns, “a igualdade resulta da organização humana, pois as pessoas não nascem iguais e não são iguais em suas vidas. É a lei que torna ou deveria tornar os homens iguais, ou seja, as diferenças deveriam ser igualadas através das instituições.”18 Pois bem, é dentro desta discricionariedade desenfreada que o Estado tem cometido as maiores imperfeições jurídicas, suplantando o fundamento de todo o Ordenamento Jurídico, “o princípio informador”, confrontando-se com a máxima de que “Todos os atos com efeitos jurídicos e todas as ações humanas devem respeitar os princípios de um sistema”19. Tudo bem que, como afirmou Bobbio, “[...] não se podem deixar de levar em conta as diferenças específicas, que são relevantes para distinguir um indivíduo de outro, ou melhor, um grupo de indivíduos de outros grupos”20, não se reconhecendo a igualdade como um princípio absoluto; mas buscar um tratamento, seja igual ou desigual, que permita uma equiparação entre todos, que permita uma existência digna. Tem-se que direito fundamental é todo direito necessário para uma existência digna, estando o princípio da igualdade nele englobado. Segundo Contar, ao citar Campos no acórdão referente ao julgamento do Recurso em Sentido Estrito nº 2007.023422-4/0000-00, 16 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. atual. (15. tiragem). São Paulo: Malheiros, 2007. p. 10. 17 Ibid., p. 11. 18 ARNS, Paulo Evaristo. Discriminação: estudos. São Paulo: LTr, 2000. p. 19. 19 MOURA, 2005, p. 33. 20 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 13. tiragem. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 71. 15 A dignidade humana é o valor fonte para definir os direitos fundamentais, isto é, os direitos fundamentais são desdobramentos da dignidade da pessoa humana, [...] reconhece-se aos direitos fundamentais a natureza principiológica constitucional de justificação do Estado. Tais direitos são fundantes, ou seja, são fontes de legitimação de todo o direito, condicionam a produção e interpretação das normas jurídicas infraconstitucionais.21 E leciona, ainda, o Desembargador: A igualdade jurídica na democracia nivela todos os cidadãos no plano da titularidade dos conteúdos normativos dos direitos fundamentais. Não há que se falar em desigualdade jurídica de direitos fundamentais, porque, uma vez que são cumpridos os direitos fundamentais, o que se tem são desníveis patrimoniais e de personalidade (identidades), sem que tal diferencial pudesse quebrar a igualdade entre as partes a ponto de recuperar a velha máxima de justiça do Estado Liberal - tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.22 O princípio da igualdade busca um tratamento, seja igual ou desigual, que permita uma equiparação entre todos. Segundo Moura, “[...] positivado e aceito pelo Ordenamento Jurídico, não interessa apenas ao aplicador e ao criador da lei, mas a todos os homens em suas relações com o Estado e com os particulares.”23 2.2 IGUALDADE FORMAL E IGUALDADE MATERIAL Na história do Estado de Direito, duas noções de princípio da igualdade têm sido recorrentes nos textos constitucionais: a igualdade formal e a igualdade material. 2.2.1 Igualdade formal Diz respeito ao princípio da igualdade perante a lei; considera que todos os homens são iguais perante a lei. Vista de outro ângulo, significa que a lei é igual para todos. É a regra da igualdade jurídica, criada na época da Revolução Francesa como forma de se superar as diferenciações arbitrárias existentes em favor da nobreza, da burguesia e do clero, em detrimento dos súditos. 21 MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Consulta processual. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br>. Acesso em: 14 abr. 2008. 22 Ibid., p. 8. 23 MOURA, 2005, p. 43. 16 Quando se afirma serem todos iguais perante a lei, exige-se um tratamento sem discriminações em quaisquer grupos, particulares ou não, visando a uma igualização de todos os seres humanos. Canotilho argumenta que “Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos.”24 Na sua essência, está o postulado de que sejam todos os indivíduos tratados como sujeitos iguais de direitos em virtude de serem dotados de humanidade e razão, sendo irrelevante sua classe social, religião, raça ou gênero. A Constituição Federal de 1988 consagra este princípio nos artigos 3º, IV, e 5º, caput. Por ele, o Poder Político Brasileiro não pode fazer distinções que não tenham sido autorizadas pelo Poder Constituinte e, conseqüentemente, pela legislação infraconstitucional. 2.2.2 Igualdade material Refere-se à igualdade real, de fato, substancial, que por sua vez refere-se às diferenças sociais, econômicas e culturais. Trata da redução das desigualdades criadas pelo homem, perpassando pela necessidade de tratamento diferenciado àqueles grupos ou pessoas carecedoras da igualdade em razão de circunstâncias específicas. Como exemplo, a Carta Política de 1988 apresenta os artigos 3º, III, 5º, XLI e XLII, e 7º, XXX e XXXI. Surgiu da célebre frase de Aristóteles segundo a qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Diante disso, havendo necessidade, a lei passa a ter como função primordial desigualar em determinados aspectos para ter como resultado um equilíbrio justo. No entender de Grinover, [...] a lei se configura como mera ficção, já que todos os seres humanos são desiguais por sua própria natureza, tendo o legislador se recusado a manifestar sobre essa desigualdade. No entanto, ao defendermos o princípio da igualdade material, por ser dinâmica, observa-se que compete ao Estado superar as desigualdades de forma a se atingir uma igualdade real.25 24 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 4. ed. Coimbra: Almedina, 2000. p. 417. 25 GRINOVER, 1990 apud VILAS-BÔAS, 2003, p. 22. 17 A diferença está basicamente na postura do Estado em relação à igualdade, pois enquanto o Estado Liberal se contenta em não produzir institucionalmente a desequiparação, o Estado Social arroga para si a missão de produzir a equalização como compromisso constitucional. Ao arremate, a respeito da subdivisão tratada, cita-se a lição de Cademartori: De qualquer sorte, a igualdade jurídica, tanto formal como substancial, é definida como igualdade nos direitos fundamentais. As garantias dos direitos de liberdade (ou “direitos de”) asseguram a igualdade formal ou política, enquanto as garantias dos direitos sociais (ou “direitos a”) possibilitam a igualdade substancial ou social.26 2.3 FINALIDADE DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE: NIVELAÇÃO SOCIAL Pelo entendimento de que os seres humanos, embora iguais quanto sua espécie, mostram-se desiguais quanto aos aspectos sociais, surge a razão pela busca de igualá-los. Como percebido até aqui, um dos vértices do princípio da igualdade, se corretamente interpretado e aplicado, busca uma igualização entre grupos. Segundo Rui Portanova, “a razão de existir tal princípio é propiciar condições para que se busquerealizar a igualização de condições desiguais”27. Essa igualização passa pelos direitos sociais, que proporcionam o nivelamento de diferenças sociais não alcançadas por outros direitos. Para Moura, “Igualdade e direitos sociais estão intimamente ligados, sendo permitido, inclusive, afirmar que os direitos sociais têm a igualdade como objetivo fundamental”28. E completa: “Percebe-se que, além de uma conotação individualista de igualdade de tratamento, o princípio da igualdade busca, como os direitos sociais, uma igualização dos homens num contexto social, pois se vive num mundo de diferenciações flagrantes: as discriminações.”29 Retrata, ainda, o sentido finalístico do princípio da igualdade no singelo, mas esclarecedor exemplo transcrito a seguir: Imaginem dois recipientes com capacidade de 1 (um) litro de líquido essencial para uma existência digna, reconhecido como ‘edd’. Cada um deles, representados pelos símbolos g1 e g2, representa toda a vida de um determinado grupo de homens, em seus diversos aspectos: físico, social, cultural, racial, econômico, entre outros. 26 CADEMARTORI, Sérgio. Estado de direito e legitimidade: uma abordagem garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 166. 27 PORTANOVA, 1997 apud VILAS-BÔAS, loc. cit. 28 MOURA, 2005, p. 71. 29 Ibid., p. 72. 18 A cada hora, um conta-gotas, automaticamente, pinga uma gotinha do líquido ‘edd’ em cada recipiente. O recipiente g1 possui o líquido ‘edd’ até a marca de 70 mililitros, enquanto que o recipiente g2 está marcando apenas 40 mililitros de ‘edd’. Duas indagações surgem: por que a quantidade está tão diferente a ponto de se verificar um real desnivelamento? Como nivelá-los?30 (grifos da autora) Na seqüência, responde: A resposta da primeira pergunta é variável, dependendo das questões envolvidas, como por exemplo, pode ser uma econômica, uma social, uma cultural, uma física, ou outra qualquer. Fazendo uma analogia com a questão racial: o recipiente g1 é representante do grupo de homens brancos e o g2 representa os homens negros. Apenas em 1888 os negros foram considerados seres humanos e não mais ‘coisas’, como o eram até então. O recipiente g1 já estava com muitas décadas de anos recebendo as gotinhas do líquido ‘edd’, enquanto que o g2, sendo bastante otimista, passaram a receber as gotinhas há um pouco mais de cem anos. Este é um dos motivos do desnivelamento dos recipientes. Quanto à segunda pergunta, há quem, por diversas razões, diga que com o tempo, os recipientes estarão com o mesmo nível do líquido ‘edd’. Mas por uma questão de lógica, não há tempo que permita este nivelamento. Por isso, a resposta, com base na mesma lógica que impede o nivelamento natural, é programar o conta-gotas do recipiente que está com a menor quantidade de líquido ‘edd’ para que, durante um determinado tempo, calculado com a fórmula apropriada, pingue duas vezes de uma gotinha, permitindo que num dado momento os recipientes encontrem-se nivelados.31 (grifos da autora) Como visto, o princípio da igualdade, tão bem ilustrado no exemplo, socorre-se das discriminações positivas para se “materializar”, nivelando os desiguais. Aprofunda-se esta discussão na terceira parte deste trabalho. 2.4 DISCRIMINAÇÕES POSITIVAS: ATOS DE IGUALAR O vocábulo “discriminação” deriva do latim, discriminatione, que significa ato ou efeito de discriminar, separação, apartação, segregação.32 Nem sempre o ato de discriminar se mostra contrário às normas. No entanto, a afirmação de que os homens são iguais é que leva à conclusão de que não poderá haver discriminações quanto aos seus aspectos considerados iguais. O princípio da igualdade permite, numa análise conjunta com os demais princípios fundamentais, a diferenciação de alguns grupos, para que sejam não apenas formais, mas materialmente iguais. Todavia, o tratamento diferenciado sem a observância dos 30 MOURA, 2005, p. 76. 31 Ibid., p. 77. 32 DISCRIMINAÇÃO. In: NOVO dicionário eletrônico aurélio. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Positivo, 2004. 19 preceitos constitucionais, passaria do justo ao injusto, e estabeleceria vantagens de forma arbitrária. Por essa razão, observa-se que não é possível interpretar o princípio isonômico de forma absoluta, de forma que todo e qualquer meio de discriminação tornar-se-ia constitucionalmente proibido. Bobbio define discriminação arbitrária como “aquela introduzida ou não eliminada sem uma justificação, ou, mais sumariamente, uma discriminação não justificada (e, neste sentido, injusta).”33 (grifo do autor) Miranda entende que [...] mesmo quando a igualdade social se traduz na concessão de certas vantagens especificamente a determinadas pessoas - as que se encontram em situações de inferioridade, de carência, de menor proteção - a diferenciação ou a discriminação (positiva) tem em vista alcançar a igualdade e tais direitos ou vantagens configuram- se como instrumentais no rumo para esses fins.34 Mais uma vez invocando Moura, vislumbra-se a diferença existente entre discriminação e discriminação positiva: Aquela se dá quando não há nenhum princípio a ser respeitado e/ou alcançado. Esta, ao contrário, ocorre quando, ao verificar desigualdades, visando ao respeito do princípio da igualdade e a outros essencialmente interligados, estabeleça-se na lei ou noutros atos do Estado, diferenças que permitam uma inclusão ou igualização.35 Bobbio, então, questiona: Mas será suficiente aduzir razões para tornar uma discriminação justificada? Qualquer razão ou, ao contrário, determinadas razões mais do que outras? Mas com base em que critérios se distinguem as razões válidas das inválidas? Existem critérios objetivos, ou seja, critérios que se apóiam na chamada natureza das coisas?36 (grifo do autor) E ele mesmo responde: A única resposta que se pode dar a tais questões é que existem, entre os indivíduos humanos, diferenças relevantes e diferenças irrelevantes com relação à sua inserção nessa ou naquela categoria. Mas essa distinção não coincide com a distinção entre diferenças objetivas e não-objetivas: entre brancos e negros, entre homens e mulheres existem certamente diferenças objetivas, mas nem por isso relevantes.37 No artigo 5°, inciso LXXVI, da Constituição Brasileira de 1988, por exemplo, o legislador buscou estabelecer um nivelamento, ao conceder uma vantagem aos pobres. Não há dúvida quanto à discriminação positiva existente neste comando. Assim como neste, noutros há também diferenciações que garantem o nivelamento social entre alguns grupos: a defesa do consumidor, a proteção à maternidade e à infância, a assistência jurídica aos necessitados, ao 33 BOBBIO, 1997, p. 28. 34 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. Tomo 4. p. 225. 35 MOURA, 2005, p. 78. 36 BOBBIO, 1997, p. 28. 37 Ibid., loc. cit. 20 trabalhador noturno, etc. Há também, possibilidade de discriminações infraconstitucionais. Com isso, promove-se a inclusão social de grupos até então marginalizados. Onde a regra é a igualdade, deve ser justificado o tratamento desigual, evitando as arbitrariedades e promovendo a igualização nas relações entre os indivíduos. Segundo Bobbio, “Desse modo, uma desigualdade torna-se um instrumento de igualdade pelo simples motivo de que corrige uma desigualdade anterior: a nova igualdade é o resultado da equiparação de duas desigualdades.”38 Portanto, tratam as ações afirmativas de medidas imprescindíveis em um Estado Democrático de Direito, para fazer mais curta a espera de milhões de pessoasque almejam sentir-se parte da sociedade, e nem mais nem menos valoradas que o resto. Só uma ação positiva que seja suficientemente proporcional e que não produza dano desproporcional a terceiros será constitucional e poderá implantar-se com êxito no seio social. 38 BOBBIO, 1997, p. 32. 21 3 A “LEI MARIA DA PENHA” O dia-a-dia jurídico demonstra que o legislador, o que menos tem observado, são os princípios informadores do Ordenamento Jurídico pátrio. Rotineiramente são editadas leis impulsionadas por interesses de toda ordem, embaladas que são pela convulsão popular. A pressão, sobretudo da mídia em geral, instrumento dos grupos poderosos e aparelho ideológico estatal, tem redobrado o trabalho dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que as ações propugnando pela inconstitucionalidade de diplomas legislativos contaminados têm alcançado um número considerável. As chamadas leis de ocasião, que maculam a figura do legislativo, dão voz ativa à população manipulada por inconseqüentes meios de comunicação responsáveis não pelo “clamor público”, mas pelo “clamor publicado”. Estaria correto inflacionar a Ordenamento Jurídico para satisfazer grupos e distanciar seres, ou a solução à discriminação, por exemplo, viria de medidas outras separadas do sistema puramente jurídico? Cabe destacar, por uma questão de justiça, que outros fatos, embora apresentando peculiaridades respeitáveis, também têm servido de subterfúgio a esse “inchaço” legislativo. Na prática, no entanto, a efetivação destes diplomas se faz de maneira lenta e gradual. Ora, o Estado cria as leis, quase que na unanimidade carentes de outros mecanismos garantidores de sua eficácia, e é ele, o próprio Estado, com toda sua estrutura entrevada, quem normalmente não cumpre a sua parte, contribuindo, portanto, à ineficácia legal39. Foi neste descompasso que no dia 7 de agosto de 2006 editou-se a Lei Federal nº 11.34040, batizada de “Lei Maria da Penha”, responsável por uma revolução, tanto positiva quanto negativa, no Ordenamento Jurídico brasileiro no que diz respeito à violência doméstica e familiar contra a mulher. Formada por imperfeições técnicas e jurídicas de toda ordem, atropelou importantes preceitos constitucionais e aguçou a ira de muitos estudiosos da área. Como bem disse Santin, “A pretexto de proteger a mulher, numa postura ‘politicamente 39 Basta ler a Lei n. 7.210/84 – Lei de Execução Penal, para se observar o quanto o Estado é relapso na efetivação de seus compromissos. No papel, a LEP revolucionou o sistema carcerário brasileiro, mas na prática, não passou de uma grande ilusão. 40 Entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006. 22 correta’, a nova legislação é visivelmente discriminatória no tratamento de homem e mulher.”41 (grifo do autor) Entre outras perplexidades, a nova lei alterou a forma de punição dos agressores, com as penas previstas hoje variando de três meses a três anos de prisão. Antes, eram de seis meses a um ano. Também passaram a ser consideradas formas de violência doméstica as agressões psicológica, moral e patrimonial, além da sexual e da física. Foi eliminada a possibilidade de pagamento de cestas básicas ou doações como forma de punição. A lei passou a permitir, também, a prisão em flagrante dos agressores. Pois é, quando a Carta Magna consagrou dentre os direitos fundamentais a igualdade entre homem e mulher, estabeleceu uma isonomia plena entre os gêneros masculino e feminino, de modo que a legislação infraconstitucional não pode, sob qualquer pretexto, promover discriminação entre os sexos. É inegável, bem se sabe, a violência física e psicológica sofrida pela mulher ao longo dos séculos, sobretudo no âmbito familiar. Constitui fato notório que a superioridade física do homem sobre a mulher, aliada à idéia de inferiorização feminina propugnada por outros setores da sociedade, fez com que ele se tornasse hegemônico na determinação dos rumos familiares: primeiramente em casa, a mulher era prisioneira do pai, que se dava ao direito de definir com quem a filha iria se casar, e ter com ela uma disciplina mais rígida do que a tida com o filho homem; contraído o casamento, a mulher passava a prisioneira do marido, visto legalmente como chefe da sociedade conjugal. Ousar desobedecer a vontade do pai ou do marido, no seio do ambiente familiar, rendia-lhe forte repressão. O que fazer, então, para transformar essa realidade cultural secular? Optou o legislador, novamente, pelo uso da lei, apostando em que o Direito, e somente ele, pudesse ser um instrumento de transformação da realidade repleta de desigualdades e injustiças. Tudo começou com o Estatuto da Mulher Casada – Lei nº 4.121/62, quando houve um abrandamento dessa questão. Mas foi a Constituição de 1988 quem mais atenuou esta injustificável desigualdade, sobretudo jurídica, sofrida pela mulher, ao trazer à literalidade normativa a obviedade segundo a qual “homens e mulheres são iguais perante a lei”. Concomitante a tudo isso, criaram força os movimentos feministas, que passaram a questionar e derrubar ideais machistas que relegavam a mulher a uma condição inferior à do homem. As conquistas foram e estão sendo muitas! Em muito já foi superado o modelo 41 SANTIN, Valter Foleto. Igualdade constitucional na violência doméstica. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 abr. 2008. 23 patriarcal que dava um despótico poder ao homem para dominar a mulher, amenizando o desequilíbrio até então existente. No entanto, tais fatos, repita-se, embora notórios e historicamente inegáveis, não justificam uma especial proteção à mulher, materializada com a edição de lei especial, tendo em vista a afronta ao princípio da igualdade, que por sua vez somente admite tratamentos diferenciados ou discriminações positivas, quando decorrentes de necessidades ou de justificativas lógico-racionais. Se é verdade que as mulheres sofrem forte violência doméstica, também é verdade que os homens são vítimas desse tipo de violência, ainda que em menor proporção. Então, por que privilegiar apenas um lado? Não parece admissível uma lei voltar-se somente à tutela do gênero feminino, proporcionando sua supervalorização. Assim, a “Lei Maria da Penha” se mostra com lacunas diante da diferença duvidosamente reconhecida, a ponto de gerar uma Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC impetrada pelo próprio Presidente da República42. Nela, o Advogado-Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, afirmou que alguns juízes e Tribunais do País têm afastado a aplicação da lei por considerá-la inconstitucional. A ação da Advocacia-Geral da União – AGU pugnou pela concessão de liminar até seu julgamento final pelo Supremo Tribunal Federal – STF, o que foi negado pelo relator, Ministro Marco Aurélio, em 21.12.2007. Para fundamentar o pedido na ADC, Toffoli citou uma série de decisões que apresentam conclusões divergentes. Numa delas, a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul declarou a inconstitucionalidade da lei ao argumento de que ela ofendia o princípio da igualdade entre homens e mulheres. Noutra, em sentido contrário, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais não só reconheceu a lei como também estendeu a sua aplicação para homens e crianças vítimas de violência doméstica. Ambas terão trechos citados na seqüência deste capítulo. Diante de toda essa celeuma jurídica, demonstra-se a importância da presente pesquisa. 3.1 A LEI 11.340/0642 Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19-3 - Distrito Federal. 24 A Lei 11.340/06, embora apresente uma conotação informal de natureza penal, tem natureza jurídica fundamentada na Constituição Federal, conforme se extrai da leitura de seu artigo 1º, nestes termos: Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.43 (grifou-se) Depreende-se disso que este diploma legal reveste-se de natureza jurídica nitidamente constitucional, ainda que com repercussões nas esferas administrativa, civil, penal, processual penal e, inclusive, trabalhista. 3.1.1 Breve histórico O principal documento em nível mundial sobre o tema violência doméstica foi aprovado pelas Nações Unidas em 1967, tratando-se da Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, ratificado atualmente por mais de 160 países, dentre eles o Brasil. A ratificação integral desse documento em nível interno em 20.12.1994 foi o primeiro passo na tentativa de frear a violência doméstica contra a mulher perpetrada pelo cônjuge. Em 2001, o emblemático caso de Maria da Penha Maia Fernandes, cujo nome serviu à Lei 11.340/2006, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cujas recomendações encaminhadas ao Governo Brasileiro, além daquelas relativas ao caso concreto, destacam-se: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos reitera ao Estado Brasileiro as seguintes recomendações: [...] Prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil.44 43 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>. Acesso em: 20 nov. 2007. 44 REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS. Relatórios. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorio2005/relatorio035.htm>. Acesso em: 7 jan. 2008. 25 Particularmente, a Comissão recomendou o seguinte: a) instituir medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; b) simplificar os procedimentos judiciais penais a fim de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; c) estabelecer formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas, de solução de conflitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às conseqüências penais que gera; d) multiplicar o número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e dotá-las dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica, bem como prestar apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais; e) incluir em seus planos pedagógicos unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conflitos intrafamiliares.45 Seguindo essas determinações, veio a Lei nº 10.455/2002, que acrescentou ao parágrafo único do art. 69 da Lei nº 9.099/95 a previsão de uma medida cautelar, de natureza penal, consistente no afastamento do agressor do lar conjugal na hipótese de violência doméstica, a ser decretada pelo Juiz do Juizado Especial Criminal. Posteriormente, foi editada a Lei 10.886/2004, que criou, no art. 129 do Código Penal, um subtipo de lesão corporal leve, decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 (três) para 6 (seis) meses. É nesse compasso, que surge a Lei 11.340/2006, cujo objetivo primordial vem estampado logo em seu art. 1º, acima transcrito. Atribuindo a edição da lei nova ao fracasso dos Juizados Especiais, sobretudo Criminais, afirma Bastos, Veio, então, a Lei em comento – a Lei "Maria da Penha" –, cuja origem, não se tem dúvidas em afirmar isto, está no fracasso dos Juizados Especiais Criminais, no grande fiasco que se tornou a operação dos institutos da Lei nº 9.099/95, não por culpa do legislador, ressalva-se, mas, sem dúvida, por culpa do operador do Juizado, leiam-se, Juízes e Promotores de Justiça – que, sem a menor cerimônia, colocaram em prática uma série de enunciados firmados sem o menor compromisso doutrinário e ao arrepio de qualquer norma jurídica vigente, transmitindo a impressão de que tudo se fez e se faz com um pragmatismo encomendado simplesmente e tão-somente para diminuir o volume de trabalho dos Juizados Especiais Criminais.46 (grifo do autor) E aqui, uma vez mais, chama-se a atenção para a ineficiência da estrutura estatal, que reconhece sua falha na efetivação das normas. 45 REDE SOCIAL DE JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS, loc. cit. 46 BASTOS, Marcelo Lessa. Violência doméstica e familiar contra a mulher: lei "maria da penha": alguns comentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1189, 3 out. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9006>. Acesso em: 17 nov. 2008. 26 3.1.2 Conceitos operacionais Com o intuito de tornar claro seu propósito, a “Lei Maria da Penha” apresenta no seu bojo alguns conceitos operacionais. De acordo com o art. 5º: Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.47 (grifou-se) Além da violência física, a Lei consagrou outras formas de violência, sendo elas, a psicológica, sexual, patrimonial e moral, praticadas no âmbito doméstico, familiar ou nas relações afetivas, tendo o legislador afastado, qualquer que seja a ofensa, o rito dos Juizados Especiais. O art. 7º, então, trata de definir cada uma delas, a saber: Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofendasua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.48 (grifou-se) 47 BRASIL, 2006. 48 Ibid. 27 Uma primeira observação que se deve fazer diz respeito a que mulher está sujeita à proteção legal. Conclui-se que qualquer mulher está por ela tutelada, independente da idade, seja jovem, idosa ou até mesmo criança ou adolescente. Nestes últimos casos, haverá superposição de normas protetivas, pela incidência simultânea dos Estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente. Estabelece-se, então, mais uma forma de sujeito passivo próprio. O sujeito ativo, por sua vez, pode ser pessoa de qualquer orientação sexual49, desde que coligada com a vítima por vínculo afetivo, familiar ou doméstico. Aplica-se a lei na agressão de filho contra a mãe, de marido contra a mulher, de neto contra avó, de travesti contra mulher, de companheiro contra companheira, etc. 3.2 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE A Lei 11.340, em vigor desde 22 de setembro de 2006, criou um verdadeiro microssistema visando coibir a violência doméstica e familiar praticada contra a mulher. Não se trata apenas de um diploma de caráter repressivo, mas, outrossim, preventivo e assistencial. Ao tratar com mais rigor as infrações cometidas contra a mulher no âmbito familiar, na unidade doméstica ou em qualquer relação íntima de afeto, coloca em ponto de ebulição a polêmica da afronta à isonomia. Para atender aos seus propósitos, foram introduzidas alterações nos Códigos Penal50 e de Processo Penal51, além da Lei de Execução Penal52. Fora admitida, também, mais uma hipótese de prisão preventiva. Como tais medidas vieram favorecer à mulher em detrimento do homem, há quem sustente a inconstitucionalidade da Lei, bem como de um punhado de seus dispositivos, com base na ofensa ao princípio da igualdade de gênero. 3.2.1 A infração aos princípios da igualdade e da proporcionalidade 49 Pela redação dada ao art. 5º, parágrafo único, da Lei 11.340/06, deduz-se que estão legitimadas no Ordenamento Jurídico brasileiro, indiretamente, as relações homoafetivas. 50 O art. 43 da Lei alterou a alínea f, inciso II, do art. 61, do CP, referente às circunstâncias agravantes. Já o art. 44 da mesma lei aumentou a pena do § 9º e incluiu o § 11, ambos do art. 129 do CP. 51 O art. 42 da Lei acrescentou o inciso IV ao art. 313 do Código de Processo Penal, criando uma nova possibilidade de prisão preventiva. 52 O art. 45 da Lei 11.340/06 alterou a redação do parágrafo único do art. 152 da Lei de Execução Penal. 28 A Constituição, como se sabe, é a “Lei Maior” de um País. É nela que o poder estatal é estruturado, a atividade política regulada e estabelecidos os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Aliás, os direitos e garantias fundamentais constituem os direitos de primeira geração, que surgiram com o constitucionalismo liberal do século XVIII. Segundo Mezzomo, Hoje, de acordo com a universalmente aceita teoria da pirâmide constitucional, criada pelo jurista austríaco Hans Kelsen, podemos visualizar a Constituição como sendo o pináculo, o ponto mais alto da pirâmide legislativa, servindo ela como fundamento de validade e eficácia de todas as outras normas. Abaixo dela, vem todas as outras espécies legislativas, como por exemplo, leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, regulamentos etc... [sic]53 Como visto, todas as demais normas têm que necessariamente se conformar à Constituição para que possam ser constitucionais. Caso contrário, elas serão consideradas inconstitucionais, o que implicaria em sua nulidade. De duas formas essa conformação deve ocorrer: “formalmente”, ou seja, devem ser produzidas de acordo com o processo legislativo estabelecido na Constituição para cada espécie; e “materialmente”, ou seja, devem ter conteúdos que não contrariem disposições constitucionais. Nesse contexto, Slaibi Filho assevera: Ao afirmar que todos são iguais perante a lei, quer dizer a Constituição que somente ela pode criar tratamento desigual para pessoas em igualdade de condições e, realmente, ela o faz, por exemplo, ao conferir prerrogativas a parlamentares, magistrados, militares.54 (grifou-se) No entender de Celso de Mello, no voto proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.797-2: [...] O ponto está em que às leis ordinárias não é dado impor uma dada interpretação da Constituição. De tudo resulta que a lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência da Constituição é, só por isso, formalmente inconstitucional. [...] Com efeito, uma lei ordinária interpretativa não tem força jurídica para impor um sentido ao texto constitucional, razão pela qual deve ser reconhecida como inconstitucional quando contiver uma interpretação que entre em testilha com este.55 (grifou-se) Criar mecanismos que privilegie a mulher em detrimento do homem, por exemplo, num dado momento da História humana, só atrapalhará, visto que caberá ao Poder Judiciário, já assoberbado, corrigir tal disparate. Como muito bem destacou Moura, A igualdade perante a lei obriga, necessariamente, o legislador e o aplicador da norma. Àquele cumpre não conceder vantagens ou desvantagens para uns em 53 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Compreendendo a inconstitucionalidade da Lei de Violência Doméstica. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1869, 13 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11598>. Acesso em: 17 nov. 2008. 54 SLAIBI FILHO, Nagib. Anotações à constituição de 1988. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993. p. 176. 55 MELLO, 2007 apud MOREIRA, 2007, p. 219-220. 29 detrimento de outros; a este cabe respeitá-la, por pressupor-se o respeito ao princípio da igualdade pela própria lei.56 E conclui, reverenciando o princípio da igualdade: Verificando a máxima de que a Constituição está no ápice da pirâmide do ordenamento jurídico e, portanto, todas as normas devem estar de acordo com ela para serem consideradas válidas, e que os princípios constitucionais são verdades fundantes, todos os atos devem respeitar o princípio da igualdade.57 Por sua vez, Leal, citado por Contar, explica:Não há direito à diferença no plano dos direitos fundamentais já acertados constitucionalmente para todos, sob pena de romper o princípio da igualdade jurídica. A possível existência de direitos diferentes só ocorre no sobrenível da normatividade fundamental. [...] As desigualdades possíveis seriam apenas física, psíquica, cultural, estética, ideológica ou econômica.58 (grifou-se) E completa: Portanto, o negro, o índio, o homossexual, a lésbica, o deficiente não são desiguais a ninguém quanto a direitos fundamentais na teoria da constitucionalidade democrática. Tanto eles quanto os brancos, os amarelos, as mulheres, os heterossexuais: “homem ou mulher, são iguais em direitos fundamentais e titulares de igualdade processual (simetria paridade - isonomia) no direito democrático.”59 (grifo do autor) O Texto Constitucional é permeado de vedações sobre discriminação, inclusive a de natureza sexual, expressa como um dos objetivos da Lei Maior, qual seja, “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”60. Por sua vez, o art. 5º, inciso I, da Constituição, consagra, dentre os direitos fundamentais, o “princípio da igualdade”, ao dizer que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, garantindo a todos direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Assim, na lição de José Afonso, “a igualdade constitui o signo fundamental da democracia”61 e é reforçada de maneira normatizada, como acima citado. Tanto a CF/88 como as outras Constituições, enfatizaram de forma expressa tão somente a igualdade perante a lei, no sentido de que as normas devem ser elaboradas e aplicadas indistintamente a todos os indivíduos. É a denominada isonomia formal. Por esta direção, não é preciso formação jurídica para se chegar claramente a duas conclusões, extraídas da interpretação do inciso I, do art. 5º: primeiro, que estabeleceu ele a 56 MOURA, 2005, p. 42. 57 Ibid., p. 54. 58 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 59 Ibid. 60 Art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal de 1988. 61 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 14. 30 regra da igualdade entre homens e mulheres; segundo, que afirmou ser esta igualdade regulada pela própria Constituição, e somente por ela. Destas duas conclusões, ainda, uma terceira se torna possível, qual seja a de que somente as desigualdades estipuladas no próprio Texto Constitucional podem existir validamente. Os desiguais devem ser tratados de forma desigual quando e na medida em que o permita a Constituição. Ora, demais disso, em toda a estrutura constitucional não há um só ponto que autorize seja dado tratamento diferenciado a homens ou a mulheres quando em voga a condição de partes processuais ou vítimas de crime. No entender de Mezzomo, É exatamente isso que a lei de violência doméstica faz: concede uma série de instrumentos de proteção à mulher somente tendo em vista o sexo. A violência doméstica cometida contra a mulher enseja medida protetiva, contra homens não. Há ainda, uma série de diferenças em relação ao processo criminal, até mesmo em questão de competência do órgão jurisdicional e espécies procedimentais.62 Bem explica ele que Se não há autorização na própria Constituição, e lembremos que a igualdade é "nos termos desta Constituição", a lei ordinária nº 11.340/06 afronta o artigo 5º, inciso I, da CF/88, sendo inconstitucional e, portanto, visceralmente nula. Diversamente, quando vemos, por exemplo, diferenças no tempo de serviço para aposentadoria menor para as mulheres, ou na existência de licença maternidade com prazo maior, estamos diante de situações que a própria Constituição estabeleceu, diferenças que são, por conseguinte, constitucionais e válidas.63 (grifo do autor) Em contraposição a esta interpretação, tem se invocado o fato de que os idosos, as crianças e os adolescentes também têm tratamento diferenciado, com a edição dos respectivos estatutos, os quais nunca teriam sido questionados. No entanto, esta premissa é inconsistente, uma vez que idosos, crianças e adolescentes têm previsão constitucional de tratamento diverso, circunstância inexistente para as situações da “Lei Maria da Penha”. Para corroborar os comentários até aqui efetuados, transcreve-se trecho da lavra do Desembargador Romero Osme Dias Lopes, no acórdão nº 2007.023422-4/0000-00, do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: Afirma o art. 5º. I, da Constituição Federal, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Ou seja, o “princípio da igualdade” será violado sempre que a lei gerar desequilíbrio antes inexistente nas relações entre homem e mulher. Assim, de acordo com o art. 5º, caput, da Constituição Federal, todos os cidadãos possuem direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, ou seja, tanto ao homem quanto a [sic] mulher são garantidos os direitos fundamentais, 62 MEZZOMO, 2008. 63 Ibid. 31 sendo estes, portanto, o parâmetro para a igualdade e, conseqüentemente, para as diferenças. Tal se dá porque: “A igualdade jurídica na democracia nivela todos os cidadãos no plano da titularidade dos conteúdos normativos dos direitos fundamentais. Não há que se falar em desigualdade jurídica de direitos fundamentais, porque, uma vez que são cumpridos os direitos fundamentais, o que se tem são desníveis patrimoniais e de personalidade (identidades), sem que tal diferencial pudesse quebrar a igualdade entre as partes a ponto de recuperar a velha máxima de justiça do Estado Liberal – tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais.” Nesse diapasão quando a Carta Magna, dentre o rol de direitos fundamentais, consagrou igualdade entre homem e mulher estabeleceu uma isonomia plena entre os gêneros masculino e feminino, de modo que a legislação infraconstitucional não pode – sob qualquer pretexto – promover discriminação entre os sexos em se tratando de direitos fundamentais, visto que estes já lhes são igualmente assegurados. 64 (grifos do autor) De outra banda, examinando-se o artigo 226, § 8º, da CF, dispositivo este utilizado para embasar a edição da Lei 11.340/06, tem-se que o Constituinte Originário impôs ao Estado o “dever de assegurar a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” Ora, como se pode observar com clareza, o dispositivo não privilegia quem quer que seja, ao permitir a adoção de mecanismos para banir a violência no seio familiar. Se a intenção do legislador fosse beneficiar um dos sexos, teria sido explícito, o que não ocorreu. Por sua vez, a Escola do Direito Penal Mínimo65 prega que o Estado deve criminalizar apenas as condutas que afrontem os valores sociais mais elevados, para que ele atue criminalmente quando indispensável for, no sentido de que a intervenção penal somente se justifica quando absolutamente necessária para a proteção dos cidadãos. Os defensores do minimalismo, numa concepção moderna, entendem o Direito Penal como a ultima ratio da atuação estatal, intervindo apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem incapazes de resolver satisfatoriamente o problema. Como a Lei 9.099/95 não mereceu a devida atenção e aplicação pelos operadores do Direito,a Lei 11.340/06 se contrapôs ao movimento mundial de ressocialização, de menor intervenção estatal e de conciliação, para impor, através do caminho mais fácil do Direito Penal, um “temor” para conter a violência doméstica e familiar. Para Pileggi, A escolha é lógica e comodista: o Direito Penal tem coação, seus custos são mínimos, pois toda a estrutura está montada, necessitando de pequenos ajustes. O correto seria a adoção do sistema que a lei preconiza, mas que dificilmente será 64 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 65 VOLPE FILHO, Clovis Alberto. Quanto mais comportamentos tipificados penalmente, menor o índice de criminalidade? Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 694, 30 maio 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6792>. Acesso em: 7 jan. 2008. 32 implantado a curto ou médio prazos. É evidente uma visão imediatista e até uso eleitoral da questão, tão grave e séria para a sociedade brasileira.66 Lopes não diverge: [...] a referida lei é um grande engano. Estabelece a obrigatoriedade do caminho penal quando se sabe que a mulher vítima de violência doméstica – exceto a sexual e de lesões graves – não quer que seu companheiro ou marido seja preso, muito menos condenado criminalmente. A solução não está no Direito Penal, mas na criação de políticas públicas com compromisso de recuperar o respeito mútuo que deve imperar no seio familiar. A condenação do agressor só piora a relação familiar. A vontade da mulher agredida é de que as agressões cessem, não porque o marido foi preso, mas porque de alguma forma o Estado interveio para apaziguar o problema familiar.67 (grifou-se) E complementa: Esta lei é inócua, injusta, anti-social e retrógrada, pois volta a ter a pena privativa de liberdade como principal sanção quando todo direito penal caminha para fuga da prisão com aplicação de penas alternativas. A pena privativa de liberdade data de 1814, o que nos faz refletir e constatar que, depois de quase 200 anos, é inaceitável continuar insistindo no encarceramento. Outros meios mais eficazes precisam ser aplicados para coibir a criminalidade; a pena alternativa, onde é efetivamente aplicada, tem se mostrado um sucesso [...]68 Pois é, uma vez mais a atitude do legislador brasileiro não encontrou ressonância constitucional e social, muito menos compreendeu ele o comentário de Moura, nestas palavras: “[...] uma norma fere o princípio da igualdade se tiver como objeto uma pessoa ou um grupo determinado, ou seja, se os destinatários forem determinados ou determináveis”69, pois “É possível ‘atos de igualar’ ou ‘discriminações positivas’, contudo, atenta-se para a necessidade de interpretação dessas questões para que os valores constitucionais abstraídos de suas normas não sejam invertidos.”70 (grifos da autora) Analisa-se, apenas para exemplificar a discrepância, um fato corriqueiro no campo penal: se a mulher pratica lesão corporal leve em seu esposo, resultante de discussão no seio familiar, infringirá o art. 129, caput, do Código Penal, respondendo, por isso, a um Termo Circunstanciado71 perante o Juizado Especial Criminal; de outra parte, se o esposo pratica dita lesão corporal leve em sua mulher, responderá a Inquérito Policial, será afastado de sua residência e correrá o risco, inclusive, de ser preso preventivamente! É essa a igualdade almejada, quando num mesmo contexto fático a agressão levada a efeito contra uma pessoa de determinado sexo gera conseqüências diversas às geradas ao outro? 66 PILEGGI, Camilo. Lei maria da penha: acertos e erros. Disponível em: <http://www.epm.sp.gov.br/NR/rdonlyres/535A268E-D6D0-48CA-BF8D- 88FC7E9E1BC4/2055/ArtigoLEIMARIADAPENHA.doc >. Acesso em: 22 out. 2008. 67 MATO GROSSO DO SUL, 2008. 68 Ibid. 69 MOURA, 2005, p. 112. 70 Ibid, p. 113. 71 Art. 69 da Lei Federal nº 9.099/95. 33 Na teoria e na prática, a proporção que teria um crime cometido pelo homem deveria ser a mesma tomada pelo crime cometido pela mulher. Ademais, a construção dos tipos penais leva em conta o bem ou interesse jurídico que a norma penal deve tutelar, como a vida, a integridade física, a honra, o patrimônio, etc.; mas nunca o sujeito a ser penalizado, haja vista que os bens jurídicos tutelados não são do interesse exclusivo de um indivíduo, mas de toda a coletividade, considerando que a prática do delito ofende todo o corpo social. No dizer de Luizi, citado por Gama, é matéria inquestionável o desprestígio do sistema penal; deve-se a uma série de causas; e uma delas, talvez a fundamental, é a existência de uma legislação onde são tipificados criminalmente milhares de fatos, em grande número sem autêntica relevância, gerando a hipertrofia do direito penal.72 Para Gomes, referindo-se às discriminações positivas, a igualdade Ordena ao legislador que preveja com as mesmas conseqüências jurídicas os fatos que em linha de princípio sejam comparáveis, e lhe permite realizar diferenciações apenas para as hipóteses em que exista uma causa objetiva – pois caso não se verifiquem motivos desta espécie, haverá diferenciações arbitrárias.73 No mesmo sentido, leciona Moraes: A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações [...]74 (grifo do autor) E complementa: Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionais protegidos.75 (grifou-se) É inadmissível o sofrimento vivido pela biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes76, resultante de atos bárbaros de seu marido, o professor universitário e economista Marco Antônio Herredia Viveros, que por duas oportunidades tentou matá-la. No entanto, se o Estado brasileiro não conseguiu puni-lo eficazmente, provocando a ira de vários 72 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A família no direito penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 132-133. 73 GOMES, Mariângela Gama de Magalhães. O princípio da proporcionalidade no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 60. 74 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2006. p. 31. 75 Ibid., p. 32. 76 Maria da Penha tentou de todas as formas processar o marido na justiça brasileira, sem conseguir, contudo, que ele fosse punido. Em 1997 ela denunciou o caso à OEA. Em 2001 ele foi condenado a dois anos de prisão. Mesmo paraplégica em virtude da violência, depois de se recuperar Maria da Penha começou a atuar em movimentos sociais e se tornou o símbolo contra a violência e a impunidade cometidas contra as mulheres. 34 organismos internacionais, dentre eles a Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, é o Governo brasileiro quem terá que arcar com o ônus do emperramento de sua estrutura de Poder, não sua população, sobretudo a do sexo masculino. Não obstante vista como inadequada ao sistema jurídico brasileiro, a Lei 11.340/06
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