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56. E. Morin, Leparadigme perdu. La nature bumaine, Seuil, 1973; reed. "Points-Essais", 1979, pp. 123-4. 57. Seria precisp acrescentar Russell e Wittgenstein, que quase não empre- gam a palavra "sabedoria", mas indicaram claramente que o objetivo da mosofia era uma certa "libertação" e uma certa "pacificação" do espírito, chegando a de- sembocar, em Russell, numa "união com o universo". Ver, por exemplo, o último capítulo dos Problemas de filosofia de Russell ("O valor da filosofia") e as obser- vações de G.-G. Granger sobre o que ele denomina "sabedoria" de.Wittgenstein: Wittgenstein, Seghers, 1969, pp. 5-8 e 85-90. Ver também as obserVações de P. Hadot sobre a "sabedoria silenciosa" de Wittgenstein, Exercices spirituels et philosopbie antique, Albin Michel, 2002,pp. 377-8 e 384-5; Laphilosophie comme maniere de vivre, Albin Michel, 2001, pp. 209-13. I I I 117 Filosofia e sabedoria Por que filosofar? A palavra parece responder por si mesma: para a sabedoria (sophía), da qual a filosofia é o amor (philein, "amar") ou a busca. Mas nada prova que a etimologia tenha razão. Por que uma palavra diria tudo? Eu dou mais peso à tradição, quando ela é filosófica . No caso, é impressionante. Que a sabedoria é o alvo da fi- losofia, isso é o que a maior parte dos filósofos, durante vinte e cinco séculos (com a única exceção, porém, de al- gumas décadas do século XX), não pararam de repetir, desde os pré-socráticos até Alain ou Éric Weil - passando, embora não possamos citá-los todos, por Platão ou Aristó- teles, Descartes ou Espinosa, Voltaire ou Kant, Schopenhauer ou Nietzsche57• Alguns sustentaram, no último período, que --. __ ... -- .. --.-.---------- .. -------.-. _u '- l GoHTE_ SPOI~~'LLé) ~vk. fi *iOSCfq ,11 I 5. P: M o:di(\~ i-OV1~v))cz'oo j Conclusão C. "'oV'l).l7,]V /;YnQ.;\l~ A FILOSOFIA G 116 É um ser de uma afetividade intensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso e angustiado, um ser fruidor, ébrio, extasiado, violento, amante, um ser invadido pelo imaginário, . um ser que sabe a morte e não pode acreditar nela, um ser que secreta o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se alimenta de ilusões e de qui- meras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são sempre incertas, um ser submetido ao erro, à errância, um ser úbrico que produz desordem. E, como chamamos de loucura a conjunção da ilusão, da desme"StIra,da instabilida- de, da incerteza entre real e imaginário, da confusão entre subjetivo e objetivo, do erro, da desordem, somos obrigados a ver que homo sapiens é homo demens.56 Alguém dirá que a verdadeira loucura permanece, contudo, como exceção. Sem dúvida. Mas a verdadeira sa- bedoria também. Ela nunca é dada, mas sempre a conquis- tar. Esse é outro assunto, sobre o qual é hora de concluir. .' \J li •.•• ~';'":.";>. t.",' "',';:;.. .. iiiIiia. '.' .'.; ~ .. .~. ~•• iiiA~••••••••••••••••.~....; ilíA.~••••~ . .~ ••••.,••••••••• ~~ f 'I:i i 'I! !\ 1i , 'i r L' 119 60. Kant, Opus postumum, trad. fr. F. Marty, PUF, 1986, pp. 245-6 e 262. 118 • ou seja, "douto" (savant) e "sábio" (sage). (N. da T.) 58. Princípios dafilosofia, Carta-prefácio. 59. Husserl, Meditações cartesianas, Introdução,.1. .•....... ;; . _.- '==m=som,rmm •••••rmUi'*#_' lO"" O;'''Bõ" '9' ",=""""";;;:S;;~~"'it=";:;="~~';;;;;;;="";;:;;;;';~1 I' - . "- -, ri i I .. . I I I ~.. ' .. I!:Jr ).' ! I ~~~~~; . :1 .'C.' A FILOSOFIA FILOSOFIA E SABEDORIA I ~./. : I isso já não era verdade. Mas, se eles transformam a coisa a cularmente nisso. A filosofia é "a doutrina e o exercício da I: • ..talponto, por que conservam a palavra? sabedoria (e não simples ciência)';, escreve ele. Como po- • . O inventor do termo seria Pitágoras, que se diziaphi- deria alguém exercitar-se por nós? Como poderíamos não .. lósophos, por modéstia, para não aspirar ao título de so- mais necessitar fazê-lo? Por isso é preciso filosofar: "O • . phos, isto é, de douto ou de sábio. Em francês, essas duas homem não está na posse da sabedoria. Ele apenas se in- • últimas palavras" serão intercambiáveis durante muito clina para ela e pode apenas ter amor por ela, o que já é • tempo. A sabedoria não é um saber? É o que ainda se lê bastante meritório. (. ..) A filosofia é para o homem esforço • em Descartes: "Essa palavra filosofia significa o estudo da em direção à sabedoria, o qual está sempre inconcluso. "60 • sab~doria, e por sabedoria não se entende ap~nas a pru- A sabedoria é o alvo; a filosofia, o caminho. Mas a sabedo- . dência nos negócios mas um perfeito conhecimento de ria já está, pelo menos em parte, no caminho que conduz • todas as coisas que o homem pode saber, tanto para a con- até lá. Se fôssemos sábios, não mais precisaríamos filoso- • dução de sua vida quanto para a conservação de sua faroMas, se fôssemos completamente loucos ou completa- I saúde e a invenção de todas as artes."58Mas toda ciência é mente. ignorantes, não poderíamos fazê-lo. • impessoal, o que a sabedoria nunca é. Mas toda sabedoria Há sabedoria e sabedoria. Os antigos distinguiam uma • é encarnada, com o que as ciências nada têm a fazer. Aqui, sabedoria prática (phrónesis, prudentia), que é menos o ~ Montaigne, Kant ou Husserl são mais esclarecedores do alvo da filosofia do que sua condição, e uma sabedoria ' • que Aristóteles ou Descartes. Lembremo-nos da frase do teorética, como diz Aristóteles, isto é, contemplativa, inte- primeiro: "Conquanto possamos ser doutos no saber de lectual ou espiritual (sophía, sapientia), que os filósofos • outrem, sábios, de todo modo, nós só podemos ser em buscam e que às vezes lhes acontece quase experim~ntar. t nossa própria sabedoria." Husserl concordaria: liAfilosofia Convém evitar opor demasiadamente uma à outra (a ver- • - a sabedoria - é de certa forma um assunto pessoal do fi- dadeira sabedoria seria a conjunção das duas), mas tam- : t ..1ósofo. Ela deve constituir-se enquanto sua, se~ sua sab~- bém não se deve confundi-las totalmente. Não é preciso • doria: ~eu saber, que, embora tenda para. o ~~lversal, seja fazer filosofia para ser prudente ou sensato, nem mesmo adqumdo por ele e que ele deve poder Justificardesde a (se a pessoa tiver um pouco de sorte e for dotada para a • origem e em cada etapa, apoiando-se em suas intuições vida) para ser sereno ou feliz. A sabedoria, reciprocamen- , I • absolutas."59A filosofia é um trabalho, mas que ninguém te, mesmo supostamente alcançada, não é suficiente para I t pode fazer em nosso lugar - e que ninguém, mesmo por as necessidades da vida cotidiana. É. o que lembra a histo- I sua própria conta, pode concluir. Kant insiste muito parti- rieta bem conhecida de Tales, que contemplava o "céu... e caiu dentro de um poço. A filosofia não é nem uma pana- t I I. i I '\, .... ,.:.... I "I r 121 62. O banquete, 204 a-b. i, 120 61. P. Hadot, op. cit., pp. 291 e 309. , , --- -- l-~=~~==.....,~~~ '<llffillm-m~_"Wl""",._r_~.:;.m;:"~;c,,q.~ ' A FILOSOFIA FILOSOFIAE SABEDORIA I' I I céia nem uma garantia. Houve grandes filósofos infelizes gria... Um sábio? Seria um homem perfeitamente feliz lú- r , ou loucos (Nietzsche foi sucessivamente um e outro), e até cido e livre. Isso nos deixa uma importante marge~ de mesmo um, e não dos menores, capaz de aderir ao partido progressão. nazista. Não é uma razão para não filosofar, mas o é para Pitágoras tinha razão: os filósofos não são uns sábios. deixar de crer na filosofia como numa espécie de seguro Platão tinha razão: nem os sábios filosofam (não precisam total contra as vicissitudes da existência ou as fraquezas da disso) nem os ignorantes (não podem). Então, quem pode humanidade. "Escarnecer da filosofia", dizia Pascal, "é ver- e deve filosofar?Somente aqueles - todos nós - que estão dadeiramente filosofar." Isso é mais filosófico, e mais entreos dois62 • sábio, do que a seriedade grandiloqüente de um Heidegger. "O mal mais contrário à sabedoria", escrevia Alain, "é A filosofia é uma atividade, um esforço, uma procura, exatamente a tolice." Isso talvez diga o essencial. Trata-se de cujo alvo, para quase todos, é a sabedoria. É suficiente pensar (filosofia) e de viver (sabedoria) o mais inteligente- dizer que i filoso~ianão é a sabedoria mas no máximo - e mente possível, isto é, em conformidade com a razão - ba- no melhor dos casos _ um caminho de pensamento, que a mologoúmenos, diziam os gregos - em si e em tudo. A felici- persegue ou se aproxima dela. A filosofia é um trabalho; a dade está no fim, talvez. Mas é a verdade que é o caminho. sabedoria seria antes um repouso. A filosofia é um certo tipo de discurso; a sabedoria, uma certa qualidade de si- lêncio. A filosofia é uma maneira de pensar; a sabedoria, uma maneira de viver. Como caracterizá-la?Pela tranqüili- dade de alma (ataraxía), pela liberdade interior (autár- keia) e pelo sentimento de uma unidade, mas feliz, com a ,jverdade ou com o real (o amor lati de Nietzsche ou dos estóicos, o amor intellectualis de Deus ou da Natureza em Espinosa, a "consciência cósmica" segundo Pierre Hadot61). Os ocidentais, nesse caminho, esqueceram com dema~iada freqüência o corpo, o exercício (áskesis), de que os orien- tais - especialmente graças à ioga e às artes marciais - fazem às vezes o caminho principal. Mas todos concordam quanto ao objetivo, que é de paz, de simplicidade, de li- berdade, de verdade, de unidade, de serenidade, de ale- f .,j. /~~:.... li 1/•I '-'I "•••I I •II I•t i e li•I i t, e e •••I''.I)•I)•F~U') p----------------------- I . ~~ . ... '" " 2 UNIG/CAMPUS V DISCIPLINA: FILOSOFIA DO DIREITO PROP Marlene Soares MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2010 I Sobre a Filosofia do Direito 11 A especificidade da filosofia do direito Para que na multiplicidade do pensamento se identifique a filosofia do direi- to, exige-se uma dupla especificidade: ela é um ramo específico da filosofia geral e o máximo pensamento possível sobre o próprio direito. Distinguir a filosofia do direito tanto da filosofia geral quanto do pensamento jurídico comum é a tarefa inicial da sua identificação. Filosofia do direito e filosofia i Sobre a Filosofia do Direito A filosofia, ao mesmo tempo em que é uma sistematização do pensamento, é um enfrentamento do próprio pensamento e do mundo. Tudo isso pode se apli- car a objetos específicos da própria filosofia, como o direito. E, assim sendo, a filosofia do direito nada mais é que a filosofia geral com um tema específico de análise, o direito. A filosofia do direito, sendo objeto da filosofia, não é, de modo algum, um método. Assim sendo, não se pode dizer que haja a filosofia aristotélica, a ma- quiavélica, a hegeliana e a dos juristas. Pelo contrário, o direito, sendo um tema, equipara-se ao rol de outros temas. Pode-se dizer então da filosofia política, da filosofia da religião, da filosofia da economia, da filosofia da estética e da filoso- fia do direito. A visão filosófica marxista pode tratar tanto da política, da economia, da es- tética, quanto do direito. Ao se dizer então de uma filosofia do direito marxista, isso se refere a um tema específico, o direito, a partir de um dos grandes métodos filosóficos estabelecidos, o marxismo. A filosofia do direito não se opõe à filosofia agostiniana, nem a filosofia política se opõe à filosofia althusseriana. Agostinho e Althusser são autores c1~métodos filosóficos; a política e o direito são temas. Sendo a filosofia do direito a própria filosofia geral com um objeto específico, a indagação que se põe preliminarmente diz respeito à própria localização do que seja jurídico, já que é isso que dá identidade à filosofia do direito. A filosofia do direito, enquanto tema específico da filosofia geral, é-lhe indis- tinta quanto aos mé~odos e seus grandes horizontes. Um kantiano enxerga a reli- gião, a sociedade, a política e o direito a partir de uma perspectiva geral que é o próprio kantismo. O mesmo a um tomista ou a um marxista. Sendo ainda filosofia, a filosofia do direito não é estranha à estrutura geral do pensamento filosófico, configurando-se apenas como o aprofundamento de uma temática específica. Por conta disso, o problema inicial da filosofia do direito está na especificida- de do que se possa considerar por direito. A depender dos juristas, essa questão historicamente não se resolve de modo uníssono. Para alguns, o fenômeno jurí- dico se circunscreve às normas estatais. Para outros, as apreciações sobre o justo também entram na composição do direito. Da parte da vida jurídica, essa não é uma resposta pronta. Mas também a filosofia do direito não se limita à resposta do jurista sobre o próprio direito, na medida em que se estende para além da compreensão média do operador do direito sobre si próprio e sua atividade. Assim, a filosofia do direito pode desvendar conexões íntimas entre o direito e a política, o direito e a moral, o direito e o capitalismo, que escapam da visão mediana do jurista. Tais limites sobre o que é o jurídico da filosofia do direito são ainda variáveis a depender da visão filosófica que se adote para essa compreensão. Um kantiano trabalha com uma certa relação entre direito e moral, mas o foucaultiano trabalha essa relação de outro modo. Por essa razão, não se pode encerrar o jurídico da fi- losofia do direito em limites estreitos que não permitam dar conta da variedade de apreciação sobre tal fenômeno. Mas também não se pode perder de vista alguma referência mínima de diálogo entre as tantas apreciações sobre o que é direito, sob pena de se findar a possibilidade de uma mirada relacional e comparativa. Assim ~:I~ndo,em se tratando de um objeto histórico variável socialmente e variável também a depender da visão filosófica, haverá sempre conexões entre a filosofia do direito com outros objetos específicos da própria filosofia que lhe sejam próximos e cujas fronteiras sejam porosas. A filosofia do direito dialoga di- "'12 Filosofia do Direito • Mascaro retamente com a filosofia política, na medida em que, na maior parte da história, política, direito e Estado guardaram íntima proximidade. Mas também se há de descobrir alguma ligação entre o direito e a ética, na medida da apreciação do justo enquanto virtude. Na prática, o fenômeno jurídico se espraia sobre inúmeros fenômenos, alguns mais proximamente, outros mais distantes, mas sempre com possíveis conexões. Pode-se dizer que a filosofia do direito é irmã da filosofia política, é certo, mas, embora lhe seja mais distante, quem há de dizer que seja totalmente estranha à filosofia da estética? Não há alheamento do fenômeno jurídico em relação a ne- nhum outro fenômeno histórico e social, e por isso também a filosofia do direito é a totalidade da filosofia, apenas contando com um eixo especificado. Por tal razão, em muitos momentos a filosofia do direito deve se socorrer de outros objetos específicos da filosofia para sua compreensão e mesmo para sua diferenciação, se for o caso. Se no passado grego clássico o direito era considerado uma manifestação política por excelência, a sua compreensão só pode ser dada em conjunto com as questões da filosofia política clássica. Mas há de se lembrar que o direito era parte da paideia, da educação grega. Assim sendo, há até nexos entre uma filosofia do direito e uma lata filosofia da educação. Filosofia do direito e direito De outro lado, além de ser um objeto específico da filosofia geral, lastreado em seus métodos, a filosofia do direito deve ser especificada em relação ao pró- prio pensamento jurídico. É certo que não se chama o arrazoado de uma petição inicial por filosofia do direito. Os argumentos de um juiz ao prolatar uma sen- tença em geral são técnico-normativos,não jusfilosóficos. Mas há um campo do conhecimento técnico-jurídico que não é eminentemente casual, vinculado aos casos em disputa nos fóruns. Quando alguém transcende a análise de uma norma jurídica específica do Código de Processo Civil e se pergunta sobre o que são as normas jurídicas em geral, está dando um salto de generalização de suas refle- xões. A partir de que grau esse salto consegue já se situar naquilo que se possa chamar de filosofia do direito? Durante grande parte da história, com a indistinção do direito em relação à política, à ética, à moral e à religião, os discursos mais amplos sobre o direito, que não era ainda eminentemente técnico, eram tidos por filosofia do direito. No entanto, com o capitalismo, a contar da modernidade, o direito adquire uma eE:- pecificidade técnica. Ele passa a ser considerado a partir do conjunto das normas jurídicas estatais. A partir desse período, conseguiu-se construir uma espécie de pensamento que, não sendo estreitamente ligado a fatos ou normas ou casos iso- .~... - ,- I I I I, I I I i I r I I \ Sobre a Filosofia do Direito 13 lados, mas sim tratando das normas, situações e técnicas jurídicas de modo mais geral, ainda assim está adstrito ao mundo técnico-normativo. Costuma-se chamar a essa espécie de alto pensamento jurídico por teoria geral do direito. A teoria geral do direito, que na verdade não é teoria geral de todo o fenômeno jurídico, mas sim das técnicas jurídicas estatais capitalistas consolidadas a partir da modernidade, pode de modo mais exato ser denominada por teoria geral das técnicas jurídicas, ou mesmo teoria geral da tecnologia jurídica. Esse pensamen- to não é casual nem eminentemente ligado a uma experiência técnica específica. Ele já consegue ser geral, na medida da generalização das técnicas jurídicas no capitalismo moderno e contemporâneo. 1 No entanto, ainda assim, a teoria geral do direito não salta um grau qualitativo distinto da própria lógica interna do afazer jurídico quotidiano. É verdade que a discussão sobre o conceito de ordenamento jurídico e a questão da teoria geral da relação jurídica são maiores do que a pergunta sobre o prazo para a interposição de um recurso no processo penal, mas ainda assim não logram alcançar a reflexão mais alta sobre o próprio direito em relação ao todo da história e da sociedade. A filosofia do direito é um pensamento ainda mais alto e mais vigoroso que a teoria geral do direito. Enquanto a teoria geral do direito, a p;;l.rtirda multiplici- dade das normas, indaga-se sobre o que é uma norma jurídica estatal, a filosofia do direito indaga a respeito da legitimidade do Estado em ditar normas. De certo modo, a teoria geral do direito para nos limites internos da construção jurídica técnica. Mas a filosofia do direito pega o todo do direito nas mãos. Há uma fronteira muito tênue entre a teoria geral do direito e a filosofia do direito. Hans Kelsen, o mais importante teórico geral - dito cientista - do direito do século XX,é um pensador de rigorosa construção metodológica filosófica. Suas reflexões são teoria geral do direito e filosofia do direito, portanto, de um grande jurista e de um grande filósofo ao mesmo tempo. Torna-se muito difícil distinguir os momentos em que fala o teórico geral do direito dos momentos em que fala o filósofo. O mesmo se pode dizer, por exemplo, de dois outros gênios ao mesmo tempo da filosofia e do direito do século XX,Evgeny Pachukanis e Carl Schmitt. É verdade que os assuntos do direito, ao serem tratados pela teoria geral do direito, abeiram-se daquilo que possa ser a filosofia do direito. No entanto, en- quanto aumento quantitativo e generalização do labor técnico e empírico do juris- ta, estão ainda adstritos ao campo dessa teoria geral. Enquanto salto qualitativo, na superação do encerramento técnico e na relação com o todo histórico e social, inicia-se então a filosofia do direito. Trata-se de uma distinção bastante variável e difícil, que em geral é tomada pelo jurista como uma divisão de tarefas enci- I Remeto à leitura do meu livro Introdução ao estudo do direito. São Paulo, Quartier Latin, 2007. l ~ 14 Fiiosofia do Direito • Mascaro c1opédica. Um assunto como o da norma jurídica é tomado, quase sempre, como assunto de teoria geral do direito - sendo ensinado, pois, na disciplina universi- tária da Introdução ao estudo do direito. A reflexão sobre o justo, por sua vez, se a deixa reservada à disciplina universitária chamada por Filosofia do direito. Mas não se podem estudar as duas questões como isoladas e alheias entre si, academi- camente bem instaladas em duas disciplinas específicas e insulares. Na verdade, a filosofia do direito, em retrospecto, é a própria alimentação geral da teoria geral do direito e dos ramos do direito em específico. Da mesma maneira que é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e os ou- tros objetos filosóficos específicos, é fluida a fronteira entre a filosofia do direito e o pensamento geral produzido pelos juristas sobre suas próprias técnicas. Nesse entrecruzamento do pensamento jurídico e do pensamento filosófico levanta-se a filosofia do direito. Um pensamento de juristas ou de filósofos? Sendo um objeto específico da filosofia, a filosofia do direito é uma disciplina de filósofos. Mas se dá com a filosofia do direito o mesmo que ocorre com as filo- sofias de objeto bastante específico. Em geral, o filósofo de formação ampla não se ocupa das questões da filosofia da música, da filosofia da educação, e muito dificilmente da filosofia da religião. O artista filósofo é que se ocupa da filosofia da música, o religioso filósofo em geral é que se ocupa da filosofia da religião e o educador filósofo é quase sempre o que cuida da filosofia da educação. O mes- mo ocorre com a filosofia do direito. No mais das vezes, é o jurista filósofo que se ocupa da filosofia do direito. Quase sempre o filósofo generalista desconhece o direito. E o jurista, por sua vez, nunca se conformou em ser apenas um prático jurídico sem vislumbrar as razões maiores e últimas de sua atividade. Por isso, em várias ocasiões, a filosofia do direito acaba sendo um produto de juristas filósofos. O pensamento jurídico que transcende o nível de uma mera constatação téc- nica quotidiana, e portanto alcance o porte da teoria geral do direito, é sempre um pensamento de juristas, na medida em que é o jurista o operador do direito e o conhecedor de suas engrenagens. Mas, para que o jurista possa alcançar uma reflexão mais alta sobre o próprio direito, necessita do ferramental filosófico, que não é o mesmo da racionalidade jurídica técnica. A filosofia do direito, assim, alimenta uma dúplice exigência: o conhecimento profundo do direito e o conhecimento profundo da filosofia. Desde a Idade Mo- derna, mas em especial a partir do século XIX,o direito tornou-se um ramo muito especializado e aprofundado do conhecimento. Por isso, às pessoas de formação r.'.'",l- I Sobre a Filosofia do Direito 15 geral, mesmo de boa formação universitária em outras áreas, escapa uma noção suficiente do direito. Nas faculdades, o graduado em filosofia quase nunca recebe formação jurídica. Daí que a dúplice exigência da filosofia do direito acaba sen- do estreitada pela especificidade do conhecimento jurídico. Um filósofo geral lê a filosofia do direito pelos olhos de um leigo, ou em geral pelos olhos de filósofo político que em geral é, mas um jurista que alcança a filosofia lê a filosofia do di- reito plenamente. Na realidade contemporânea, no entanto, a atividade jurídica e o pensamen- to conservador e positivista afastam do jurista uma formação profunda e ampla de filosofia. Em primeiro lugar, devido ao conservadorismo do jurista, homem em geral a serviço das elites, que não querem nenhuma contestação ao dado. Em segundo lugar, devido ao rebaixamento universitário que carreia o jurista à so-brecarga do mero conhecimento de técnicas, somando informações sem perfazer, em conjunto, sua formação. E, além disso, também pela estrutura mesquinha do afazer do jurista na sociedade capitalista, premido entre a atividade extenuante de seu ganha-pão que não lhe permite galgar um pensamento mais alto do que o exigido para o quotidiano e a alma contabilista que enxerga o conhecimento como lucro e não como plenitude para situar-se no mundo e transformá-lo. Se a filosofia do direito acaba sendo produto do jurista filósofo, isso não se deve a um pretenso fato de que seu caráter jurídico fosse um pensar em sepa- rado. O separado é o objeto, mas o método de pensar é o geral, estabelecido na história da filosofia e em suas possibilidades. O jurista filósofo, ao fazer filosofia do direito, é filósofo. Alguns objetos específicos da filosofia, por serem mais amplos, são mais dados ao conhecimento geral. A política, por espraiada social e historicamente a todos, acaba sendo tábua mínima do filósofo, que então é também filósofo político. A religião, como fenômeno muito recorrente aos indivíduos, também abre espaço mais facilmente à filosofia da religião. Já, em se tratando do direito, o encami- nhamento a uma filosofia do direito é mais difícil. O filósofo não se ocupa, ou não vê importância, ou desconhece o direito. E, ironicamente, por sua vez, o jurista também ou não se ocupa ou não vê importância ou desconhece a filosofia. Daí a abundância de juristas e o especialíssimo número de filósofos do direito. A expressão máxima da verdade do direito A filosofia do direito exercita o papel de verdade máxima sobre o próprio di- reito. No afazer quotidiano do processualista, considera-se que a sentença é válida se prolatada por tribunal competente. Diz-se, então, que a competência formal dá legitimidade ao mando jurisprudencial. Mas é justamente uma argumentação L_ 1 I "-16 Filosofia do Direito • Mascaro jusfilosófica sobre o que é legitimidade que revestirá com tal chancela de legítima a própria sentença judicial. Nesse ponto, a filosofia do direito parece ser pouco distinta da própria teoria geral do direito. Ao sistematizar o todo do pensamento jurídico, a filosofia do di- reito esclarece o que é dado. Mas o direito não é dado apenas no seu aspecto in- terno, no seu afazer de juristas. Ele se manifesta socialmente, de modo histórico, a partir de determinadas estruturas e relações sociais. Por isso, a filosofia do direito, ao abarcar o todo do fenômeno jurídico, deve necessariamente se debruçar sobre a relação do direito com a economia, com o capitalismo, com a política, com a cultura, as religiões, as classes sociais. Ela não é só a expressão máxima do afazer do jurista - tarefa que se costuma delegar à teoria geral do direito -, mas, sim, expressão máxima do próprio direito enquan- to verdade social. Os fios escondidos do direito muitas vezes o determinam mais que suas ca- madas visíveis aos olhos do jurista. Sabemos que as normas jurídicas são estatais, mas por que há Estado? Por que são as normas jurídicas que protegem o capital? O afazer do jurista e sua totalização das técnicas não alcançam tal nível. Mas tais perguntas respondem muito mais sobre a verdade do direito do que a somatória do conhecimento parcial que não vislumbra a totalidade das relações sociais do direito. Por essa razão, a filosofia do direito se ocupa das relações sociais que são cons- tituintes e constituídas pelo direito, e isso envolve também o campo da apreciação do direito enquanto manifestação do justo e do injusto na sociedade. O jurista positivista, no seu afazer quotidiano, afasta de suas reflexões a ocupação com o justo. Mas o justo é uma espécie de sombra do próprio direito, que o acompanha inexoravelmente, ainda que das formas mais distorcidas possíveis. De modo geral, o justo é a legitimação filosófica e ética do jurídico. Ocupar-se do justo, portanto, é uma espécie de tensão máxima à qual há de se conduzir a filosofia do direito. A filosofia do direito tomada no seu sentido conservador é tão somente a ex- plicação e a sistematização do dado e reiterado como jurídico. Mas a filosofia do direito como original, como arrancar da verdade da entranha do direito, é maior: ela se ocupa da relação do fenômeno jurídico com a totalidade da sociedade, e não somente com a totalidade interna das técnicas jurídicas. Acima de tudo, sen- do uma provocação ao direito e ao mundo, a filosofia do direito aponta as razões estruturais e o caráter injusto ou justo do direito e do próprio mundo. Dos mais altos interesses filosóficos do direito estão a relação estrutural do direito com o todo histórico e social e a preocupação com as apreciações do justo e do injusto. rr-- I-- i Sobre a Filosofia do Direito 17 Apensar nos vários temas da filosofia, nos seus múltiplos ramos, como no caso da filosofia do direito, há um alto papel geral, que é o posicionamento político em face do mundo, do conhecimento, dos tempos e da estrutura da sociedade, mas há também um alto papel específico que se lhe acresce. Um jurista é um homem do senso comum, que age com diligência técnica mas reproduz um horizonte con- servador. Um filósofo do direito que se limite a colecionar as várias visões sobre o direito é um pensador do direito, mas um homem ilustrado e ainda conformado aos limites do próprio tempo. O filósofo do direito pleno é aquele que, de posse do conhecimento filosófico, amplia os horizontes de seu tempo. Virulento contra as injustiças, aponta para o justo que ainda não existe. Em geral, na história do pensamento jurídico, o justo foi sempre tomado como uma preocupação legitimadora e conservadora. Nos tempos medievais e moder- nos, o justo era a manutenção do já dado, não importando qual fosse esse dado, porque, para os medievais, Deus o queria, e, para os modernos, a ordem exigia a conservação do já existente. Mas o arrancar da verdade última do direito e do todo social exige uma postulação crítica sobre o justo. O justo, como aquilo que não é, faz por revelar as estruturas do injusto nas sociedades existentes. A explo- ração capitalista, a distribuição desigual das riquezas, a indignidade, a tortura e a perseguição são exemplos daquilo que pode passar até hoje por direito, mas que se deve rejeitar com virulência. O jurista médio enxerga em tudo isso norma, e portanto não se inquieta com tais situações. O filósofo do direito, arrancando o máximo de verdade do direito e da sociedade, aponta a sua tamanha injustiça. O pensar o direito em termos radicais exige o pensar a própria sociedade e a história em termos radicais, até porque as mazelas e estruturas de exploração são conexas. O vigor de pensar e apontar o injusto e o justo faz da filosofia do direi- to a razão que vai além. Nesse momento, o maior pensamento jurídico não é só uma explicação profunda do direito, é o enfrentamento do direito e da sociedade, porque somente por meio da transformação o que é injusto poderá resultar em alguma forma de justo. Enquanto disciplina universitária, a filosofia do direito é pacata e ilustrada. Enquanto verdade máxima do direito, ela é a grandeza do en- frentamento. Extraída do fundo do pensamento original e radical, crítico e transformador, a filosofia do direito é verdade jurídica maior que o próprio direito. ~ j 00000001 00000002 00000003 00000004 00000005 00000006 00000007 00000008 00000009 00000010 00000011 00000012 00000013 00000014
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