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Francisco Alves MINHA VIDA (AUTO BIOGRAPHIA)

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Prévia do material em texto

[Capa] 
 
 
FRANCISCO 
A L V E S 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
minha 
V I D A 
[ 1 ] 
 
MINHA VIDA 
[ 2 ] 
 
F R A N C I S C O A L V E S 
 
 
 
 
 
MINHA VIDA 
 
(AUTO-BIOGRAPHIA) 
 
 
 
 
 
 
 
1 9 3 6 
Editora 
Brasil Contemporaneo 
Rio de Janeiro – Brasil 
 
 
[Sem número] 
 
[Foto 
 
Dedicatória impressa: 
Ofereço a minha idolatrada mãe, como lembranças 
de seu filho. 
Francisco Alves 
Rio – 19-9-921 
 
Legenda: Francisco Alves em 1921.] 
E S T E L I V R O 
 
 Não tem nenhuma pretensão literaria. Fil-o, 
apenas, para attender a innumeros e insistentes 
pedidos de minhas admiradoradas, cujos applausos 
generosos têm influido de modo decisivo em todas 
as phases de minha carreira artistica. Foram ellas 
que me animaram sempre, que me incentivaram 
atravez das vicissitudes de uma vida humilde e 
agitada, a trabalhar e a destruir os obstaculos que 
têm de enfrentar todos os que aspiram vencer. 
 Si eu tivesse nascido em berço de ouro, facil me 
seria galgar rapidamente uma posição de destaque 
em nossos meios artisticos. O dinheiro, com seu 
prestigio fascinante, colloca tudo ao alcance de 
seus possuidores. A unica fortuna, porém, que 
trouxe para a vida foi a minha voz. Todavia, a 
minha situação éra, paradoxalmen 
 
[VI] 
 
te, a de um homem que tem um diamante em bruto e 
não possue recursos para lapidal-o. 
 Caruso, o maior dos cantores italianos, foi em 
sua infancia um modesto vendedor ambulante. Si 
não fosse a argucia e o faro artistico de um 
professor de canto que o foi buscar no anonymato 
das ruas, elle teria sido apenas o cantor 
desconhecido da arte lyrica da Italia. Eu, 
entretanto, não encontrei nenhum Mecenas que 
quizesse offerecer-me uma opportunidade para 
educar a voz e apparecer em publico. 
 Os meu paes eram pauperrimos. Não puderam, 
a despeito de me quererem muito, dar-me uma 
educação aprimorada. Passei pelos bancos das 
escolas primarias com a rapidez de um trem 
expresso. Não pude frequentar o Instituto de 
Musica e muito menos os cursos particulares onde, 
em regra, os professores cobram muito e ensinam 
pouco. 
 Vim para a vida desamparado e pobre. 
 Lutei, soffri e venci com os meus proprios 
esforço. Este livro tem, pois, a exemplo de “Me- 
 
[VII] 
 
morias”, de Humberto de Campos, guardadas as 
devidas proporções, o merito de ser “uma licção de 
coragem aos timidos, de audacia aos pobres, de 
esperança aos desamparados, e, dessa maneira, um 
roteiro util á mocidade que a manuseie”. 
 Afóra essa finalidade, quiz, como accentuei 
acima saisfazer a romantica curiosidade da mulher 
brasileira, a quem devo as emoções mais 
encantadoras de minha longa jornada artistica 
pelas ribaltas e pelo radio. Aliás, estou certo de que 
ella, pelo menos, saberá compreender a sinceridade 
destas paginas, que são um tributo de meu 
reconhecimento ao muito que lhe devo. 
 
 
 FRANCISCO ALVES 
 
 
 
 
 
 
Minha Infancia 
 
 
 
 
 
 
 
 
MINHA INFANCIA 
 
Nasci em 19 de Agosto de 1898, na rua da 
Prainha, na cidade do Rio de Janeiro. 
 Folheando as paginas do livro de meu passado, 
as minhas recordações tornam-se bem vivas dos sete 
annos para cá. Nessa época, lembra-me como se 
fosse hoje, morava na rua Evaristo da Veiga, 49. 
 Não fui uma creança prodigio. Ao contrario. 
Sempre me revelei um pequeno peralta e alegre que 
queria, apenas, gozer a vida, que não via com bons 
olhos os livros, que não achava nenhuma attração 
nos estudos. 
 A rua era a minha grande preoccupação. 
 Viver ao ar livre, correr e brincar, empinar 
papagaios e jogar pião com os meus companheiros 
de infancia, eis o que constituia os unicos objectivos 
de meu sete annos. 
 
[12] 
 
 Os meus paes tinham-me verdadeira adoração. 
Tudo elles me perdoavam, achando proprio da 
minha edade. 
 Em casa, sempre que chegava alguma 
reclamação dos visinhos, todos já sabiam que eram 
“artes” do Chico, apellido com que era chamado 
pelos meus e que conservo até hoje, mesmo nos 
meios artisticos. 
 As primeiras relações que travei com o 
alphabeto, aliás contra a minha vontade, foram por 
intermedio de uma senhora das relações da minha 
familia, mãe de um amigo de infancia, hoje 
jornalista. Sabendo já alguma coisa da cartilha, os 
meus paes resolveram que eu devia frequentar a 
escola publica, onde o rigor da disciplina deveria 
despertar o estudioso que parecia adormecido no 
bosque de minha infancia. 
 Não raro, fiquei de castigo por causa de minha 
má vontade com os livros. Minha mãe procurava 
orientar melhor os meu passos. Vendo o inutilidade 
de seus bons conselhos, ás vezes appellava para os 
castigos corporaes. Não pou- 
 
[13] 
 
cas vezes enfrentei a palmatoria e outros 
instrumentos disciplinares. No entanto, as mais 
vivas saudades de minha longinqua infancia são 
precisamente as de meus paes, hoje mortos e que 
tudos fizeram para que os meus primeiros contactos 
com a vida fossem agradaveis. 
 Fui creado nnum ambiente profundamente 
religioso. Todos nós frequentavamos, pelo menos, 
aos domingos, a igreja. Como meus irmãos, fui 
obrigado a aprender o cathecismo. 
 A religião catholica, a religião de meus paes 
ficou desde essa época remota arraigada em meu 
espirito. 
 Os annos correrram vertiginosamente. Lutei. 
Soffri. Fiquei homem. A minha vida teve 
modificações radicaes. Todavia, continúo o mesmo 
catholico fervoroso. 
 A proposito, lembro-me de um facto assás 
expressivo, occorrido comigo, por occasião de uma 
tournée artistica que realizei ao sul, em companhia 
de Mario Reis, Noel Rosa e Nonô. 
 
[14] 
 
 Uma noite, elles entraram no meu camarote e 
surpreenderam rezando. Acharam graça e 
commentaram o facto de vêr “um bohêmio, um 
artista rezando como uma criança!” 
 Então expliquei que “aquillo” era um velho 
habito que eu tinha. Todos os dias costumava rezar 
pelos meus parentes e principalmente pelos meus 
queridos paes. 
 Algum tempo depois, passei a frequentar o 
Collegio da Ajuda. 
 Apesar de continuar a ser um mau estudante, eu 
ia progredindo. 
 A insistencia e os conselhos dos meus 
progenitores iam vencendo, pouco a pouco, a 
aversão que eu tinha á escola e aos professores. E’ 
claro que os meus costumes e as minhas tendencias 
“libertarias” se acentuavam cada vez mais. 
 O meu amôr á rua e a liberdade empolgavam por 
completo o meu espirito. 
 A não ser as horas em que eu me julgava um 
prisioneiro, sentado nos bancos escolares, lendo 
livros que só me interessavam pelas suas 
 
[15] 
 
illustrações coloridas, o resto do dia e da noite eram 
inteiramente dedicados aos brinquedos e ás 
distrações. 
 De manhã, ás vezes, até antes do café matinal, 
eu já estava na rua em companhia dos amigos, 
jogando bola de gude e fazendo girar o meu pião. 
A’ tarde, mudava de roupa e ia ouvir o ensaio da 
banda de musica do 1.º ou do 2.º batalhão que, 
naquella época, faziam retretas todos os dias. 
 O meu gosto pela musica, a minha inclinação 
pela arte de Carlos Gomes começava, então, a se 
manifestar. 
 
 
 
 
 
 
 
Carnaval 
 
 
 
 
 
 
 
 
CARNAVAL 
 
 Quando attingi 9 annos continuava um garoto 
sadio e esperto, dotado de vivacidade e famoso, no 
meu bairro, pelas traquinadas que fazia, pelas 
vidraças que quebrava, treinando foot-ball. 
 Lembro-me de que, naquelles tempos, a 
influencia pelos clubs carnavalescos tornara-se uma 
coisa séria, um verdadeiro delirio. Toda cidade 
deixava-se empolgar pela paixão dos partidos, em 
que se dividiam as preferencias collectivas. 
A’s vezes, o antagonismo das predilecções e 
sympathias determinava scenas de aggressão e 
brutalidade. Na ausencia de outros argumentos, 
trocavam-se sopapos. Até na intimidade dos lares 
ocorriam desintelligencias entresos membros da 
mesma familia. Se o pae era Fe- 
 
[20] 
 
niano, a mãe era pelos Democraticos e os filhos 
Tenentes do Diabo. A cosinheira tambem entrava 
resolutamente no cordão, prestigiando o gosto do 
patrão ou da patrôa, ou divergindo de ambos. 
 Um verdadeiro inferno domestico. 
 Minha casa não se recusara a acompanhar a 
sanha dos partidos em collisão. Era tambem um 
reflexo da chamma geral, uma onda bulhenta do 
mar agitados que inundava a cidade de alegria. Meu 
pae torcia pelos Fenianos, a minha mãe e irmãos 
pelos Democraticos. Quanto a mim, tomara, 
incondicionalmente o partido dos Democraticos. 
Batia por elle com firmeza e eloquencia incommuns 
em garoto da minha idade. Talvez essa 
circumstancia toda sentimental contribuisse para 
que, mais tarde, no coração do homem, perdurasse, 
sempre querida e inapagada, a saudosa predilecção 
de infancia. 
 Meu pae não perdia opportunidade para dar 
expansões ao seu bom humor. Um dos traços 
caracteristicos do seu temperamentos era a 
 
[21] 
 
alegria constante, a jovialidade com que encarava a 
vida. Mesmo nos momentos de maiores 
difficuldades elle tinha um sorriso. Creio que foi um 
precursor da campanha de bôa vontade... 
 Conhecendo o meu “beguin” pelos 
Democraticos, dizia-me, em tom ironico, mas 
illuminando a physionomia com a nitidez de um 
sorriso dôce: 
 — Chico: Só te darei phantasia que tenha as 
côres Fenianas. E’ inutil “estrillar”. 
 Eu ficava furioso e respondia com altivez: 
 — Vou rasgar a minha phantasia! 
 Mas, passado o susto, refazia o animo e esperava 
confiante pela decisão final, que era sempre 
favoravel ao meu club. E note-se que a phantasia 
era bonita e enchia de inveja os meus companheiros 
de infancia. 
 Naquella época, as musicas populares já se 
faziam ouvir com enthusiasmo durante a quadra 
carnavalesca. Não apresentavam ainda, o sabor das 
canções que caracterizam os carna- 
 
[22] 
 
vaes cariocas da actualidade. Mas já definiam, 
nitidamente, o espirito irreverente e os sentimentos 
affectivos das multidões empolgadas pelo ardor da 
folia. 
 Quem, ao passar em revista os dias trepidantes 
do carnaval daquelle tempo, não se recor 
dará com melancolia e saudade das canções que 
fizeram vibrar a nossa infancia e adolescencia? 
 
Yayá me deixa subir nesta ladeira... 
Eu sou do grupo mas não pego na chaleira. 
 
 E outra: 
 
 Vem cá mulata, 
 Não vou lá não... 
 Sou Democrata, 
 De coração. 
 
 Com esta musica saltitante, os gloriosos 
Democraticos rompiam, na terça-feira gorda, as 
ondas populares que se agitavam, em plena Ave- 
 
[23] 
 
nida Central, num tumultuar incessante e colorido. 
 
 Vem cá mulata, 
 Não vou lá não... 
 
 E o “refrain” tomava conta da garganta do povo 
carioca que não cessava de cantar com grande 
espectaculosidade e alegria. 
 Quando alguem passava ao meu lado dizendo: -
— “Gato comeu carapicú”— podia contar com as 
erupções silenciosas de minha raiva juvenil. Ficava 
por conta. Mas tinha que suffocar os impetos da 
minha indignação. 
Se fosse homem já feito, dono de uns musculos 
poderosos, pensava com os vistosos botões de 
minha phantasia, castigaria o atrevido, revidando o 
insulto, ao pé da letra. 
 Foi nesse ambiente que embalei os primeiros 
sonhos de minha infancia. 
 O tempo foi se passando rapidamente. Dizem os 
entendidos em materia sociologica que o 
 
[24] 
 
homem é o produto do meio em que vive. A arvore 
plantanda á beira do rio, deve ser differente em 
fecunidade e seiva da que mergulha as suas raizes 
no subsolo de uma região escassa de liquido 
fertilisante. 
 A seiva que mais tarde teria de me nutrir a voz, 
traçando-me o destino de cancioneiro da cidade, 
veiu-me, para bem dizer, das sensibilidades 
domesticas que me cercavam. 
 Minha mãe e meus irmãos viviam enganando a 
modestia, a pobreza do nosso lar, com a toada de 
nossas canções. Guardo, ainda, os livros de 
modinhas daquella época que, em casa, andavam de 
mão em mão. 
 Papae tinha por sua vez um quinhão na 
unanimidade lyrica da familia. Tocava diversos 
instrumentos. 
 Como se póde avaliar a nossa casa era, dessa 
forma, um paraiso musicado, onde se revelava um 
viveiro de passaros alacres que o mundo ignorava. 
 Dobraram-se os annos. 
 
[25] 
 
Fomos obrigados a procurar outra residencia, em 
virtude do predio em que habitavamos ter sido 
condemnado pela Saude Publica. Installamo-nos na 
rua Frei Caneca, 141. Este predio, aliás, ainda 
existe. Pouco demoramos ahi, mudando-nos para á 
rua Riachuelo, 112. 
 Dir-se-ia que não pagavamos os alugeis, em 
consequencia da instabilidade dos nossos 
domicilios. Mas essa supposição deve ser afastada 
pelos leitores intelligentes. Meu pae foi um chefe de 
familia exemplar e um cidadão trabalhador e 
cumpridor dos seus deveres. Talvez, por isso 
mesmo, a unica herança que me legou foi um nome 
digno, mantido nobremente através de difficuldades 
de toda sorte. 
 
 
 
 
 
 
Na Escola Tiradentes 
 
 
 
 
 
 
 
 
NA ESCOLA TIRADENTES 
 
Alguns dias depois de fixarmos residencia na rua 
Riacuelo, meu pae tomeou energicas providencias 
afim de que eu fosse encaminhado para uma escola 
publica. 
 Juntamente com meus irmãos Lina, Carolina e 
Juca, fui matriculado na “Escola Tiradentes”. 
 Julgo desnecessario accentuar que nesta altura 
ainda não tinha me reconciliado com os livros. 
 O professor apparecia aos meus olhos infantis 
com ares terriveis de um carcereiro, cujas funcções 
eram controlar os meus instinctos da liberdade, a 
minha vontade de ir para as ruas brincar e correr 
livremente. 
 Sempre que podia fazia “gazeta”, a pretexto de 
“doença” que passava logo que o 
 
[30] 
 
ponteiro do relogio indicava que já haviam 
começado as aulas. 
 Ficava em casa satisfeito e feliz. 
 Para me distrahir, para matar o tempo, eu 
cantava o “Vem-cá-mulata”, a canção dos 
“Democraticos” e á noite ouvia, com enlevo, o 
bombardino do meu pae, que estava sempre em 
grande actividade musical, ensaiando um dobrado 
qualquer. Esse bombardino era uma especie de 
“lampeão” metallico, a vociferar coleras 
synchronisadas. Era o terror da pacata visinhança, 
onde não existia, ao que me constasse, nenhuma 
creatura victima de surdez, isto é, devidamente 
munida com “habeas-corpus” auricular. 
 O mundo para mim se resumia nessas pequenas 
cousas. 
 Os primeiros livros, em que estudei, inspiraram-
me a principio uma certa curiosidade pittoresca. 
Varios dias fiquei preso ás suas paginas que me 
encheram de enthusiasmo. 
 
[31] 
 
 Depois fatiguei-me. A paysagem tornara-se 
monotona e insipida. A’ medida que me iam 
impondo a obrigação de entrar em estreita 
intimidade, de me familiarisar com aquelles 
caracteres, cada vez mais complicados e difficeis de 
serem assimilados pela minha memoria, 
experimentava, não digo relutancia em acceitar as 
exigencias do ensino, mas accessos de displicencia. 
 Tive, na “Escola Tiradentes”, a minha primeira 
“fan”. Era uma garota magra e feia, cheia de sardas, 
que gostava de me ouvir cantar. Fazia tudo para me 
incutir o amôr aos livros. Talvez pensasse que, mais 
tarde, por gratidão, eu pudesse tambem gostar um 
pouco della. Mas a vida é profundamente ironica. 
Acabei gostando mais della do que dos livros. 
Todavia hoje penso que a minha amizade não era de 
todo desinteressada: ella me presenteava 
constantemente com doces e bon-bons... 
 A minha falta de applicação, o meu pouco 
interesse pelos estudos acabaram repercutindo em 
casa. Meu pae, depois de pensar seriamente 
 
[32] 
 
sobre o caso, acabou afastando por completo a idéa 
antiga de me fazer um dia doutor. 
 Fiquei triste e alegre com o facto. Triste por 
desagradar aos meus paes e alegre por ter satisfeito 
a mim mesmo. 
 De reto, eu andava muito apprehensivo.Alguem contara em casa, um desses casos 
dolorosos de pessôas que se martyrisam para 
alcançar o gráu de doutor. 
 Tratava-se de um medico bahiano, se não me 
falha a memoria. Toda a noite para estudar e afim 
de evitar o somno, collocava os pés numa bacia de 
agua fria. 
 O processo deu resultados magnificos. Elle 
conseguiu formar-se com distinção em todas as 
cadeiras á custa daquelle original lava-pés nocturno. 
Entretanto, pouco tempo depois, appareceu-lhe uma 
tossezinmha secca e impertinente que o forçou, 
dentro de pouco tempo, a ir clinicar no outro 
mundo. 
 Eu, francamente, não havia nascido disposto a 
esse martyriologio. 
 
 
[Foto com legenda: Francisco Alves e Sylvio Caldas 
tambem são, nas horas vagas campeões de foot-
ball.] 
 
[33] 
 
 Minhas tendencias “libertarias” são se 
submettiam, de modo algum, aos supplicios 
culturaes do medico bahiano. 
 Acabaria por dar um vigoroso ponta-pé na 
nefanda bacia de agua fria. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Na “Villa” 
 
 
 
 
 
 
 
 
NA “VILLA” 
 
Onze, doze, annos... Os poetas acham que é a 
melhor quadra da vida. Não resta menor duvida que 
elles têm razão. O mundo se nos apresenta tão bom, 
tão interessante, tão curioso. 
 Nossa vida domestica decorria no mesmo 
ambiente festivo, onde havia muitas notas de 
música... Um acontecimento inesperado veio 
modificar-lhe o rythmo, pelo menos, quanto a mim. 
Tivemos necessidade de mudar para uma nova casa, 
na mesma rua. 
 Essa situação, a principio, trouxe-me amarguras 
indefiniveis. Já estava habituado á amplitude de um 
quintal cheio e sombras amigas. 
 O preido para onde nos transferiramos, 
não apresentava a vantagem de uma area fol- 
 
[38] 
 
gada, onde eu pudesse levantar o meu palco de 
barricas. Isso me contrariava sobremodo. Todavia 
esas nuvens que enconbriram, então, o sol radioso 
de minha infancia foram passageiras. O tempor é 
uma esponja qua apaga, na lousa de nossa vida, os 
acontecimentos bons e maus. Nada resiste á sua 
acção destruidora. Aliás, as contrariedades que me 
trouxeram a nossa nova residencia foram 
compensadas por outra attracção que surgiu para o 
encantamento de meu espirito irrequieto: a barreira 
do Senado. 
 Passava alli, quasi todos os dias, brincando em 
companhia da garotada do bairro. 
 Algum tempo depois, meu pae, mais uma vez, 
resolveu mudar. Desta feira nos transferimos para 
Villa Izabel. Minha alegria foi intensa. Esse bairro, 
naquelle tempo, já desfructava de grande prestigio e 
popularidade. Nelle morava os maiores do samba. 
Os bohemios e noctivagos, apreciadores do canto e 
das serenatas andavam altas horas da noite 
perambulando pelas ruas, illuminadas lyricamente 
pelo luar. 
 
[39] 
 
Confraternisando com o meio, a minha alliança com 
a guitarra tornou-se mais forte. No entanto, deixei-
me dominar por uma idéa bizarra: a de transformal-
a num bandolim. Todos achavam interessante essa 
innovação que aliás, deu resultados satisfactorios. 
 Em Villa Izabel, a minha maior preoccupação 
foi o foot-ball. Jogavamos partidas sensacionaes, 
em campos improvisados no meio da rua. 
 A bola de meia, pulava de pé em pé, á procura 
do “goal”. Muitas vezes ella fazia “goal” nas 
vidraças da visinhança. Ahi, então, havia uma 
debandada geral. Ninguem queria assumir a 
responsabilidade do chute mal dirigido. 
A’ noite, fatigado das pugnas esportivas, eu me 
recolhia a casa, após a victoria ou a derrota do meu 
“club”. 
 Apesar dos grandes esforços physicos, ainda 
tinha appetite para dedicar alguns momentos á 
minha guitarra solitaria. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Amei, Soffri 
 
 
 
 
 
 
 
 
AMEI, SOFFRI 
 
Entre as mais lindas canções que lancei no carnaval 
de 1936, figura “Amei”, de E. Frasão e Antonio 
Nássara, nomes consagrados pelo brilho invulgar de 
suas produções que, não raro, têm saido victoriosas 
em pleitos populares e officiaes. 
 Nos estudios da “Cinédia”, fazendo o film 
“Allô, Allô, Carnaval!” cantei essa marcha com a 
collaboração de um grupoo de jovens e graciosas 
alumnas. Eu interpretava o papel de professor e 
cantava: 
 
 Eu que nunca tive professor 
 Para me ensinar o verbo amar 
 Aprendi o A.B.C. do meu amôr 
 Na cartilha azul do teu olhar. 
 
 Insensivelmente, ao cantar os versos bonitos, 
cheios de lyrismo, dos dois azes de nossas 
 
[44] 
 
canções populares, evoquei o meu passado, percorri 
com os olhos da imaginação os caminhos floridos e 
distantes da minha juventude. 
 Quem me ensinou as primeiras letras do 
alphabeto do amôr foi uma visinha, uma linda 
morena, de grandees olhos verdes, dona de umas 
tranças longas e romanticas. 
 Creio que foi a primeira moradora do meu 
coração. Chamava-se Suzanna. Não raro, ella me 
dava beijos furtivos e deliciosos. Foi, em assumptos 
sentimentaes, a minha primeira professora. 
 Eu era ainda muito joven e bastante 
inexperiente. Tinha, apenas, theoria... Ella, ao 
contrario, era um Greta Garbo precoce, tal a arte e o 
calor de seus beijos. 
 Separamo-nos, pouco tempo depois, por 
incompatibilidade de genios... Eu era 
demasiadamente egoista. Não quiz concordar com a 
prodigalidade sentimental de Suzanna que dividia o 
seu coração com os rapazes do bairro. 
 
[45] 
 
 Um dia, tivemos um scena violenta por causa 
dos seus “flirts”. 
 Suzanna, no ardor da discussão, teve um sorriso 
ironico e me disse com profundo despreso: 
 — Ora, Chico, não me amole. Não dou 
confiança a fedêlho. 
 Fui para casa furioso e revoltado. Nesse dia, não 
jantei. E se não fosse o gosto ruim da criolina, teria 
renunciado muito cedo ás batalhas do amôr... 
 Fedêlho! 
 “Por causa della”, eu andei muito tempo de 
“parada” com as morenas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Ser ou não ser 
 
 
 
 
 
 
 
 
SER OU NÃO SER 
 
Toda infancia possue as suas inclinações. O tempo, 
ou aviva essas tendencias, quando a creança já traz 
um destino certo, uma vocação decidida, ou traça-
lhe novos rumos, conforme as suggestões e 
influencias do meio. 
 Uns, amam as caçadas de borboletas, attraidos 
pelo colorido de suas azas; outros, preferem a 
“punga” dos bondes e as fitas de aventuras em que o 
classico “mocinho” enfrenta “bandidos” para salvar 
a dona de seus pensamentos. Outros, de 
sensibilidade menos esportiva e mais lyrica 
preferem uma musica dolente ou um samba 
farfalhante. 
 Posso dizer que a minha verdadeira vocação foi 
o theatro. A esse respeito guardo recordações bem 
gratas e commovidas. 
 
[50] 
 
Commetteria uma falta, se não evocasse, aqui, esse 
typo bonissimo que se chamou Camillo e que, 
durante muitos annos, exerceu as funcções de 
porteiro do Theatro “Recreio”. Julgo não haver 
necessidade de descrever-lhe a figura sympathica. 
Basta salientar-lhe as virtudes do coração. 
 Acamaradei-me com elle. Fiz-me um dos seus 
mais impertinentes amigos. 
 Existem creaturas, cujo espirito magnanimo 
compraz-se em absequiar e favorecer a vontade das 
creanças. 
 Camillo gostava immensamente de mim.. Elle 
offerecia á minha gulodice infantil o prato de minha 
predilecção: um espectaculo. Outros meninos de 
minha idade talvez preferissem ganhar tamaras, 
ameixas, balas ou mesmo um vulgar pé de moleque. 
Commigo era no violão e no theatro. 
 Com a autorisação dos meus paes, de quando em 
vez, lá estava eu repimpado numa cadeira 
 
[51] 
 
do Theatro “Recreio”. Quasi sempre levava em 
minha companhia as duas irmãs mais velhas. 
 Eu era um carona que me dava ao luxo de levar 
convidados... 
 A’s vezes, o “senhor Camillo”, era assim, com 
todo o respeito, que eu o tratava, sentava-se ao 
nosso lado, enchendo-me de satisfação e orgulho. 
 
* 
* * 
 
 O “Recreio” foi o primeiro theatro que conheci. 
Ali ouvi o celebre tenor Almeida Cruz e assisti aos 
mais ruidosos sucessosde Palmyra Bastos, Enrique 
Alves e outros “astros” das platéas cariocas 
daquelles tempos. 
 A primeira peça que o prazer de ouvir e 
applaudir foi a opereta “Amores de Principe”. 
 Nunca, até então, eu sentira uma impressão tão 
forte, um enthusiasmo tão grande. 
 Ao assistir á representação da linda opereta 
viennense, os artistas e os scenarios vistosos 
 
[52] 
 
surgiram deante de meus olhos deslumbrados como 
a concretização dos contos de fadas. 
 
* 
* * 
 
 Certa vez, fui apresentado ao grande actor 
Henrique Alves. Contei-lhe, sem cerimonia, as 
minhas predilecções de garoto. E para demonstrar-
lhe, ao pé da letra, as minhas “habilidades” 
artisticas, cantei diversos trechos de “Amores de 
Principe”. Henrique Alves achou-me interessante e 
animou, com palavras de sympathia, o futuro 
“actor”. 
 
 
* 
* * 
 
 Meu pae era admirador fervoroso de Angela 
Pinto e Eduardo brazão. Por isso, não perdiamos 
nenhuma temporada no tradicional Theatro “Carlos 
Gomes”. 
 Eduardo Brazão e Angela Pinto tinham, no 
“Hamlet”, as suas maiores creações artisticas. 
 
[53] 
 
 Um a noite, durante a representação, meu pae 
não poude reprimir os impulsos de sua admiração e 
commentou alto: 
 — Mas que colossos! 
 Mal sabia elle que, no meu espirito ainda em 
formação, agitava-se um drama talvez egual ao do 
personagem de Shakespeare. Sim, eu tinha dentro 
de mim um Hamlet cujos olhos inquietos 
procuravam rasgar as nevoas de meu futuro, numa 
interrogação angustiosa: 
 — Serei ou não um grande artista? 
 
 
 
 
 
 
 
 
Minha paixão pelo Theatro 
 
 
 
 
 
 
 
 
MINHA PAIXÃO PELO THEATRO 
 
Em nossa residencia á rua Riachuelo havia um 
quintal de larga área, com fartura de sombra. Muitas 
arvores frutiferas tornavam-no poetico com a 
belleza das suas copas farfalhantes. 
 Empolgado pela idéa de ser artista, eu re-solvera 
passar do sonho á realidade. Vira no quintal de casa, 
o sitio apropriado para o audacioso 
emprehendimento que me empolgava. A força de 
vontade realisa milagres. Basta dizer que consegui 
improvisar com algumas barricas velhas um palco. 
O aspecto era, sem duvida, grotesco, mas o meu 
objectivo estava executado. Organisei, então, uma 
“companhia” com a collaboração de alguns garotos, 
meus amigos. Fiz primeiro um estudo rigoroso dos 
varios elementos “artisticos”, dando os papeis de 
maior res- 
 
[58] 
 
ponsabilidade aos mais capazes e intelligentes. Só 
houve protecção na hora de preencher o lugar de 
“estrella”, que coube a uma menina muito faceira 
de quem eu gostava “pedaço”. Apezar de cobrar os 
ingressos que variavam de cem até duzentos réis, 
conforme a localidade occupada pelo “espectador”, 
os “actores” trabalhavam por amôr á arte. A renda 
eu “abafava”. 
 Como se vê, eu era um pequeno emprezario que 
agia com a intelligencia dos grandes... 
 O peior era que eu desconhecia, por completo, a 
fórma do ensaio e da marcação. A representação 
acabava não dando certo. Os “artistas” chegavam ao 
palco e falavam todos ao mesmo tempo. Os 
espectadores protestavam. Havia tumulto. 
 
 
* 
* * 
 
 Ao correr dessa época, a minha irmã Lina, tendo 
ido a Portugal, em tratamento de saúde, de la 
trouxera, ao regressar, uma bonita guitarra. 
 
[59] 
 
 Foi este o primeiro instrumento com que entrei 
em contacto intimo. 
 Com umas lições ligeiras que meu pae me dera, 
não me foi difficil tocar alguma cousa. 
 Dedilhando o instrumento da saudade lusa, eu 
treinava, com minha irmã, as cantigas que ella 
aprendera em Portugal. 
 Mais do que nunca eu sentia a vontade de ser 
artista. Todas as forças do meu pensamento 
concentravam-se nessa aspiração. 
 Tomava da guitarra e, no quintal, pulava sobre 
as barricas arvoradas em palco. E trechos de 
“Amores de Principe” e “Balance” sahiam de minha 
garganta, ainda inexpressiva, de menino. Mas as 
palmas que servem de estimulo aos artistas, não as 
tinha. 
 Só o sussurro das copas das arvores “applaudia” 
as minhas canções. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Operario 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
OPERARIO 
 
Ao traçar a sua auto-biographia, Henry Ford 
focalisou com excepcional carinho a sua origem 
humilde. 
 Espirito plastico, com uma nitida visão das 
cousas, o poderoso industrial americano viu que a 
hora da aristocracia já passou. a mentalidade que 
governa o mundo contemporaneo é outra. E’ preciso 
envolver os meios proletarios numa aureola de 
sympathia e admiração. Dahi apparecer 
constantemente figuras de relevo da industria e da 
politica que se ufanam de suas origens proletarias... 
Eu, entretanto, não preciso appellar para esses trucs 
da popularidade facil. 
 
* 
* * 
 
Até os dezoito annos, os meus paes não consentiram 
que eu trabalhasse. Attingindo es- 
 
[64] 
 
sa idade, porém, decidi a ajudal-os de qualquer 
modo. 
 Foi na popular fabrica de chapéos “Mangueira” 
que empreguei, pela primeira vez, a minha 
actividade de proletario. 
 Naquelle tempo, o gerente era um senhor 
chamado Francisco, mais conhecido pelo apellido 
de “Chiquinho”. Aliás, era um bom camarada, 
muito amavel com todos os auxiliares da fabrica. O 
meu mestre, que, hoje, é funccionario da Prefeitura, 
chamava-se Henrique. Elle nunca fez fé commigo. 
Mostrava-se muito importante. Não queria 
intimidades com os operarios. Parece que tinha um 
pouco de sangue azul em suas veias... 
 Na fabrica “Mangueira”, trabalhei quase um 
anno. Dos companheiros daquelles dias longinquos 
de labor arduo, lembro-me, apenas, de dois: 
Antonio e Claudio, que foram os mais intimos. Um 
trabalhava no escriptorio, e o outro, exercia as 
funções de caixeiro viajante. 
 
[Foto: “Team” Cremilda de Oliveira que fez 
sucesso em nossos meios sportivos, do qual fazia 
parte Francisco Alves.] 
 
[65] 
 
Um dia, ousei discordar do meu autoritario mestre. 
Para evitar maiores complicações, despedi-me e fui 
trabalhar na fabrica de chapéos Julio Lima. O 
mestre, aqui, era outro temperamento. Tratava os 
operarios como amigos. Chamava-se Paulino. A 
mim, pelo menos, elle fazia toda a concessão 
possivel. Só não queria que eu faltasse ás segundas-
feiras. Elle sabia que era por causa do foot-ball. Não 
tolerava esse esporte. 
 Mestre Paulino era um grande coração. 
Perdoava-me qualquer falta na fabrica, mas não 
perdoava que eu jogasse foot-ball. Um domingo, 
tendo me machucado sériamente num jogo 
disputadissimo, quiz tapear o bondoso mestre 
phantasiando, no dia seguinte, um “accidente de 
trabalho”. Elle, porém, não se deixou “embromar”. 
Ficou furioso commigo e suspendeu-me durante 
uma semana. 
 Um anno depois, deixei a fabrica Julio Lima, 
dando um novo rumo a minha vida. 
 
[66] 
 
 O destino não quiz que eu continuasse operario. 
 Mestre Paulino ficou livre dos meus 
enthusiasmos pelo foot-ball. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Experiencia... 
 
 
 
 
 
 
 
 
EXPERIENCIA... 
 
Um dia, cheio de curiosidade, me aventurei a ir á 
caixa do Theatro “S. Pedro”, actualmente “João 
Caetano”. 
 Caixa de theatro, todo mundo já sabe mais ou 
menos o que é: uma colmeia onde há poucas 
abelhas e muitos abelhudos. 
 Notei que era observado como um intruso. 
Fiquei constrangido. Estava nesta situação 
desagradavel e já me preparava para uma retirada 
estrategica, quando fui chamado pelo maestro 
Roberto Soriano, que, depois de me fazer algumas 
perguntas, em tom cordial, mandou que eu falasse 
ao maestro de côros, Sr. Lago. Sem saber do que se 
tratava, attendi. 
 Ao chegar á sala de ensaios do corpo corál, que 
era composto de cerca de 40 figuras, entre homens e 
mulheres, o maestro pediu para eu 
 
[70] 
 
cantar uma canção, por signal, bem aguda. Cantei 
em quatro tons. 
 Terminada a experiencia levaram-me, 
novamente, á presençado maestro Roberto Soriano. 
 Este, informado pelo seu collega dos côros, que 
experimentara a minha voz, convidou-me a visital-o 
em sua residencia. 
 Não me fiz de rogado, e, certo dia, appareci em 
sua casa. Elle recebeu-me com muita distincção e, 
pela segunda vez, interessou-se pela minha voz. 
Disse-me que havia gostado della.Offereceu-se para 
ser meu professor de canto. 
 Acceitei o offerecimento, mas quando saí da 
residencia do maestro não pensava mais nisso. 
 Como não lhe apparecesse mais, o maestro 
Soriano declarou a varios amigos meus que era 
uma penas eu abandonar os estudos, adeantando que 
uma perspectiva risonha se desenhava deante de 
mim. Que o timbre de minha voz era bastante 
promissor e bonito. 
 
[71] 
 
 Fiquei satisfeito com esses commentarios que 
chegaram até os meus ouvidos como um lenitivo 
para o desconforto e as difficuldades que eu vinha 
enfrentando. 
 Houve, porém, alguem que não gostou dos 
elogios desinteressados do maestro. 
 E’ claro que esse alguem só podia ser o tenor da 
companhia do Theatro S, Pedro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Os Mestres 
 
 
 
 
 
 
 
 
OS MESTRES 
 
Toda existencia soffre influencias bôas e más. 
 Embora tendo me feito, principalmente com os 
meus proprios esforços, não esqueci, aqui, osamigos 
sinceros e dedicados que me foram uteis. Tambem 
não quero deixar sem uma referencia especial certos 
cavalheiros que tentaram botar pedras no sapato de 
meu destino. 
 Tive um professor que uma verdadeira 
calamidade. Era um barytono aposentado por falta 
de ouvintes, que resolvera ensinar o que nunca 
conseguira aprender: cantar. 
 O seu curso funccionava num predio da rua 7 de 
Setembro. As installações eram confortaveis e 
elegantes. O mobiliario, quasi lu- 
 
[76] 
 
xuoso. Grandes photographias authenticadas por 
Caruso e outras celebridades lyricas ornavam as 
paredes. 
 Deslumbrados com aquella vistosa “mise-en-
scene”, os alumnos só podiam suppôr que estavam 
deante de um notavel professor de canto. 
 O homem, no entanto, não passava de uma 
“blague”. 
 A mim, pelos menos, parece que elle jurára 
arrancar a voz, em vez de educal-a e fortalecel-a. E 
se não realizou esse seu inglorio objectivo, devo á 
intervenção amiga e opportuna do maestro Bento 
Mossoranga, que me chamou a attenção, dizendo: 
 — Que é que você tem, Chico? Cada dia a sua 
voz está mais defeituosa. 
 Respondi-lhe que estava estudando com um 
professor de canto. 
 Bento Mossoranga aconselhou-me, então, que 
tomasse cuidado. Com tal professor eu acabaria 
soffrendo da garganta. 
 
[77] 
 
 Larguei o barytono aposentado. 
 Um dia convidaram-me a ir á casa de Santh 
Athos, pae do baixo brasileiro João Athos. 
 Em sua mocidade, fôra um barytono de grande 
valor e prestigio. 
 Santh Athos sympathisou commigo. Contei-lhe 
as minhas esperanças e os meus desenganos. Elle 
gostou de minha franqueza e prometteu-me ajudar. 
 Alguns dias depois, reiniciei os meus estudos, já, 
agora, sob a direcção de um professor que não 
precisava, para recommendar-se, de problematicos 
autographos de Caruso. 
 Estudei tres mezes com elle. Encontrou minha 
voz cheia de defeitos e procurou corrigil-a. 
 O barytono da rua Sete caira como um furacão 
sobre a minha garganta. 
 Fiz grandes progressos. O meu novo professor 
mostrava-se muito satisfeito commigo. 
 
[78] 
 
Sempre que algum critico ou pessôa entendida em 
canto visitava o seu curso, elle me apontava com 
orgulho, dizendo: 
 — Aqui está a pinta de um bom cantor. 
 No fim de tres mezes, abandonei novamente os 
estudos. 
 Santh Athos, porém, que já me estimava muito, 
tentou reconduzir-me ao bom caminho, mandando 
recados por diversas pessôas, inclusive pelo tenor 
Francisco Pezzi. Que eu apparecesse em casa delle. 
Insistiu para que não abandonasse os estutos . 
Achava que era um crime. De parte delle tudo faria 
em meu favor.Não pleiteava mesmo nenhuma 
remuneração. 
 Quando somos moços quasi sempre nos 
descuidamos do futuro. 
 A despeito dos insistentes e generosos 
offerecimentos do velho mestre, a quem, hoje, 
recordo com respeito e emoção, não voltei a 
procural-o. 
 
[79] 
 
 Justificando o meu procedimento, mandava-lhe 
dizer que não tinha recursos nem tempo para 
continuar frequentando as suas aulas. 
 Santh Athos foi um dos nossos melhores 
professores de canto. E’ certo que não dava voz a 
quem não possuisse, mas dava a naturalidade de 
cantar, que é um dos segredos da arte. 
 Apenas com tres mezes, as suas licções, os seus 
methodos praticos me fizeram um bem enorme. 
Durante esse curto espaço de tempo, elle expurgara 
os defeitos da minha voz, uniformisando-a 
tornando-a mais harmoniosa. 
 Ainda hoje conservo bem vivas as palavras de 
Santh Athos. 
 — No Brasil — costumava dizer-me o saudoso 
professor — o artista deve fazer como a formiga, 
guardar prudentemente o fruto de seu labor, para 
não ser pegado desprevenido no inverno... 
 Eu não esqueci as suas lições e os seus 
conselhos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Meu companheiro 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
MEU COMPANHEIRO 
 
O violão foi sempre o meu amigo dilecto, meu 
companheiro inseparavel. Era com elle que eu 
desabafava as maguas e festejava as alegrias. 
Habituei-me ao seu convivio desde muito creança. 
Eu era, ainda, adolescente quando obtive o meu 
primeiro violão á custa de uma transação original, 
isto é, em troca de uma bicycleta. Nunca mais me 
separei delle. 
 
* 
* * 
 
Foi nas noites de serenata, quando passeava pelos 
pittorescos arrabaldes cariocas, em alegres jornadas 
de bohemia e de sonho, que mais fortemente me 
identifiquei com o violão. 
 Os poetas daquelles tempos eram os Cyranos 
cujos versos maravilhosos abriam-me os 
 
[84] 
 
corações mais insensiveis. Eu me aproveitava bem 
do prestigio e da fascinação de suas rimas. 
Psychologo por intuição dentro de mim havia a 
certeza de que, para vencer e dominar a alma 
feminina, necessitava audacia. Mas, o meu 
temperamento era tímido e retraido. Tinha 
difficuldde em dizer que gostava. Faltavam-me as 
palavras precisas e convincentes. Dahi a minha 
tactica. Cantando eu me sentia forte e dominador. O 
que as minhas palavras não sabiam dizer, diziam 
com eloquencia os poemas que eu interpretava com 
emoção. 
 
* 
* * 
 
 Só me lembro de ter cantado inutilmente uma 
vez. Foi no aristocratico bairro de Botafogo, 
debaixo das janelas de um “bungalow” recatado e 
florido. Havia um lindo luar passeando lyricamente 
pelas ruas ermas. Dei os agudos mais fortes, sem 
que a eleita de meu co- 
 
[85] 
 
ração de trovador apparecesse entre as trepadeiras 
romanticas de sua janella. 
 Ensarilhei as armas ou melhor, botei o violão 
debaixo do braõ e fui para casa com a amargura de 
um general que soffre a sua primeira derrota. 
 Entrementes, um companheiro de bohemia que 
me viu muito desapontado com o facto, confortou-
me, explicando que a minha inaccessivel Dulcinéa 
era surda como uma porta. Talvez por isso não 
tivesse aberto a janella... Acceitei a informação. Foi 
um saida honrosa para a minha vaidade de trovador 
famoso. 
 
* 
* * 
 
Certa vez, no “café Nice”, falei a Orestes Barbosa a 
proposito de meu violão. Pedi ao consagrado poeta 
de “Agua Marinha”, que já naquella ocasião 
“abafava”, nos meios da nossa musica popular, com 
“Flor do asphalto” e 
 
[86] 
 
“Verde e amarello”, que me fizesse uma canção 
sobre o meu companheiro das horas bôas e más. 
 O fulgurante chronista de “Phantasma dourado” 
accedeu promptamente ao meu pedido, numa phrase 
ironica: 
 — Está bem, Chico. Vou vêr o que posso fazer 
por você. 
 No dia seguinte, pela manhã, recebi uma carta 
de Orestes Barbosa acompanhada da letra da 
canção: 
 
MEU COMPANHEIRO 
 
 Foste, talvez, umaarvore frondosa 
 harmonisando a voz do violão. 
 E hoje, na minha vida dolorosa, 
 só tu me entendes, triste violão. 
 
 Sorrisos, ilusões, phrases perdidas, 
 um vestido ligeiro que passou, 
 olhares, beijos, sonhos, despedidas, 
 tudo meu violão crystalisou. 
 
[87] 
 
Estribilho 
 
 Meu companheiro dilecto 
 violão, és meu affecto, 
 és minha consolação. 
 De tanto roçar meu peito 
 tens hoje o timbre perfeito 
 da voz do meu coração. 
 
 Foi umas das maiores emoções de minha vida. 
Os versos do mais carioca de nossos escriptores 
traduziam com rara felicidade os meus sentimentos 
affectivos. 
 Aliás, melhor do que as minhas palavras, falam 
do extraordinario successo de “Meu companheiro” 
o acolhimento enthusiastico que teve, entre nós, 
essa linda canção que marcou o feliz inicio da miha 
parceria com Orestes Barbosa. 
 Depois de “Meu companheiro”, lancei com a 
collaboração do victorioso autor de “Samba” as 
seguintes producções: 
 “Ha uma forte corrente”, “Palhaço do luar”, 
“Dona de minha vontade”, “Adeus”, “A 
 
[88] 
 
mulher que ficou na taça”, “Não sei”, “A abelha da 
ironia”, “Adeus mocidade”, “Ouve esta canção”, 
“Ciume”, “Romance”, “Por teu amor” e “Balão do 
amôr”. 
 Dessas canções não sei qual foi a que alcançou 
maior exito. Só posso dizer convictamente que 
todas ellas tiveram grande resonancia na alma lyrica 
do nosso povo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Vinte Annos de Ribalta 
 
 
 
 
 
 
 
 
VINTE ANNOS DE RIBALTA 
 
Foi no antigo e popular “Pavilhão do Meyer” que 
fiz a minha estréa como actor. Uma festa intima, 
realisada em casa de uma familia de minhas 
relações, offerecera-me o ensejo de concretisar a 
maior aspiração de minha vida. Depois de ter 
cantado para o pequeno auditorio de amigos, uma 
senhora de nome Aida, que me ouviu com o maior 
interesse, perguntou-me: 
 — Você quer trabalhar em theatro? 
 Ora aquilo foi mesmo que cair mosca no mel. 
 Dominando o meu jubilko intimo, disse, 
apparentando displicencia: 
 — Quero, sim. 
 No dia seguinte, conforme a combinação, dirigi-
me ao encontro da minha protectora artistica. 
 
[92] 
 
Esperava-me no antigo “Palacio-Theatro”. Ahi 
estavam ensaiando diversos artistas. Logo que me 
viu, apressou-se em me receber. Feitos os 
cumprimentos de praxe, lecou-me aos empresarios 
que eram os actores João Martins e João de Deus. 
Sem pensar em retribuição monetaria, nitidamente 
lyrico, cavalheiro do sonho ingressei na Companhia. 
Chegou o dia da estréa. Eu fazia um papel que tinha 
duas palavras e outro em que eu cantava com o 
violão. Entrei em scena, muito nervoso, já se vê. 
Nunca me tinha visto naquelles apuros. Cantei, 
entretanto, os meus numeros. Creio que foi muito 
bem porque me applaudiram. Sai com o rei na 
barriga, todo satisfeito. Depois da temporada no 
“Palacio-Theatro”, a Companhia veiu ter ao “Circo 
Spinelle”. Começou, então, para mim, a 
opportunidade de ser em breve homem de circo... 
 Trabalhavamos normalmente, quando entrou, 
em scena, uma “compére” absolutamente 
desconhecia e indesejavel: a Hespanhola. Ape- 
 
[93] 
 
sar de sermos de circo, a gripe atacou-nos derijo. A 
Companhia viu-se obrigada a parar. Os artistas 
entregaram os pontos. Ao cabo de uma semana 
fomos irremediavelmente dissolvidos pela 
Hespanhola. Falta de artistas, é, sobretudo, ausencia 
de publico. 
 Os empresarios, nessas condições, desistiram. 
 Fiquei desanimado, Mas como não há bem que 
sempre dure nem mal que não se acabe, recebi 
convite para trabalhar numa Companhia dirigida 
pelo sr. Baptista, pae da actriz Amelia de Oliveira, 
esposa, agora, do actor Arthur de Oliveira. Esta 
companhia exhibiu-se no “Polytheama”, de 
Nictheroy. Lá estivemos cerca de tres mezes, que 
foi a duração da sua existencia. Desta vez não 
fomos dispersados pela Hespanhola, mas morremos 
de insufficiencia cardiaca, que no caso era a falta de 
“notas”... 
 Fiquei á espera de dias melhores, acompanhado 
do meu violão. algum tempo depois, appareceu-me 
um convite do sr. José Segreto 
 
[94] 
 
para o elenco do “Theatro São José”. Quase 
endoideço, de alegria! 
 Apalpei-me todo para ver se era realidade ou se 
estava sonhando. Sem pensar em outra cousa, fiquei 
ansioso aguardando o dia da estréa ao lado de 
Ottilia Amorim, Alfredo Silva e demais artistas 
daquella casa de espectaculos. 
 Afinal, entrei em scena com o meu velho 
companheiro, sua magestade, o violão. Saime com 
galhardia. No dia seguinte, porém, um jornalista 
metteu-me o pão. Apesar disso, a minha boa estrella 
protegeu-me e eu não perdi o animo. Prosegui no 
elenco. Os annos correram. Fui vencendo. Fazia até 
o repertorio do tenor Vicente Celestino, nas peças 
“Adão e Eva”, “Morro da Favella”, etc. 
 Dois annos depois, a Companhia fez uma 
viagem a S. Paulo, onde exhibiu-se no “Cine 
Theatro Braz Polytheama”. Tal excursão obedeceu á 
necessidade de ser reformado o Theatro “S. José”. 
 
[95] 
 
 Eu ganhava 250$000 de ordenado, e, para viajar 
a S. Paulo, augmentaram-me para 350$000. Em S. 
Paulo, fizemos uma temporada no referido theatro e 
outra no “Appollo”, onde, em ultima representação, 
levamos á scena a revista “Aguenta, Felippe”. 
 Nesta altura, surgia, nos bastidores, uma forte 
intriga que visava me indispor com a administração. 
 Não dei nenhuma importancia ao caso. Quem 
não deve não teme. No entanto, certo dia o meu 
amigo José Segreto veio me interpellar de modo 
áspero. Respondi-lhe no mesmo tom. Dahi surgiu 
uma discussão violenta. No calor da polemica, o sr. 
José Segreto descontrolou-se e acabou me dando 
tres tiros. Felizmente tudo acabou bem. O rapaz era 
um optimo empresario, mas um péssimo atirador... 
 Este incidente occorreu nas vésperas da 
Companhia embarcar para o Rio. Logo que cheguei 
á capital da Republica, fiz uma carta á empresa, 
despedindo-me. Depois do que acon- 
 
[96] 
 
tecera, só me cabia essa providencia. A empresa não 
acceitou a minha demissão e eu comtinuei, 
provando dessa forma que não guardo rancor. Sou, 
ainda, amigo de José Segreto. 
 A vontade de vencer no theatro não me 
abandonava. Para isso, lançava mão de todos os 
esforços, afim de ganhar maior salário, e consegui, 
nesse particular, o augmento para 450$000. Todos 
lamentavam que eu ganhasse tão pouco, fazendo 
como eu fazia diversos papeis, e , modestia á parte, 
agradando ao publico, até me numeros marcados 
por mim, com por exemplo, o Maxixe Acrobático, 
numero meu e da fallecida Antonia Denegri, na 
revista “Olha o Guedes”, que obteve grande 
sucesso. Em outra revista, fiz o “Veterano do 
Paraguay”. Aliás, este typó, fel-o, pela primeira vez, 
o velho amigo e bom collega Asdrúbal Miranda. 
 Achei-me um dia deante de uma peça 
carnavalesca. Como é da praxe nessas peças, entram 
os tres grandes clubs da cidade. Na destribuição dos 
papeis, coube-me – ironia da sor- 
 
[Foto com legenda: Francisco Alves na aphoteose 
da revista carnavalesca “Tatu subiu no pau”, 
levada á scena pela companhia da empresa 
Paschoal Segreto em 1923.] 
 
[97] 
 
te! – o club dos Fenianos. Muito pesaroso porque 
preferia desempanhar a missão dos Democraticos, 
comecei a ensaiar. Um dia o director Izidro Nunes, 
já fallecido, chamou-me para dizer que fora avisado 
das minhas preferencias “Democráticas” e que, 
entretanto, teria de representar, em scena, os 
Fenianos. 
 E enérgico: 
 – Veja lá o que você vae fazer. tal advertencia 
afastou-me, mas prosegui no ensaio. 
 Veiu a estréa, e, para evitar aborrecimentos, 
cada dia um club entrava por ultimo. Entrando em 
ultimo ou primeiro logar eu procurava agradar ao 
publico e fazer notar ao meu director que estava, 
realmente, tomando interesse pelo Club dos 
Fenianos. Todavia, por azar ou cousa que o valha, 
dei um esbarrão no par que fazia o meu glorioso 
Democráticos.Quando desceu o panno, a dona Lêna 
Vieira chamou-me a attenção. Desculpei-me. Como 
é natural em nervos femininos, dona Leda exaltou-
se. E eu também, perdendo a calma, segui- 
 
[98] 
 
lhe o exemplo. O meu fallecido collega Martins 
Veiga, que era o par da distincta actriz, em vez de 
acalmar a encrenca, ainda collocou gasolina no foco 
do incêndio, que era dona Leda. 
 A contenda travara-se renhida. Um dos 
directores da empreza, o sr. João Segreto, sem, 
entretanto, saber, ao certo, como se passara o facto, 
despediu-me por tabella na mesma hora. 
 Lembor-me disso como se fosse hontem. Fui 
para o camarim desolado. Sozinho me lamentava. 
Preso por ter cão por não tel-o. Se eu não tomasse 
interesse pelo Club que representava, certamente, 
seria objecto de advertência ou censura; porém, 
como eu havia tomado, a infelicidade de um esbarro 
involuntário no par que dansava ao meu lado, 
complicar a minha situação. 
 Resolvera-me a arrumar as minhas cousas, e, 
conversava com as coristas que eram as minhas 
maiores camaradas, quando uma dellas approxima-
se, para me avisar que dona Leda havia lido a 
tabella e exigira que a retirassem, pois, 
 
[99] 
 
o que occorrera entre nós dois, não constituía 
motivo sério para dispensarem os meus serviços. 
Tratava-se de uma discussão entre 
artistas,affirmando mesmo a actriz que se no dia 
seguinte eu não trabalhasse, ella também não 
trabalharia. Deante dessa nobre attitude a empresa 
achou conveniente retirar a tabella. Teve dona Leda 
um procedomento correcto. 
 Entrara no cartaz a revista “Secos e Molhados”, 
do sr. Luis Peixoto e Marques Porto, sendo o 
primeiro naquella ocasião, director artísitico. Ia já 
para cinco annos que eu trabalhava na Companhia. 
Era justo, pois, que fosse melhor recompensado. 
 Fallei, a esse respeito, com o sr. Luis Peixoto, 
explicando-lh o motivo pelo qual eu pedia o 
augmento. Prometteu-me que dentro de alguns dias 
o meu pedido seria attendido. Recommendou-me, 
porém, não dizer mais a ninguém. 
 Disse-lhe que sim, mesmo porque não tinhá que 
dar satisfação da minha vida. Dias de_ 
 
[100] 
 
pois mandou chamar-me, declarando que me fizera 
o augmento de 25$000 por quinzena. Não tolerei a 
pilheria. Na mesma hora, declarei-lhe que só 
trabalharia naquelle dia. O sr. Luiz Peixoto não se 
incommodou. Terminando o espectaculo, arrumei 
os meus “troços” e não fui mais no theatro, a não 
ser para receber alguns dias do meu ordenado. Tive 
a honra de ser substituído por quatro artistas, e, sem 
exagero nem jactancia das minhas qualidades, esses 
mesmos elementos não fizeram os papeis ao gosto 
dos autores. Chegaram até os meus ouvidos as 
palavras de um delles, o sr. Marques Porto que 
dissera que o “Chico” era canastrão, mas que 
ninguém fazia esse quadro como elle. 
 A convite do dr. Isaac Cerquinho, ingressei 
numa companhia que estreou em Nictheroy, mas 
que fracassou. Dahi fomos a Petrópolis. Em tal 
companhia, esse doutor theatral, gordo como um 
capado mineiro, entendeu, emergindo das suas 
tremendas banhas, de bancar o “bamba” commigo. 
Depois de saber que eu queria sahir da Com- 
 
[101] 
 
panhia, por estar sendo perseguido pelo director de 
scena, essa grotesca figura representativa do 
bacharel-empresario, empenhava-se em me 
convencer para que eu ficasse, quatro dias depois de 
me despedir por tabella e em frente de toda a 
Companhia, onde, dentre muitos artistas, só tive a 
solidariedade de dois, o tenor Mafra e a actriz 
Thereza Patti. 
 O director a Companhia soffria da mania de 
cantar. Uma doença como outra qualquer. 
 Com todos estes contratempos, eu não 
desanimava. Procurava ganhar a vida honestamente. 
Poucos companheiros, porém, me ajudavam. Mais 
tarde fui chamado para trabalhar na Companhia 
“Antonio de Souza”. 
 Immediatamente acceitei as condições que o 
director me estabeleceu.Tratava-se do desempenho 
de pequenos papeis e substituir o applaudido collega 
Arthur Castro, possuidor, aliás de uma voz 
lindíssima. 
 Nas vésperas do embarque da Companhia para 
S. Paulo, assisti ao enterro de minha sem- 
 
[102] 
 
pre lembrada mãesinha. Aliás, desde esse dia, não 
dei mais pezames a ninguem e o motivo 
passo a explicar. 
 Estava triste, na porta do theatro, penalizado 
pelo fallecimento de minha genitora, quando 
encontrei um idiota que me perguntou o que eu 
tinha, pois, notára o meu pezar. Disse-lhe a grande 
perda que acabara de soffrer. E elle, com 
displicência, apresentou-me pezames, dizendo 
textualmente: 
 – Conforme-se, isso é da vida. 
 Fiquei irritado. Tive ímpetos de applicar-lhe uns 
cascudos para que aprendesse a ser mais discreto e 
sensato. 
 No emtanto, ao chegar á porta do antigo café 
“Criterium”, encontrei um gesto de sólidariedade 
que bastante me confortou. A mãe de Aracy Côrtes, 
com quem eu andava meio “politico”, veio me dar 
os pezames da festejada artista. Mais tarde, ao 
chegar á casa, encontrei uma bonita coroa enviada 
por Aracy Côrtes. Mão esqueci 
 
[103] 
 
nem esquecerei nunca a delicadeza de sentimentos 
desta minha brilhante collega. 
 Como já disse, segui para S. Paulo com a 
Companhia do Sr. Antonio de Souza. Minha estréa 
é até ridículo dizer. Foi a seguinte: havia um quadro 
na platéa e, eu, entrava , então, nesse quadro, com 
uma blusa e um bonet muito velho, dizendo: 
 –“O senhor está se portando mal recinto. Retire-
se”. 
 Foi esse o papel com que fiz a minha estréa 
nesta Companhia. E só cantei um numero, que 
apresentava o final do 1.º acto, naturalmente porque 
viram que não tinham outro. 
 E as indirectas que eu ouvia? 
 –Oh! como o Castro ninguém faz esses 
números! Elle tem uma voz admirável. 
 A todo o instante ouvia isto. Como precisava 
cavar a vida, sujeitava-me a tudo. 
 Vieram outras peças e, graçs aos meus esforços, 
os papeis que me confiavam, agradavam á platéa. 
De S. Paulo, seguimos para Curityba. 
 
[104] 
 
 Na capital paranaense, fiz algum sucesso. 
Demandamos o sul. As piadas continuavam. Não 
brigava, esperando dias mais auspiciosos. E elles 
chegaram. Despedi-me da Companhia. Tudo 
fizeram para que eu ficasse. Ri por ultimo, e, se bem 
que minha situação financeira não fosse boa, o 
momento era propicio para que eu os mandasse 
arranjar substituto. De resto, foi um pouco difficil. 
 A companhia deixou a cidade e fiquei no hotel a 
pensar no que ia fazer. Dei umas voltas em Pelotas. 
Fui a Porto Alegre. Organisei espectaculos em 
vários cinemas. Arranjei algum dinheiro. Estava 
mais ou menos remediado para regressar ao Rio, 
quando tive a infeliz idea de jogar. Vi-me 
depennado, sem um vintem. 
 Para embarcar, consegui recursos á custa da 
generosidade de alguns amigos, cada um dando-me 
o que podia com boa vontade. Comprei uma 
passagem de 3.ª classe. Ainda me lembro do vapor 
que era da Costeira, o “Itassucê”. Logo que eu 
cheguei a bordo o commissario me reco- 
 
[105] 
 
nhecendo pediu-me que eu passasse para a 1.ª classe 
e, assim, vim distraindo os passageiros e a 
tripulação do “Itassucê”, até o Rio. 
 Chegando á cidade maravilhosa, mantive-me é 
espera de chamado para outra companhia. 
 Trabalhei num “mambembe” que durou, apenas, 
sete dias. O desanimo já me contaminava o espírito, 
quando fui para em um elenco organisado pelo 
fallecido José do Patrocinio Filho. Exhibimo-nos no 
theatro Phenix, Durante 15 dias, período de tempo 
em que durou. O elenco era formado de bons 
artistas, entre os quaes Alfredo Abranches, Adriana 
Noronha e Brandão Filho. 
 Fiz o “Moleque namorador”, creação e 
marcação minhas. 
 Extincta a Companhia, sou chamado pela actriz 
Alda Garrido para trabalhar no Cine Gloria, em 
companhia della. Depois de dois dias de ensaio 
deram-me a entender que não me queriam... e, eu 
não fiz cerimônias. 
 
[106] 
 
Com a chegada de Jardel Jercolis ea sua 
Companhia, do Sul, a convite delle, recomecei o 
trabalho theatral. Estreamos no Lyrico. Representei 
sete dias, a razão de 30$000. Disse-me, depois, que 
não precisava mais dos meus serviços. 
 A este tempo, eu comecei a gravar. Minha boa 
“estrella” surgiu com novo fulgor. Melhorei. 
Participei de duas peças com Alda Garrido, no 
Carlos Gomes. Segui com Jardel Jercolis para S. 
Paulo. Mais uma vez fui jogado para a linha de “off-
side” da vida, mas a minha taça de soffrimento já se 
havia exgottado. Embora o elenco fosse composto 
de “estrellas” como Auzenda de Oliveira e o 
barytono Sylvio Vieira, consegui receber applausos 
do publico. Nessa epocha eu já tinha o “ Samba de 
verdade”, “Voz do Violão”, “Lua Nova” e outras 
canções. Após uma temporada de quasi um 
anno,vim para o Rio definitivamente. Mesmo 
durante a minha estadia em S. Paulo, vinha varias 
vezes ao Rio,para gravar. 
 
[107] 
 
 Um anno mais tarde fui convidado pelo 
empresário Pinto para trabalhar na Companhia 
Margarida Max, que fez uma temporada em S. 
Paulo. 
 A felicidade sorriu-me nesta temporada. 
Terminado o meu contracto em S. Paulo, retornei á 
Capital Federal. as gravações continuavam com 
grande acceitação do publico. 
 Dispuz-me a fazer, por minha conta, varias 
excursões a S. Paulo. 
 Da mesma forma fui ao Sul. Levei um “beiço”, 
como se diz na gíria, de 800$000, mas todos os 
elementos que foram por mim contractados 
receberam os seus ordenados, sendo que alguns 
mais até do que havia sido combinado. Nessa 
excursão participaram Mario Reis, Noel Rosa, Nono 
e Pery Cunha. 
 Estive, em Buenos Aires, pela primeira vez, com 
Jardel Jercolis, chefiando um conjunto de artistas, 
entre os quaes se destacavam Carmen Miranda, 
Mario Reis, Celia Zenatti, Tute e Singerce e um 
rapaz mais conhecido por Americano, 
 
[108] 
 
fóra a orchestra organisada em Buenos Aires. 
Ultimamente, trabalhei numa peça, no theatro 
Recreio, da qual o publico deve, ainda, se lembrar: 
Da Favella ao Cattete. A revista agradou 
sobremaneira, indo o sucesso além da expectativa. 
Participei della, também em S. Apulo, onde foi 
representada com êxito. 
 Tenho recebido optimos convites para o theatro. 
Recusei-me sempre porque desejo ser grato aos 
meus ouvintes. Não quero deixal-os. A canção e o 
disco foram os alicerces da minha carreira artística. 
Valorisaram-me, elevaram o meu nome e as minhas 
finanças. E’ por esse motivo que, hoje, sou artista 
de radio e continuo a gravar na R. C. A. Victor. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Gravando discos 
 
 
 
 
 
 
 
 
GRAVANDO DISCOS 
 
O Disco teve, em minha vida, uma influencia 
capital, sem trocadilho. Foi com o concurso delle 
que eu alcancei os meus maiores successos 
artísticos e financeiros. 
 A primeira gravação que fiz, em disco, foi com 
João Gonzaga que acabava de deixar os estúdios da 
Fabrica Odeon e resolvera trabalhar por conta 
própria. Os processos de gravação ainda eram 
primitivos. O cantor tinha que altear bem a voz, 
tornando-a muito forte. Compareci ao estudio 
improvisado de João Gonzaga, acompanhado de 
Juvenal Fontes e minhas sobrinhas, cuja missão era 
fazer coro. 
 “Pé de Anjo” foi o primeiro disco meu que 
andou rolando vertiginosamente pelo Brasil. 
Depois, gravei outras musicas populares daquelles 
tempos, em que “Sinhô” empunhava o 
 
[112] 
 
bastão de leader, nas rodas do samba carioca. 
Dessas gravações não tive nenhum resultado 
material. A única cousa que ganhei foi experiencia... 
 Annos depois, já cansado de trabalhar para os 
emprezarios theatraes, acceitei um convite de Freire 
Junior para fazer uma experiência na Casa Edison, 
distribuidora dos discos Odeon. Gravei o samba de 
Sinhô “Ora, vejam só!” Foi um sucesso. Venderam-
se mais de 25... mil réis, que o sr. Figner me pagou 
com ares, de philanthropo... 
 Como eu tivesse agradado, convidaram-me para 
continuar gravando. Acceitei o convite de bom 
grado. Nem siquer discuti condições. A 
remuneração de meu trabalho ficou por conta do 
critério dos “generosos” emprezarios de minha 
garganta... Gravei mais quatro discos a 25$000, 
cada um. 
 O chefe das gravações era um allemão de nome 
Roeder. Bom technico, elle seria um opti- 
 
[113] 
 
mo auxiliar se quizesse metter-se na seara alheia. A 
sua pretensão era demasiada. Quis me ensinar a 
cantar até as nossas canções e sambas. Eu achava 
graça. Era a melhor maneira de me livrar de suas 
impertinências artísticas. O sr. Roeder, que falava 
mal o portuguez, costumava me dizer, em sua meia 
língua, que eu não sabia interpretar. Mas, na hora de 
gravar, o publico preferia os meus discos... 
Decorridos alguns mezes fui convidado para ser 
cantor exclusivo da Odeon, ganhando 100 réis por 
disco. Concordei. Depois a situação melhorou. 
Augmentaram-me para 150, 200 e 300 réis. Assim, 
de tostão em tostão, cheguei a ganhar 600 réis por 
disco. O grande desenvolvimento do mercado de 
discos animou a Victor que resolveu montar uma 
fabrica. Convidaram-me. Rogério Guimarães 
trouxe-me a proposta de 25 contos para eu cantar na 
nova fabrica. Expuz, lealmente ao sr. Figner a 
minha situação. Ou elle me augmentava ou perdiria 
o cantor que não sabia interpretar... O sr. Figner, 
porém, não entregou os 
 
[114] 
 
pontos. Fez-se de victima. Disse-me que eu não 
podia abandonal-o. Emfim, tanto se lamentou o 
finório do judeu que eu acabei com pena delle e 
assignei um contracto de um anno. Quando estava 
para terminar o contracto que me foi arrancado 
pelas lagrimas do sr. Figner, adverti-o que não 
desejava continuar a trabalhar na Odeon. 
Respondeu-me que não se conformaria, 
absolutamente, com essa attitude, visto que o meu 
contracto era de dois annos! 
 Com effeito. Ao examinar o famoso contracto, 
verifiquei que tinha assignado de boa fé, um 
compromisso de dois annos! Fiz ver isso ao sr. 
Figner. Elle não tomou conhecimento de meu 
protesto. Tive ímpetos de “desencarnar” o 
insaciável judeu da Casa Edison. Mas, contive-me. 
Eduardo Souto, a quem contei o caso, prestou-se as 
servir de intermediário. Resolveu, então, o sr. 
Figner dar-me uma ajuda de custo de um conto e 
quinhentos, de accôrdo com a Fabrica Odeon, da 
qual era distribuidor geral. 
 
 
[115] 
 
 Assim fiquei nas mãos do sr. Figner até 1931. 
Nessa época, elle deixou a representação da Odeon, 
que me conservou como seu cantor exclusivo. 
Terminado esse compromisso, fui chamado pela 
Victor, na qual permaneço até hoje, satisfeito com 
os seus directores e com a boa acceitação que os 
meus discos têm tido. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fazendo samba 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FAZENDO SAMBA 
 
Nunca me aconteceu sentar na secretaria, em meu 
escriptorio, e fazer, burocráticamente, uma musica 
ou uma letra. 
 Quasi sempre a inspiração me vem na rua, de 
uma impressão qualquer. 
 Uma mulher que passa, uns olhos bonitos que 
me fitam, um perfume subtil são, muitas vezes, o 
motivo emocional de um samba ou de uma canção 
que se tornam mais tarde populares. 
 Entre outros, lembro-me que a segunda parte do 
samba “Se você jurar”, foi feita num bonde que me 
levava a Villa Isabel. 
 
* 
* * 
 
 Certa vez, estava na “Casa Edison”, ensaiando 
com Mario Reis o samba de minha auto- 
 
[120] 
 
ria “Soffrer é da vida”. Ao nosso lado, ouvia-nos 
com interesse Newton Bastos, que foi um dos 
melhores autores de seu tempo. Terminado o ensaio, 
Newton começou a cantar o estribilho do sambar 
“Se você jurar”, que era delle. O Mario Reis achou-
o notável e ficamos os três a repetir os versos a meia 
voz. 
 Mas o tempo corria. 
 Chegou a hora de fechar a loja e nós não 
tínhamos, ainda, conseguido fazer a segunda parte 
do samba. 
 Saímos. Na rua, cada um seguio caminho 
differente, Eu fui tomar o meu bonde de Villa 
Isabel, na PraçaTiradentes. Estava preoccupado 
com a nova creação do Newton. Sentei-me no banco 
da frente, e emquanto o bonde rodava 
vertiginosamente dentro do tumulto da tarde, eu 
puxava pela intelligencia. 
 De repente, gritei um Eureka tão alto que 
chegou a assustar os meu companheiros de viagem. 
 
[121] 
 
 A inspiração tinha se sentado amavelmente ao 
meu lado. E a segunda parte do “Se você jurar” foi 
feita, mentalmente, alli mesmo. 
 Em casa, não quis jantar e fui directamente ao 
meu escriptorio. O meu appetite estava todo 
concentrado no samba que eu queria escrever logo, 
antes que a inspiração désse o fóra. Peguei o violão 
e só o larguei quando a letra e a musica estavam 
promptas. 
 E foi assim que acabei o samba que fiz de 
parceria com o saudoso Newton Bastos, samba que, 
dias depois, gravei com Mario Reis, em disco 
Odeon. 
 
 
 
 
 
 
 
 
No Radio Nacional 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NO RADIO NACIONAL 
 
Minha estréa como cantor de radio foi feita há 
annos, na “Radio Sociedade Rio de Janeiro”. 
 Não me ocorre o dia exacto, nem mesmo o anno 
da primeira exibição que fiz para o ouvinte carioca. 
Sei, apenas, que isso aconteceu logo que comecei a 
gravar discos para o sr. Fred Figner, da “Odeon”. 
 Cantei, depois, na ”Mayrink Veiga”. Mais tarde 
transferi-me para a “Radio Club”. 
 Indo a S. Paulo, trabalhei na “Radio Educadora”, 
da capital bandeirante. Regressando ao Rio, 
continuei a actuar nas estações do “broadcasting” 
carioca. Entre outras, cantei na “Guanabara”, a 
popular estação que obedece á orientacão 
intelligente dos irmãos Manes, no “Programma 
Cazé” e na “Educadora”, num pro- 
 
[126] 
 
gramma organisado pelo “speaker” Christovam de 
Alencar. Quasi sempre essas mudanças foram 
motivadas pelos meus interesses econômicos. A 
minha actuação nos microphones cariocas estava 
interessando aos ouvintes e eu procurei tirar partido 
disso. Já me sentia cançado de trabalhar para os 
Figner da arte nacional. 
 Voltei varias vezes a S. Paulo em actividade 
radiophonica. De preferência, trabalhei na “Radio 
Record”. Os seus directores e auxiliares 
dispensaram-me sempre a maior consideração. 
 Cantei tambem na “Radio Diffusora”. E isto por 
um motivo particular. Tendo saído da “Mayrink 
Veiga”, suppuz que a “Radio Record” não se 
interessaria mais por mim, em virtude de manter um 
programma de inter-cambio isto é, de ida e volta 
com a estação que o valor e o prestigio de Cezar 
Ladeira impoz como um baluarte do radio nacional. 
 Foi por esta circumstancia que acceitei a 
proposta da “Radio Diffusora”, a ultima vez 
 
[127] 
 
que cantei em S. Paulo. Aliás, nessa ocasião, fui 
convidado também pelo dynamico Jorge do Amaral 
para a “Radio Cruzeiro”. Na “Radio Farroupilha” 
fiz ultimamente uma rápida temporada, de que trato, 
com detalhes, num capitulo especial. 
 Fiz parte ainda do quadro de artistas da 
fracassada “Cajuti”, na qual mantive, algum tempo, 
com sucesso, um programma sob a minhá direcção 
artística. Saindo dessa estação, fiquei aguardando a 
inauguração da “Radio Transmissora” que fez 
questão de assignar contracto commigo muito antes 
de iniciar as suas irradiações. Terminado esse 
contracto, procurei me orientar de accôrdo com as 
sympathias de meus queridos ouvintes. Dahi 
decidir-me pela “Mayrink Veiga” que é, 
incontestavelmente, a preferida do povo carioca. 
 
[ Foto: Companhia Antonio de Souza. Aspecto do 
festival de Francisco Alves e Celia Zenatti, 
realisado e, 13-9-926.] 
 
 
 
 
 
 
 
 
Eu e a Mayrink Veiga 
 
 
 
 
 
 
 
 
EU E A MAYRINK VEIGA 
 
Houve quem interpretasse mal o meu afastamento 
da estação Mayrink Veiga. Sobre esse caso, 
fizeram-se vários commentarios. Todavia é muito 
simples esclarecei-o. Sempre fui e continuo amigo 
de todos quantos trabalham na Radio Mayrink 
Veiga, incluindo os directores que me honraram, 
invariavelmente, com a sua estima e amisade. 
 O que houve de verdadeiro foi o seguinte: 
apenas um disse me disse, que, ao certo, não sei de 
quem partiu. Como todos sabem fui durante muito 
tempo cantor da popular estação. Certo dia tive uma 
contrariedade com um dos auxiliares que trabalhava 
commigo. Por esse motivo, sahi. Passado algum 
tempo recebi convite do director da Mayrink, o sr. 
Joaquim Antunes, para ingressar novamente no 
quadro dos artistas. Não 
 
[132] 
 
accedi logo. Fil-o mais tarde, attendendo a 
instancias do meu prezado amigo Cesar Ladeira. 
Cumprindo a minha obrigação, enquadrada no 
contracto de um anno, certa vez, um cavalheiro que 
exercia a sua actividade no studio, pretendeu dar-me 
umas ordens, as quaes julguei inacceitaveis porque 
se achavam fora dos limites determinados pelas 
clausulas contractuaes. 
 Ainda assim, com o proposito de evitar 
aborrecimentos, pedi ao s. Joaquim Antunes, a 
rescisão do meu contracto. Sabedor do occorrido, 
elle ponderou-me não ter importancia o caso. Não 
devia tomar essa decisão. Continuei, então, a cantar 
na Mayrink, mas o cavalheiro, autor das ordens que 
eu não acceitara, ao que parece, ficou de prevenção 
commigo. 
 Comtudo, sem levar em conta essa 
circumstancia, prosegui na execução do meu 
contracto. Para mim, a situação estava longe de ser 
a de um mar de rosas. Nada transparecia, 
directamente, contra a minha pessoa, Deixei correr 
o marfim. Eis senão quando, certo dia, surge uma 
 
[133] 
 
empresa denominada “Propalam”. Fui convidado 
com alguns collegas para uma reunião, cujo 
assumpto objectivava a elaboração de um 
programma destinado a fazer propaganda da 
mencionada empresa. Eu e meus collegas, 
comprometidos pela fé da palavra empenhada e dos 
contractos, fomos obrigados a recusar a proposta. 
Não deixamos, porém, de agradecer a preferencia 
com que nos distinguiam. 
 O director-chefe de “Propalam”, todavia, não se 
conformou com as nossas excusas. Chegou a 
declara até que pagaria a multa imposta pela 
exclusividade do meu contracto. 
 Agradecendo mais uma vez, fiz-lhe sentir que 
não era só esse o motivo que me levava a declinar o 
convite, e, sim, a amiz\ade que me dispensavam os 
directores da Radio Mayrink Veiga. Em virtude da 
minha resolução, o chefe de “Propalam”, tendo um 
contracto com um o escriptor Paulo Magalhães, 
appelou para este, no sentido de, por seu intermédio, 
conseguir que a Radio Sociedade Mayrink Veiga 
désse consentimento, 
 
[134] 
 
ao menos, para que eu tomasse parte no programma 
a ser executado. 
 Paulo Magalhães promptificou-se a promover 
esse entendimento. Nesse interim, o director da 
“Propalam” precipitou-se. 
 Começou a annunciar o meu nome nos jornaes 
com a noticia de que se tratava de uma irradiação 
para uma nação irmã, isto é, para a capital da 
Argentina. 
 As notas fornecidas pelo director da 
“Propalam”, de certo modo, comprometiam-me. 
Meu nome estava em jogo. Entretanto, eu não 
participaria da irradiação. Como se vê, a situacão 
era bastante seria. Os ouvintes do Brasil e Buenos 
Aires, naturalmente, iriam ficar supresos e poderiam 
attribuir a mim a falta de bom senso de outros. Eu, 
que sempre fui bem recebido na Argentina, não quiz 
passar por ingrato. 
 Emfim, a leviandade do director da “Propalam” 
refletiu-se principalmente sobre mim. Procurei 
explicar a situação aos directores da Mayrink Veiga. 
Não me foi possivel convencel- 
 
[135] 
 
os. Afinal de evitar desgostos maiores, dirigi-me ao 
director da “Propalam”. Disse-lhe francamente, que 
eu não podia cantar. Podia ajudal-o, somente, no 
que fosse possivel. De facto, o ajudei, arranjando, á 
ultima hora, elementos para o programma. 
 Vi-me, assim, em circumstancias delicadas e 
tudo fiz para honrar o nome do nosso broadcasting, 
e, sobretudo, do Brasil. 
 Na noite da irradiação para Buenos Aires, por 
intermédio da “Propalam”, canteina Mayrink 
Veiga. Tive, porém, o necessario excrupulo de 
expor a miha situação e o que eu havia resolvido. 
Dispunha-me, apenas, a solucionar da melhor 
maneira uma situação melindrosa para nosso paiz. 
Fiz o que minha consciência e o meu cavalheirismo 
de brasileiro dictavam. Estive presente á irradiação 
da “Propalam”, mas não cantei. No dia seguinte, 
embarquei para São Paulo. No regresso, encontrei o 
disse-me-disse. Solicitei, então, a rescisão do meu 
contracto, o que foi feito de commum accordo. 
 Eis ahi, o que houve. 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Programma Francisco Alves” 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“PROGRAMMA FRANCISCO ALVES” 
 
Quando, em 1934, me lancei ao emprehendimento 
do “Programma Francisco Alves”, a convite de meu 
prezado e brilhante parceiro Orestes Barbosa, não 
me passou pela mente a idea de fazer concorrencia 
aos cantores e directores de outros programmas. 
 Pensei, sómente, em collaborar com todos elles 
na obra commum. O radio no Brasil, sob o ponto de 
vista artístico, pareceu-me ainda nos primeiros 
passos. Quis também fazer força. Desejei trabalhar 
num campo mais amplo e efficiente, no qual eu 
tivesse a necessaria autonomia para incentivar o 
desenvolvimento do nosso “broadcasting”. 
 Até aquella occasião não me fôra possivel pôr 
em pratica umas idéas que martelavam ha muito em 
meu cérebro e que visavam, principal- 
 
 
[140] 
 
mente, uma propaganda mais intensa e melhor 
orientada as nossas musicas e canções. 
 
* 
* * 
 
 Dentre os elementos do nosso “broadcasting” 
que collaboraram para o êxito artístico do 
“Programma Francisco Alves”, lembro-me dos 
seguintes: Luiz Barbosa, Dyrce Baptista, 
Pixinguinha, Ary Barroso, Moacyr Bueno Rocha, 
Bill Don, Luci Maria, Mario Cabral, Orlando Silva, 
Manoel Monteiro, Anninha Goulart, Aracy de 
Almeida, Sonia Carvalho, Marly Cadaval, Malena 
de Toledo, Haroldo Brown, Linda Baptista e o 
victorioso speaker Christovam de Alencar. 
 Infelizmente, a minha iniciativa, recebida com 
grande enthusiasmo pelo povo carioca, foi 
prejudicada pela falta de correcção dos directores da 
“Cajuti”, que, deixando de satisfazer as principaes 
clausulas do contracto que assinaram 
 
[141] 
 
commigo, deram-me vultosos prejuízos Moraes e 
financeiros. 
 Protelei, emquanto foi possivel, uma acção mais 
enegica contra á má fé desses cavalheiros da 
industria radiophonica. Mas, vendo que toda a 
contemporisação era inutil, resolvi suspender a 
irradiação do “Programma Francisco Alves” e 
appellar para a acção da Justiça. 
 Aliás, ainda hoje estou aguardando 
pacientemente a solução deste caso, que está sendo 
patrocinado pelo meu amigo e talentoso causidico 
dr. Carlos Lossio da Silva. 
 Apesar de sua vida ephemera, o “Programma 
Francisco Alves” realizou algo em pról do radio 
nacional. 
 Os elementos novos que lancei e que estão ahi, 
actuando com successo em nossas principaes 
estações, attestam de modo positivo que o meu 
esforço foi util e fecundo. 
 Orlando Silva, actualmente artista exclusivo da 
“Transmissora”, é um exemplo bem expressivo 
disso. Sempre que procurou se appro- 
 
[142] 
 
ximar dos nossos microphones encontrou obstaculos 
invenciveis. Linda Baptista, eleita há pouco Rainha 
do Radio, cantou pela primeira vez no meu 
programma. E a propria Dyrcinha Baptista estava 
afastada do radio. Fui eu que a trouxe para a 
popularidade que desfructa agora. 
 
* 
* * 
 
 No “Programma Francisco Alves”, eu vivia 
assediado constantemente com os candidatos a 
cantores de radio. 
 Havia pêssoas então de uma tenacidade e 
teimosia desconcertantes. 
 Certa vez, appareceu no nosso escriptorio uma 
encantadora senhorita com uma carta de um 
influente politico, meu amigo. 
 Experimentei a sua voz. Era um dos maiores 
“facões” que eu já ouvira. 
 Desculpei-me da melhor maneira. Disse-lhe que 
ella tinha uma voz aproveitavel, mas não estava 
educada. 
 
[143] 
 
– Não faz mal, Francisco Alves – contestou-me com 
vivacidade – eu não me incommodo de cantar voz 
mal educada. 
– Mas, me incommodo eu, senhorita. 
 Ela, porém, insistiu: 
– Faço questão de cantar em seu Programma, Chico. 
Nem que seja uma só vez, eu tenho que occupar o 
microphone. Estou disposta mesmo a pagar 
generosamente. Na hora em que eu cantar é como se 
você fizesse um na- 
nuncio de “O Dragão”, o rei dos barateiros. 
 – A idéa não é má. Mas por que esse capricho? 
 – Eu lhe conto. Tenho um noivo que é um 
grande creador de bovinos em Barra Mansa. 
 Elle, apezar do meio rustico em que vive, é um 
temperamento muito caprichoso e sentimental. Faz 
questão fechada de me ouvir pelo radio. Se eu não 
cantar, elle é capaz de desmanchar o nosso noivado. 
– Seria uma pena... 
 
[144] 
 
– Uma calamidade! Imagina que elle tem... 
– Um bom coração? 
– Não, isso é o menos. Tem mais de dez mil cabeças 
de gado. 
– Está bem, senhorita. Em homenagem ás cabeças 
de gado, seu noivo ouvirá hoje a sua linda voz... 
Com effeito. Nesse mesmo dia, depois de 
encerrarmos a irradiação do Programma mandei 
desligar o microphone e a encantadora senhorita 
pôde, então, “cantar”, especialmente para a 
sensibilidade romantica do creador de gado de Barra 
Mansa... 
 
 
 
 
 
 
 
 
Boátos que se Desfazem 
 
 
 
 
 
 
 
BOATOS QUE SE DESFAZEM 
 
Depois da minha accidentada passagem pela 
“Cajuti”, cantei algum tempo na “Radio 
Sociedade”. Vieram, então, diversas propostas que 
me offereciam ensejo de exercer actividade artistica 
em outras estações do “broadcasting” carioca. 
Acceitei a da “Radio Transmissora”. Emquanto se 
ultimavam os preparativos para a inauguração dos 
estudios, dei uma festa no “Carlos Gomes”, em que 
fui bastante feliz. Segui, então, para S. Paulo, onde 
cantei uma semana, na “Radio Diffusora”. 
Regressei ao Rio, e, pouco dias após, estavamos em 
pleno carnaval. 
 Passou-se o ruidoso e ephemero reinado de 
Momo. 
 Novamente fiquei afastado dos microphones, 
aguardando a inauguração da “Radio 
Transmissora”. 
 
[148] 
 
 Os boatos começaram a fervilhar nas portas dos 
cafés e nos estudios de radio: 
– O Francisco Alves decaiu! 
– O Francisco Alves não tem mais voz! 
– O Francisco Alves está tuberculoso! 
 Eu sabia que havia uma forte corrente contra 
mim, mas ouvia os commentarios com a maior 
serenidade deste mundo. E prosseguia, calmo e 
displicente, gravando os meus discos na “Victor”. 
Graças a Deus, de maneira geral, a vida me corria 
serena e desafogada sob todos os pontos de vista. 
 Nesse interim, surge-me uma proposta dos 
emprezarios do “Theatro Recreio”, para eu trabalhar 
numa peça que era a burleta-revista: “Da Favella ao 
Cattete” 
 Em face de tantos boatos de que eu não 
agradaria mais ao publico, de que havia perdido a 
voz, resolvi acceitar o convite. 
 Os ensaios correram muito bem. Apenas o 
director de scena pedia-me que eu não cantasse tão 
alto durante as provas, afim de não en- 
 
[149] 
 
rouquecer. Parece que elle tambem se deixara 
influenciar pela campanha. 
 No entanto, não dei nenhuma importancia á 
advertencia e continuei a ensaiar no mesmo tom de 
voz. 
 Quando chegou o dia decisivo do ensaio geral, 
notei que quasi todos os artistas estavam 
decepcionados. A peça não agradava, a não ser a 
mim e ai seu autor, meu amigo Freire Junior. 
 Primeira representação. Mais uma vez a minha 
estrella brilhou. A peça fez successo. O meu papel 
foi desempenhado a contento de todos, merecendo 
bôas referencias da critica e applausos calorosos do 
publico. 
 Os boateiros, que sonhavam com o meu 
fracasso, ficaram por “conta”, e foram desabafar as 
maguas, ou melhor, o despeito, nas portas dos cafés. 
“Da Favella ao Cattete”, que os meus collegas e os 
technicos de theatro julgaram um desastre, ficou 
trinta e seis dias no cartaz.

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