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Lindsay McKenna NOITES SELVAGENS

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Lindsay McKenna – Noites Selvagens
Tradução, revisão, formatação: Romance com Tema Sobrenatural – ORKUT:
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Lindsay McKenna
Noites Selvagens
Série Guerreiros da Luz
Livro 01
Tradução: Jossi Borges
Revisão: Ceila Sarita
Disponibilização e Lançamento Digital: RTS – Orkut
Este Livro faz parte, da união de pessoas que gostam da leitura e o repasse,
sem fins lucrativos, de fãs para fãs. A comercialização deste produto é estritamente proibida.
Resumo:
 Uma sombria mulher se tornou seu destino… E ele teria que se transformar em Guerreiro da Luz… 
 Arrancado das profundezas do inferno, o ex-franco-atirador do exército, Reno Manchahi foi contratado pelo governo para matar um ladrão, mas tinha outra missão mais pessoal. Descendente de uma família capaz de se transformar em animais, Reno jurou levar a cabo a vingança que por tantos anos desejara. 
	Mas sua missão começou a se complicar quando descobriu que seu objetivo era uma bela e sedutora mulher capaz de arriscar tudo para lutar contra um potente mal. Entre eles surgiu uma conexão explosiva. Mas Reno continuava resistente a revelar a verdade sobre si mesmo… Sua educação de índio apache, seu orgulho de jaguar… Muito em breve, Reno teria que se transformar em um verdadeiro herói, aceitar aquele novo amor e vencer o inimigo que colocava suas vidas em perigo.
 
 
Capítulo 1
	Um disparo… Uma morte. O maciço de sete quilos caiu com tanta força que a rocha de granito se abriu imediatamente. O balanço encheu momentaneamente o ar que rodeava o homem que empunhava a ferramenta como se de uma arma se tratasse. As gotas de suor caíam pelo rosto tenso de Reno Manchahi. Nu de cintura para cima, com o intenso sol de julho pegando suas costas, ele levantou a marreta para o céu uma vez mais. Tinha toda a atenção na rocha, inclusive sua respiração parecia fixa no objetivo. Mas o que se via na realidade era o rosto arrogante do general Robert Hampton. Soprou com força ao dar o golpe e a rocha pulverizou sob a canalização de seu ódio. Um disparo… Uma morte.
	Reno respirou fundo até encher os pulmões. O único motivo que o fazia sentir vivo era imaginar Hampton em cada rocha que ele fazia em pedaços. A vingança lhe permitia suportar o encarceramento em uma prisão da armada dos Estados Unidos perto de San Diego, na Califórnia. O suor voltou a cair por sua testa abundantemente, quando ele cobrou uma terceira rocha como vítima de sua frustração.
Com o queixo apertado, Reno se dirigiu a pedra seguinte. Os outros detentos presentes no pátio fugiam dele, porque percebiam seu ódio e a sede de vingança que refletiam em seus olhos de cor canela.
	Também diziam que ele era diferente de todos os outros.
	 Reno gostava de estar sozinho por uma boa razão: ele pertencia a uma família de mutantes. Os genes e a formação que tinha herdado lhe permitiam transformar a vontade de humano em jaguar. Mas nem sequer seu secreto poder protegera a ele… Ou a sua família. Que tipo de vida o esperava? Sua esposa, Ilona, e sua filha Sarah, de três anos haviam morrido assassinadas pelo general Hampton em sua casa, na base de Pendleton, Califórnia. Esse pervertido filho de uma cadela se dedicou a acossar à mulher dele enquanto ele se encontrava no Afeganistão lutando contra os talibãs.
Uma onda de amargura se apoderou dele enquanto afastava com o pé as pedrinhas que havia em seu caminho para chegar à outra enorme rocha. O resto de presos, todos militares, deixavam-lhe as rochas maiores; sem dúvida preferiam que ele descarregasse nelas sua raiva, melhor que com eles.
Por seu cabelo negro, sua pele de cor cobre e as maçãs do rosto marcado, todos sabiam que Reno era índio. Ao conhecê-lo e se inteirar de que era meio Apache, alguns dos detentos tinham tentado provocá-lo chamando-o de Jerônimo. Só uma vez conseguiram o que pretendiam. Durante a briga que havia se seguido às brincadeiras, ocorrera algo estranho. Depois de vencer, Reno lançou um olhar aos rostos ensangüentados de seus rivais e lhes disse que se quisessem lhe dar algum apelido, que o chamassem de «gan», a palavra apache que designava o diabo.
Reno recordava ter entrado em um estado de alteração da consciência que não havia experimentado antes. Ao temer por sua vida, seu conselheiro jaguar se impôs sobre seu corpo para protegê-lo. De sua garganta tinha saído um rugido profundo em meio à violenta briga. Em só um instante, seu corpo havia experimentado mudanças tão estranhas e rápidas, que Reno acreditou que as havia imaginado. Suas mãos se transformaram nas garras de seu conselheiro jaguar. As marcas que tinha deixado nos rostos daqueles três homens tinham feito com que Reno se desse conta de que tinha começado a mudar de forma. Um punho deixava machucados e inchaços, não quatro profundos arranhões paralelos.
Surpreso e nervoso, Reno ocultara o descobrimento e tinha prometido aos presos que da próxima vez que ouvisse o nome Jerônimo, lhes romperia os dentes e o nariz. Se seu espírito guia voltava a se apoderar por completo de seu físico, eles olhariam para os olhos amarelos de um jaguar. Tinha que ocultar o segredo e rezar para não voltar a mudar de forma nunca mais enquanto estivesse na prisão. Se algum dos guardas visse um jaguar, dispararia para matar. Seu melhor amparo seria se assegurar de que o resto dos detentos o temesse ao ponto de não se atrever a pensar sequer em atacá-lo.
Embora desejasse passar completamente despercebido, os rumores sobre ele circulavam incessantemente pela penitenciária. Alguns diziam que uma noite tinham ouvido o rugido de um felino procedente de sua cela. Reno se limitava a zombar dos falatórios.
Entretanto, freqüentemente via dois enormes olhos amarelos que o fitavam na escuridão. Esses olhos… Reno nunca tinha revelado a ninguém seus estranhos sonhos. Seu guia jaguar lhe falava em sonhos, tranqüilizava-o e tentava ajudá-lo a suportar o encarceramento.
Ninguém havia tornado a insultá-lo desde aquele primeiro dia. Só o chamavam de o solitário. E era certo, ele estava sozinho; em seus vinte e oito anos, estava sofrendo uma solidão que jamais poderia imaginar. Seu coração se encolheu de angustia em pensar. Três anos depois do assassinato de sua mulher e sua filha, Reno ainda não tinha conseguido escapar da agonia que lhe invadia o coração cada vez que imaginava Ilona com a pequena Sarah nos braços.
Hampton, general do exército dos Estados Unidos havia apagado qualquer pista delas com tremenda habilidade. Ao voltar a levantar a marreta. Reno imaginou de novo o rosto de Hampton sobre a rocha.
Vingança. Sim, isso era o que queria. Vingança. Sua ira aumentou ao recordar o desejo que o general tinha sentido em segredo por sua bela esposa. Hampton tinha observado Ilona dia após dia e, aquele funesto dia de dezembro, pouco antes do Natal, ele penetrou em sua casa. Havia violado Ilona e depois a assassinara para se assegurar de que ela não pudesse falar. E sua filha havia sido encontrada no quarto ao lado, estrangulada em sua cama.
Reno fechou os olhos por alguns segundos depois de golpear a pedra, depois levantou a marreta apertando bem o queixo e voltou à estelar contra o granito com todas suas forças.
«Grande Espírito, por que deixou que morressem Ilona e Sarah?». 
Ainda não tinha conseguido compreender. Não podia sentir outra coisa que raiva e desespero. O general era preparado como um coiote e havia pensado virtualmente em tudo, mas o que Hampton não tinha previsto era a reação de Ilona ao ataque. Ela havia lutado como um puma, o que era evidente quando se observava as fotografias de seu cadáver. As provas de DNA realizadas pelo serviço de investigação da marinha tinham demonstrado que o general tinha sido o atacante, mas antes que alguém pudesse detê-lo, o resultados das provas tinham desaparecido do laboratório e ninguém tinha conseguido localizá-losapós.
Ilona e Sarah haviam sido incineradas antes que Reno tivesse tempo de chegar. Não pudera vê-las e nem se despedir delas. Agora era prisioneiro em muitos sentidos: privado de justiça, privado de sua família e dos espaços abertos que tanto necessitava. Só o céu azul lhe oferecia uma pequena fuga de seu confinamento.
Reno se incorporou e, enquanto secava o suor da testa, olhou a seu redor, para o pátio delimitado por muros de pedra de mais de dez metros de altura. De repente sua atenção foi atraída pelo grito de um falcão de cauda vermelha. Colocando a mão sobre os olhos, ele observou o pássaro que sobrevoava o pátio do cárcere. Podia ver a cauda da cor do óxido. Sendo criado em uma reserva indígena apache, tinha aprendido que qualquer animal podia ser um mensageiro.
Por um momento, ele esqueceu a tristeza e a raiva. O pássaro estava a menos de cem metros de distância. O pátio da prisão era grande, nele havia mais ou menos trinta presos e toneladas de pedras, mas o ruído das marretas estrelando contra as pedras não sossegou o grito do falcão.
Reno o chamou mentalmente. - Irmão, que mensagem me traz? - O Grande Espírito sabia o quanto ele desejava sair da cela cada dia, embora só fosse para trabalhar como um escravo durante algumas horas. Sua saúde mental se sustentava graças a esses momentos que passava ao ar livre.
Esquecendo-se das pedras, Reno se concentrou no falcão, que seguia voando em círculos sobre ele.
- Liberdade! - Gritou a ave.
Reno moveu a cabeça.
- Impossível, irmão. Impossível. Ele se voltou convencido de que tinha imaginado o conteúdo da mensagem. Voltou a olhar a rocha e a imaginar o rosto de Hampton sobre ela.
- Liberdade!
Reno sentiu aquele grito como se tivesse saído do interior de sua mente e ao voltar a olhar o pássaro de cauda vermelha, permitiu-se albergar esperança durante alguns segundos. Estaria imaginando-o? Sem dúvida, pois o general tinha conseguido que o condenassem a vinte anos da prisão.
Entretanto. Reno havia passado toda sua infância nas montanhas da reserva, aprendendo a se comunicar com os animais. Podia falar com cervos coiotes, falcões e répteis… Essas eram suas habilidades como mutante. Até as águias douradas que sobrevoavam as terras de seu povo haviam falado com ele.
Se Reno fosse liberado poderia por fim levar a cabo sua vingança. Fora daquele cárcere seria muito perigoso. Afinal, não era coincidência que seu sobrenome, Manchahi, significasse lobo no idioma índio apache. Reno sempre encontrava à presa designada e disparava. As equipes de franco-atiradores desapareciam nas montanhas da Tora Bora, em busca dos dirigentes talibãs. Um disparo… Uma morte. Essa era uma das máximas dos franco-atiradores. Com quarenta e duas mortes em seu haver, Reno era considerada o melhor franco-atirador do exército americano. Era obvio que sua capacidade de se transformar em jaguar lhe dava a vantagem de poder rastrear seus inimigos com o olfato.
- Liberdade!.
Negando com a cabeça, Reno enviou uma mensagem telepática ao falcão: - Irmão, é uma verdadeira honra que tenha vindo a mim, mas é impossível que possa sair daqui e conseguir a liberdade.
Reno sabia que era impossível, então voltou a centrar sua atenção nas pedras, para se esquecer das insistentes chamadas do falcão, que seguia sobrevoando sua cabeça. Ainda restavam dezessete anos para ele poder ir em busca de Hampton e matá-lo.
—Manchahi! — Chamou-o um jovem guarda da porta.
Reno se voltou a fitá-lo com a marreta na mão.
—O que? — Ele respondeu. 
—Vêm aqui! Tem visita!
Enquanto ele secava o suor da frente, Reno olhou para o jovem guarda que o observava da porta, junto a um segundo sentinela. O moço era novo e era evidente que tinha medo de Reno e de sua feroz reputação.
—Parece-me que te equivoca.
A única visita que teria desejado receber teria sido a de sua mulher e sua filha, mas elas estavam mortas. Mortas para sempre, mas nunca esquecidas. A mãe de Reno havia morrido de um ataque cardíaco quando se inteirou de que sua família tinha sido assassinada. Seu pai, um índio yaqui mexicano, tinha sofrido um ataque fulminante quando Reno tinha sido declarado culpado da tentativa de assassinato do general. Reno acabava de ingressar na prisão quando lhe chegara a notícia do falecimento de seu pai e que a causa de sua morte tinha sido seu injusto encarceramento.
Agora Reno não tinha ninguém no mundo. Os poucos parentes que ainda restavam viviam em uma reserva do Ariregião, por isso era improvável que fossem percorrer tão longo caminho para visitá-lo. Seus primos não o chamavam muito ao telefone, nem tampouco lhe escreviam cartas, por isso Reno não esperava que entrassem em contato com ele. Seu único amigo era seu espírito guia, o jaguar que sempre estava junto a ele.
—Quem é? — Ele perguntou ao jovem guarda. Não podia ser seu advogado, era mais que provável que o general Hampton tivesse subornado ele também. 
—Agora o verá. Entre e se lave. Ordenaram-nos que o levemos a sala de visitas em seguida.
Reno amaldiçoou entre dentes enquanto deixava a marreta no chão. Esse guarda era um ingênuo se acreditava que tinha alguma autoridade sobre ele; o único Reno respeitava era aos marines. Seu pai tinha sido um deles. Ainda na infantaria, tinham descoberto as dotes de caçador de Reno e, depois de se graduar o enviaram a se formar como franco-atirador. Um disparo… Uma morte. Reno não trabalhava bem em equipe e o posto de franco-atirador era o ideal para um ermitão como ele; sempre ao ar livre, na natureza que tanto amava.
Os guardas se afastaram para deixá-lo passar; inclusive eles se assustavam dele, especialmente depois de ter visto as marcas de garras que havia deixado na parede, junto ao beliche em que dormia. Seu espírito guardião o procurara em uma noite e lhe tinha feito experimentar a força do jaguar fazendo um buraco no muro. Reno tivera que mentir aos guardas dizendo que tinha sido ele quem tinha feito aqueles cortes no cimento. Logicamente, os detentos não podiam ter objetos cortantes, por isso os guardas tinham revisãodo a cela em busca da ferramenta. Mas não tinham encontrado nada. Depois de se dar conta de que sequer sua capacidade para mudar de forma ia valer-lhe para sair dali, Reno havia abandonado o experimento.
Os guardas tinham chegado à conclusão de que ele não era humano, que aquelas marcas eram sobre-humanas; algo que nenhum homem poderia ter feito com suas próprias mãos. Reno havia encolhido os ombros e tinha fingido estar aborrecido com tanta acusação e absurda especulação. Se o incidente tinha servido para que todos o deixassem em paz, já havia valido a pena.
Ele seguiu os guardas até as duchas, onde se desfez do suor e do pó do pátio sob a água fria. Enquanto esfregava o cabelo com o pedaço de sabão, Reno teve uma breve sensação de liberdade.
Quantas vezes havia imaginado que se encontrava sob uma cascata do bosque em vez das duchas da prisão? As lembranças de uma infância vivida em liberdade na natureza o ajudavam a manter a prudência, essas lembranças liberavam seu espírito e lhe permitiam pensar no que aconteceria depois dos seguintes dezessete anos. Mas por mais água fria que caísse sobre seu corpo, ele não conseguia deixar de se sentir morto por dentro.
Sem prévio aviso, apareceu em sua mente à poderosa visão que tinha tido também na noite anterior. Em seu sonho, ele se viu em uma pedra onde sempre estivera milhares de vezes quando menino, em um lugar maravilhoso onde a terra se unia com o céu de uma maneira mágica. Ali, Reno tinha visto como se materializava ante ele uma mulher de cabelos negro e olhos incrivelmente verdes. Aquele acontecimento místico o havia cativado.
Mas mais confuso que fosse o modo em que seu corpo tinha reagido ante ela, seu coração se enchera de uma inesperada e intensa emoção que o tinha pegara completamente despreparado. Só experimentara algo parecido pela mulher que amava, por Ilona.
A mulher do sonho estava vestida como uma sacerdotisa inca; com uma túnica branca que perfilavainocentemente as curvas de seu corpo jovem. Sobre os ombros ela usava a pele negra e ouro de um jaguar e coloridas plumas adornavam como uma coroa, seu cabelo negro e liso. Pelo tom dourado de sua pele, Reno tinha imaginado que ela procedia da América do Sul.
De repente a mulher tinha estendido uma mão para ele.
—Necessito de sua ajuda. Por favor, venha até mim. Venha logo…
Reno seguia ali, em pé, perplexo, enquanto seu corpo e seu coração respondiam a ela como se a conhecessem bem. Mas não era assim e, entretanto, havia sentido como o sangue lhe pulsava nas veias.
—Ir aonde? — Havia perguntado ele.
A mulher tinha sorrido brandamente, como que com paciência.
—Ali. – Ela mostrara ao largo. – Eu o verei ali muito em breve. Estou em perigo. Necessito de sua ajuda e seu amparo…
Reno recordava ter se despertado pouco depois disso com um sobressalto, molhado de suor e com o coração acelerado. Tinha sido um sonho muito estranho! Mas sentado no beliche, na escuridão da cela, algo lhe havia dito que não tinha sido um sonho. Tinha sido real. Sua mãe tivera o poder de ter visões e Reno estava seguro de que aquela havia sido uma.
Havia tornado a adormecer, sem ter conseguido compreender o significado das palavras daquela mulher. Uma mulher muito bela cujos olhos recordavam os de um gato, grandes e cheios de um brilho místico. Em outro tempo os jaguares haviam habitado as terras do sudoeste. Teria algo a ver com tudo aquilo? Ele recordou que a mulher usava a pele de um jaguar sobre os ombros.
Mas Reno sabia que as visões nunca eram explícitas e ele teria que deduzir seu significado pouco a pouco, com tempo.
Ao sair da ducha, ele se perguntou se a imagem daquela mulher e a visita do falcão seriam sinais que indicavam que sua vida estava para mudar. Mas o certo era que não imaginava como poderia acontecer algo assim enquanto estivesse preso.
—Quem me espera? — Ele perguntou aos guardas que o olhavam com impaciência enquanto ele se secava e vestia a calça. Nunca usava roupa intima. Gostava de estar o mais livre possível.
—Vamos, Manchahi. - Disse o mais jovem, sem responder à pergunta.
Era sua primeira visita em três anos. Como era possível? Enquanto lhe colocavam as algemas e os grilhões ao redor dos tornozelos, ele se recordou do falcão de cauda vermelha que lhe gritara, liberdade, do céu. Seria isso o que ia lhe oferecer seu visitante? A idéia o fez rir em silêncio. Era muito realista para pensar que a vida pudesse lhe oferecer aquele presente. O general jamais o deixaria escapar.
Ao chegar à sala de visitas custodiado e encadeado como o detento perigoso que todo mundo o considerava, Reno encontrou o lugar vazio, com exceção de um homem que aguardava de pé em um canto. Seu sexto sentido reagiu imediatamente. Ele era um mutante e tinha desenvolvido esse dispositivo de alerta mais que um ser humano normal.
Seu visitante, de uns trinta anos, estava impecavelmente vestido com um traje azul. Com sua altura e seu corpo de atleta, ele parecia um modelo. Mesmo a distância, Reno notou o aroma de sua loção de barba, mas distinguiu outros aromas, como um ligeiro toque de fumaça de puro. Seus olhos cinza fizeram com que Reno desconfiasse imediatamente dele.
Em seguida, ele se deu conta de que não conhecia aquele homem. Na mesa junto a ele estava uma pasta que lhe fez pensar que provavelmente ele fosse um agente de algum tipo. Do FBI? Não, mas um agente secreto da Cia. Reno tinha trabalhado com muitos no Afeganistão, por isso distinguia essa atitude arrogante com a qual pretendia se fazer ver que estava acima dos outros. O típico comportamento de um agente secreto.
—Sente-se, senhor Manchahi.
—Estou bem de pé. Quem é você? — A voz de Reno soou como uma espécie de rugido, um trovão que retumbava nas montanhas da reserva em um dia quente.
—Em seguida saberá. Agora sente-se.
Reno considerou o que fazer. Aquele tipo não o temia e isso o intrigava. A curiosidade pôde mais e finalmente ele pegou uma cadeira de plástico e se sentou antes que o fizesse, os Olhos Pálidos. Sua mãe lhe tinha ensinado a interpretar os rostos das pessoas e todos as faces humanas lhe recordavam algum mamífero, pássaro, serpente ou inseto. Pelo queixo afiado e o olhar furtivo. Olhos Pálidos lhe recordou um coiote.
—Sou o agente Brad James, da Cia
—E?
—Estou aqui para lhe oferecer a liberdade.
Liberdade. Reno não fez um só gesto. Como bom índio, sabia como ocultar suas emoções. Recordou-se do falcão e sua promessa de liberdade.
Observou ao agente atentamente antes de dizer:
—Ouço-o.
—Bem... - Disse James sorrindo. - Seus serviços e seu talento são necessários no Equador.
Aquilo o surpreendeu, mas Reno não disse nada.
James se inclinou para diante.
—Eu estou destinando-o ao Quito. O governo equatoriano solicitou ajuda aos Estados Unidos. Há uma mina de esmeraldas chamada Santa Maria, que está sofrendo a perseguição de um homem. Ele já matou a vários guardas e é o responsável pelo desaparecimento de três milhões de dólares em esmeraldas. Chamam-no de o Espanto. - James tirou uma fotografia da pasta e deu a Reno. - Aqui está a mina e esses são os proprietários. – Ele acrescentou lhe mostrando uma segunda foto. - A mina se encontra em uma montanha e O Espanto sempre ataca os guardas à noite.
Reno observou uma terceira fotografia em que se via um caudaloso rio que atravessava a selva e rodeava uma grande montanha. Uma parte do terreno tinha sido despojada das árvores e nela se podiam notar as cicatrizes deixadas pelos bulldozers.
—Então esse tipo… O Espanto, rouba os ricos e ataca os guardas contratados para proteger a mina? — Perguntou Reno recostando-se no respaldo da cadeira.
—Em poucas palavras, sim.
—E o que se acredita que tenho que fazer?
James voltou a se inclinar para diante e baixou a voz.
—Queremos que encontre esse filho de cadela e o mate. Queremos que ele desapareça. Já está a dois anos causando problemas e já … Quero dizer… Já se perderam muitos homens. Necessitamos de um bom rastreador e franco-atirador… E esse é você.
— Por que eu?
—Porque sei quando alguém é o melhor para um trabalho. Isso é tudo o que precisa saber.
—E se eu fizer esse trabalho para você…?
A Reno não gostava nada daquele James.
—O primeiro que tem a fazer é encontrar esse tipo, matá-lo e dar às autoridades equatorianas uma prova de que o fez. Depois disso, o governo dos Estados Unidos estará disposto a perdoar a dívida que tem com a sociedade, por assim dizer. Quando matar esse homem, obterá a nacionalidade equatoriana e os Estados Unidos passará a ser terreno proibido para você. Terá deixado de ser cidadão americano para sempre.
Reno sentiu que seu coração batia forte no peito enquanto observava o agente. James parecia muito seguro de si, quase petulante. Sem dúvida era um desses urbanistas aos que não gostavam de sujar as mãos no mundo real.
—Em outras palavras, serei livre se encontro esse tipo e dou um fim a ele?
—Exato. A sentença ficará comutada. Pode passar o resto de sua vida na América do Sul, mas se tentar voltar para os Estados Unidos por qualquer motivo que seja irão detê-lo e voltarão a colocá-lo neste cárcere até que morra. Ninguém saberá que está aqui, nem se preocupará com isso. – Ele fez uma pausa antes de continuar expondo tão dura oferta. - É uma boa oportunidade, Manchahi. Se eu fosse você, aproveitaria. Se aceitar, sempre pode seguir apodrecendo aqui durante os próximos dezessete anos. Você decide…
Liberdade. O falcão não lhe havia mentido. E a visão daquela mulher que lhe assinalava para o sul também se encaixava. Reno voltou a olhar as fotografias. Parecia uma operação singela; nada que não pudesse fazer com total facilidade.
—De quanto tempo disponho para encontrar esse tipo? — Perguntou.
James encolheu os ombros .
—Os proprietários da mina querem que ele desapareça o quanto antes possível.
—Quanto tempo ele leva fugindo dos guardas da mina e a todos que tenham contratado?
—Dois anos.
—O que querdizer que a missão não é tão singela quanto parece. - Reno olhou fixamente aos pálidos olhos do agente. - Quero saber tudo antes de me comprometer.
James o olhou sem dizer nada e Reno se deu conta de que ele não pensava responder. Finalmente, o agente assinalou o documento que havia sobre a mesa.
— Trata de uma operação secreta, então esqueça se soubesse tudo. Observou isto? É um documento assinado pela RECUA autorizando sua liberdade. Leia-o. Promete que você ficará livre sempre e quando encontrar esse tipo no prazo de um ano e, dada sua reputação como melhor franco-atirador do mundo, deduzo que será tempo mais que suficiente para caçar esse filho de cadela.
Enquanto observava o documento e assinava, Reno pensou que havia muitas coisas que não se encaixavam. O agente James tirou um passaporte equatoriano do bolso e o entregou. Ele em seguida viu sua foto no interior.
—Utilizará seu verdadeiro nome. O passaporte é perfeitamente válido, mas os donos da mina preferem que se faça passar por outra pessoa. Eu entendi que nos marines trabalhou como paramédico titulado.
—O título segue em vigor. - Confirmou Reno. - Continuei renovando-o apesar de estar aqui.
—Muito bem. A corporação está dando os últimos retoques a um pequeno consultório médico perto da mina, onde poderão assistir os trabalhadores. - Informou James. - Supomos que o assassino seja um deles, assim será útil que se misture a eles e, sendo o responsável pelo consultório, será fácil. Você fala espanhol fluentemente, já que seu pai era mexicano.
—Ele era um índio yaqui. - Matizou Reno, furioso pelo tom condescendente do James.
—Sim, bem, o que seja. - Disse o agente. - O que importa é que você fala espanhol e que tem aspecto latino. Os trabalhadores irão em massa a sua clínica gratuita, todos eles precisam de cuidados médicos desesperadamente. Terá que se fazer amigo deles e perguntar pelo Espanto; cedo ou tarde eles lhe dirão tudo o que sabem e você poderá caçá-lo. Proporcionarão-lhe as armas que necessite sem fazer perguntas. Basicamente você será um homem livre, mas... - James baixou a voz para deixar claro que ia fazer uma advertência importante. - Se tenta escapar sem fazer seu trabalho, prometo-lhe que não demorarão em lhe encontrar.
—Se eu der minha palavra, pode estar seguro que a cumprirei. – Reno desejava com todas suas forças dar um murro naquele tipo. Ele não gostava que ninguém o ameaçasse.
—Mas antes de ir você precisa saber as regras do jogo. Só informará os progressos aos membros da corporação. O chefe de segurança da mina também saberá sua verdadeira identidade e você terá que trabalhar com ele a maioria do tempo. Será ele quem se encarregará de que você tenha tudo o que necessita, qualquer tipo de armas e a munição correspondente.
—Tudo isto resulta bastante difícil de acreditar. - Disse então Reno. - O governo dos Estados Unidos colocando o nariz em uma mina de esmeraldas no Equador… Não revisãom serem essas as preocupações dos serviços de segurança.
—Os motivos da operação não são de sua incumbência. - Assegurou James arrogantemente. - Seu trabalho consiste unicamente em encontrar e matar a pessoa indicada.
Em nenhum momento passou pela cabeça de Reno a possibilidade de não concluir a missão com êxito. Liberdade. Era o único que podia pensar. Seria livre; voltaria a sair à natureza, a caminhar entre as árvores, a pescar nos rios e a sentir a ferocidade das tormentas enquanto a chuva caía sobre sua pele. Respiraria o ar fresco da terra em vez da fumaça dos cigarros acumulado entre os muros da prisão.
—Firme isto e poderá sair daqui comigo. – O homem lhe disse entendendo uma caneta e, ato seguido, tirou duas passagens de avião do bolso. - Nesta mesma noite, você e eu tomaremos um vôo de San Diego ao Equador.
James lhe devolveu os documentos, uma vez assinados.
—É muito bom para ser verdade.
—Sem dúvida é melhor que ficar aqui. - Murmurou o agente enquanto guardava todos os documentos e fotografias em sua pasta. - Mas que não lhe ocorra pensar que poderá voltar para saldar sua dívida com o general Hampton. Sua vida anterior ficou completamente apagada; enquanto conversamos, está sendo eliminando até o menor rastro sobre você: seu nome, seu número da segurança social… tudo. Agora é você um homem sem pátria. A única maneira de obter uma segunda oportunidade na vida é ir ao Equador e matar o Espanto. Até que o faça, estarão lhe observando e vigiando a todo o momento. Segue preso, só que em um cárcere diferente.
Melhor isso que nada. Mas Reno não pensava em esquecer de se vingar de Hampton. Ao ficar em pé, ele esboçou um sorriso rapace.
—Encontrarei esse tipo. O Espanto já está morto, mas ainda não sabe. - Reno se transformaria em jaguar e rastrearia seu aroma até chegar a ele.
—Isso é exatamente o que queria ouvir. —James fez um gesto ao guarda para que se aproximasse. - Tire-lhe as correntes e lhe traga a roupa que trouxe. - Depois ele olhou para Reno. – Você levará duas malas e uma maleta médica… Todo o necessário para começar sua nova vida. Quando tiver se instalado na clínica, me chame neste número. – Ele ordenou lhe dando um cartão.
Quando o guarda o liberou das correntes e das algemas, Reno sentiu vontade de gritar. Ira ganhar a liberdade; o falcão não se equivocara. O que lhe proporcionava o futuro? América do Sul. A mulher de sua visão já havia dito.
Aonde estaria enviando-o, o Grande Espírito? Então ele se recordou das palavras de sua mãe, quando tinha descido das montanhas depois de sua última visão e antes de se incorporar a Marinha com dezoito anos: - Filho, sua visão está cheia de turbulências, transformações e violência. Tome cuidado. Mantenha-se em alerta a todo o momento e ouça ao seu coração, porque ele nunca te enganará. Tenha fé em todos os nossos parentes. Eles lhe mostrarão o caminho.
Quando a última corrente saiu de seu corpo, pela primeira vez desde a morte de sua mulher e sua filha, Reno se permitiu sentir emoção. Uma intensa alegria surgiu em seu interior, mas logo foi controlada pela precaução de seu instinto. O que havia realmente por trás daquela missão? Reno sabia que o agente da RECUA que o esperava junto à porta não havia dito tudo, nem muito menos. Teria que averiguar a verdade por seus próprios meios antes de procurar o Espanto.
Um disparo… uma morte.
 
Capítulo 2
—Pablo! — Gritou Pilar aparecendo no túnel. - Cavalos se aproximam!
Eram duas horas da manhã e a selva bulia com as canções dos insetos e o ulular do mocho, que parecia adverti-los do perigo. A umidade da terra lhe enchia as fossas nasais. Felizmente, a vegetação alta escondia suas atividades ilegais nas ladeiras da mina de esmeraldas de Santa Maria. Tinham cortado o alambrado e penetraram na propriedade para tentar encontrar a jazida de esmeraldas que os tiraria da terrível pobreza em que viviam. Valia toda a pena e o risco.
Com a respiração acelerada, Pilar observou a escuridão do túnel que haviam cavado durante as últimas três noites, seu marido Pablo, seu filho de oito anos Manuel,e sua filha de dez, Francesca.
Foi ela a primeira que saiu minutos depois, com o cabelo negro cheio da avermelhada terra da mina e com uma cuba cheia entre as mãos. A tênue luz da lamparina de querosene fazia com que o pálido rosto de sua filha parecesse uma dessas máscaras do Dia dos Mortos que se celebrava a cada primeiro de novembro.
Pilar pegou a cuba e atirou a um lado a terra que continha. Francesca tentou de impedir-lhe mas Pilar gritou com impaciência:
—Volte para dentro e traga seu pai! Diga-lhe que há barulho de cavalos. Os guardas da mina devem estar já muito perto! Busque-os! Diga-lhe que temos que nos partir! Apresse-se!
—Sim, mamãe. – A criança voltou a se inundar na escuridão do túnel, e enquanto sua mãe olhava de um lado a outro com o coração pulsando na garganta. Voltou a ouvir o relinchar de um cavalo que a encheu de terror. Os sentinelas da mina sempre cavalgavam de dois em dois e andavam armados com pistolas, que disparavam nos trabalhadoresindefesos. Não faziam perguntas. Se os encontrasse, seriam assassinados a sangue frio.
Ela tentou entrar no túnel, mas seu quadril largo a impediu; Haviam escavado só o suficiente para que pudesse entrar um homem magro como Pablo ou uma criança. Pilar queria gritar por eles, mas não se atreveu, pois sabia que o menor ruído alertaria os guardas.
Naquela noite havia lua de jaguar e tudo estava muito escuro. Como boa Índia, com sangue inca correndo por suas veias, Pilar rezou à Mãe Jaguar para que os protegesse dos guardas.
As estrelas brilhavam em um céu que parecia uma abóbada de ébano. Para qualquer pessoa que não fora um caçador de esmeralda, um céu como aquele era uma preciosidade, mas sem a névoa que normalmente cobria a selva, sua família estava em perigo. Em uma noite tão clara os guardas veriam qualquer intruso com bem mais facilidade.
Pilar sempre se sentia inquieta durante a fase jaguar da lua. A tradição de sua tribo dizia que era nessa fase quando os Tupays, os maus, vagavam livremente pela Terra porque a lua não os afugentava com sua luz. Só a grande Mãe Jaguar, que habitava a escuridão para proteger os seres de bom coração, podia enfrentar a sua energia escura. Na opinião de Pilar, os guardas da mina eram a personificação do mal.
Ela aguardou na boca do túnel atenta a qualquer ruído procedente do interior. Seus olhos ardiam por causa da fumaça do lampião de querosene. Estavam a três noites cavando do pôr-do-sol até a chegada das primeiras luzes do amanhecer. Pablo tinha calculado que o túnel teria já quase dez metros de comprimento. Manuel, seu valente filho era o que entrou mais para o interior, pois era magro e dirigia bem a pá naquele espaço estreito e escuro. Era um trabalho lento e difícil. Pilar ficava do lado de fora com a água e a pouca comida que tinha conseguido preparar para lhes dar força, e recebia as intermináveis cubas de terra que eles tiravam do fundo do túnel. 
Outro som de cavalo. 
- Ai. Mãe Jaguar !- Sem parar de choramingar, Pilar tentou de novo entrar no túnel, mas seguia presa pela largura de seus quadris. Por mais que se esforçasse, não conseguia avançar. Foi quando viu um pequeno resplendor no fundo do passadiço. Manuel estava com outro lampião de querosene para poder ver onde cavava. Todos rezavam para encontrar um bom filão de esmeraldas, um lugar onde o precioso cristal verde esperava ser descoberto.
Ela ouviu a voz aguda de Francesca urgindo seu pai que saísse, porque os cavaleiros da morte se aproximavam.
Pilar por fim respirou aliviada e saiu do túnel, para esperar que sua família fizesse o mesmo. Eles estavam rodeados pela vegetação alta, mas se encontravam em uma região muito alta do vulcão adormecido. Pablo tinha escolhido aquele ponto do grande pendente porque não era onde estavam acostumados a cavar os outros trabalhadores, que normalmente optavam por fazê-lo mais perto da selva, para correr e se refugiar nela. Ali, entretanto, eles estavam mais longe da espessa vegetação da selva que se estendia mais abaixo.
Diziam que havia abundantes filões de esmeraldas escondidos, presentes do Apu, o espírito da montanha, Pilar sempre havia sentido certa apreensão sobre o plano desesperado de seu marido em abandonar o povoado dos Andes peruanos onde tinham vivido e partir para o Equador em busca de prosperidade. O único que haviam conseguido com a viagem era que seus filhos estivessem mortos de fome e que seus corpos não fossem mais que ossos e pele. Muitas noites, Pilar chorava por que seus filhos se deitavam sem ter comido nada durante todo o dia. Pelo menos no Peru eles podiam cultivar batatas e feijões e teriam tido o apoio dos outros que sofriam o mesmo que eles.
Pilar não tinha mostrado seu desacordo com a arriscada idéia de Pablo. Naquele momento tinha acreditado que deviam se arriscar, mas agora enquanto guardava em um pano a pouca comida que restava, ela questionava sua viabilidade. Toda a comida, as ferramentas e algumas garrafas de plástico com água que tinham encontrado entre a vegetação, onde sem dúvida as teriam atirado os guardas, cabiam em um pequeno saco… Ali estava potencialmente tudo o que possuíam.
Os guardas da mina eram principalmente mercenários estrangeiros; antigos soldados vindos de todas as partes do mundo. Muitos odiavam os índios de pele moReno e tinham ordens de disparar para matar. Os guardas nunca contestavam na hora de seguir as instruções que lhes davam os desalmados proprietários da mina. Certamente porque recebiam generosos salários por tal disposição. Muitos amigos de Pilar haviam morrido lá encima. 
- Ai, Mãe Jaguar! – Já haviam morrido muitos.
O seguinte som foi o sinal inequívoco de que os guardas se encontravam muito perto. Estavam vindo em direção a eles. Pilar se aproximou da boca do túnel e chamou a sua família uma vez mais. Pronunciou o nome de sua filha com lágrimas nos olhos. Sentia um nó no estômago e não podia deixar de pensar em que corriam o risco de ser assassinados.
Francesca apareceu um momento depois com uma segunda cuba nas mãos.
—Deixem isso já! — Sussurrou Pilar freneticamente enquanto apertava contra seu peito o saco que continha suas poucas posses. Depois chamou seu marido sem levantar a voz. O que Pablo acreditaria que estava fazendo? Acaso a febre das esmeraldas o havia tornado tão louco para não se dar conta do perigo que se encontravam?
Pilar já ouvia o ruído que faziam as ferraduras dos cavalos sobre o chão. Ela pegou sua filha pelos ombros e a olhou fixamente.
—Corra! Corra daqui, Francesca. Vá para a cerca da selva, já conhece o caminho.
—Mas, mamãe…
—Vá embora daqui ou a matarão!
A moçinha titubeou um décimo de segundo e Pilar não teve outra opção, que empurrá-la. Os guardas estavam a menos de cinqüenta metros. Ela ouviu Pablo saindo do túnel, mas já era tarde. Com um soluço, Pilar soube que foram apanhados. Sua filha, entretanto, ainda tinha uma ligeira possibilidade de escapar.
—Corra, Francesca! — Ela lhe disse mais uma vez, aterrada. - Te amo! Não esqueça nunca.
Talvez fosse a última vez que veria sua filha, por isso a observou enquanto ela desaparecia e ela gravou sua imagem na memória.
Às suas costas ela pôde ver a figura dos guardas, que já sabiam onde estava o túnel e se dirigiam diretos para ele. - Ai, Mãe Jaguar, tenha piedade de nossas almas. Só queríamos era um pouco de dinheiro para poder dar de comer a nossos filhos. Tenha piedade de nós e nos proteja. - Enquanto rezava, Pilar levou a mão à pequena bolsa que tinha pendurada no pescoço e onde guardava uma mecha de pelo de jaguar.
Pablo saiu do túnel de joelhos e coberto de terra de pés a cabeça. Tentava respirar ar fresco, pois estava enjoado de estar tanto tempo no interior da montanha e mal podia ficar em pé. Ele limpou o suor do rosto.
E então viu sua mulher olhando colina abaixo. Os guardas da mina! Seus olhos ainda estavam se adaptando à luz, mas ele ouvia o trote dos cavalos… Muito perto, tanto que o coração começou a bater forte no peito. Ele se abaixou para pegar Manuel, que ainda estava saindo. Ele estava muito devagar, mas Pablo não podia culpá-lo; ele havia muito tempo respirando a fumaça do lampião de querosene. Esse era um dos muitos perigos que enfrentavam a cada noite. Naquele momento, Pablo sentiu ódio pelo mundo inteiro. Seu filho tinha passado três noites seguidas cavando com a esperança de encontrar algum dia o filão de esmeraldas que os tirasse da pobreza.
Ao levantar o pequeno nos braços, Pablo notou que também tremiam suas pernas. Depois de estar toda a noite trabalhando, só tinha forças para deitar e descansar por algumas horas. Mal podia se mover.
—Pilar! Corra! Pegue Manuel e…
Pilar se voltou e olhou o marido. Era muito tarde. Ela mordeu a língua para não gritar com ele, como teria desejado. Os guardas foram para eles a toda velocidade.
—Temos que nos apressar! — Exclamou ela com a voz rasgada pelo medo.
Pablo negou com a cabeça e lhe sussurrou.
—É muito tarde, querida. Sinto muito, não tenho forças, não possome mover. Pablo sentiu a boca cheia de um sabor amargo quando sua mulher, de apenas um metro cinqüenta de estatura, abraçou a ele e a seu filho. Manuel se pôs a chorar.
Sua família estava a ponto de morrer. - Ai, Mãe Jaguar, tenha piedade de nossas almas. Quero minha mulher e a meus filhos com todo meu coração. Tenha piedade deles. Me leve a mim e deixe que eles vivam. Por favor, rogo-lhe…
Pilar voltou a olhar os guardas. Eles rapavam a cabeça com orgulho, para demonstrar que não se pareciam em nada aos trabalhadores que tanto desprezavam. Além disso, assim se reconhecia de longe uns aos outros mais facilmente. Todos eles levavam bandoleiras com munição e coletes a prova de balas.
Pilar teve a sensação de que o coração saia de seu peito, quando viu como os dois guardas os olhavam. O mais alto sorriu, mas não era um sorriso amável. Era o sorriso de um predador antes de se equilibrar sobre sua presa.
—Olhe o que temos aqui, Garold?
—Parece que os pegamos com as mãos na massa, Moriz. - Disse o outro levantando seu fuzil AK–47 para carregá-lo.
O som da arma fez Pilar estremecer. Ela abraçou com força seu filho. Os soluços de Manuel eram ensurdecedores, mas a selva estava em completo silêncio, como se contivesse a respiração.
—Por favor! — Ela implorou os gritos. – Não nos matem! Deixe-nos partir! Prometemos-lhes não voltar a cavar! Tenham piedade de nós!
O sentinela que o outro tinha chamado de Moriz mostrou os dentes ao olhar para seu companheiro.
—Ouviste isso? Eles querem piedade. Depois de se atrever a vir até aqui apesar dos avisos que proíbem a entrada e de ter cortado o alambrado. E pelo visto têm feito isso a três noites seguidas, não é certo, trabalhadores? Parece-me que cometeram um delito. O que você acha, Garold?
—Certamente. - Disse o outro apontando sua arma.
—Digam suas últimas preces, amigos, porque vocês vão diretos para o inferno.
Pilar abriu os olhos e para seu horror, viu o prazer refletido no rosto de seus verdugos. Segurou com força seu filho e a seu marido.
Durante um décimo de segundo, ela teve a sensação de que teria caído um raio muito perto, mas no céu não havia nuvens. O que estava acontecendo? De repente ela notou que os guardas estavam duvidando e que trocavam um olhar mostrando-se confusos. Também eles o haviam sentido. Mas, o que era?
Então se ouviu o ruído de um fuzil. Um disparo, logo outro. O estrondo retumbou ao longe, no silêncio da selva.
O guarda mais velho caiu do cavalo, que saiu correndo, assustado. O segundo, Moriz, recebeu um disparo na cabeça que também o arrancou do cavalo e o fez aterrissar no chão.
Pilar observou boquiaberta o cavaleiro que surgia da escuridão, no lombo de um cavalo negro. Embora o medo não fizesse mais que aumentar, não podia deixar de olhar a figura sem rosto. Onde deveriam estar os olhos havia dois brilhantes círculos verdes. Era Tupay… Ou seu salvador? De repente a selva voltou para a vida; os macacos começaram a gritar depois do estrondo dos disparos.
Foi nesse momento quando Pilar se deu conta de quem ele era. Com as pernas trêmulas, ela se aproximou de seu marido e lhe sussurrou no ouvido:
—É o Espanto!
Freqüentemente, ela ouvia os mineradores que entravam nas colinas dizer que seu protetor percorria aquelas terras, no lombo de um cavalo negro e os salvava de morrer nas mãos dos guardas da mina. Aqueles que o avisãoram diziam que ele possuía os olhos de jaguar e que era igualmente silencioso.
Pilar caiu de joelhos quando suas pernas perderam a pouca força que restava. Sua família acabava de se livrar da morte!
O fantasmagórico cavaleiro se deteve a poucos metros deles, em sua mão estava o fuzil com o que tinha disparado nos guardas. Pilar se atreveu a levantar o olhar para ele. O cavalo estava coberto com um tecido escuro e o homem usava uma espécie de jaqueta que lhe recordou aos coletes a prova de balas que usavam os guardas da mina.
—Saiam daqui e não voltem jamais. - Lhes disse o espectro com uma voz tenebrosa. - Vão embora para casa! — O cavalo chutou o chão com impaciência.
Completamente horrorizada, Pilar viu sua filha sentada na garupa do animal.
—Francesca! — Ela gritou lhe tendendo os braços.
Francesca estava viva. Obrigada, Mãe Jaguar. O Espanto a encontrara e a trouxera com ele. De repente, o cavalo, que até esse momento não tinha deixado de se mover, ficou petrificado. Pilar viu como o cavaleiro pegava sua filha e a baixava ao solo sem que o animal movesse um músculo. Os pequenos pés descalços da menina tocaram a terra e imediatamente Pilar correu para ela sem deixar de chorar.
Ela abraçou-a com força e lhe deu dezenas de beijos enquanto a mocinha soluçava e apertava o rosto contra o peito de sua mãe.
—Afastem-se desta montanha! — Advertiu-lhes o cavaleiro e, levantando uma mão enluvada, assinalou ao sul. - Voltem para seu país. Imediatamente!
Pilar tinha o olhar cravado nos olhos de jaguar daquele espectro. Realmente a Mãe Jaguar o tinha enviado.
—Sim… Nós o faremos. – Ela conseguiu dizer antes de se voltar para olhar seu marido, que parecia estar em estado de choque.
—O som dos disparos atrairá mais guardas. Saiam já, amigos.
—Sim, sim. - Disse Pablo. - Temos que ir. Obrigado. Salvou-nos a vida. Que… Deus o benza.
—Que Deus benza a grande Mãe Jaguar, amigos. É ela que nos protege na escuridão da lua. Esse é seu momento de poder. Agora, vão embora!
Pilar pegou a mão de sua filha, que seguia olhando boquiaberta para o Espanto. Ao tentar pegar o saco com seus pertences, ela notou que o cavaleiro levava a mão ao cinto.
—Aqui têm. – Ele disse inclinando-se para ela, para lhe dar uma bolsinha de couro. – Usem isto para sair daqui e ter uma vida melhor em outro lugar.
Pilar sentiu o peso das moedas ao pegar a bolsinha.
—O que é isto, patrão?
—O dinheiro necessário para que você e sua família comecem novamente em uma terra onde possam dar de comer a seus filhos. Mas afastem-se logo, senhora. Não há tempo.
Ao olhar para seu salvador, Pilar se fixou também na incrível beleza do cavalo árabe que ele montava. Não era maior que os corcéis espanhóis dos guardas, mas parecia mais forte e sem dúvida corria como o vento. Seus olhos eram também verdes. Sem dúvida o animal era tão mágico quanto seu cavaleiro.
A Pilar pareceu que ambas as figuras eram uma miragem. Sem dúvida era a magia do jaguar, a mais poderosa da Terra.
—Obrigado, patrão. - Sussurrou Pilar com voz trêmula. - Obrigado de todo coração. Pediremos por você à Mãe Jaguar.
O cavaleiro levantou a mão e saiu para a escuridão.
—Vão embora!
Com as duas crianças em meio a eles, Pablo e Pilar desapareceram colina abaixo. Pilar não queria se afastar do Espanto. Tinha ouvido tantas histórias sobre ele desde que havia chegado ali em busca de uma vida melhor…
Ouviu novamente o ulular do mocho que tinha tentado avisá-la antes. Pilar se voltou a olhar para cima. Viu como O Espanto descia do cavalo e se dirigia para os corpos sem vida dos guardas. Abaixou-se e os despojou dos fuzis, da munição e do rádio antes de chamar seu cavalo com um assobio e partiu dali levando as armas.
Pilar observou fascinada o misterioso cavaleiro que os salvara. Como ele desaparecera tão depressa em uma noite como aquela? A lua de jaguar não oferecia luz alguma mas o cavalo galopava sem dificuldade pelo agreste terreno. Talvez voava, em vez de tocar o chão. Pilar seguiu olhando até que a escuridão os tragou de tudo.
—Vamos. - Disse Pablo lhe puxando pelo braço.
Ela gravou em sua mente aquela última imagem do Espanto, depois voltou e continuou caminhando junto de seu marido.
—Mamãe, o Espanto me salvou. - Disse Francesca. - A princípio me deu medo, mas então ele se voltou e me chamou pelo nome. Não sabe como lhe brilhavam os olhos! Mamãe, eu acredito que ele é um jaguar, não um homem.
—O que ele te disse? — Perguntou-lhe Pilar, incapaz de respirar com normalidade enquanto corriam colina abaixo.
—Ele me disse: - Se segure, pequena. Foi muito amável comigo,mamãe. Sabia que tinha medo e por isso me disse que tudo ia sair bem. E o cavalo… Também tinha os olhos verdes e brilhantes. E lhe saía fumaça pelo nariz! Mamãe, era mágico. Fomos voando até encima e quando o vi desprender o fuzil soube que ia lhes salvar.
—Incrível! — Exclamou Pablo enquanto afastava os galhos do caminho para continuar avançando. - O que aconteceu depois, Francesca?
A menina respirou fundo e apertou com força a mão de Manuel.
—Cavalgamos colina acima… Rápido como o vento, papai. O cavalo é pequeno, mas muito veloz. E parecia saber aonde o Espanto queria ir, sem que ele fizesse nada. Ao nos aproximar vi os guardas com as armas na mão. Tinha tanto medo que não podia gritar! O Espanto pegou seu fuzil e o carregou. Quando disparou, o ruído me fez mal aos ouvidos, mas o cavalo sequer se moveu. Foi incrível! — Francesca tropeçou em um ramo e teria caído, se sua mãe não a pegasse. 
Pilar sorriu para a filha com ternura. Uma vez junto ao alambrado, seu marido tirou as tesouras. Assim que Pablo fizesse um buraco para que pudessem passar, eles estariam a salvo.
—Você vivenciou uma experiência inesquecível, meu amor. – Ela lhe disse acariciando sua cabeça. - Ninguém nunca montou no cavalo do Espanto!
—Mas não vamos dizer a ninguém. - Advertiu Pablo enquanto cortava o alambrado com as mãos tremulas. Tinha que fazer muita força porque a ferramenta estava muito oxidada e era difícil. - Iremos esta noite. – Ele disse olhando para Pilar. - Antes do amanhecer teremos chegado em Pedra Preciosa. O Espanto nos disse que é para sai daqui e é o que vamos fazer. Nunca falaremos com ninguém sobre o que nos aconteceu esta noite. Jamais. Se alguém souber que ele nos deu dinheiro… É certo que algum minerador tentaria nos roubar. Não podemos nos arriscar.
Por fim, Pablo cortou o último arame e pôde afastá-lo para que sua família atravessasse.
—Vamos. – Ele disse. - O Espanto nos devolveu a vida e nos deu uma nova oportunidade. Voltaremos para casa, no Peru. Não vamos defraudar-lhe. Pediremos por ele à Mãe Jaguar a cada dia, de onde estivermos. Seu nome estará em nossas preces até que morramos. Vamos, temos que nos afastar deste inferno…
 
Capítulo 3
A negra égua árabe escorregou ligeiramente no barro que cobria a erva molhada da montanha, mas Magdalena Calen Hernández conseguiu manter o equilíbrio trocando o peso do corpo. Era uma noite fresca e úmida e as estrelas brilhavam inocentemente no céu. A rítmica respiração da égua a ajudava a acalmar os nervos. O fuzil lhe golpeava as costas a cada passo, mas o colete anti-balas amortecia o impacto.
Ainda não estavam fora de perigo. Sem tirar a máscara ainda, ela deteve o cavalo a uns dois quilômetros do lugar onde os guardas estiveram a ponto de matar a família de trabalhadores.
Magdalena tinha uma visão extraordinária; seus pais lhe transmitiram genes próprios de um jaguar, por isso podia distinguir na escuridão sem necessidade de nenhum tipo de artefato. Só utilizava os óculos de visão noturna quando cavalgava por aquelas terras a meia-noite. Os brilhantes cristais verdes ajudavam a perpetuar a mística lenda do Espanto.
Esse era também o motivo pelo qual havia ideado aquela espécie de capa para Tormenta. Ao tecido negro, ela havia incorporado óculos especiais com o qual o animal podia ver na escuridão e sortear todo tipo de obstáculos e fossas que, de outro modo, os teriam feito se deter constantemente.
Ela olhou a seu redor e se encheu com o aroma de baunilha das orquídeas. Conhecia aquela montanha tanto como seu próprio corpo. Tinha nascido naquelas terras e as percorrera milhares de vezes livremente até que a corporação proprietária da mina tinha começado a levantar os alambrados.
Não parecia haver mais guardas, mas nunca se sabia por que seus passeios noturnos não seguiam nenhum esquema predeterminado; em qualquer momento poderiam aparecer um e então estaria uma vez mais em uma situação em que matava ou morria. Sempre contava com a ajuda de Tormenta, que entendia suas instruções sem necessidade de usar as rédeas em nenhum momento; com uma ligeira pressão no lombo, ela sabia para onde tinha que se virar e quando se deter em seco.
Levantou o rosto para o céu para tentar perceber algum aroma que a alertasse da presença dos mercenários. Muitos deles fumavam e ela, como boa mutante capaz de se transformar em jaguar era fácil sentir-lhes o cheiro.
Nada. Só o intenso aroma das Orquídeas. Entretanto…
Magdalena fez Tormenta virar para o norte e voltou a se deter observar o terreno. Os guardas não tinham tido tempo de avisar pelo rádio, mas Magdalena sábia que eles tinham o costume de falar uns com os outros a cada meia hora. Quando eles não respondessem, outros sairiam em sua busca. Com um pouco de sorte, os trabalhadores teriam escapado e se encontrariam ao outro lado da cerca e portanto, fora de seu alcance.
Ela acariciou o pescoço da égua, que automaticamente moveu a cabeça para encontrar sua mão. Magdalena adorava cavalos árabes. Eram mais humanos que animais.
—Onde eles estão? — Ela perguntou a Tormenta. Se transformasse, poderia ouvir algo a mais de um quilômetro de distância, mas em sua forma humana suas labilidades eram mais limitadas, por isso confiava na égua.
Tormenta moveu as orelhas de um lado a outro com evidente inquietação. Um instinto que jamais a tinha enganado dizia a Magdalena que havia mais guardas para o norte, mas ela não conseguia ver nada. O cavalo entrou em tensão e depois baixou a cabeça, o que significava que tinha ouvido ou sentido algum cavalo por perto. Magdalena baixou a boina um pouco mais. Completamente vestida de negro e com um cavalo negro, os guardas não poderiam vê-la, se não estivesse muito próxima deles, embora seus animais talvez se precavessem de sua presença.
Era hora de começar a trabalhar. Ela desprendeu o fuzil do ombro e o empunhou com a mão direita ao mesmo tempo em que Tormenta recomeçava a trotar. Ela conhecia bem seu trabalho duas ou três noites por semana durante os últimos dois anos.
Alguns metros mais à diante, ela sentiu o intenso aroma de tabaco que dava fé do quanto estava perto de encontrar alguém, apesar de não poder vê-los por causa da vegetação da selva. A espessura variava dependendo da altura e, embora já havia regiões nuas por efeito dos bulldozers, só se distinguia bem o caminho principal que rodeava a base do vulcão.
Seu coração lhe pulsava com força contra o peito. Se os guardas a vissem, disparariam imediatamente, mas se ela conseguisse surpreendê-los antes, jogaria com vantagem. Então sentiu o tremor de Tormenta sob suas pernas e soube que os guardas estavam muito perto.
Logo ela ouviu uma voz falando em russo. Deviam estar a menos de cinqüenta metros. Aguçou o ouvido um pouco mais. Um guarda de voz grave estava chamando pelo Pavel Borisov radio. O chefe de segurança da mina. Sentia como o suor lhe caía pela face debaixo da máscara. Odiava ter que usá-la, mas era o melhor para proteger sua identidade, por isso não podia se arriscar a tirar-lhe, somente para sentir o ar fresco da selva.
Esperou em silêncio alguns segundos, completamente ereta sobre a sela, sujeitando o fuzil com as mãos. Colocou uma bala na antecâmara. Um segundo depois ouviu o guarda protestar. Seu russo tinha melhorado muito graças aos cursos que tinha feito em Quito, para poder entender o que diziam os mercenários.
—Maldito! Garold não responde.
O outro guarda se pôs a rir.
—Ele e Moriz pararam para urinar ou algo assim.
—Pode ser. - Murmurou o primeiro.
—Esperemos uns minutos. Passar oito horas a cavalo dá problemas de bexiga em qualquer um.
Magdalena por fim conseguiu vê-los entre a vegetação. Como muitos outros, eles pareciam ex-paramilitares procedentes da antiga União Soviética. Carlos Cruz, diretor da corporação, tinha-os levado ao Equador com a promessa de que ganhariam muito mais do que ganhavam em seu país.
Ela apertou os dentes ao ver que um dos cavalos se voltou a olhar para ela. Levantou o fuzil se por acaso aatitude do animal alertasse o cavaleiro, mas não foi assim. O guarda estava muito ocupado brigando com o rádio para fixar em algo mais. Seria sua perdição.
Magdalena esperou até que se aproximaram um pouco mais. Um minuto mais e se encontrariam em um claro, completamente expostos. Magdalena apertou as coxas e, automaticamente, a égua se colocou no centro do caminho, alguns metros atrás dos confiados guardas.
Os dois cavalos espanhóis se debandaram e os guardas estiveram a ponto de cair. Puxaram as rédeas para tentar controlar os animais, mas era muito tarde.
—Não se movam. – Disse-lhes Magdalena com voz profunda.
Tormenta se colocou atravessada no caminho, impedindo a passagem dos outros dois cavalos. De pé nos estribos e com a total segurança de que a égua não se moveria, Magdalena observou os homens que a olhavam boquiabertos e com os olhos a ponto de sair das órbitas. Seus olhos estavam fixos no cano do fuzil.
—Joguem as armas ou estão mortos. - Lhes disse Magdalena em russo. Um deles a olhou com fúria enquanto que o outro atirou fora o AK–47 imediatamente. - Quer morrer como morreram seus dois companheiros? Se é assim, segure o fuzil alguns segundos mais… — Magdalena apontou para a testa suarenta. Eles não sabiam que ela usava dardos em vez de balas e não seria ela a dizer.
—Filho de cadela! — Exclamou o guarda ao mesmo tempo em que jogava o fuzil, sem soltar as rédeas do cavalo.
Magdalena sorriu sob a máscara.
—Desçam do cavalo!
Os mercenários obedeceram contra a vontade.
—Afugentem os cavalos!
Os dois animais aproveitaram a oportunidade para afastar dali a galope. Magdalena não afastou a visão dos guardas em nenhum momento, pois sabia que o mais alto dos dois estava procurando o momento de se jogar sobre ela.
—Sentem-se e tirem as botas.
—Por quê
—Imediatamente. Ou querem que eu meta uma bala entre suas sobrancelhas? Vocês decidem.
Eles se resignaram a obedecer e Magdalena lhes ordenou que atassem as botas juntas e que deixassem o rádio junto a elas. O mais baixo dos dois a olhava com pavor, mas fazia tudo o que ela dizia, igual a seu companheiro.
—Agora fiquem em pé e comecem a andar nessa direção. – Ela disse assinalando o sul. - Encontrarão seus companheiros a menos de dois quilômetros.
Ambos se levantaram, mas o mais alto titubeou alguns segundos.
—Quer acabar como seus amigos? – Ela perguntou. - Dê um passo para mim e ganhará um lugar junto a eles no inferno.
As palavras fizeram eles dar meia volta e começar a caminhar apressadamente. Magdalena esperou eles se afastaram pelo menos cem metros, para desmontar e recolher as botas e os fuzis, que atou aos arreios uma vez vazios de munição, e o rádio. Depois voltou a subir no cavalo e se despojou por fim dos óculos de visão noturna.
—Muito bem, Tormenta. – Ela disse com satisfação. - Vamos para casa.
Minutos depois, elas tomam o caminho de casa, mas Magdalena não podia deixar de pensar nos dois homens que tinham morrido aquela noite; duas mortes que não podia perdoar. Os mercenários que tinham sobrevivido ao encontro com o Espanto contariam sua humilhante experiência aos outros e isso faria com que algum outro guarda abandonasse o trabalho igual havia feito mais de um terço da palmilha de Cruz nos últimos meses. Todos eles encontraram o Espanto ou com o jaguar que vagava pela montanha e não queriam voltar a viver tão aterradora aventura. Nenhum suspeitava que ambos os seres fosse Magdalena. Os guardas aos quais atacava como o jaguar nunca morriam. Recebiam alguns arranhões e um bom susto. Em qualquer caso, os mercenários se viam obrigados a deixar o trabalho. Que era o que ela pretendia.
Por um pequeno caminho aberto pelos jaguares que habitavam a região, Magdalena e Tormenta desceram até o atalho que rodeava a base do vulcão, depois entraram na selva, em uma área virtualmente impenetrável, só freqüentada por javalis e jaguares. Magdalena tinha escolhido aquele caminho porque a levaria direto à caverna. Ali, poderia se despojar do disfarce do Espanto e adotar seu outro papel, o de empresaria do petróleo, mais rica do Equador.
Por fim pôde se despojar da máscara e do capuz com o qual ocultava sua identidade e sentir o ar fresco na pele. Continuou avançando em meio a noite.
Por volta das três e meia da madrugada, elas atravessaram um rio. Tormenta entrou na água sem cuidados e Magdalena pôde estar segura de que, embora tivessem tentado segui-la, ali desapareceriam os rastros do cavalo. Seguiram quilômetros rio abaixo até alcançar uma espécie de proteção de matagais; era onde um pequeno afluente se unia ao rio e servia de sinal para a convocação da caverna.
Ninguém exceto ela teria advertido aquele esconderijo entre a densa vegetação. Magdalena deteve o cavalo e desceu na água em frente aos arbustos.
A Montanha havia sido em outro tempo, um vulcão a cuja atividade provocara a formação das verdes esmeraldas e também numerosas cavernas que poucos conheciam. Sequer as pessoas do lugar estavam acostumadas a se aproximar daquele lugar, pois se sabia que ela servia de guarida aos jaguares e eles levavam séculos ouvindo lendas sobre humanos que se transformavam em jaguar e roubavam crianças das casas.
Já a pé, Magdalena conduziu Tormenta ao interior da caverna, que encontrou sem nenhum problema na escuridão. A égua teve que baixar a cabeça para não topar com o teto, mas ela podia caminhar perfeitamente ereta.
A poucos metros se encontrava o alarme que, uma vez introduzida a chave, lhe daria tempo suficiente para entrar antes de voltar a programar para saltar, ante a presença de qualquer intruso.
A curva final do túnel as conduziu a uma sala onde um sozinho lampião iluminava o alto teto de basalto. Ali a esperava Godofredo Santos, seu fiel ajudante que, ao vê-la, pôde por fim respirar tranqüilo. Aquele peruano de quarenta e tantos anos era há anos, um amigo indispensável para Magdalena. Godofredo tinha sido o capataz do rancho da mãe adotiva de Magdalena , por isso ela o conhecia desde os dez anos. Ele pertencia a uma família de índios Queros. E aquela noite estava visivelmente preocupado.
Quando ela se encontrava trabalhando na montanha, podia se comunicar com Godofredo através de um emissor de rádio e, se alguma vez tinha algum problema, ele poderia ir em sua ajuda. Felizmente, até aquele momento ela nunca se viu obrigada a chamá-lo.
—Esta noite tudo saiu errado. – Ela lhe disse enquanto Godofredo a ajudava a tirar o colete. Magdalena odiava esse artefato porque lhe roçava a pele por toda parte e a machucava.
—Não foi uma boa noite, não. - Confirmou seu ajudante. - Ouvi pelo rádio que descobriram os dois guardas mortos. Está segura de que está bem?
Depois de beber um bom gole da garrafa que Godofredo lhe tinha preparada com água fresca, Magdalena o olhou com dor.
—Fisicamente estou bem, mas por dentro me sinto como se tivesse serpentes no estômago. Eu não gosto de matar, Godofredo. É mais fácil ser jaguar. Estou destroçada pelo que tive que fazer.
—Às vezes as coisas saem errado, Magdalena. Sei que não queria matar os guardas.
—Tudo aconteceu tão depressa que não tive tempo de trocar as balas pelos dardos. – Ela balbuciou, torturada.
Godofredo era uma das duas únicas pessoas no mundo que conheciam seu segredo. Tremiam-lhe as mãos e ela sentia náuseas só de pensar que havia matado a duas pessoas. De repente se deu conta de que ia vomitar e saiu correndo para um canto onde vomitou em uma cuba.
—Estou bem. – Ela disse a seu ajudante minutos depois. - Meu corpo reage ante o horror de matar.
—Só uma boa pessoa reagiria desse modo. - Godofredo lhe estendeu uma mão. - Vamos, me ajude a desencilhar Tormenta. Isso a distrairá.
Magdalena aceitou a mão de seu amigo e juntos despojaram a pobre Tormenta da sela, dos fuzis que ela havia tirado dos guardas e da pesada manta com a qual a cobria todas as noites para protegê-la. Ela mesma tinha confeccionado aquela manta com vários coletes a prova de balas, que manteriam o animal a salvo dos disparosdo inimigo. Depois se asseguraram de que o cavalo estava em perfeito estado e não havia sofrido nenhum corte nas patas enquanto galopava entre a vegetação.
—Me conte o que aconteceu aí fora. – Pediu Godofredo quando a notou mais tranqüila.
—Não tive escolha. Os guardas surpreenderam uma família de trabalhadores e estavam apontando-os com seus fuzis. Normalmente consigo acertá-los com os dardos em um ombro ou em alguma parte que fica exposta apesar do colete, mas esta noite não pude fazê-lo. Alguém ia morrer, Godofredo; ou os guardas ou a família. – Ela acrescentou com um suspiro.
—Eles tinham acessado a matar todos aqueles que encontrassem dentro da propriedade da Santa Maria. Poderiam ter optado por deixar partir a família, mas creio que sequer lhes passou pela cabeça. Assim, em minha opinião, eles pagaram o preço de suas ações. - Godofredo viu a angústia refletida nos olhos de Magdalena. – Você fez o que devia.
Mas Godofredo sabia que ela seguiria afetada muito tempo ainda, pois Magdalena jamais pretendia matar alguém, somente feri-los ou drogá-los com os dardos. De toda maneira, Magdalena estava acostumada a ter pesadelos pelo menos uma vez à semana. O trabalho que fazia era muito perigoso e Godofredo não acreditava que ela pudesse suportar por muito tempo a pressão daquela dupla vida.
—Sim, eu sei. - Sussurrou Magdalena com profunda tristeza. - Mas os guardas têm pais e mães como qualquer outra pessoa. O que acontece aos seus sonhos?
—Não pense nisso. - Lhe aconselhou Godofredo enquanto começavam a lavar a Tormenta. - Eles mesmos assinaram sua sentença de morte ao aceitar o trabalho que lhe foi oferecido. Matar a alguém que tenta não morrer de fome não é legítimo e você sabe disso tão bem como eu.
—Sei. Pelo menos com os outros dois não tive nenhum problema. —Magdalena preferia esse tipo de encontros; de fato, em dois anos só tinha matado quatro guardas. Embora na realidade pensava que não deveria ter matado nenhum.
—Esses dois se sentirão tão humilhados que não acredito que fiquem com vontades de sair para patrulhar amanhã.
Magdalena lembrou que estava com o rádio que tirara deles, de onde poderia obter o código necessário para saber todos os movimentos dos guardas.
—Com isto será mais fácil fazer seu trabalho até que troquem o código. - Comentou Godofredo quando ela lhe mostrou o rádio. - Coisa que, por certo, não fazem freqüentemente.
—Esse Borisov é tolo. - Opinou Magdalena referindo-se ao chefe de segurança da mina. - Se eu soubesse que o Espanto roubou o rádio de um de meus homens, trocaria os códigos imediatamente.
—Borisov era agente da KGB e é um arrogante. Acredita que pode encontrar o Espanto e não se dá conta de que é o quarto chefe de segurança em dois anos. Necessitamos de alguém como ele, que acredita que é mais preparado que nó. - Disse Godofredo com uma gargalhada. - Me surpreende que Cruz não o tenha despedido ainda.
Magdalena se esforçou por sorrir, mas o certo era que agora que seus nervos relaxaram um pouco, sentia-se débil e esgotada.
Minutos depois ela aproveitou que Godofredo alimentar Tormenta, para se esconder atrás de uma cortina que tinham pendurado a um canto e mudar de roupa.
Depois de se despedir de seu ajudante, Magdalena entrou em outro túnel muito mais estreito pelo qual não poderia passar um cavalo. Seus olhos se adaptaram imediatamente à escuridão, por isso não precisava levar lanterna para percorrer o passadiço que conduzia as suas dependências, enquanto que Godofredo sim. Ela possuía olhos de gato. Isso era o que havia lhe dito sua verdadeira mãe, Gina Alvarez, uma curandeira Quero.
—Filha, tem na nuca a marca dos Guerreiros da Luz. - Ela havia dito quando Magdalena tinha seis anos, referindo-se aos dois anéis entrelaçados que se podiam notar em sua pele dourada. - Dizem que as pessoas com essa marca têm uma missão na Terra. Alcançará seu destino quando fizer vinte e oito anos; então sua vida se converterá em uma viagem de auto-descobrimento durante a qual encontrará a maneira de ajudar o mundo. – Ela havia lhe explicado sua mãe.
Aquela marca sempre fizera com que Magdalena se sentisse diferente. Aos dez anos tinha visto como sua família morria assassinada nas mãos dos guardas da mina naquela mesma montanha. Ela também tinha sido mais uma dos mineradores que lutavam para sobreviver naquelas terras. Depois do terrível pesadelo havia acabado em um orfanato e menos de três meses mais tarde, havia sido escolhida pela Maria Eleria Hernández, uma mulher rica que não podia ficar grávida e desejava ter uma filha. Magdalena havia se encontrado de repente rodeada de gente rica e foi viver em Quito.
Quanto teria desejado que sua mãe continuasse viva! Gina Alvarez havia sido treinada para fazer aflorar o talento místico de Magdalena , mas não tivera tempo de compartilhar com sua filha tudo o que sabia. Após sua morte, Magdalena sempre desejara saber algo mais sobre seus ancestrais incas e o legado sagrado que sua mãe tinha intenção de lhe ensinar.
Mesmo assim, Magdalena sabia que era muito diferente dos outros seres humanos, pois comprovara uma e outra vez ao longo dos anos; sua magnífica visão era só um detalhe, mas mais importante era o fato de que nos momentos de máximo perigo ela podia se transformar em jaguar para se defender. Uma vez passado o perigo, voltava para sua forma humana. Desde os três anos, sua mãe tinha começado a lhe ensinar a controlar o mágico processo.
Magdalena levou a mão à nuca de maneira inconsciente, à marca da vesica Peixes. Uma das últimas coisas que recordava de sua mãe era que lhe havia dito que quando fizesse vinte e oito anos lhe seria revelado o dom daquele símbolo ancestral. Esse dia chegaria em menos de uma semana. O que aconteceria então? Magdalena não sabia.
A maioria do tempo preferia não se recordar da promessa de sua mãe, de que sua vida mudaria. Magdalena não estava segura se era uma maldição ou um presente. A única coisa que sabia era que agora dedicava todo seu tempo a salvar o mundo do caos. Sua existência estava cheia de responsabilidades, a maior das quais era proteger sua identidade, para que ninguém descobrisse jamais que ela era o Espanto.
Encheram-lhe os olhos de lágrimas ao pensar em sua mãe, mas ela os secou imediatamente, surpresa por tão emotiva reação. Talvez o que havia acontecido naquela noite a deixara mais sensível que o normal. Magdalena não tinha ninguém com quem compartilhar a pressão que era levar uma dupla vida; teria desejado ter um amigo em quem confiar, mas não havia ninguém exceto seu fiel ajudante, que sendo Quero, sabia o que eram os mutante embora ele não fosse.
No fim do passadiço, de uma levantada costa ela alcançou a porta que Eliana Santos, a esposa de Godofredo, tinha deixado aberta para ela. Percorreu o corredor e deixou o uniforme no quarto, onde Eliana o lavaria e o secaria sem que nenhuma outra donzela pudesse vê-lo. Seu segredo estava a salvo com Eliana e Godofredo; eles protegiam sua identidade daqueles que desejavam vê-la morta. Havia uma recompensa de um milhão de dólares pela captura do Espanto, mas Magdalena sabia que eles jamais a delatariam.
O dormitório principal se encontrava no segundo andar. O tapete peruano tecido à mão amortecia o som de seus passos na tranqüilidade da casa. Por fim, ela chegou ao alto da escada e, ao abrir a porta de seu quarto, respirou tranqüila. Estava em casa. A salvo. Uma vez mais. O Espanto tinha feito seu trabalho e ninguém havia descoberto quem ele era na realidade. No momento…
 
Capítulo 4
Uma onda de energia se formou ao redor de Reno Manchahi. Era como se parasse em um ponto onde acabava de cair um raio. A sensação o fez ficar em guarda imediatamente, embora não soubesse bem o que significava aquilo. Nunca tinha experimentado nada parecido, mas freqüentemente a sensação psíquica lhe tinha salvado a vida, mesmo sendo franco-atirador. Seu companheiro lhe havia dito muitas vezes que suas percepções extra-sensoriais lhe faziam parecer mais animal que humano. E tinhaacertado mais do que jamais poderia ter imaginado.
Reno estava bisbilhotando o chiqueiro que o senhor Cruz, diretor da mina da Santa Maria, chamava de consultório médico. Estava em Ibarra, no Equador, a menos de três horas, mas a Cruz não importava o mínimo, que ele não tivesse dormido ou se alimentado. O único queria era que ele se instalasse em seu papel de espião o quanto antes.
Eram sete horas da manhã, mas já havia pelo menos uma vintena de crianças na porta esperando saber o que havia ali dentro, pois ninguém havia colocado nenhum aviso que anunciasse que se tratava de um consultório. Todos eram trabalhadores vestidos com roupa puída que não poderia protegê-los das temperaturas invernais. Seus rostos eram adoráveis e, de um modo todos lhe recordavam em algo, sua pequena Sarah. Rompia seu coração cada vez que pensava em sua preciosa filha assassinada.
Ele levantou a cabeça para ouvir o relinchar de um cavalo, seguido dos gritos das crianças:
—Senhora Magdalena ! Senhora Magdalena ! — Exclamavam as crianças.
Reno viu como eles abandonavam o alpendre do consultório. O que acontecia? A mesma sensação elétrica o fez estremecer novamente. De repente se sentia enjoado e eufórico ao mesmo tempo. Consciente de que jamais devia se descuidar daquele de sensações, Reno se perguntou seu significado.
Seria um sinal de perigo? Não. Talvez… Não sabia. Era algo completamente novo que não sabia como interpretar. Normalmente qualquer sensação estranha significava perigo, mas aquela fazia com que se sentisse feliz, sem razão aparente.
Da porta do consultório, ele observou o cavalo se aproximando. Uma mulher o montava. Quem seria? Observou-a de longe, pois sua visão excepcional era um dos muitos talentos que tinha graças a sua condição de mutante.
Conseguiu ver a mulher sobre o lombo de um cavalo marrom. O coração começou a pulsar rápido. O que lhe estava acontecendo? A dama montava sem o menor esforço, como se tivesse nascido sobre um cavalo. Uma inquietante sensação se apoderou dele. Tinha a sensação de conhecê-la, mas era impossível. Entretanto, quanto mais ela se aproximava dele, mais crescia a sensação de alegria e excitação. Reno não encontrava explicação alguma para sua reação.
Não podia afastar o olhar daquela mulher de cabelo negro recolhido em um rabo-de-cavalo. Algo despertou em sua memória. Mas, o que? Quem era aquela mulher? As crianças a tinham chamado senhora Magdalena e pareciam se expressar com carinho e respeito.
À medida que ela foi se aproximando, o receio de Reno deixou passo à curiosidade. A mulher que teria vinte e poucos anos, era de uma beleza deslumbrante. Tinha a pele dourada e algo que lhe era estranhamente familiar. O rosto oval e de maçãs marcados indicava que era india. Sim, pensou Reno, sem dúvida ela era a índia. E, a julgar por sua indumentária, também era muito rica. Usava luvas negras e botas de montar, de pele também negra. Era esbelta e de porte elegante, com um corpo de curvas generosas e seios bem definidos. Não era como as mulheres ossudas que a sociedade chamava de modelos. De certo modo, o tipo daquela mulher lhe recordava dolorosamente de sua mulher, Ilona.
Afastando imediatamente a idéia, Reno preferiu desfrutar da chegada de sua inesperada visitante. As crianças rodearam a mulher com os braços para o alto e ela respondeu com uma saudação e um cálido sorriso. Depois e sem deixar de sorrir, ela deteve o cavalo e começou a lhes dar guloseimas. Reno se surpreendeu que as crianças, descalços, não se assustassem de estar tão perto do enorme cavalo; claro que o animal parecia se dar conta de sua vulnerabilidade e não se movia um milímetro.
Ele voltou a centrar sua atenção na mulher enquanto lutava contra a poderosa força magnética que parecia existir entre eles. Era inquietante e ao mesmo tempo o enchia de esperança. Esperança? Reno riu de si mesmo por pensar algo tão absurdo; devia recordar que em sua vida não havia lugar para a esperança, desde a morte de sua família. O que havia lugar era a vingança daquelas mortes.
Ele seguiu observando à mulher, agora mais de perto, ao se virar para falar com as crianças. Reno acreditou distinguir uma marca em sua nuca. Qualquer franco-atirador devia observar até o mínimo detalhe, porque um elemento que lhe passasse despercebido poderia significar sua morte.
Reno aguçou o olhar e tentou ver o que havia junto à linha da nuca onde lhe nascia o cabelo. Havia algo estranho. O que era aquilo? Uma ligeira descoloração da pele? Uma queimadura? Então ela se aproximou um pouco mais e ele pôde notar uma forma circular. Ao se dar conta de que se tratava de uma marca de nascimento e não de uma tatuagem, ele sentiu ainda mais fascinação por ela. Desejava distinguir a forma exata do desejo, mas não podia vê-lo de tanta distância.
Deixou de observar a marca quando a mulher colocou uma menina no colo e a abraçou com um gesto deliciosamente protetor. A pequena a olhou com tal adoração que Reno sentiu que lhe encolhia o coração. O que havia nos olhos daquela menina era sem dúvida admiração e amor pela sorridente mulher.
Parecia que a senhora Magdalena , apesar de sua evidente riqueza, também tinha coração e isso era mais do que Reno podia dizer dos membros da corporação que havia conhecido até o momento. Todos eles eram umas bestas desalmadas que só pensavam em dinheiro.
Reno começava a se dar conta de que encontrar uma simples esmeralda podia mudar a vida aos trabalhadores que passavam seus dias removendo as águas enlodadas que rodeavam a mina, em busca do diminuto cristal que os tiraria da miséria mais absoluta. Os trabalhadores eram os habitantes mais pobres dos subúrbios de qualquer cidade do Equador. Como não podiam conseguir trabalho na mina, viviam junto a ela em acampamentos e rebuscavam nas águas do rio. Para a corporação eram pouco mais que uma praga que teriam que manter afastada de suas propriedades.
Reno não conseguia deixar de olhar à mulher. Sabia que não era educado, mas não podia evitar. Sabia que a conhecia de algum lugar, mas não sabia de onde. De repente seus olhares se cruzaram e a mulher deixou de sorrir bruscamente. Por quê? Reno era consciente de que não era homem digno daquela mulher ou de nenhuma outra. Sabia que tinha um rosto duro como as montanhas do Ariregião nas quais havia crescido, para não falar da cicatriz que lhe percorria de cima abaixo o lado esquerdo. Tudo isso era motivo mais que suficiente para que ela tivesse reagido a ele de maneira tão negativa.
Engolindo a decepção, Reno caminhou para ela. Ela possuía os olhos de uma cor verde pálida que era muito incomum, como o da vegetação quando brotava. Seu olhar era a de uma mulher inteligente.
E de repente ele soube de onde a conhecia. O descobrimento o fez se deter em seco. A visão! Ela era a mulher que tinha visto no sonho! A lembrança daquela imagem onírica e premonitória deixou Reno confuso durante alguns segundos. Ela não usava a túnica branca ou a coroa de plumas, mas não importava. O que realmente a diferenciava da mulher do sonho era que parecia mais que capaz de cuidar de si mesmo e não parecia se encontrar em nenhum tipo de perigo. 
Entretanto Reno sabia que devia levar o sonho a sério e que a mulher que tinha diante de si possuía algum tipo de relação com ele. Sentiu a urgência de perguntar-lhe diretamente, mas sabia que o mais sábio era esperar para ver como desenvolviam os acontecimentos.
Pela primeira vez em anos, ele conseguiu curvar os lábios para cima. Talvez não fosse um verdadeiro sorriso, mas tinha a esperança de que ajudasse a suavizar sua imagem. Um homem de quase dois metros de altura e cem quilos de puro músculo podia ser ameaçador, mas se tentasse sorrir um pouco mais, ela deixaria de franzir o cenho ao olhar para ele. 
Funcionou! 
Reno viu a surpresa refletida em seus olhos. Seus lábios carnudos se desapertaram um pouco. Com aquela mulher, ele poderia inclusive aprender a sorrir novamente.
—Olá! — Ele a saudou. - Está dando um passeio ou veio para ver-me? —Ele ainda

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