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Título: Ciranda de intrigas Autor: Margaret Westhaven Título original: False Impressions Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991 Publição original: 1989 Género: Romance histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida O cavalheiro inclinou-se, tirando-a para dançar. Olhos verdes, audaciosos, fitavam-na pelas aberturas da máscara negra, O queixo forte, o sorriso cínico. Era ele, Lawrence! O coração de Theodora quase parou, Conteve o nome que lhe subia aos lábios; antes da meia-noite ninguém devia revelar sua identidade. O que esse homem belo, rico e poderoso pretendia? Teria a audácia de colocá-la no lugar de sua amante francesa? Theodora precisava desmascará-lo, por mais que o amasse e sofresse com isso… � Capitulo I — Não acredito no que ouvi, Dora! Fale sério, por favor! — exclamou lady Fitzhugh, olhando ao redor com ar preocupado, como se algum bisbilhoteiro pudesse ouvir. — Você sempre foi uma criança tão alegre, tão animada! Theodora Thornfield depositou o trabalho de passamanaria sobre a mesa e fitou a irmã com calma. — Não sou mais uma criança, Mary. Logo vou completar vinte e nove anos e pretendo fazer o que disse. O bonito rosto rechonchudo de lady Mary crispou-se anunciando a costumeira cascata de lágrimas. — Mas por quê?! — gemeu, abadonando o último resquício de dignidade. — Será que sir Leonard, as crianças e talvez eu fizemos algo que a ofendeu? Agora, você quer ir embora! — Lágrimas correram-lhe pelo rosto. Dora levantou-se para consolar a irmã. Mary chorava com a maior facilidade. Aliás, todas as irmãs mais velhas conseguiam dela o que queriam, cada qual com seu método. Mary, querida — disse, enxugando as lágrimas da irmã com seu lenço —, papai morreu há mais de um ano. Enquanto estava vivo eu tinha o que fazer e me sentia útil. Desde que ele se foi — continuou, triste, porque ainda sofria pela morte do pai, tão carinhoso, mas imprevidente —, vivo visitando vocês. Cinco meses na Escócia, com Blanche e lorde MacDonald, quatro meses com a família da Lavínia, no Kent, e, agora, aqui estou, com você e sir Leonard. Mary, eu não tenho um canto só meu! O que isso tem a ver com você se tornar uma dama de companhia assalariada? É lógico, Thorne Park está vinculado, porém, mesmo que nosso horroroso primo não tivesse herdado a propriedade você não poderia ficar lá sozinha. Seu lugar é aqui, comigo e sir Leonard! Você não passa de uma tolinha! — acrescentou Mary, para dar mais ênfase a sua opinião. Sacudindo a cabeça, Dora tornou a sentar-se. —Querida, sou uma mulher solteira, praticamente sem dinheiro. Preciso fazer alguma coisa. Quero ganhar meu próprio sustento, em vez de… Hesitou. Era difícil explicar à adorável, porém, supersensível irmã, que simplesmente estava cansada de ser uma tia profissional. Mary, Blanche e Lavínia, assim como suas famílias, tratavam-na com o maior carinho. Mas era inevitável que todas as tarefas desagradáveis ficassem a seus cuidados, por ser solteira e não ter outras ocupações. Ao receber uma proposta de emprego, Dora decidira aceitar porque, se o destino lhe reservava o papel de serviçal, pelo menos seria paga para isso. — Foi uma pena você não ter se casado quando teve oportunidade… — suspirou Mary, pensativa. Dora estremeceu. A irmã não deixava passar sequer um dia sem reprisar esse assunto, como, aliás, faziam as outras duas. Com o garboso baronete, por exemplo, tão assíduo durante aquela temporada em Londres… Ou com o sr. Bali, o pastor protestante… Sabe que agora ele é reitor de uma congregação, a menos de seis quilómetros daqui? Minha irmã, eu não quis me casar com eles e agora não adianta se lamentar. Havia outros interessados… — insistiu Mary, com um profundo suspiro. Pensou na beleza de Dora, mocinha, e nos muitos admiradores, apesar de ela não ter dote. Continuava lindíssima, apesar dos anos, mas os cortejadores rareavam. Com os cabelos loiros, crespos, olhos cinzentos, calmos e até um tanto frios, e um corpo invejável ela era a mais bonita das quatro. A imagem viva da mãe. Por que não escolhera um marido? Òs pensamentos de Dora também voltaram ao passado. Lembrou dos vários candidatos descartados, mas não se arrependia porque não se apaixonara por nenhum deles. Pensou na vida gostosa que levava no Sussex, quando era dona de Thorne Park. Era a mais importante propriedade da região e a família Thornfield, a mais antiga. Incrível… Vivera sem pensar no futuro. A morte do pai colocara um ponto final naquela existência de sonho. Soubera, então, que sua situação financeira era sinistra e que ficara praticamente sem dinheiro. Passar de senhora de uma grande propriedade a modesta tia solteirona foi muito penoso para seu orgulho. De nada valia suspirar pela mocidade perdida. O tempo passara até mesmo para a bonita e despreocupada srta. Thornfield. Começara, então, a usar touca, apesar dos protestos das irmãs, que a achavam jovem demais para isso. — A carta de lady Bracken é amável e, afinal, ela é nossa prima — observou Dora, vendo que a irmã não ia mudar de assunto. —Não vou ficar com estranhos. E ela foi a minha acompanhante na primeira temporada em Londres. Na sua única temporada em Londres — corrigiu Mary, em tom amargo. — Muitas vezes pensei que ela poderia ter oferecido mais uma oportunidade, já que vai sempre para lá! Querida, já se passaram dez anos. Queria me ver sob a proteção de lady Bracken, com a minha idade? Teve vontade de rir ao imaginar uma mulher madura, como ela, apresentada todos os anos, enfeitadinha, no mercado matrimonial. Isso acontecia, mas Dora não aprovava. Afinal, quem são esses Bracken? A prima Maud é insuportável! Exceto pela temporada que lhe ofereceu, ela nunca se preocupou com nosso lado da família. Não escreveu sequer uma linha quando papai faleceu! Seu único gesto, agora, é oferecer a minha irmã o trabalho de serviçal! Que impertinência! — Mary, sacudindo a cabeça, enxugou outras lágrimas. Lembro que nossa prima era mais brilhante como anfitriã do que como correspondente — observou Dora, com uma gargalhada. — Muito elegante e despreocupada. Eu a conheço melhor do que você e não fiquei surpresa por Maud ter deixado de enviar condolências. Mas fiquei bastante sensibilizada ao recebei a carta dela, agora. Pretende apresentar sua filha, Augusta, nesta temporada. Escreveu dizendo que precisa de minha ajuda como acompanhante dela. E você sabe como eu gosto de Londres! — Você, uma acompanhante! — Mary lançou um olhar assassino para o guarda-fogo da lareira. Naquele momento, o guarda-fogo representava a prima Maud. — As acompanhantes não são serviçais, Mary! ; — Não há muita diferença quando a acompanhante é uma dama de companhia assalariada! E a filha de Maud? Será que você precisa ser humilhada por uma garotinha egoísta? Dora engoliu as palavras cortantes que lhe subiram aos lábios, sobre a humilhação das moças pobres que vivem nas casas das irmãs. Em vez disso, falou: — Gostei da carta da prima Maud, e um emprego não é uma tragédia. Já aceitei. Coloquei a carta no correio de manhã. Mary reteve o fôlego. Incrível sua irmã ter decidido o futuro sem consultá-la! E, principalmente, sem consultar sir Leonard! Antes que pudesse responder, ouviu-se o sinal para que todos se vestissem para o jantar. Mary decidiu falar com o marido, para que ele conversasse com a teimosa cunhada. Enquanto se arrumava para o jantar, Dora acreditava que tudo estava em paz, embora estranhasse Mary ter desistido tão rápido da discussão sobre o emprego. Entretanto, teria ficado surpresa se presenciasse o drama que se desenrolava, naquele momento, nos aposentos de lady Fitzhugh. Ao ouvir a notícia, sir Leonard endireitou os ombros, com os olhos arregalados. Exclamou: Danação! Não posso permitir que Theodora saia daqui, dando a impressão de que a expulsamos do nosso lar! Estou certa, meu querido, que você poderá explicar a ela por que não podemos deixar que leve avante seus planos — comentou Mary esperançosa. — Mas, por favor, controle sua indignaçãoao falar… Até hoje ninguém gritou com ela. Pois está na hora de alguém fazer isso! — resmungou sir Leonard, enquanto se preparavam para descer. Antes que a noite terminasse, sir Leonard deu seus gritos, Dora respondeu calma e friamente, Mary desatou a chorar. Isso aconteceu pouco antes de ser servido o chá, na sala onde os três se reuniam em completa discórdia. Enquanto afagava a mão de lady Fitzhugh, Dora observava o cunhado, que saltitava aflito ao redor delas, porque as lágrimas tinham o poder de acalmar seu ânimo exaltado. — Meu querido irmão — disse ela, querendo encerrar a discussão de modo que todos ficassem satisfeitos —, pelo que vejo, vocês se opõem a minha ida para a casa de lady Bracken apenas porque alguém poderia pensar que não me trataram bem. Sir Leonard sobressaltou-se. De jeito nenhum! Sentiríamos falta da sua presença, Theodora — respondeu, olhando rapidamente para a esposa. Voltou então para sua poltrona, junto da lareira. Acho que posso dizer que consegui ser útil… — comentou Dora, com recato. Sabia que o cunhado gostava dela. Por outro lado, qualquer marido ficaria justamente alarmado diante da possibilidade de ver a cunhada instalada em sua casa pelo resto da vida. E Dora sabia que o cunhado era sensível a isso, como qualquer homem normal. — Útil! Oh, Dora… — choramingou Mary, desolada. Ela acalmou a irmã, então tentou de novo: — É só meus conhecidos saberem que não brigamos, que ninguém irá falar. Continuo me correspondendo com Amélia Lavenham, em Londres. É minha amiga desde o tempo da escola e posso confiar nela para esclarecer as coisas. No que se refere a Blanche e Lavínia, não podem culpar vocês por me deixarem aceitar o emprego, porque explicarei a elas que quero ser independente. Calou-se então. Há tempo era maior de idade, dona de seu nariz. Realmente, não precisava suplicar para fazer o que achasse conve- niente. Mas compreendia que seus parentes precisavam daquilo. Sir Leonard emitiu um som desaprovador. Não dou a menor importância às opiniões de seus amigos da cidade — falou, com a displicência de um proprietário rural. E acrescentou: Quero, porém, preveni-la: seus sonhos de independência não se realizarão, Dora. Dama de companhia! Ela suspirou e admitiu: : Sei que não vai ser um mar de rosas. Não será, de fato, inde pendência, mas… Interrompeu-se prestes a dizer que nada poderia ser pior, mas essa declaração indicaria até que ponto achava intolerável a vida que levava. Entretanto, precisava finalizar, porque o casal a observava com atenção. — Mas se minha renda fosse maior — continuou, sem jeito —, gostaria de morar numa pequena casa de campo só minha. Falou a contragosto, porque expunha um de seus sonhos preferidos à ironia de sir Leonard. Mary recebeu tais palavras com alegria. — Mas isso é possível, Dora! Sir Leonard pode lhe oferecer de presente uma pequena casa aqui nas proximidades! Aí procuraremos uma dama de companhia para você. Dora viu, de soslaio, que o cunhado se encolhia diante da dispendiosa ideia de sua mulher e ficou aliviada. Não queria dever nada aos Fitzhugh, apesar das boas intenções deles. Recusou a oferta de Mary e acrescentou que esperava que eles aceitassem a visita de uma simples dama de companhia no futuro, quando lady Bracken lhe desse férias. O casal garantiu que ela seria sempre bem-vinda. Sir Leonard e lady Mary nem perceberam que Theodora conseguira o que queria e que a futura situação dela já estava fora de discussão. No dia seguinte, à hora do café da manhã, Mary foi a primeira a aludir a um assunto delicado. Precisamos examinar seus vestidos. Já que pretende ir para Londres, precisa de um guarda-roupa novo. Não acredito que uma dama de companhia assalariada tenha a obrigação de brilhar na sociedade — respondeu Dora, rindo por trás da xícara. Mas deve — insistiu Mary, teimosa. — Como acompanhante da garota Bracken, terá de ir a festas… Onde ficarei sentada, tomando chá-de-cadeira e vigiando a menina! — exclamou ela, com alegria forçada. A ideia de ser acompanhante de uma garota, e já não ser ela mesma tão jovem, começava a deprimi-la. Mary fungou e investiu de novo: Nada disso. E mesmo que você fique sentada, não há motivo para não se arrumar direito. Vai chamar a atenção dos homens, que se apaixonarão por você, garanto! Mary, querida, não pense que vou usar a convivência com os Bracken para me intrometer onde solteironas não são companhia desejável ou necessária — respondeu Dora, de maneira tão áspera que a irmã e o cunhado ficaram assustados. Mas logo se controlou e acrescentou, rindo: — Vou ser apenas a humilde dama de companhia de lady Bracken, muito grata por qualquer migalha jogada na minha direção. Se aceitar meu conselho, Theodora, você não irá para a casa dos Bracken à cata de migalhas e coisas assim — sentenciou sir Leonard, sacudindo o jornal, para dar mais ênfase às palavras. Obrigada, caro cunhado, mas devo ir… Ao mesmo tempo, Mary ria baixinho, imaginando a cena: alguém jogando migalhas para sua magnífica irmã. Se não gostar do emprego, volte logo para cá — disse, então, decidida. — Este é o seu lugar. Mary, muito grata! Vou sentir muita saudade de você, de sir Leonard e das crianças… Assim dizendo, Dora torcia um pouco a verdade. Os quatro garo-tinhos eram verdadeiras pestinhas, mas os amava. Na certa iria amá-los mais ainda, estando longe. — Minha pobre querida! —Mary quase desatou a chorar, mas se controlou. — Vou cuidar para que suas roupas estejam à altura de qualquer oportunidade, porque nunca se sabe o que pode acontecer. E não quero discussão: será meu presente de despedida! Lançou um olhar para ver se o marido aprovava e recebeu um leve aceno de cabeça. Um ou dois vestidos não seria grande despesa, pensava sir Leonard; eram muito mais baratos que uma casinha de campo. Dora sentiu-se grata à generosa irmã, porque a diminuta herança paterna mal daria para comprar meias. Entretanto, era lamentável que o gosto apurado de Mary tivesse de ser desperdiçado com os vestidos modestos e discretos que ela achava que deveria usar depois do luto recente. O que não sabia era que Mary, sem dizer nada a ninguém, planejava um vestido, o mais elegante possível, que nada tinha a ver com uma solteirona. Achava as ideias de Dora, em matéria de roupas, com-pletamente absurdas e facilmente modificáveis. Pensando nisso, lady Fitzhugh cada vez mais se convencia de que a ida da irmã a Londres devia ser considerada mais uma tentativa de arranjar marido. Ela sempre acreditara firmemente, e as outras duas irmãs concordavam com a ideia, que a mais jovem das senhoritas Thornfield não nascera tão bonita à toa! Capitulo II Mary, a costureira cometeu um terrível engano com a seda azul — observou Dora, duas semanas depois, ao entrar, farfalhando, nos aposentos da irmã. — Você foi um amor ao encomendar um vestido de baile para mim, e não vou me zangar por não ter me contado nada. Mas deste jeito eu pareço uma… uma cortesã! Você está lindíssima, Dora! — entusiasmou-se lady Mary, erguendo os olhos da carta que lia. — E não adianta protestar, porque me recuso a concordar com um vestido de noite marrom, como você queria, com um laço preto no decote… ou com outra coisa absurda que você acha apropriada para uma moça solteira. Dora quase não continha o riso, mas aguentou firme. — Diga o que disser, irmã, não pretendo me enfeitar como uma mulher airosa. Não é o caso. Mas dou um jeito: vou pedir à costureira que feche o decote com a renda que tirei de meu velho vestido branco e faça uma tira do cetim azul do vestido para ajustá-la ao pescoço. Assim, vai se tornar um modelo mais de acordo com uma donzela na minha situação. Mary ficou horrorizada. Dora, como pretende atrair um marido com vestido tão revoltante?! Deixe-o como está! Não pretendo atrair um marido! — rebateu ela. Talvez ainda alimentasse o sonho de encontrar o homem certo, mas sabia que isso era ridículo e nunca comentava com ninguém. Olhou-se ao espelho de Mary, sacudindo a cabeça. O vestido de baile, de cortemoderno e sofisticado, contrastava de maneira ridícula com a touca cinza, com fitas, que aprisionava os cabelos encaracolados. A touca era um lembrete do seu destino. Muitos homens vão procurar atrair sua atenção — teimou a irmã. — Logo você estará no mercado… No mercado?! Por favor! E, ouça — continuou a outra, impassível —, a opinião da nossa irmã Lavínia, nesta carta que acabo de ler. Ela está encantada por que você vai outra vez para a capital. E o fato de ser uma dama de companhia… — Afastou um pouco a folha de papel e leu: — "Diga a Dora que a considero uma tola e que seria melhor se ela viesse morar aqui comigo, no Kent. Maud Bracken fará o impossível para tirar vantagens do fato de ter uma parenta como serviçal. No entanto, a oportunidade de voltar à capital não deve ser desperdiçada!" Viu? Ela também acha que você vai fazer sucesso! Recebi uma carta de Blanche nesses mesmos termos — confirmou Dora, tentando erguer um pouco o decote revelador do vestido, mas era impossível cobrir-se mais com aquele reduzido corpete de seda. _ Que tal um debrum simples, de renda, à volta do decote inteiro? Vai estragar o vestido! — bufou Mary, zangada. — Precisa estar bem arrumada para manter a amizade com Amélia Lavenham. Uma jovem senhora tão querida, tão doce! Ouvi dizer que ela organiza festas maravilhosas. Às vezes invejo você, mana. Sir Leonard não quer saber de ir a Londres. Meus outros dois cunhados também não… E esse foi o motivo mais forte para eu aceitar o emprego. E imediatamente lembrou-se de outro motivo, quando Mary lhe pediu que, depois de tirar o vestido novo, fosse olhar os sobrinhos que estavam estudando. Isso significava que Dora precisava controlar os quatro diabinhos para que a babá e a governanta pudessem ajudar nos serviços domésticos. Ela concordou de boa vontade, animada pelo pensamento de que, em breve, iria ganhar um salário executando serviços menos difíceis. Os Bracken tinham apenas uma filha, crescida. E quaisquer que fossem as obrigações de uma dama de companhia, iria desempenhá-las em Londres! Alguns dias depois, o sr. Lawrence Carruthers encerrou a conversa matinal com o amigo sir Giles Bracken. O mordomo entregou-lhe a bengala e o chapéu, sob as vistas de duas empregadinhas, meio escondidas atrás de uma porta, que admiravam o bonito visitante. O sr. Carruthers nada percebeu, mas a carranca do mordomo logo silenciou os murmúrios das garotas, que sumiram para fazer suas tarefas. Carruthers saiu da mansão, na rua Albermale, e quase se chocou com uma bonita mulher loira que erguia a mão enluvada para a aldrava. — Minha senhora, peço perdão pelo meu descuido! Com um sorriso, ele se curvou respeitosamente e depois observou melhor a jovem. Será que a conhecia? Não. Impossível. Se a tivesse conhecido, não a esqueceria. Dora sentiu o calor subir-lhe às faces. Era uma cena engraçada, e desejou que Mary pudesse assisti-la. Ou talvez não. Sua irmã insistia em dizer que nessa temporada haveria uma multidão de cavalheiros à procura de uma noiva pobre. Na certa, elegeria aquele homem como primeiro candidato! Era um cavalheiro elegante, bonito. Quando ele se endireitou, continuando a sorrir, Dora notou que era muito alto. Como mulher, ela era bastante alta e, mesmo assim, seu nariz chegava à altura do nó da gravata dele. De ombros muito largos, usava um paletó de corte e tecido finos. Os traços clássicos do rosto eram realçados pelos cabelos pretos, e grandes olhos verdes fitavam-na com atenção e… admiração. — O senhor está perdoado — respondeu com um aceno altivo. Sentia-se um tanto aborrecida pelo fato de o estranho a observar com tanta atenção mas, de repente, corou, percebendo que fazia a mesma coisa. — Nesse caso, desejo-lhe um bom-dia, minha senhora — disse ele, com o sorriso ainda mais radioso. Desceu os degraus rapidamente, dirigindo-se para uma elegante charrete parada ao lado do antiquado coche de viagem de sir Leonard. Ela lançou mais um olhar ao cavalheiro e viu que ele a olhava, também. E, sem saber por quê, aquele olhar a perturbou. Trocaram um último aceno e o sorriso dele lembrou uma carícia, fazendo-a perder o fôlego. Havia se tornado uma provinciana, naqueles anos de ausência, pensou. E aquele homem devia ser um namorador! Enquanto dirigia a charrete pela rua Albermale, Lawrence resolveu que precisava rever aquela mulher. Arrependeu-se por não ter infringido as regras da boa educação e se apresentado diretamente. Paciência! Os Bracken deviam conhecê-la. Depois, Carruthers teve um momento de dúvida sobre o eventual futuro encontro: ela poderia se revelar mais uma afetada e fútil mulher de boa família. Pensar que era diferente poderia ser apenas uma fantasia romântica criada pela expressão daqueles enormes olhos cinzentos. Mas a encontraria em reuniões sociais. Ela na certa viera para a temporada e frequentaria os locais em moda. Ele não gostava desses lugares e deixara de comparecer a eles há muito tempo. Sabia que sua presença provocaria falatórios e que correria o boato de que estava à procura de uma noiva. Dora esforçava-se para não pensar no homem bonito e se concentrar na casa. O edifício estreito e imponente era como lembrava, embora tivessem passado muitos anos desde que chegara ali, vinda de Sussex. Uma garota intimidada pelo encontro com os parentes importantes, os Bracken. Olhou para as janelas e tentou lembrar onde ficava o quarto que fora seu e que dava para a rua, cujo movimento deliciara a jovem interiorana. Teria sido melhor se uma de suas irmãs a apresentasse à sociedade, em vez de uma prima distante. Mas, naquela época, Mary estava para dar à luz o seu filho mais velho; Blanche, na distante Escócia, também se encontrava em adiantado estágio de gravidez e Lavínia morava na fazenda do marido, nas índias Ocidentais. Os Bracken eram a única alternativa. Como agora. Madame? — O mordomo, homem alto e idoso, olhava-a. Dora afastou as lembranças e cumprimentou-o com a cabeça, dizendo: Tenho certeza de que não lembra de mim, Greaves. Faz uns dez anos… Sou a srta. Thornfield. Eu… — Fez uma pausa, antes de anunciar pela primeira vez sua nova condição social: — Eu estou aqui como dama de companhia de lady Bracken. Ela está a minha espera. Naturalmente, srta. Thornfield. O mordomo se encarregou de mandar que a criada de Mary, que a acompanhara, descansasse antes da viagem de volta; mandou levar as bagagens para o andar superior e, finalmente, acompanhou Dora até a sala do café, onde esperaria por sir Giles e a prima Maud. Ela imaginou, então, que o cavalheiro que acabava de sair era amigo de sir Giles, pois tinham aproximadamente a mesma idade. Uns quarenta anos. Ele ostentava alguns cabelos brancos nas têmporas, que lhe aumentavam a distinção. Quando ficou a sós, ela observou a sala. Não lembrava como era, mas parecia recém-decorada. A elegância das cortinas e dos móveis trouxe de volta a admiração que sentira pelo gosto impecável da prima Maud. Ia sentar-se perto da lareira acesa quando ouviu um som que lembrava um soluço abafado. Voltou-se e descobriu que vinha de trás de uma pesada cortina de veludo. Alguém estava chorando! Ergueu a cortina. Uma mocinha pálida, de rostinho fino, soltou um gritinho de espanto, fitando Dora, assustada. — Augusta? — perguntou, sorrindo carinhosamente para acalmá-la. A mocinha só podia ser a filha dos primos. Não era bonita, mas elegante. O robe de musselina estampada era de alto luxo; os cabelos castanhos, encaracolados, encontravam-se bem penteados. Sou sua prima Theodora, querida. Quando a vi pela última vez, você tinha apenas oito anos! Prima Theodora! — A garota fez uma reverência, enrolando nos dedos o lencinho molhado de lágrimas. — Sinto muito, não queria que me visse assim… Oh! — E o rostinho angustiado desapareceu atrás do lenço. — Não quer me contar por que está tão aflita, querida? — perguntou Dora, passando um braço pelos ombros da garota e levando-a para um sofá. Quando se sentaram, Augusta começou a esfregar o nariz e os olhos com o lenço,tentando se recompor. Afinal, assoou-se ruidosamente e disse: Eu não devia falar neste assunto… Nesse caso, não fale. E me desculpe por perguntar — murmurou Dora, que também não gostava de falar dos seus problemas particulares. Mas — prosseguiu Augusta, ainda soluçando —, gostaria que você soubesse, porque vamos ser amigas, não é? Sem dúvida! Brigou com a sua mãezinha? — indagou Dora, não querendo se colocar numa situação delicada logo no começo. Não. Mamãe e eu nunca brigamos. É que ela e o papai são um pouco absurdos — declarou a mocinha, triste, parecendo se acalmar diante da prima bonita que a olhava com simpatia. Dora achou que podia adivinhar o motivo das lágrimas. Será que isso tem a ver com um rapaz? — perguntou. Como descobriu, prima Theodora? — surpreendeu-se Augusta. — É horrível, mas papai e mamãe não parecem entender o que eu sinto. Eles já foram jovens e apaixonados, tenho certeza! Estou desesperada por ter de ficar aqui durante meses, sem ver meu Edgar. Tenho vontade de quebrar tudo e fugir, voltando para o Surrey. — O seu Edgar? — perguntou Dora, mais sossegada. Pensara que talvez Augusta estivesse chorando por causa do atraente desconhecido. Mas Edgar, quem quer que fosse, não se encontrava em Londres. A simples pergunta bastou para que Augusta contasse tudo. Era sua primeira ida a Londres e não tinha amizades lá. Nos cinco minutos seguintes Dora soube que o sobrenome de Edgar era Farley, que se ordenara pastor, que morava perto de Augusta, no interior, que a mãe dele era viúva, a irmã solteira, que eram pobres e ele ainda não recebera uma congregação ou renda. Os pais dela não viam aquele namoro com bons olhos, embora a mocinha afirmasse que ela e o rapaz se amavam "há anos"! …e não entendo porque eles querem que eu me case com um homem rico — reclamou a menina, aflita. — Como meus pais podem ser tão mesquinhos? Eu só quero ser feliz! Tenho meu património, pelo menos eles dizem que é meu. Edgar e eu poderíamos viver muito bem com essa renda. Acha que faz alguma diferença se é um ou o outro que tem dinheiro? Nunca pensei nisso… Mas procure ver o ponto de vista de seus oais Sua mãe, aposto, esperou o momento de apresentá-la à sociedade desde o dia em que você nasceu. É filha única e essa apresentação dever ser muito importante para os seus pais. Por que não se acalma e vai às festas da temporada? Ao ver que Augusta ia protestar, continuou: Ao mesmo tempo, pode ser fiel a seu amor. E seus pais podem acabar mudando de ideia, ao ver que você só será feliz ao lado dele. Ela tratou de não mencionar que dificilmente um amor infantil poderia resistir às atrações de uma temporada londrina, principalmente quando a debutante era uma mocinha graciosa e reconhecidamente rica. Teria muitos admiradores. Juramos fidelidade um ao outro — explicou Augusta, com ar dramático. — Combinamos que eu obedeceria a meus pais, porém continuaria fiel, como você disse. Só que não pensei que ia me sentir tão só! Nós nos encontrávamos, às escondidas, quase todos os dias, no adro da igreja. Ah, não suporto mais ficar longe dele! Quando vocês chegaram a Londres? Há quase uma semana — respondeu ela, torcendo tanto o lenço que ele rasgou. Dora esforçou-se para conter o riso diante do drama infantil de Augusta, enquanto procurava um lenço na bolsa. Pensava em palavras que poderiam dar conforto quando a porta se abriu e uma senhora elegante entrou. — Prima Theodora! Que prazer rever você! Vejo que já conheceu Augusta. Levante-se e deixe-me vê-la! Ah, sim… Você sempre foi bem alta, não é mesmo? Lady Jermyn dizia que pensava num mastro enfeitado, quando a via… Mas era inveja, porque ela corria atrás de sir John Webbeley e ele estava louco por você. Ah, quanto tempo passou! Fiquei tão triste quando soube do passamento do seu pai,, prima, e falei para sir Giles… pode perguntar se não falei… "Por que não pedimos a Theodora Thornfield para ser minha dama de companhia? Deve estar sozinha, exceto pelas três irmãs, e faz muito tempo que preciso de alguém a meu lado!" Então, meu marido disse… Theodora ficou atordoada com a enxurrada de palavras, de pé diante de lady Bracken, a quem não via desde seus dezenove anos. A prima Maud era bonita, de cabelos escuros. Lembrou-se de que era também uma faladora incansável, mas que não se zangava ou irritava quando a interrompiam. Como vai, prima Maud? — perguntou, então, no meio do relato do que sir Giles teria dito. Lady Bracken decidiu demonstrar que a parenta era bem-vinda. Agarrou-lhe as mãos enluvadas e as duas mulheres roçaram as faces. Tenho certeza de que você gostaria de ver seu quarto e tirar essas roupas. Que capa mais interessante, querida! Pensei que ainda estava de luto… — Papai morreu há mais de um ano — explicou Dora, tentando adivinhar qual seria o significado de "interessante". Achava que a capa nova, de lã bege, e o chapéu com plumas eram os mais bonitos que já havia usado. Tinham sido escolhidos por Mary. Temia, até, que a capa, o chapéu e o vestido novo fossem considerados excessivamente elegantes ou mesmo juvenis demais para uma dama de companhia. Talvez fosse isso que a prima Maud queria dizer. Mas como não podia perguntar, Dora achou melhor ignorar o comentário. Muitas das observações de lady Bracken deviam ser ignoradas, desde tolices bem-intencionadas até maldades cortantes. E isso não seria apenas questão de boa educação, mas também de sobrevivência. A porta abriu-se de novo para sir Giles entrar. Dora sorriu ao vê-lo. Não mudara muito. Os perspicazes olhos azuis e os cabelos castanhos, escorridos, entremeados de uns poucos fios brancos, eram os mesmos. A estatura alta e esguia ainda a fazia pensar, vagamente, numa cegonha. Então, chegou a mais nova figura que irá se juntar à horda de mulheres que me cerca! — exclamou ele, segurando com ambas as mãos a mãozinha da prima. — Bem-vinda, prima Theodora. Vai nos ajudar a apresentar Augusta à sociedade? Não exatamente, sir Giles — interferiu a esposa, rápida. — Ela veio para me fazer companhia. Sim, querida. Fique alerta, prima — disse ele, com os olhos brilhando, maliciosos. — Vai ter muito trabalho com essas duas! Dora respondeu da maneira mais diplomática: ficou em silêncio e sorriu. Lady Bracken decidiu levá-la ao quarto, e Augusta, impressionada com a breve conversa com a prima, acompanhou-as. — Vai ficar num bonito e calmo quartinho que dá para os fundos — falou Maud, animada. — Sei que agora, mais velha, você não vai gostar do barulho e do movimento da rua, para onde dão os quartos de hóspedes. Quer sair comigo e Augusta, mais tarde? Vamos à costureira, e há uma porção de encomendas que você poderia apanhar, enquanto experimentamos os vestidos… Detesto entrar em lojas apinhadas de gente! À essa altura, Dora lançou um olhar quase desesperado a sir Giles, que tomava rumo diferente na escada. Ele piscou um olho e ela encolheu os ombros. Gostaria de poder ficar em companhia do primo e perguntar, entre outras coisas, quem era o homem que saíra da casa dele, meia hora antes. Prima Theodora, estou tão feliz por tê-la conosco! — murmurou Augusta enquanto subiam a escada. Dora respondeu com um sorriso. Concordava com a menina: tamém gostava de estar ali, embora tivesse de aceitar as coisas boas e as ruins. Sentia-se feliz por estar na mansão da rua Albermale, apesar de ver que fora relegada a um quartinho modesto, nos fundos, muito diferente do que ocupara quando estivera naquela casa como hóspede. Capitulo III Algumas semanas depois, Dora teve motivos para se aborrecer por causa de sua nova situação. Como acompanhante da srta. Augusta Bracken, encontrava-se no baile de lady Vining, um dos pontos altos da temporada. O grande salão estava brilhantemente iluminado por enormes lustres de cristal e repleto de gente bonita e elegante. A seu lado, sentava-se a priminha, que batia nervosamente a ponta do pé no chão. — Prima — murmurou a garota. — Vou morrer de vergonha se tomar chá-de-cadeira a noite toda! Calma, querida. Chegamos quando a orquestracomeçava a tocar esta música. Ninguém poderia vir tirar você. E… não me disse que não queria saber de admiradores? — lembrou Dora, com um sorriso. É verdade, e você conhece o meu segredo. Só quero casar com o meu querido Edgar. Mas já que estou em Londres e debutei, quero dançar! E você também devia dançar, prima. Estou tão feliz por ter vindo comigo! Você precisava de uma acompanhante e sua mãe está com enxaqueca… Era a primeira vez que Dora participava de um acontecimento social, desde que chegara. Lady Bracken não tivera enxaqueca no momento de Augusta ser apresentada à Corte, nem durante a importantíssima apresentação da garota no Almack's. E Dora só saía com os Bracken como acompanhante oficial. As acompanhantes não dançam, querida — esclareceu. Besteira! Mamãe sempre dança. Ela é a esposa de um baronete, não uma dama de companhia assalariada. E daí? Você me deixa furiosa com essa humildade! Vou lhe arranjar um marido até o fim da temporada! Você é terrível! — respondeu Dora, rindo. — Não espalhe que procuro marido. Seria ridículo, na minha idade! Você é um pouco mais velha do que eu, mas é linda! E não se preocupe. Vou lhe arranjar alguém. Minhas irmãs disseram a mesma coisa, durante anos, sem resultado. Portanto, dou-lhe licença para tentar. Veja! Um oficial da marinha vem vindo, com as orelhas vermelhas! Augusta imediatamente endireitou o corpo. O jovem militar, depois de pigarrear muito e arrastar os pés, pediu licença a Dora e convidou Augusta para dançar. Quando ficou a sós, ela percebeu que não estava triste. Adorava Londres, e era maravilhoso ver gente bonita se divertindo. Sir Giles aproximou-se nesse momento, dizendo: — Já dei minha volta social pelo salão, prima. Apresentei você a lady Vining, e se está tudo bem… Dora riu. Sabia que o primo morria de vontade de ir para o salão de carteado e ia encorajá-lo quando ele exclamou, alegre: Olhe só, Lawrence Carruthers! Um velho amigo, dos meus tempos de Oxford. É a primeira vez que o vejo num baile. Veja… é aquele rapaz bem alto, ali… Um velho amigo seu? Que interessante… — respondeu Dora, bem-educada, olhando na direção indicada e, então, arregalou os olhos. Era o homem com quem quase se chocara à porta da residência dos Bracken, no dia de sua chegada. Perdera as esperanças de revelo. Mas lá estava ele, com três jovens senhoras, que falavam ao mesmo tempo, enquanto ele olhava ao redor. De repente, viu Dora. Ela desviou o olhar, confusa. Está vindo para cá — murmurou sir Giles. — Acho que me viu. Carruthers! — gritou, dando um passo adiante. Bracken! Nunca imaginei encontrá-lo aqui, amigo! Ê por causa da minha filha — explicou sir Giles. — Sabe que eu prefiro viver tranquilamente… Sua filha?! Quer fazer o favor de me apresentar, então? — Os olhos verdes mostravam surpresa. Esta não é minha filha, homem! — disse sir Giles, rindo. — E a prima de minha mulher, a srta. Thornfield. Permita-me apresentar-lhe o sr. Carruthers, prima. Dora acenou com a cabeça e ele se inclinou, segurando-lhe a mão mais do que o necessário e dizendo: Eis a senhora, finalmente! Estava perdendo a esperança de reencontrá-la. Perguntei até a lady Bracken, na semana passada, quando a encontrei no teatro. Mas ela afirmou não conhecer ninguém parecida com a descrição que fiz… Verdade? — Dora percebia que também o havia procurado, nas raras vezes que saíra às ruas de Londres. E possível que lady Bracken não a tenha identificado por causa da minha descrição. Poucas mulheres admitiriam ter uma parenta que é a mais linda loira da cidade. Ela se lembrou do estranho comportamento da prima Maud no dia seguinte à ida ao teatro. Mas como interpretar as palavras daquele homem? Não sabia se ele estava apenas sendo gentil ou se falava a sério. Sir Giles, que ouvia tudo com expressão divertida, pigarreou. A dança estava terminando. Augusta aproximou-se e foi apresentada a Carruthers, ficando muito vermelha. — Acho que conhecemos parentes do senhor no Surrey… — falou, observando o homem que parecia ter duas vezes seu tamanho. — A sra. Farley e família. Theodora prestou atenção. Qual seria a ligação entre esse cavalheiro e Edgar Farley, o namorado de Augusta? Carruthers resolveu logo o mistério: Ah, claro! Meu herdeiro, a mãe e a irmã dele. Espero que estejam com boa saúde. Estão muito bem — respondeu sir Giles, com um rápido olhar para a filha. — Então, o garoto Farley é seu herdeiro? Eu não sabia desse parentesco… O sr. Farley é um rapaz de grande valor — declarou Augusta, ignorando o cenho franzido do pai. Tenho certeza de que sim. Ele se ordenou pastor, não é? Preciso escrever-lhe uma carta de congratulações — disse Carruthers, com ar entediado. Augusta olhava-o com um sorriso feliz e olhos brilhantes. Estaria se apaixonando? Uma garota se impressionava facilmente com homens mais velhos e bonitos. As reflexões de Theodora foram interrompidas. Poderia me conceder o prazer da próxima dança, srta. Thornfield? — Indagava Lawrence, amável. — Será uma valsa, mas se não quiser, ficarei satisfeito com a promessa da quadrilha… Quando aspatronesses do baile do Almack's me conheceram, a valsa ainda não estava na moda — respondeu ela, sorrindo. — Tenho de recusar. Estou aqui como acompanhante da srta. Bracken. E se eu insistir? — retrucou ele, erguendo as sobrancelhas. Augusta intrometeu-se, com a costumeira impetuosidade: Bobagem, Dora! Vá dançar! Menina, meu tempo de dançar já passou — respondeu ela, com ar resignado. O que é isso? — interferiu sir Giles, sorrindo. — Se o seu tempo de dançar já passou, quer me explicar o que fazem aquelas velhas corocas volteando no salão? — Essas palavras, ditas em voz alta, provocaram protestos de algumas senhoras sentadas ali perto. O baronete pigarreou e continuou, baixo: — Posso ser considerado seu acompanhante, prima. E como tal, aconselho-a a dançar com Carruthers. Como vê, srta. Thornfield, estamos todos de acordo — murmurou Lawrence, oferecendo-lhe o braço. Sem saída, ela aceitou. Nunca havia dançado uma valsa em público Essa nova e chocante dança não era admitida nas reuniões e nas festas particulares do interior. Sentia-se feliz por ter tido, antes da morte do pai, a extravagante ideia de contratar um professor particular de danças, para aprender os passos do ritmo que enlouquecia Londres. Lawrence era excelente dançarino e Dora logo se acostumou aos passos dele. Nas poucas vezes que teve coragem de erguer os olhos, viu que ele sorria com aquele ar de intimidade, tão estranho, do primeiro encontro. Alguma coisa errada, senhor? — indagou, afinal. Nada, mesmo — respondeu o cavalheiro, executando um volteio complicado com extrema precisão. — Estou contente por te encontrado a senhorita. Começava a pensar que a loira linda da rua Albermale fora Uma alucinação. Ela sorriu ao ouvir o galanteio, mas não soube o que responder. Não podia dizer que sentia a mesma coisa! Será que a senhorita conversa tão bem quanto dança? — perguntou ele. Vou tomar isso como elogio e responder que não sei — rebateu Dora, com um sorriso sem jeito. — No entanto, tenho mais experiência em conversar do que em dançar valsa. É mesmo? É… Sabe? Esta é minha primeira valsa, não contando as que dancei com o professor. Então, esta é uma grande honra, srta. Thornfield! Será que há mais alguma coisa que não tenha feito ainda e na qual poderia contar com minha participação? Quero dizer… uma outra dança qualquer. Dora arregalou os olhos. Será possível que ele podia estar querendo dizer… Viu o sorriso dele e teve certeza de que suas palavras eram ousadas. Reagiu com um olhar reprovador, e durante o resto da valsa limitou as respostas a meios sorrisos e acenos. Mas apreciou a dança.e os gracejos, embora não o admitisse nem a si mesma. No salão havia gente ocupadíssima com a presença de Theodora. Foi logo identificada como prima dos Bracken, atualmente dama de companhia de lady Bracken. Alguém lembrou que aparecera na cidade há muitas temporadas e com certo sucesso. Ninguém entendia por que nãose havia casado: sir John Webbeley a cortejara ostensivamente… Agora estava ultrapassada, pobrezinha, embora ainda tivesse aparência aceitável… Talvez Carruthers soubesse que os mexeriqueiros os observavam e tentou confundi-los, convidando a pequena Augusta Bracken para a dança seguinte. Sabia-se que ele jamais dançava com debutantes e todos ficaram intrigados, porque a garota não era nenhuma beleza. Devia ser em deferência à família… Ninguém mais esperava que ele se casasse, embora já houvesse acontecido casamentos entre homens mais velhos e garotas recém-saídas do colégio, educadas para serem esposas submissas. Dora ouvia distraída as observações de sir Giles, que havia desistido de jogar e observava Carruthers e sua filha dançando, com a mesma atenção dos bisbilhoteiros. Augusta enrubescia, tropeçava, mas falava sem parar. Lawrence parecia interessado na conversa da mocinha e a um certo ponto desatou a rir. Dora não sabia o que pensar. Uma criatura envolta em gaze azul chegou, flutuando, e sentou-se ao lado dela. Era Amélia Lavenham, a melhor amiga e colega de colégio de Dora. Devido às constantes exigências de lady Bracken, só se haviam visto uma vez antes do baile. Lady Lavenham cumprimentou sir Giles, depois voltou-se para Dora: — Amiga malvada, você não me contou que frequentava bailes! Não tem desculpa para não ir a minha festa! Dora explicou que ali estava como acompanhante de Augusta, e Amélia rebateu: Não diga mais nada! Vi você dançando com Lawrence Carruthers. Que homem bonito, não? Há anos consegue escapar de todas as manobras de mães à cata de marido para as filhinhas. Pode se orgulhar da conquista! A mãe dele era lady Anne Osborne e, embora não tenha herdado o título, ele é riquíssimo. É estranho, porque o sr. Carruthers não costuma dançar, menos ainda com desconhecidas. Ele é amigo do senhor, sir Giles? É, mas não conhecia Theodora — respondeu ele, com um sorriso. — Pensou até que fosse minha filha. Isso é que é elogio! — exclamou Amélia, olhando maliciosamente para a amiga. Depois, aproximou a cabeleira negra dos cabelos loiros de Dora e segredou: — Fique sabendo que ele tem seus casos. Atualmente, mantém uma mulher muito em moda. Uma dançarina francesa que anda fazendo muito sucesso! A senhora deve estar falando de mademoiselle Yvette — comentou sir Giles. Senhor! Como pode mencionar esse nome na presença de senhoras? — repreendeu Amélia, depois bateu no braço dele com o leque fechado. — Só quis que Dora soubesse o que terá de enfrentar. Theodora tentou parecer severa: Está sugerindo que eu entre em competição com uma cortesã, Amélia? Claro que não! Bem, preciso ir, depois nos veremos. E pare de dizer que não quer dançar! Cuide disso, sir Giles. — E lady Lavenham se afastou, a gaze esvoaçando. Dora não teve muito tempo para pensar nas palavras de Amélia porque logo um cavalheiro se aproximou, convidando-a para dançar. Não podia recusar, depois de ter dançado com alguém. Seria ofensivo. Em pouco tempo esqueceu a pose altiva e entregou-se ao prazer da música, com entusiasmo. — Ficarei desolado se a senhora não conversar comigo pelo tempo de uma dança — pediu sir James Perry, uma hora depois, fazendo uma mesura exagerada. Dora teve certeza de que era para olhar melhor o seu decote. O homenzinho atarracado, de cabelos grisalhos e nariz avermelhado, a importunava há mais de quinze minutos. — Senhor, como já disse, seu tempo de dançar acabou, mas o mesmo não se aplica a nós, nem à srta. Thornfield — protestou o capitão Thomas Laughton. Dora olhou-o com gratidão. Era irmão de lady Vining e mostrava-se um verdadeiro amigo. Tinha aproximadamente a idade de Dora, cabelos loiros e olhos azuis, brilhantes, que atraíam olhares de admiração de muitas senhoras. Além disso, tinha a fama de ter se desempenhado com bravura na defesa do castelo de Hougoumont, no ano anterior. Para completar, possuía respeitável fortuna. Durante o último intervalo, Amélia aproximara-se dela para explicar-lhe quantos acres Thomas Laughton tinha em Yorkshire. Era, também, herdeiro de um velho tio rabugento, o general sir Percival Laughton. — Amélia, o capitão apenas dançou uma vez comigo. Não me pediu em casamento! — rira Dora, acalmando a amiga. Depois, estremecera, porque Amélia enfiara o cotovelo em suas costelas, ao ver o capitão se aproximando de novo. Ela havia recusado uma segunda dança e ele permanecera a seu lado para conversar, sem se deixar espantar pela intromissão de sir James Perry. Este se valera do fato de conhecer sir Giles para se aproximar dela e explicar que procurava uma boa moça para ajudá-lo a criar seus numerosos filhos órfãos. Dora refletiu que, comparado com sir James, Thomas Laughton era escandalosamente atraente. Mesmo sabendo que era prima e dama de companhia de lady Bracken, demonstrava grande interesse por ela. Então, por que ela não se emocionava? Tinha motivo. Encontrou, com os olhos, Lawrence Carruthers, que conversava com Augusta a poucos metros de onde ela se encontrava com os dois cavalheiros. De repente, ele riu de algo que a mocinha disse. Dora esforçou-se para ouvir, com a desculpa de estar cuidando da garota. Escutou Carruthers chamá-la de "menina de raciocínio tortuoso'', enquanto a priminha baixava modestamente o olhar. O que significava aquilo? Posso esperar que a senhora aceite cear comigo? — perguntou sir James Perry. — Minhas filhas Caroline e Alice gostariam muito de conhecê-la. — Suspirou ruidosamente. — É uma infelicidade que as queridas garotas não tenham mãe para apresentá-las à sociedade… Uma tia me parece bastante adequada — rebateu Dora, calma. — E as garotas têm boas maneiras, estão vestidas com bom gosto… Achava que a única maneira de desencorajar o homem era convencê-lo de que sua vida familiar dispensava uma madrasta. — Espero que a senhorita não tenha esquecido que prometeu cear comigo — disse o capitão Laughton, piscando. Theodora sentiu-se aliviada. Não prometera coisa alguma, mas o capitão percebera o problema. Com o canto dos olhos, viu que Lawrence separara-se de Augusta e se dirigia para a porta do salão. Ia embora… Talvez fosse para outra festa. — É claro que não esqueci a promessa, senhor — respondeu ao capitão, com um olhar de agradecimento. — Desculpe, sir James. Na carruagem, enquanto voltavam para casa, Augusta demonstrava entusiasmo pelo que chamava "o triunfo" de Dora: — O simpático capitão Laughton foi muito atencioso, prima! Pena ele ter de ir embora tão cedo, por causa daquele velho tio horroroso. Mamãe diz que o comportamento do general é sempre impossível, mas ele é tão rico que todos o convidam. É, também, tio de lady Vining, e ela tinha de convidá-lo. Dora sorriu ao se lembrar do escândalo que o general sir Percival tinha armado: bebera demais e dera um beliscão em lady Jersey. O capitão tivera de se retirar com o velho, depois de explicar rapidamente a ela que quando o tio bebia demais, achava que toda mulher era de vida fácil. — Foi uma pena você ter de aguentar sir James pelo resto da ceia! As filhas dele têm a minha idade, portanto ele está fora, não pode querer casar com você. Ela não discordou, mas pensava que muitas pessoas achariam apro-nriada a união entre um cavalheiro viúvo e uma solteirona pobre, já auase nos trinta. Só esperava que sir James desistisse da ideia. _ Vamos deixar meus problemas de lado — sugeriu, então. — Gostou daquele amigo do seu pai, o sr.. Carruthers? Não pensei que o sr Farley fosse herdeiro de alguém. — Ah! Ele será apenas herdeiro legal, caso o sr. Carruthers nao venha a ter herdeiros diretos. É muito gentil — afirmou Augusta. O interior do veículo estava escuro e não deu para ver se ela corava. — E não é tão velho assim, como pensei pela descrição de Edgar. Dora concordou que Lawrence não era propriamente um velho e não falaram mais nisso. Que garota poderia resistir a um cavalheiro tão bonito e elegante? Ela mesma, que já não era uma menina, ainda estava pensando nele na manhã seguinte. E durante a noite inteira sonhara com seusbraços fortes guiando-a na valsa, pelo imenso salão. Capitulo IV No dia seguinte, ainda atordoada pelo esplendor do baile, teve dificuldade em reassumir o papel de dama de companhia. Ela, Theo-dora Thornfield, havia dançado mais uma vez em Londres! Pôs um vestido escuro, severo, fez duas tranças e arrumou-as no alto da cabeça, depois cobriu-as com uma touca branca. Olhou-se ao espelho e estremeceu. Sem dúvida, ficava bem melhor vestida de seda, com os cabelos arrumados em cachos, como na noite anterior. Fez uma careta para a própria imagem e saiu do quarto, imaginando o que o sr. Carruthers diria se a visse agora. Ficou sabendo a resposta ao entrar na biblioteca, onde havia deixado a bolsa de bordados. Em vez de estar na sala de café, lugar onde um chefe de família civilizado deveria estar àquela hora, sir Giles encontrava-se na biblioteca sentado numa poltrona, conversando com um visitante. Dele, via apenas as pernas fortes, cobertas por calça de montar, justa, e botas reluzentes. Dora adivinhou quem era e começou a se retirar. Mas não conseguiu. Sir Giles chamou-a e o outro homem levantou-se. Srta. Thornfield! — exclamou Carruthers, surpreso, aproximando-se com a mão estendida. — O que aconteceu com a minha parceira de valsa? Na casa dos Bracken costuma-se andar fantasiado de manhã? Está, mesmo, usando touca?! Sempre me visto assim de manhã, senhor — respondeu Dora, corando e lançando-lhe um olhar furioso. Não pretendo discutir com a senhora sobre a conveniência da touca — respondeu ele, admitindo a derrota. — Aliás, observando melhor, ela não diminui seus atrativos! — Até então segurava a mão de Dora, e a soltou, devagar, como numa carícia. Não adianta discutir a touca com a prima Theodora. Minha filha faz isso todo dia, sem sucesso — comentou sir Giles. Abriu a porta da biblioteca e perguntou: — Não quer nos acompanhar no desjejum, Carruthers? Ele aceitou e os três foram para a sala de café. Dora caminhava entre os dois, perguntando-se por que, justamente naquele dia, escolhera seu vestido mais velho! No entanto, estava decidida a defender até a morte seu direito de usar touca, que era o emblema de solteiras da sua idade. Lady Bracken aprovava isso, apesar de Augusta se opor. Mas não podia censurar o sr. Carruthers pela observação. Há pouco ela mesma lamentara o desaparecimento da elegante mulher vestida de seda azul. Suspirou pela mocidade perdida. Carruthers percebeu, observou-a e indagou: — Alguma coisa a desagrada? Dora, muito depressa, negou com a cabeça. A sala de café, muito clara e bem-arrumada, estava vazia. Eu bem que imaginava — disse sir Giles, rindo. — Minhas duas damas ainda estão dormindo. Sente-se, Carruthers. Theodora hesitou quando o convidado demonstrou intenção de ajudá-la a sentar-se. Recusou, dizendo: — Vou subir. Talvez lady Bracken queira que eu leia o jornal para ela, enquanto toma seu chocolate. — E talvez ainda esteja dormindo. Sente-se, prima Theodora. Os olhos azuis de sir Giles brilhavam maliciosamente e ela teve a impressão de que ele se divertia. Sabia que a esposa não via ninguém antes da camareira ajudá-la a livrar-se do mau humor matinal e até terminar um grande bule de chocolate. Sem alternativa, ela aceitou a cadeira que Lawrence segurava. Começou a tomar seu café, enquanto os cavalheiros atacavam, com apetite, as carnes, os peixes e os ovos com curry enfileirados sobre o aparador. A senhorita está se divertindo na temporada? — perguntou o convidado, fitando Dora, quando sir Giles terminou de contar sobre a falência de certo major. A temporada? — repetiu Dora, sobressaltada. — Vejo que o senhor não sabe. Não sou hóspede dos Bracken… Sou dama de companhia de iady Maud e acompanhante da srta. Bracken. Ah! — exclamou Lawrence, erguendo as sobrancelhas. — Isso explica a intenção de ir ler o jornal para lady Bracken. Ela percebeu que os dois trocavam um olhar e imaginou se iriam falar naquilo mais tarde. O assunto da conversa mudou. Dora ouvia, quase sempre calada. Preferia assim, pois se sentia insegura depois de ter dito que ganhava a vida trabalhando. Quando Carruthers começou a se despedir, a porta abriu-se. - Augusta, com cara de quem ainda dormia, envergava um robe novo e caro, de musselina bordada, feito por famosa modista. Uma outra criação exclusiva enfeitava prima Maud, cujos olhos escuros e brilhantes examinavam avidamente o convidado. . — Oh, guerreira impávida! — murmurou sir Giles, rindo. A esposa lançou-lhe um olhar irritado, mas não retrucou seria requisitada naquela manhã, sentou-se numa poltrona e esforçou-se em ler A História da Inglaterra, de Goldsmith. Pouco depois, estava tão interessada na história da Casa de York que perdeu a noção do tempo. Ia parar de ler para escrever uma carta a uma das irmãs quando bateram à porta e a camareira da prima enfiou o rosto pela fresta. Lady Bracken espera a senhorita no quarto dela. Obrigada, Meeker — disse Dora, com um sorriso. Prima Maud encontrava-se numa poltrona, junto à janela. — Ah, prima. Entre. O que adianta ter uma dama de companhia se você nunca está comigo? Dora aproximou-se, pegou um tamborete e colocou-o em frente da poltrona. Achou desnecessário dizer que tinha se afastado por ordem expressa dela. — As visitas já foram embora? — perguntou. A outra soltou um suspiro prolongado e trémulo. Achei aqueles cavalheiros muito esquisitos, prima Theodora! Sinto-me lisonjeada pela minha filha, porque os dois senhores, cheios de distinção e fortuna, são rivais na disputa pelo afeto dela… E minha menina está aqui há um mês, apenas! Mas, imagine, conversaram apenas entre si, o tempo todo. Isso demonstra que ambos estão impressionados com a minha menina… Você se refere ao capitão Laughton e ao sr. Carruthers, não é? — indagou Dora, com ar inocente. Talvez, e seu coração teve um pequeno sobressalto, ambos fossem, de fato, admiradores de Augusta. O capitão também dançara com a mocinha, na noite anterior. — É claro! A quem mais poderia me referir, querida? — indagou lady Bracken, impaciente. Mas mudou de expressão e sacudiu a ca beça, sorrindo. — Você não me disse, prima, que conquistou um cavalheiro no baile de lady Vining! Embora eu não aprove que uma moça na sua situação fique se exibindo, como você deve ter feito para atrair a atenção dele… tenho de confessar que, se conseguir se casar com sir Perry, vai ser a sensação da temporada. Ele é um homem muito respeitável. Veio aqui com duas das filhas e Augusta deu-se bem com elas. Que tolice apresentar ambas à sociedade no mesmo ano! Mas sir James é homem e não sabe dessas coisas. Será diferente quando tiver uma esposa ao lado. Prima Maud interrompeu a enxurrada de palavras para respirar e lançou um olhar maldoso a Dora, antes de prosseguir: — Se eu soubesse disso, meu bem, teria pedido que você fosse à sala de visitas conosco. Sir James perguntou por você, e as filhas, também. As queridas garotas já gostam muito de você! E acho que há, pelo menos, mais uns sete pequenos Perry na família… Dora baixou as pálpebras e sentiu um arrepio ao pensar em cuidar de uma família desse tamanho. Ah, prima Maud! Tenho certeza de que sir James não… Mas eu, minha querida, tenho certeza de que sim! Não se preocupe em ter de nos deixar, quando chegar a hora. Não me será fácil substituí-la, mas nem por isso vou negar a minha própria prima a oportunidade de conseguir uma situação respeitável. Ao ouvir aquilo, Theodora sentiu-se feliz por não ter ido à sala de visitas. — Quando percebi que você tinha arranjado um admirador apropriado para sua idade e situação — continuou a outra, insensível —, decidi não lhe falar tão energicamente quanto pretendia a respeito da maneira embaraçosa com que se impôs ao sr. Carruthers. Admito, ele é muito atraente, meu amor, mas praticamente já se declarou a Augusta. Não há nada mais ridículo do que uma solteirona fazendo manobras grosseiras para chamar a atenção de homens… A essa altura, Dora quase engasgou de indignação. — Prima Maud, pode ter certeza de que em momentoalgum eu quis me impor às atenções desse cavalheiro. — Os olhos dela, em geral calmos, faiscavam. — Vou embora daqui amanhã. Quando concordei em ser sua dama de companhia, eu me preparei para enfrentar situações desagradáveis, mas isto passou dos limites! No que se refere a Augusta, lembre-se de que o sr. Carruthers a conheceu apenas ontem à noite. Vou arrumar as malas. Virou as costas e saiu do quarto. Sentia as faces afogueadas. Aquela fora sua única oportunidade de se tornar independente, de certa maneira. Mas estava acabado. O fato de sentir certa admiração pelo sr. Carruthers não era motivo suficiente para justificar a atitude ultrajante da prima. Não havia se imposto às atenções de ninguém! E se alguém demonstrara querer aprofundar o conhecimento, fora ele, não ela. — Prima Theodora! Faça o favor de voltar aqui! — gritou lady Bracken. — O que vou dizer a sir Giles? Pensando bem, acho que você nada fez, mesmo, para atrair a atenção do sr. Carruthers! Ele deve tê-la convidado para dançar em consideração a nossa família! Oh, eu… Prima, volte, por favor! Notando o tom de súplica, Dora parou. Fora muito útil à prima Maud… Durante as semanas anteriores acompanhara Augusta às compras, poupando a mamãe, que se entediava com essas coisas. Tinha ido levar e buscar vestidos. Principalmente, tinha sido sempre uma ouvmte atenta, porque o marido e a filha nem mesmo fingiam ouvir o que lady Bracken dizia. Ela, no entanto, permanecia firme, ouvindo os intermináveis monólogos e de vez em quando até emitia murmúrios interessados. E o que lady Bracken poderia dizer ao marido, que durante aquele tempo vinha demonstrando amizade e sincero respeito pela prima? Romper com a família Bracken significava longos anos limpando os narizinhos dos sobrinhos. Mas, por outro lado, não sentia grande amizade pela prima Maud. Ela tinha sido uma acompanhante atenciosa quando, mocinha, viera passar a temporada ali. Mas como patroa de uma dama de companhia assalariada, era realmente intragável! — Prima… — gemeu lady Bracken, cobrindo os olhos com o lenço, como se chorasse, quando ela entrou no quarto. Então, Dora resolveu ceder. Falou: — Sei que você não tinha intenção de dizer o que disse. E se desculpar meu pequeno desabafo, esqueço suas palavras. E peço-lhe que não faça mais insinuações sobre sir James, prima Maud. Não prentendo me casar com ele. O bom humor da outra voltou num instante e ela soltou uma boa gargalhada. — Ah! Aprendeu bem essa lição, prima Theodora! Uma senhora jamais deve se mostrar interessada logo no começo, como expliquei a Augusta diversas vezes. Bem, não direi mais nada — acrescentou, apressada, vendo o olhar zangado da outra. — Seja boazinha e vá buscar a correspondência. Vi um monte de convites na mesa do hall, quando subi. Dora se conteve para não fazer uma exagerada mesura em sinal de obediência e desceu. As palavras de sir Leonard Fitzhugh sobre as dificuldades que encontraria no emprego voltaram-lhe à memória. Aquela vida nada tinha de independente. Mas, pelo menos, pensou, estava ganhando para viver! Capitulo V Quando a mais famosa cortesã de Londres separa-se do amante, tem de fazer uma bela cena, pensava a famosa bailarina francesa, Yvette, sem sobrenome conhecido. Preparou-se para o papel dramático, respirando fundo. — Monstre! — sibilou, fazendo a maior pose. — Diable! Seducteur! — Agarrou o objeto mais próximo e atirou-o. Lawrence Carruthers esquivou-se da pesada tigela de bronze e riu, divertido. — Sedutor? Não perca o bom senso, minha querida. Yvette, prestes a atirar uma estatueta de Baco no aristocrático nariz dele, deteve-se e sorriu. Havia sido seduzida pelo seu primeiro pro-tetor, há mais de vinte anos. Vai me deixar assim, sem explicação, sem motivos? Isso é um insulto! — exclamou ela, apagando o sorriso, lançando olhares furiosos e sacudindo a cabeleira negra. Esse é o seu ponto de vista — rebateu ele, com indiferença. — Se quer um motivo, pense em algo que você fez. Nosso trato foi bem claro, mas correm uns boatos… Yvette mostrou-se indignada, mas ficou em silêncio. Seus rápidos . casos com qualquer homem que achasse atraente eram bem conhecidos. Antes era capaz de abandonar o protetor do momento para juntar-se a um pobretão, mas a vida a ensinara a não desprezar homens ricos para satisfazer impulsos plebeus. Tornara-se muito discreta, portanto ele não tinha motivo para largá-la daquele jeito. Agarrou de novo a estatueta. — Acho que é porcelana de Dresden, muito valiosa… — lembrou ele, irónico. — Não há nada de pessoal na minha decisão. — Oui, é o que você diz! Nada pessoal! A mulher resolveu mudar de tática. Recolocou a estatueta na mesinha e jogou-se num divã, chorando. Lawrence sentiu uma pontinha de remorso. Não acreditava que a amante alimentasse qualquer carinho por ele. No entanto, achava que estava sendo mais frio do que o necessário. Passou a mão, de leve, nos cabelos dela. Minha amiga, é que cheguei a um ponto da vida em que já não quero mais ter amantes. É mentira! — revoltou-se a francesa. — Conheço bem os ho mens. Você fez trato com outra! Ele sentou-se, decidido a se mostrar gentil. Não tenho cadidata alguma para substituí-la, ma chere. Pode ser que esteja pensando em casamento. Grande coisa! Antes de você, todos os meus protetores eram casados! — Yvette fungou graciosamente, com os olhos cheios de lágrimas. — Quer mais discrição, para sua noiva não se magoar com os falatórios? Eu entendo… Não estou de casamento marcado e ainda nem sei se vou escolher alguém. Apenas, quero mudar de vida. Continuando com você, que é muito famosa, nenhuma mulher respeitável me aceitaria. Carruthers sabia que Yvette tinha péssima opinião sobre as "mulheres respeitáveis" e não se sentiria insultada. Ela se pavoneou, orgulhosa, pela alusão a sua fama. Quer dizer que a minha sorte é a causadora da minha infelicidade? — perguntou, com ar heróico. — £7!, bien! Se o projeto de casamento não der certo, estarei esperando, chéri.. Boa sorte, Yvette… — murmurou ele, enquanto se dirigia para a porta. Era sempre embaraçoso romper com uma cortesã. Enquanto subia na charrete, pensou nas providências a tomar para o futuro de Yvette. Mais seis meses de aluguel da casa na rua Charles e uma generosa quantia disponível no banco. Ela não poderia se queixar. Estava satisfeito. Há muito tempo planejava romper aquela ligação. Não havia ninguém para substituí-la. Andava pensando numa mulher que não fosse apenas parceira de cama. E, de repente, vira-se pensando em casamento. Yvette também pensava nisso há algum tempo. No ápice da carreira, agora só poderia começar a descer. A salvação estava no casamento. Carruthers era rico e independente. Ela sabia tudo a respeito dele. Fizera planos, que ameaçavam ruir, provavelmente por causa de alguma menininha boba! Foi até a janela e o viu se afastando. Ele ainda não estava casado e admitira que a decisão final não fora tomada… Entrecerrou os olhos. Tinha muitos amigos em Londres. Gente que lhe devia favores. Não ia ser difícil identificar a moça respeitável que inflamava a imaginação ou o coração de Lawrence. Seria fácil derrotar uma criaturinha inocente. — Notícias fabulosas! — exclamou lady Bracken, entrando na saleta onde estava sua dama de companhia. A prima Maud arrastara a filha para uma série de visitas matinais, dispensando a presença da prima. QUe notícias? — perguntou Dora, fechando o livro. Quando não era obrigada a ouvir os monólogos de Maud, dedicava-se à leitura. Lady Bracken acomodou-se numa poltrona perto da lareira, tirou o chapéu e desabotoou a capa de veludo. — Mandei Augusta buscar um xale, porque quero lhe contar uma coisa que não pode ser ouvida por pessoas jovens e inocentes. Dora lançou-lhe um olhar irónico, dizendo: Sou uma solteirona respeitável, prima. Admito que não muito jovem, mas sou "inocente". Theodora! Como você é engraçada… Sabe o que eu quis dizer. Há coisas que Augusta nem imagina. Ela é uma criança. E não sabe a felicidade que a espera! — Sim, ela vaiser muito feliz — anuiu Dora, sorrindo. A prima Maud baixou a voz e inclinou-se: Ouvi, na casa de lady Cowper, essa notícia que já se espalhou pela cidade. Carruthers rompeu com a amante. Isso é sinal de que ele pensa em se casar! Carruthers?! — Dora sentiu as faces em fogo, mas podia atribuir isso ao assunto escandaloso. — Bem, os homens costumam tro car de amantes… Amélia Lavenham lhe tinha dito que a amante de Lawrence Carruthers era uma famosa bailarina. Dora o havia encontrado várias vezes nos últimos dias. O fascínio por aquele homem ameaçava se tornar uma obsessão. — A verdade é que a maioria dos homens não se livra desse tipo de mulher. Tive muita sorte com sir Giles, que ao casar comigo não quis sequer olhar para outra! Ah, sim… Carruthers mesmo se deu ao trabalho de fazer a notícia circular, para todos saberem que mudou de vida. Por que faria isso? Claro! Pensa em casar com uma mocinha inocente, que se magoaria com esse tipo de coisa, que uma mulher experiente fingiria ignorar. E ela continuou falando sem parar, exaltando a conquista de Augusta. Theodora franziu a testa. Pobre sr. Carruthers! Se ele soubesse que todos os seus atos eram considerados um passo em direção ao casamento com Augusta Bracken! Ele iria dar boas gargalhadas! Ou não? A cada vez que se encontravam ele sorria para Dora, o olhar demonstrando interesse. E ela ainda sonhava com a valsa que dançara com Lawrence. Mas precisava reconhecer que Augusta e ele se davam muito bem: pareciam sempre ter o que conversar em particular e riam muito. A prima Maud, embora tendesse a ver um apaixonado por Augusta sob todas as cartolas que circulavam em Mayfair, poderia estar certa. Mãe zelosa, via no cavalheiro um homem que se aproximava da meia-idade, querendo formar família. E ele bem que podia escolher para esposa uma jovem rica, que por acaso era filha de um amigo. O fato é que não havia nenhum indício de que esse mesmo cavalheiro se interessava por uma dama de companhia assalariada, a caminho dos trinta… a não ser para uma dança ou um flerte. Dora suspirou e a prima interrompeu o monólogo para indagar se, por acaso, estava com dor de cabeça. — Prima, você lê demais e a iluminação aqui não é boa. Por que Augusta não traz meu xale? Suba, querida, e diga a ela que se apresse. Subir a escada vai lhe fazer bem. Ar e exercício, é o que sir Giles recomenda para minha enxaqueca. Enquanto Dora saía, lady Bracken tirou os sapatos e deitou-se no sofá, sempre falando: — Minha querida Augusta! Casada em sua primeira temporada! Subindo a escada, Dora tentou não pensar em Lawrence Carruthers. Perguntou a si mesma se algum dia se acostumaria à vida de executar tarefas… Quando encontrou Augusta, no patamar superior, precisou se controlar para não lhe falar bruscamente. — Teve notícias do sr. Farley, querida? Ah! Edgar! — exclamou a mocinha, depois sacudiu os ombros. — Imagino que esteja bem. Dora, sabe o último mexerico? O sr. Carruthers tinha uma amante, uma dançarina francesa, linda, de cabelos pretos… e largou dela! Incrível, não? Menina, se sua mãe a ouvisse! Ela me contou isso em segredo, porque acha que você não devia ouvir. Ora! Não sou uma menininha tipo água-com-açúcar, como mamãe pensa — respondeu Augusta, rindo. Desceram até a saleta, para mais uma tarde de monólogos de lady Bracken. Capitulo VI Como? Para mim! Sim, senhora. Estão lá embaixo, no hall. Dora ergueu-se. Escrevia a última de três cartas, quase idênticas, para as irmãs. — Obrigada, Betsy. Desço neste instante. A criada fez uma reverência e desapareceu. O coração de Theodo-ra batia mais forte. Alguém lhe havia mandado flores. Betsy não as levara para cima porque ela era apenas uma dama de companhia assalariada. Desceu, e a cada degrau repetia-se que não podiam ter sido enviadas pelo sr. Carruthers. Ele na certa esquecera a existência de Theo-dora Thornfield nos três dias que se haviam passado desde sua visita àquela casa. Sobre a mesa, no hall, havia um modesto ramalhete de narcisos e íris. Ficou encantada com o bom gosto do arranjo. Ninguém, a não ser Carruthers, poderia ser tão sensível à delicada posição dela. Lady Bracken estranharia se sua dama de companhia recebesse uma cesta de rosas. Mas flores do campo, modestas, não despertariam a atenção dela. Desceu o último degrau e, com mão trémula, pegou o cartão. — Maldito! — foi a palavra que não pôde conter ao ler o nome. Depois, mordeu o lábio, arrependida pelo linguajar grosseiro, por sorte em voz baixa. Enfiou o cartão no bolso e ergueu o ramalhete. Sir James Perry! Que homem irritante! E as inocentes flores transformaram-se de presente de bom gosto em oferta económica de viúvo prático e mesquinho. Alguma coisa errada, srta. Thornfield? Voltando-se, ela viu Lawrence caminhando em sua direção. Uma aranha entre as flores? — perguntou ele, sorrindo. — Não… Fiquei surpreendida com o presente — respondeu ela, sem graça. Estou feliz em vê-la — comentou ele, sempre com o mesmo sorriso. — Estive conversando com seus primos e acabo de me despedir. Sua enxaqueca melhorou? — Minha enxaqueca? Ela compreendeu, imediatamente, por que lady Bracken lhe havia dado a inesperada folga, dizendo-lhe que podia permanecer em seu quarto. A visita dele era esperada e a prima tratara de mantê-la afastada. De certa forma, isso era lisonjeiro: era considerada rival da pequena Augusta. A surpresa de Dora confirmou a desconfiança de Lawrence. Pois é. Sua enxaqueca — repetiu, com uma piscadela. — Minha cara, precisa coordenar suas desculpas com as dos outros da família. Desta vez, eu perdoo… Perdoa, mesmo? — ela começava a se divertir com a brincadeira e fitou-o nos olhos, risonha. Carruthers conteve a respiração. O rosto de Dora, emoldurado pelos cachos loiros que escapavam da ridícula touca, era lindo. Os olhos cinzentos brilhavam como estrelas, acima das flores. Quem as teria mandado? — Sim — disse, agora sério. — Perdoo. Estavam no hall, onde os únicos móveis eram a elegante mesa Chip-pendale, duas cadeiras rígidas em cada parede, ligadas por um finíssimo tapete Axminster. Compensando a escassez do mobiliário, um lacaio sólido, bem real, mantinha-se empertigado junto da porta, segurando a bengala e o chapéu do visitante. Observava-os, atento. Lawrence dirigiu um olhar irritado ao criado e levou Dora até duas das cadeiras, fazendo-a sentar-se numa delas. Sentou-se a seu lado. — Uma pena a senhorita não estar presente em minha conversa com as senhoras — disse, em voz baixa. Dora, que se deixara arrastar, como que hipnotizada, zangada consigo mesma por isso, encarou-o com curiosidade. Sabe, a minha enxaqueca… — respondeu, suave. Pois perdeu uma cena comovente. Poderia ter me visto confessar meus pecados a sua boa prima e à encantadora filha dela, jurando que minha vida tomou rumo melhor. Eu não consigo imaginar — retrucou ela, arregalando os lindos olhos — o senhor mencionando seus… hum… pecados na presença de uma mocinha! — E acrescentou, em tom de censura: — Augusta tem apenas dezessete anos. Ah, o senhor está brincando comigo! — exclamou, ao ver um brilho suspeito no olhar dele. — O senhor não falou "nisso". Minha cara senhorita, não subestime o alcance de minha ou sadia — respondeu ele, com um largo sorriso —, nem a sinceridade da minha regeneração. Estamos entendidos? Não completamente — declarou Dora. — O que seus hábitos têm a ver comigo? É claro, vou passar a notícia de seu modo de proceder impecável onde for, se é isso que deseja. No entanto, soube que á comunicou esse projeto a toda a sociedade, só Deus sabe por quê! Ele inclinou a cabeça para trás e riu com gosto, revelando duas fileiras de dentes brancos, fortes, e ruguinhas nos cantos dos olhos. Quando um homem leva vida devassa, a sociedade assume ar distante — disse, quando parou de rir. — Quando ele demonstra que pretende se corrigir, os línguas de trapo entram em ação. Para falar a verdade, estava curioso para ver se a sociedade teria algo a dizer sobre a minha… regeneração. Tive a resposta. MeuDeus, este mundo é divertido, mas esquisito! Não acredito que o senhor tenha provocado todo esse falatório só para se divertir! — exclamou Dora, com ar severo, mas achava esse motivo mais aceitável do que as teorias de sua prima. Ele respondeu com outra piscadela. Parecia satisfeito. Então, olhou para as flores. — Contei todos os meus segredos. Agora, quer me contar os seus? Dora viu o olhar. Não havia motivo para fazer mistério. Disse, com um leve suspiro: — Sir James Perry foi gentil e me mandou estas flores. No fundo, sentia-se feliz: ele se importava! Quisera saber quem lhe mandara as flores. Se fosse uma jovem com dote, poderia até achar isso prometedor. Mas era uma solteirona que trabalhava para se sustentar. O interesse dele a encantava, mas não sabia como interpretá-lo. — Sir James Perry! — animou-se ele, satisfeito. — Um homem de valor. Ele é viúvo, com uma penca de filhos? — Isso, muitos filhos… — respondeu ela, séria. Lawrence pareceu ainda mais satisfeito. — Só posso expressar minha admiração pelo bom gosto dele. Bem, agora tenho de me despedir… Levantou-se, ao mesmo tempo que ela. Inclinou-se, beijou-lhe a mão, e ela sentiu um arrepio. Depois que a imensa e pesada porta de carvalho se fechou. Dora dispôs-se a levar as flores para seu quarto. Ao passar os olhos de relance pela sala, teve certeza de que Silas, o criado, fazia-lhe um aceno quase imperceptível de cabeça. Como no decorrer do dia lady Bracken não mencionou as flores, nem a censurou peia conversa a sós com Carruthers, Dora chegou à conclusão de que Betsy e Silas nada tinham dito. Ficou feliz por ter a solidariedade deles. Na manhã segu|nte foi visitar Amélia Lavenham, que conseguira fazer lady Bracket) dar-lhe uma folga. Insistira que precisava relembrar os tempos passados com Dora e acenara com meias promessas de convites imporjaJites. Maud, que se lançava sobre essas migalhas como um passarinho esfomeado, queria se gabar da amizade de sua prima com a importante lady Lavenham. Não poderia fazê-lo se não deixasse Dora ir visitá-la. Suspirando, porque as linhas de bordar continuariam embaraçadas, dera a permissão. Querida — disse Amélia, animada —, estava com uma vontade louca de saber sobre os seus admiradores! Você bem podia ter me escrito, dizendo que queria vir para Londres, e eu a teria recebido como hóspede pelo tempo que quisesse. Será que não pode largar esse empreguinho e vir morar comigo? Eu já lhe disse, uma porção de vezes, que quero ser independente, ganhar minha vida… — respondeu Dora, aceitando os docinhos que a amiga oferecia. — Já não tenho idade para me exibir em Londres. Seria absurdo ainda ter esperanças de agarrar um marido. Com quem pensa que está falando? — indagou Amélia, e Dora compreendeu que não enganaria a amiga. — Ouvi a cidade inteira dizer que você tem três admiradores, apesar de ser uma velha decrépita. Aliás, faça o favor de não proclamar sua ultrajante idade junto de suas contemporâneas! Dora riu da brincadeira de Amélia, depois indagou, curiosa: Você disse… três admiradores? Quer dizer que há mais? — voltou a amiga, com ar maroto. Quem são eles? — quis saber Dora. Bom, um é sir James Perry. Todos viram que ficou encantado, no baile dos Vining, e desde então só a elogia e espera ansioso meu baile, para vê-la. Encontrei-o outro dia e só falou em você. As intenções dele são cristalinas. Pois é… — suspirou Dora. — Ele me mandou flores. Sir James? Imagine! Ele é pão-duro! — exclamou Amélia, arregalando os olhos muito azuis. — Você vai aceitar? Amélia! Como é que pode pensar que eu… Calma, querida! Você podia querer, não é? Seria lady Perry e teria uma família, sua casa… Quer saber, Amélia? Isso é o pior de tudo. Se sir James me pedisse em casamento, eu deveria aceitar, por caridade cristã. Os filhos dele precisam de cuidados, e o que me resta fazer na vida? Casar com ele seria uma solução razoável para o meu problema. Não vou aguentar ficar um ano com a prima Maud, entende? Não sirvo para dama de companhia e seria frustrante voltar a morar com minhas irmãs! Mas não está interessada em sir James… — disse lady Lavenham, e Dora assentiu. — Acho os seus outros dois admiradores mais simpáticos… e Freddy também. Quem são esses admiradores que você e seu marido apreciam tanto? — indagou ela curiosa. para Começar, um é o capitão Laughton, simpático e muito corajoso. Só ouço coisas ótimas a respeito desse homem. Ele gosta muito de você. — Só porque dançou comigo num baile? — perguntou Dora, rindo, descrente. Ficara lisonjeada com as atenções do capitão naquela noite, mas não as levara a sério. Sabe? Ele descobriu que somos velhas amigas e veio me visitar para falar sobre você… Depois, o outro é Lawrence Carruthers. — Lawrence Carruthers? — repetiu Dora, angustiada. — Como chegou a essa conclusão? Por causa de tudo, meu bem! Dançou com você e foi uma valsa! Dizem que ele não perdeu tempo e já se livrou daquela criatura terrível chamada Yvette. Dora balançou a cabeça, com ar de dúvida. Vai ver que se cansou dela. Bobagem pensar que Carruthers livrar-se da amante significa querer casar. Então, você já sabia… — murmurou Amélia, olhando a amiga com atenção. Por acaso, ele mesmo me contou — falou Dora, decidida a não mentir. — De maneira velada, é claro. Disse que tinha espalhado o fato para se divertir à custa da sociedade. Amélia, você não disse a ninguém que ele largou a… Yvette, não é?… por minha causa! Isso é falso. Lady Bracken diz que ele pretende se casar com Augusta e que tomou essa decisão para não magoar a mocinha. Eu ficaria surpresa se Carruthers se casasse com aquela menina — comentou Amélia, sacudindo os ombros. A mãe dela se sentirá insultada se ele não o fizer! Gostaria de ter a certeza de Amélia quanto ao desinteresse de Lawrence por Augusta, mas só a teria com o tempo. Concentrou seus esforços em dissuadir a amiga de espalhar referências às suas "conquistas" e ela prometeu. Mas Theodora percebeu um brilho travesso nos olhos de lady Lavenham. Quando voltou para a rua Albermale, as ideias se confundiam em sua cabeça. — Freddy, pretendo ver Dora muito bem casada até o fim da temporada, ou descobrir por que isso é impossível! — declarou Amélia Lavenham ao marido, naquela mesma noite. Teve de falar em voz bastante alta, como sempre fazia às refeições, porque ela e o marido sentavam-se cada qual numa extremidade da longa mesa de jantar. E mesmo, meu amor? — perguntou o lorde, com ar entediado. Nosso baile me dará oportunidade para começar minha campanha — prosseguiu ela, belicosa. No baile, você terá possibilidades boas — concordou o marido, e esvaziou o cálice de vinho. Há muitos bailes durante a temporada, mas minhas festas são as melhores! Todo mundo me diz isso. E este ano vou iniciar minha melhor amiga no caminho da felicidade. Esta felicidade que você e eu partilhamos, Freddy, querido! A resposta de lorde Lavenham foi rápida. Não havia tédio em seu rosto quando se ergueu e se aproximou da esposa, tomando-a nos braços. Amélia abandonou-se aos carinhos dele e correspondeu-os, como sempre. Dora também merece isto, você não acha? — murmurou ela, mais tarde, quando já se encontravam no quarto. Se você acha, concordo, meu anjo. Mas lembre-se de que já es tou comprometido! — brincou ele, com um sorriso malicioso. Tornou a abraçá-la e Amélia parou de pensar na amiga pelo resto da noite. Capítulo VII As festas de lady Lavenham eram sempre originais. Quando Dora conseguiu fazer-lhe outra visita matinal, a amiga contou-lhe que no ano anterior seu baile fora o maior da temporada. Transformara o enorme salão em um serralho, que o Morning Post descreveu como um "oásis cintilante de opulência oriental". Naquele ano ia criar um foro romano. Fez Theodora jurar que não contaria a ninguém. Ela fazia questão absoluta da surpresa. Dora, então, comentou que não se dançava num foro. Amélia empinou o nariz e declarou que no foro dela todo mundo dançaria. E haveria outra novidade: as senhoras e os cavalheiros usariam máscaras.Nada de fantasias ou dominós. Máscaras, com roupas de baile comuns. — Vai ser divertido! — concordou Dora. — Mas acho que não vou poder vir… Amélia arregalou os olhos e ela prosseguiu: — A prima Maud não pretende perder essa festa e Augusta terá a mãe como acompanhante. Tinha pensado muito no assunto e chegara à conclusão de que o baile de Amélia seria, para ela, apenas uma noite de complicadas manobras para evitar sir James, enquanto veria Lawrence se divertindo. — Não quero ouvir mais isso! — cortou Amélia, zangada. — Sabe que vou insistir com lady Bracken para que você venha. Duvido que ela me recuse isso! Então, Theodora resolveu abrir o coração à amiga. Olhe, eu acho que não aguentaria a perseguição de sir James e das duas filhas, cacarejando a minha volta a noite inteira. Augusta e eu o encontramos no parque, passeando com as meninas, e ele disse que foi convidado. Por isso, não sei. Está se preocupando à toa. Por que acha que inventei as más caras, bobinha? Quando sir James chegar, vou mandá-lo atrás de alguma loira de cachos, enquanto você se diverte! Amélia, não está querendo me arranjar marido, não é? Sabe que eu não quero isso! E está certíssima! — concordou a amiga, sorrindo. — Se eu tosse você, também agiria assim. Dora não ficou completamente convencida, mas calou-se. Pelo jeito, teria de ir ao baile, quisesse ou não. A mansão dos Lavenham estava intensamente iluminada na noite do baile romano de Amélia. — Como é excitante! — murmurou Augusta, por trás da máscara de veludo branco. — Nunca estive num baile de máscaras. Dora e Augusta subiam a escadaria principal da mansão, atrás de sir Giles e de lady Maud. Theodora usava o vestido de seda azul e máscara da mesma cor, bordada de violetas. Concordava com o entusiasmo da priminha. Poderia ser uma noite muito agradável se evitasse sir James Perry. Tudo parecia mais alegre e mais fácil atrás do anonimato das máscaras. No topo da escadaria, Amélia e lorde Lavenham cumprimentavam os convidados, que diziam seus nomes aos anfitriões, mas não eram anunciados pelo mordomo. Sir Giles, eu reconheceria o senhor de qualquer jeito! — exclamou Amélia, quando a família Bracken se aproximou. — Você não acha, Freddy? É o brilho dos olhos… Sempre tenho a impressão de que ele está caçoando de mim! Como poderia, querida lady?! — protestou sir Giles e beijou-lhe a mão. — Lavenham, sua esposa não se deixa enganar! Amélia é muito esperta — riu o lorde, animado. — Bracken, não é mesmo? Como vai? Daqui a pouco teremos algumas mesas de uíste. O que acha? Sir Giles aceitaria qualquer coisa que o afastasse da confusão do salão de baile. Prometeu juntar-se a Lavenham, depois de acomodar as senhoras. Dora — sussurrou Amélia, depois de cumprimentar lady Bracken e Augusta —, eu consegui! Mandei sir James atrás de Cornélia Cummings. Não acha que mereço um prémio por isso? A única coisa que posso lhe oferecer é um elogio. Você está lindíssima, querida, e completamente romana! Não é mesmo? Agora vá e divirta-se, meu bem! Para harmonizar com a decoração do ambiente, Amélia usava um vestido de baile branco, com aplicações de folhas de louro, verdes, de veludo. Uma coroa das mesmas folhas contrastava com os cabelos negros. Uma longa echarpe de gaze verde, no mesmo tom das folhas, drapeada, pendia de um ombro até o chão. Ao lado da irrequieta Augusta, Dora entrou no salão. Lady Lavenham havia conseguido um impressionante efeito. Mas que efeito? Não era romano. No entanto, era fascinante e encantador como a anfitriã. O salão, com suas altas e grossas colunas brancas, estava enfeitado com cortinas de cor púrpura, bordadas com barras gregas, havia enormes ramos de loureiro por toda parte. Espalhavam-se pelo "mbiente vasos clássicos, bustos e estátuas com aparência romana. a Os convidados formavam grupos exóticos. Muitos usavam máscaras originais, com cara de elefante, de pássaro ou de dragão. Outras eram simples, as das mulheres combinando com os vestidos e a maioria dos homens com simples máscaras pretas. Mesmo assim, era difícil reconhecer as pessoas. Dora franziu a testa ao ver um rapaz aproximar-se de Augusta, com andar firme e decidido. Seria o tenente Flagg? Ou o jovem Hugh Smythe-Wilton? Ambos eram admiradores da mocinha. Um tanto rouco, ele pediu licença para dançar com a "jovem lady" e Dora achou que ele disfarçava a voz. Era alto, de cabelos castanho-escuros e suas roupas não eram da última moda. Augusta consentiu, mais do que depressa. Lady Bracken, porém, os olhos fuzilando por trás da máscara dourada bordada com cristais, não gostou. — Quem é o senhor? Minha filha conhece muitos senhores importantes que querem dançar com ela! Sir Giles observou o jovem com indulgência e interveio: — Minha querida, como pode exigir o nome de alguém, se usamos máscaras? O rapaz me parece educado e você está aqui para vigiar. Pode ir, minha filha! Empurrou, Augusta, de leve na direção do rapaz e Dora teve a impressão de que ele o conhecia e até aprovava sua presença. Os olhos azuis de Augusta demonstraram surpresa pela atitude do pai, mas ela tratou de distanciar-se logo, com o parceiro, antes que a mãe impedisse. O senhor me surpreende, sir Giles! — exclamou a lady, com evidente indignação. — Como pode deixar sua filha dançar com qualquer um quando sabe que o capitão Laughton e o sr. Carruthers estão à procura dela? Augusta será muito mais visível dançando — respondeu sir. Giles, calmo. — Maud, o moço que a levou para dançar pode ser herdeiro de um duque… Lady Bracken quase se engasgou e acionou o leque, com furor. Sir Giles! Isso é verdade? — quis saber, ansiosa. Não sei… Mas deixe a menina se divertir, querida. Foi para isso que a trouxemos a Londres. — O senhor sabe que a trouxemos para ela se casar bem — rebateu Maud, enquanto o marido e a prima tentavam disfarçar o riso. Por fim, a mulher altiva sentou-se na cadeira rígida, clássica, que sir Giles lhe oferecia. Amélia Lavenham deve ter pedido estas cadeiras emprestadas a alguém — comentou, ácida. — Sei que suas cadeiras do salão de baile são douradas, muito frágeis. Ela não as usa desde a festa do Ano da Comemoração da Paz. Mas isso não importa. Sente-se, Theodora… E agora, meu querido — continuou, olhando para o marido —, vá embora antes de permitir que sua filha, da próxima vez, dance com um urso. Minha paciência acabou! Sir Giles ergueu a mão da esposa até os lábios. — Meu amor! Quer dizer que não vai dançar comigo? O rosto da esposa mostrou duas covinhas quando ela sorriu, e suas pálpebras bateram, brejeiras. Como poderia? Preciso vigiar Augusta. E, aliás, você nunca dança! Avalio o que tenho perdido! A prima Theodora pode vigiar os jovens, não é? Dora assentiu, pasmada, porque jamais vira os primos dançarem juntos. Desconfiava que sir Giles queria, apenas, desviar a atenção da esposa de sua filha. Enquanto se dedicava à tarefa de vigiar o jovem par, Dora teve a impressão de que eles se conheciam bem, a julgar pela animada conversa que mantinham. Aliás, Augusta conhecia um bom número de jovens e parecia ter muita desenvoltura em conversar com eles. Seus olhos afastaram-se de Augusta e seu parceiro. Tratou de apreciar o colorido e a animação da festa. Recostada na cadeira, com o simples vestido de seda azul, a máscara da mesma cor e os cabelos arranjados em uma cascata de cachos que caía do alto e de trás da cabeça, ela não imaginava como estava encantadora. Preocupava-se em não ser descoberta por sir James. Só esperava pela volta da prima Maud para se enfiar em algum canto tranquilo, de onde pudesse assistir ao baile. Pouco depois, notou que um cavalheiro muito alto aproximava-se. Parou diante dela e inclinou-se. Olhos verdes e risonhos fitavam-na pelas aberturas na máscara negra. Era ele! Definitivamente, era o sr. Carruthers. Evitou cumprimentá-lo, porque Amélia desejava que o anonimato durasse até a meia-noite. Linda dama — era a voz dele —, estou muito feliz em encontrá-la. Nossa anfitriã sugeriu que a senhorita poderia estar aqui. A próxima dançaserá uma valsa. Concede-me esse prazer? Mas… — Dora hesitou. Amélia era incorrigível: insistia em juntar as pessoas, elas quisessem ou não! — Não posso desaparecer antes da volta de meu grupo. Mas gostaria de dançar a valsa. Já nos conhecemos, não é? Num baile de máscaras ninguém se conhece, linda senhorita Mas já dançamos uma valsa… — E ele sentou-se na cadeira ao lado dela, esperando o fim da dança. Augusta e os pais não demoraram. A mocinha estava só. O misterioso parceiro devia ter preferido não se expor de novo ao mau humor de lady Bracken, que ficou radiante ao ver quem estava com Theodora. O cavalheiro levantou-se e se inclinou, cumprimentando mãe e filha. Senhor… Oh, eu ia me esquecendo. Não podemos usar nomes. Estamos felizes em vê-lo. Tenho certeza de que minha filha ainda não se comprometeu para a valsa. Madame de Lieven deu-lhe permissão para dançá-la, na quarta-feira passada. Vá meu amor! Mamãe está olhando, viu? Há um mal-entendido, milady — disse o cavalheiro, sorrindo. — Esperei para cumprimentá-los, a todos, antes de levar esta dama para dançar. Oh! — Lady Bracken lançou um olhar fulminante para a prima. — Sinto muito, mas parece que o senhor não entendeu a posição desta dama em nosso lar. Ela é minha dama de companhia… —E ela silenciou, com ar dramático. Conheço a posição dela em seu lar, mas nesta casa ela é convidada dos Lavenham. Portanto, tem o direito de dançar. Dora mantinha-se calada, constrangida. Mas minha prima, e dama de companhia assalariada, está sob minha proteção. Não seria muito conveniente ela dançar. Não estive presente da outra vez, mas pode ter certeza de que não teria permitido. Afinal, a situação dela… O senhor tem de entender! — E lady Bracken forçou um sorriso. Mamãe, a senhora está sendo ridícula! — falou Augusta, puxando-a pela manga. Senhorita, esses não são modos! — sibilou a mãe. — Vou perguntar à prima Theodora: você não quer dançar, não é? Sei como se preocupa com a dignidade e… Dora, que corava de raiva, sentiu vontade de responder que não ia dançar nua! Mas não podia falar assim diante de homens. Controlou-se e disse: — Não acho nada demais, porém se a senhora está tão preocupada, acho melhor consultar nossa anfitriã. Ela e lady Jersey, que está a seu lado, poderão me aconselhar como agir, se alguém mais me convidar para dançar… — Levantando-se, acrescentou: — Desculpe, por favor. O sr. Carruthers segurou-lhe o braço, enquanto dizia: — Senhora, insisto, apesar de suas objeções. Aliás, também tive de insistir muito, quando dançamos da outra vez, sabia, lady Bracken? Vamos… E, srta. Bracken, dançaria o boulanger comigo, mais tarde? Lady Bracken abriu a boca e tornou a fechá-la. — Com prazer, senhor — concedeu Augusta, com olhar exageradamente recatado. Depois, rindo: — Desobediente! Lady Lavenham não quer que se diga nomes! Vão, eu cuido de mamãe. Segurando-a com firmeza pelo cotovelo, Carruthers levou Dora para o meio dos demais pares. Aos primeiros acordes de uma valsa de Stei-belt, passou o braço pela cintura dela e a mão grande, forte, pousou na região logo acima dos quadris. Ela sabia que deveria dizer-lhe que se comportasse, mas não conseguiu. Gostava daquele toque. Uma vez na vida não ia se preocupar com as conveniências! Dou um pence por seus pensamentos! — disse ele, e ela riu. Eu estava justamente recomendando a mim mesma para não ter qualquer pensamento nos próximos minutos. Ideia encantadora. Vou seguir seu exemplo, concentrando-me em sua companhia. Concorda? Os olhos de Lawrence brilhavam. Dora baixou os dela, feliz porque a máscara ocultava sua confusão. Mas seu coração batia, descontrolado. — Gosto de dançar com o senhor — murmurou, num impulso. Ele teve de baixar a cabeça para ouvi-la. Sorriu, satisfeito, e volteou com ela pelo salão, apertando-a mais do que devia. A música terminou, para contrariedade de ambos. Ele levou a parceira até onde a prima furiosa esperava. Inclinou-se diante das senhoras e afastou-se, pensativo. Um par de olhos escuros, vistosamente pintados, havia observado atento todas aquelas manobras. Uma máscara em forma de ave-do-paraíso escondia o rosto. A mulher aproximou-se rapidamente de Carruthers e segurou-o por um braço. Monsieur — disse uma voz familiar. — Uma palavrinha. Meu Deus! — exclamou ele, espantado. — Diabos! Os Lavenham não podem ter convidado você! Sempre me insulta, mas eu perdoo! Os cabelos negros, o corpo curvilíneo coberto por seda verde-jade, máscara com as aberturas para os olhos bordadas em ouro e as esmeraldas que ele lhe dera no último aniversário. Sem dúvida, era Yvette. Ela perguntou: — Poderíamos ir para um lugar discreto? — Com prazer — respondeu Lawrence, tomando a dianteira. Levou-a até uma saleta, perto do salão. Estava vazia. Fechou a porta e indagou, frio: Pode me dizer o que significa isto? Yvette tirou a máscara, ajeitou os cabelos e encarou o ex-amante. — Ora, tenho amigos. Você nem imagina a quantos lugares eu poderia ir, Laurent… A versão francesa de seu nome, que outrora ele achava charmosa, deixou-o irritado. Teve a ousadia de vir ao baile dos Lavenham! Amanhã um bom número de rapazes se gabará de ter ajudado você. Por quê? Não acredito que ainda esteja interessada em mim. Não só estou interessada,.chéri, como também estou confusa. Vi você com a senhora de azul. É a noiva dele, pensei. Fiz perguntas e descobri que se trata, apenas, de uma dama de companhia assalariada. Os bem informados apontam uma criança de vestido branco, cuja maman parece ter certeza do enlace. Meu Deus, Yvette! Foi isso que lhe disseram? Oui. E preciso perguntar, para satisfazer minha curiosidade: qual, entre as duas, derrotou Yvette? Carruthers percebeu que não era só curiosidade. Observou a mulher, contrariado e com pena. O mundo não era um lugar agradável para criaturas como Yvette. Sabia que ela não se aproximaria de uma mulher de boa reputação, mas poderia prejudicá-la com insinuações, se soubesse mais do que devia. — Minha querida, não há ninguém igual a você… — ele disse, considerando ser esta a mais pura verdade. Inclinou-se e saiu da saleta. Yvette recolocou a máscara, decidida. Conhecia bem o querido Laurent. Ele achava que nada deixara transparecer, o tolo! Os homens não passavam de crianças! Entretanto, no salão, Dora enfrentava outro tipo de problema. Era meia-noite e os convidados, entre risos e brincadeiras, haviam tirado as máscaras. Guardara a dela na bolsa. Imaginava que Augusta fazia o mesmo, em algum ponto do salão. Lady Bracken, sentada a seu lado, removeu a máscara dourada. Elas evitavam falar uma com a outra. O capitão Laughton, que usara uma cabeça de dragão como máscara, encontrava-se junto das duas. Acabava de dançar com Dora. Minhas senhoras, agora que voltei a ver seus lindos rostos, preciso deixá-las. Minha irmã conta com minha ajuda para levarmos o general para a ceia. Não posso decepcioná-la, embora minha vontade seja ficar aqui. — E os extraordinários olhos azuis demoraram-se no rosto de Theodora. Minha filha ficará desapontada, capitão, mas vamos, desculpá-Io. Dê lembranças a lady Vining e ao querido general — respondeu lady Bracken, com pose altiva. Não estava satisfeita com o comportamento dele. Nem sequer tinha tirado Augusta para dançar! E, agora, ia pajear aquele velho tio asqueroso, sem esperar pela volta da mocinha. Era verdade que a doce criança dançara o tempo todo e o capitão não tivera chance de convidá-la. Era isso! Nem aquele rapaz nem Carruthers podiam estar interessados na prima Dora! De repente, duas moças se aproximaram, aos pulinhos e gritinhos. — Senhorita Thornfield! — falaram, em coro. — Sabíamos que a senhora não era a moça vestida de tafetá amarelo! Dora esforçou-se para sorrir. Caroline e Alice, as filhas de sir Perry, não paravam de rir. — Vou procurar papai — gritou Alice, alta e desengonçada, desaparecendo aos pulinhos. Prima Maud sorriu gentilmente para Dora pela primeira vez, depois da valsa com Carruthers. Falou, toda suave: — Isso é emocionante! As queridas meninasescolheram você para o pai. Um homem tão respeitável! Caroline, pretendo favorecer esse romance. Dora gemeu e a mocinha abriu um largo sorriso. — Papai só fala na srta. Thornfield! Alice não demorou a voltar, arrastando o pai. Senhorita Thornfield — disse ele, cordial —, e querida lady Bracken! Estas festas mascaradas são muito tristes. Perdi duas horas com outra jovem que julgava ser a srta. Thornfield. Agora eu a achei e espero que nos acompanhe na ceia. Sim, por favor! — guincharam as garotas. Preciso ficar com minhas primas — respondeu Dora, já sabendo que não conseguiria se livrar. Não, prima Theodora! Vá com o cavalheiro e suas adoráveis filhas. Não precisamos de você. Os convidados começavam a se movimentar na direção da sala de jantar e sir Perry, corado e triunfante, ofereceu o braço a Dora, falando nos filhos caçulas. — Sabe, são crianças muito vivazes. As duas irmãzinhas ainda não podem participar das brincadeiras… Minha esposa faleceu ao dar à luz as gémeas… E raramente eles vêem os outro quatro garotos, que estão num colégio interno. Depois, tenho uma filha casada, Cynthia, que mora muito longe, no Shropshire. É muito triste, senhorita, meus filhos não terem os cuidados que só a mãe pode dar… Nada substitui os cuidados de uma mãe, não acha? Dora fez um cálculo rápido e chegou ao alarmante total de onze filhos! Lady Perry perdera a vida no afã de aumentar a família para aquele homem aborrecido. Agora, ele queria mais um sacrifício: a oferta da vida de uma solteirona, que lhe deveria ser grata por isso! Não. Cerrou os dentes, determinada. Pena o capitão Laughton ter ido embora! Então, viu Lawrence Carruthers ao lado da porta por onde passavam os convidados que se dirigiam para a ceia. Conversava com um moço alto, de cabelos escuros e rosto sério. Era um dos parceiros de Augusta, o jovem que desagradara prima Maud, mas de quem sir Giles parecia gostar. O rapaz ainda tinha um ar misterioso, mesmo sem a máscara, e Dora gostaria de saber quem era. Apesar das roupas sem estilo, devia ser alguém importante. Capitulo VIII Às cinco da tarde do dia seguinte, Augusta pediu que Dora a acompanhasse a um passeio pelo parque. Mamãe ainda está descansando — explicou, animada —, e me deu licença. Diga que vai, prima! Quero tomar ar… Tem certeza? — perguntou Theodora, estranhando. A indiferença da mocinha por exercícios e ar livre era igual à da mãe. — Naturalmente! — garantiu a outra, séria. — Seus sermões me convenceram. Quero viver de maneira saudável e o dia está lindo! Augusta manteve o passo rápido até chegarem ao Hyde Park. Isso e a insistência em usar seu mais bonito e novo chapéu despertaram as suspeitas de Dora. — Querida, não está me usando para se encontrar com algum moço? — perguntou, quando entravam no parque. Augusta demonstrou surpresa, negou essa intenção e disse: Mas acho que vamos encontrar cavalheiros… Afinal, todo mundo passeia no parque, Dora! Está certo. Todo mundo passeia no parque. Só espero que entre esses cavalheiros não esteja o sir Perry! As primas desataram a rir, porque Dora já havia contado à mocinha a aversão que sentia por aquele homem. Ao contrário da mãe, a garota entendera. Passeavam há cerca de cinco minutos quando um cavalheiro, montando um imponente cavalo branco, aproximou-se e parou perto delas. Várias pessoas olharam reprovadoramente o protagonista de tanta habilidade equestre. Capitão Laughton! — exclamaram Dora e Augusta. Senhoritas, estou encantado — cumprimentou o capitão e apeou para acompanhá-las. — Srta. Thornfield, este passeio significa que teremos o prazer de encontrá-la com frequência? Os infelizes londrinos precisam de um rosto bonito. Então, não é o meu! — respondeu ela, em tom de brincadeira. — E o senhor não parece um infeliz londrino… — Mas acha que sou um agradável companheiro de passeio? Continuaram a caminhar, brincando e rindo. As duas estavam de braços dados e, de repente, Dora notou que a priminha estremeceu. Querida, o que foi? Está se sentindo bem? perguntou, assustando-se com o rostinho pálido de Augusta. Oh! — exclamou a mocinha, já ficando corada. — Aí está o sr. Carruthers! Dora sentiu um aperto no coração ao ver Augusta tão agitada com a presença de Lawrence. Quando olhou para o local indicado pela priminha, teve de se esforçar para não estremecer, também. Mas não pôde conter um suspiro, ao ver o homem, com a estatura imponente, os cabelos pretos brilhando ao suave sol de primavera, o firme perfil do rosto moreno. Percebeu que Augusta também suspirava e irritou-se. Com vago remorso, olhou Laughton de soslaio. Quase tinha esquecido dele. Embora fosse tão bonito quanto Carruthers, com seus cabelos loiros, olhos azuis e corpo esguio, ela não tivera qualquer reação ao vê-lo. O que havia de errado com ela? Todos afirmavam que o capitão era um alvo matrimonial muito mais acessível para uma solteira sem dote do que Lawrence Carruthers. Nesse momento, o cavalheiro os viu e aproximou-se. — Que ótimo encontrá-la, srta. Bracken! — exclamou, amável. — Acho que meu jovem companheiro é seu velho amigo… Só então Dora percebeu que um rapaz encontrava-se quase ao lado de Carruthers. Era o mesmo que dançara com Augusta na noite anterior. — Srta. Thornfield, capitão Laughton… — disse Lawrence, e o rapaz deu um passo à frente. — Apresento-lhes meu herdeiro, o sr. Farley. Somos primos em segundo grau. Ele, sua irmã Selina e a mãe estão visitando Londres. Dora ficou estupefata. O sr. Farley em Londres! Não era de admirar que Augusta estremecesse, engasgasse e olhasse para ela com ar assustado. Ela insistira em ir ao parque porque sabia que encontraria o rapaz! Ainda estava apaixonada por ele… — Estamos hospedados na casa do primo Lawrence — disse Farley. Ele e Augusta sorriam timidamente um para o outro. — Como vai, Augusta? Oh… — hesitou, confuso. — Como está, srta. Thornfield, capitão Laughton… Dora não entendia por que Carruthers convidara o rapaz para visitá-lo, em Londres. Pelo que sabia, ele não ligava muito para os parentes do Surrey. O que significava aquele interesse repentino? — Esteve no baile de lady Lavenham, na noite passada, sr. Farley— constatou Dora, sem demonstrar sua surpresa. O rapaz, ainda um tanto confuso, respondeu: — Sim, estive… E não resisti à tentação de dançar uma vez com a srta. Bracken, para ver se ela reconheceria o velho amigo vindo do interior. E ela reconheceu? Augusta interferiu naquele momento, já segura de si. — Sim. Reconheci o Edgar porque para mim ele é como um irmão. Conhecemo-nos há anos, Dora. A expressão de Farley alterou-se. Ao ver o jeito com que Augusta olhava para Carruthers, Theodora achou que a priminha escolhera a maneira mais cruel de indicar a seu admirador mais velho que tinha o coração livre. Não parecia ligar a mínima importância ao jovem que dissera ser seu único amor. Os jovens eram cruéis, pensou, e recuperavam-se rapidamente das tristezas. Tratou de conversar com Edgar e o mesmo fez o capitão Laughton, que percebera a existência de algo triste entre ele e a graciosa srta. Bracken. Ambos fizeram muitas perguntas ao jovem, enquanto Augusta e Carruthers acompanhavam o trio, em silêncio. Esta sua visita a Londres poderá ser muito útil — observou o capitão, animado. — O senhor disse que acaba de se ordenar pastor. Vai encontrar aqui muitas pessoas, que vieram para a temporada, aptas a garantir-lhe uma renda. Infelizmente, não tenho condições, mas seu primo poderá apresentá-lo a proprietários de terras mais importantes do que eu. Ah, sim — murmurou Edgar, nervoso. Vou cuidar para que a visita de meu primo à cidade seja proveitosa — garantiu Carruthers, com um sorriso. Perfeito! — sentenciou o capitão. Dora aprovou com um leve sorriso. Ficou irritada porque teve a impressão de que enrubescia. — Ao que parece, seu futuro está assegurado, sr. Farley — comentou Laughton. — É a sua primeira visita a Londres? O jovem reanimou-se, respondeu que sim e passou a falar sobre o baile da noite anterior. O primeiro de sua vida.Depois descreveu com entusiasmo um passeio feito alguns dias antes, quando vira as estátuas de mármore da coleção Elgin. — Acho que obriguei minha irmã a um passeio cansativo — disse, com um sorriso tímido. — Há anos eu queria ver essas estátuas. Era lamentável, porque Edgar continuava a lançar olhares carinhosos à mocinha, embora ela o tivesse classificado como irmão e nem sequer olhasse para seu lado. — Por falar em passeios — interferiu Carruthers —, eu gostaria de convidá-los para uma visita a minha propriedade campestre, em Buckinghamshire. Fica a cerca de uma hora daqui. Vou levar meus primos para passarem o dia lá. A sra. Farley visitava muito essa propriedade quando meu pai era vivo, mas seus filhos não a conhecem. Acha que sua mãe gostaria de ir, srta. Bracken? Marcamos para quinta-feira, mas se for melhor, poderemos alterar a data… — Ah! O senhor vai convidar mamãe! — Augusta falou com tal decepção que os demais mal conseguiram conter o riso. — Acredito que ela gostaria muito de ir — admitiu, a contragosto. — E não temos compromisso para quinta-feira. Laughton ouvia, com ar interessado. Lawrence viu-se obrigado a convidá-lo, também. Naturalmente, se o senhor não achar tedioso um simples passeio no campo… Como eu poderia achar tedioso um passeio que inclui a srta. Thornfield? — indagou o capitão, com ar zombeteiro. Mas eu não irei — esclareceu Dora, convicta. — Tenho certeza de que lady Bracken não precisará de mim. Mas todos os demais precisarão — declarou Carruthers, encarando-a diretamente. — Não vamos discutir isso agora. Mas fique sabendo que sua atitude humilde não poderá resistir aos esforços conjuntos da srta. Bracken, do capitão Laughton e dos meus. Senhor! — exclamou Dora, corando. O cavalheiro respondeu levando a mão dela aos lábios e beijando-a, diante do olhar romanticamente enciumado do capitão Laughton. Ela achou a atitude embaraçosa, mas aquele foi o instante mais feliz do dia. Ninguém notou o elegante tílburi que passava naquele momento. E ninguém reparou na bonita mulher de cabelos pretos, vestida de veludo rosa, que lançou um olhar profundamente maldoso ao grupinho. As duas subiam a escada, em casa, quando afinal Dora conseguiu fazer a pergunta que lhe queimava os lábios: Augusta, está contente por ver o sr. Farley em Londres? Sei que tinha muita saudade dele… Saudade dele? — repetiu a mocinha, com expressão furtiva. — É… Eu estava com saudade de tudo que deixei no Surrey. Besteira minha, não acha? E não falou mais em Edgar Farley. Dora ficou triste. Acontecera o que era de se esperar. Augusta se apaixonara por outra pessoa. E não havia ninguém mais atraente e romântico do que Lawrence Carruthers. As primas foram para os aposentos de lady Bracken, que descansara o dia inteiro, depois dos esforços do baile. Quando soube do convite de Carruthers, ela ficou toda animada. — Ashvale é uma propriedade lindíssima — proclamou, com ar satisfeito. — Tenho certeza de que ele quer mostrar-lhe seu futuro lar, filhinha! E você está certa, Theodora: sua presença é desnecessária. Fique em casa e cuide de sua correspondência… Mas, mamãe! — protestou Augusta, aflita. — O sr. Carruthers insistiu muito para Dora aceitar o convite. É mesmo? — prima Maud ficou meio desconcertada, mas logo se refez. — Precisava insistir, uma vez que ela estava presente! Vo cê não devia forçar esses convites, prima: não fica bem! Ele vai entender se você tiver uma enxaqueca. Não se preocupe. Eu cuido disso. Dora, a ponto de responder rudemente à prima, usou o estratagema que inventara para tais ocasiões. Pediu licença para ir ao quarto, tirar o chapéu. Aquele chapéu é vistoso demais para uma moça na posição dela — observava lady Bracken enquanto ela saía. — Não imagino onde ela arranjou tantas roupas! Acho que foi caridade das irmãs… Mamãe! — protestou Augusta, magoada e com vergonha. Ah! Você sabe que a mamãe fica muito maldosa quando está cansada, meu amor… Conte-me mais sobre o passeio no campo. Sabe se ele vai querer que eu seja sua anfitriã? Pobre homem, tão só! Devia se casar… Eu acho, mamãe, que ele convidou uma parenta, uma senhora de idade. Uma senhora de idade? Hum… Será que eu a conheço? — murmurou lady Bracken, recostando-se no sofá. — Não pode ser a tia, a velha Violet Osborne. Ela está em Bath e nunca sai de lá. Augusta, me dê uma daquelas almofadas, para as minhas costas. Sua prima nunca está quando preciso dela! A mocinha nada disse, enquanto se dedicava a dar conforto à mãe, com muito mais animação do que de costume. Entre a almofada, um licorzinho e chamar a camareira, pois era quase hora do jantar, a questão da anfitriã foi esquecida. Capitulo IX Logo que pôde, Dora perguntou a sir Giles se ele sabia que o sr. Farley estivera no baile dos Lavenham. Caminhavam pela rua Alber-male, ela para ir buscar umas encomendas de lady Bracken, ele para ir ao clube. O cavalheiro sorriu, divertido, encolhendo os ombros. Sabia. Tinha de reconhecê-lo. Conheço-o há anos. Então, sabia com quem Augusta dançava… Tive a impressão de que o senhor aprovava. Não entendo. Augusta me disse que o senhor e a prima não querem o namoro. Acho que o Edgar seria ótimo marido para a tolinha da minha filha. Ela fica mais ajuizada quando eles estão juntos. O rapaz ordenou-se pastor porque é muito sério. Maud é ambiciosa, quer algo mais do que um ministro de comunidade rural para genro. Quando eles falaram em casamento, fui contra, não só porque Augusta era criança demais, mas também porque ele não tinha qualquer renda. Não sabia que era herdeiro do Carruthers. Dora assentiu e ele continuou: Quem sabe como estão as coisas, agora? A temporada na capital pode ter influenciado Augusta. Talvez Farley ainda a queira, mas será que ela ainda o quer? Pobre sr. Farley! — suspirou Dora, triste. — Ontem ela disse, na presença dele, que o considerava como irmão… Vamos dar tempo ao tempo — concluiu sir Giles, despreocupado. — Está aí uma coisa que deixaria Maudie furiosa. Depois de trazer a menina para a cidade, gastando uma fortuna em roupas, seria divertido se ela se casasse com o antigo namorado do Surrey! Theodora não riu, mas desejou ardentemente que tal coisa se realizasse. Despediram-se e ela se dirigiu para o centro, a fim de comprar uma fita que lady Bracken precisava para um vestido. Abriu a bolsa para verificar se havia trazido a amostra do tecido. Então, esbarrou em uma mulher. Desculpe, senhora — disse, e quis se esquivar. Mademoiselle, posso pedir um minuto da sua atenção? — perguntou uma voz bonita, com gracioso sotaque francês. Dora observou-a. Era uma bela mulher, de cabelos pretos, com vistosa capa de veludo vermelho. A elegante capa de lã bege que usava parecia um trapo perto da outra. Eu não a conheço — disse, com frieza. Ainda não. Mas temos algo em comum. Venha comigo. Quero falar-lhe em particular. Essa é a minha caleça. Dora arregalou os olhos. A caleça tinha rodas douradas e uma linda parelha de cavalos pretos. Ostentava um brasão de cocar, igual ao do chapéu do cocheiro, metido em vistosa libré vermelha e púrpura. Céus! O que era aquilo? Uma dona de bordel perseguindo uma solteirona de meia-idade? Não pretendo falar com a senhora. Não nos conhecemos. Mas temos um amigo comum, mademoiselle, e precisamos falar a respeito. O sr. Carruthers… A senhora é amiga dele? Por que quer falar comigo? Yvette viu que atraíam a atenção dos passantes. Era cedo, mas poderia surgir por ali alguém que a conhecia. Tinham de ir embora. Então, começou a chorar. — Mademoiselle, vamos até a minha casa… É tão perto! Alguém pode nos ver. Se ele souber… ficará muito zangado! Dora afligiu-se com as lágrimas da outra. Ela estava sofrendo! — Eu vou! — decidiu, de repente. Enquanto a caleça começava a se movimentar, indagou: A senhora falou no sr. Carruthers, não? Por que ele ficaria zangado? É amigo da senhora? Tenha paciência, mademoiselle — pediu a mulher, ainda entre soluços. Pararam na rua Charles, diante de uma porta preta, igual a tantas outras. Yvettetocou a campainha, explicando: — Sempre esqueço a chave. — Quando a porta abriu, convidou: — Entre, ma chére — e, voltando-se para o mordomo empertigado, ordenou: — Farnham, traga chá e conhaque. Dora entrou na sala sem saber o que pensar. Aquilo era um sequestro? Pediriam resgate? Que ideia mais maluca! A sala era comum, excessivamente enfeitada: muito cetim, dourados e veludos. Acima da lareira havia um grande quadro de uma mulher completamente despida. Um segundo olhar convenceu-a: era o retrato da jovem que estava a seu lado. Teve quase certeza da identidade da desconhecida. Perguntou: Por favor, por acaso o nome da senhora é Yvette? Já ouviu falar em mim? — rebateu a outra, sorrindo. Indiretamente. Dora observava a mulher. Então, assim era uma cortesã! Theodora Thornfield estava cara a cara com uma mulher de vida fácil! Não pensei que ele lhe falaria de mim — disse a francesa, pensativa. — Laurent não costuma entrar em detalhes. Laurent? — Dora ficou de queixo caído. Carruthers — explicou Yvette. — Conversamos sobre a senhora… Que tal, gosta da minha casa? A senhora e o sr. Carruthers conversaram a meu respeito? Sim, muitas vezes. Ah, você não sabe, é inexperiente! Não sei o quê? Que os homens costumam discutir com as amantes quem irá ser a sua sucessora. Meu deus! A senhora não está falando a sério! — disse Dora, com dificuldade, e levantou-se, trémula, para ir embora. Então, a porta se abriu eela teve o caminho barrado pelo mordomo, carregando uma enorme bandeja. Yvette começou a dar ordens e insistiu para que ele guardasse a capa de Dora, que se recusou a tirá-la. Aí a francesa jogou-se no divã e voltou a chorar. Dora ficou impressionada com o desempenho dramático de Yvette. — Por favor, pare de chorar! O que aconteceu? Yvette encarou-a com o rosto manchado pelas lágrimas. A senhora vai ser a próxima a morar nesta casa… a próxima amante dele. Eu adoro aquele homem! Jure que vai cuidar bem dele, que nunca o abandonará! Ele, às vezes, é muito cruel, mas é um homem magnífico! Então, a senhora o ama? — perguntou Dora, confusa. Mademoiselle, estou muito infeliz! Amo-o desesperadamente soluçou, observando a reação de Dora através do lenço de renda. Fiquei arrasada quando ele me disse quem seria sua nova amante. Senti ódio da senhora, mas compreendi que não adiantava. Por favor, eu quero ter certeza de que não vai tirar tudo que ele puder lhe dar e depois abandoná-lo! Seria terrível para ele! — Acho que foi mal informada, senhora. Não vou ser amante do sr. Carruthers, seja o que for que ele j;enha lhe dito. Sentia-se zonza, mas o orgulho a ajudava a manter a voz controlada e clara. Isso explicava o comportamento de Lawrence para com uma pobre dama de companhia! Até então, ela imaginara que se tratava de um flerte inocente e chegara até a ter uma estúpida esperança… Olhou ao redor, tentando imaginar-se como dona daquela casa. Seria possível? Devia ser. Como aquela mulher saberia da sua existência e que ela conhecia Carruthers, a não ser que ele lhe tivesse contado? Aquele homem era um monstro! Abandonar a pobre criatura por um capricho! Na certa ele resolvera que depois de uma amante de cabelos negros seria bom ter outra de cabelos loiros. Divertia-se, fazendo planos para seduzir a solteirona puritana. Não se preocupe, srta. Yvette — disse então, firme. — Talvez eu o convença a voltar… Mas, reflita: tenho família, posição. Não vou ser a… a… Pode falar. Não me envergonho de ser amante de alguém, uma cortesã. Soube que ele vai casar com uma mocinha rica. Percebeu, satisfeita, que acertara o alvo. Sabia que a menininha era prima daquela mulher. Prosseguiu: Nunca mencione meu nome para ele! Se souber que falei com a senhora, pode me bater até a morte! Ele maltrata a senhora? — horrorizou-se Dora. Oui. Ele é muito impulsivo… Olhe… — desceu o ombro do vestido para mostrar uma grande mancha roxa no braço. Fique sossegada, senhora. Não pretendo falar, nunca mais, com o sr. Carruthers! "Sua mãe ainda é viva? — perguntou Yvette, de repente. Não. Morreu há muitos anos — respondeu Dora, intrigada. Então, jure sobre o túmulo de sua mamem que não dirá a Laurent que falei com a senhora — exigiu a mulher, dramática. Dora ficou chocada com o medo que transparecia nos olhos e na voz da francesa. — Está bem. Juro sobre o que quiser. Mas preciso ir embora. Adeus e… boa sorte. Saiu correndo da sala, passou pelo mordomo impassível e chegou à rua. O que mais a surpreendia era que aquela mulher não lhe causara repulsa, mas apenas compaixão. Enquanto isso, Yvette admirava a mancha roxa no braço. Obra-prima de maquilagem! Ainda bem que fizera a solteirona jurar que nada diria a Laurent, Era o tipo de mulher que não faltava a uma promessa. O problema Thornfield estava resolvido. Não teria de mexer com a mocinha. Observara Carruthers com ela e tivera certeza de que nada havia entre os dois. Era difícil prever o resultado da audaciosa manobra. Depois de ver seus planos "respeitáveis" desfeitos, Laurent voltaria para ela. Havia esperança de que isso acontecesse. Mas era uma esperança ténue. E se não desse certo? O que faria? Estava começando a envelhecer… Dessa vez Yvette chorou de verdade. Dora percorreu as lojas rapidamente, o que serviu para acalmá-la e quase fazê-la voltar ao normal. Escolheu a fita de lady Bracken, depois tomou o caminho de casa, pensando na baixeza de Lawrence Carruthers. Que homem odioso! Batia na pobre criatura! E planejava fazer dela, Dora, sua amante! Estava quase chegando à mansão dos Bracken quando o demónio que lhe dominava os pensamentos saiu da casa e foi a seu encontro. E parecia tão feliz, tão despreocupado. Homens! Ele reconheceu-a de longe e sorriu, apressando o passo. Srta. Thornfield, vim fazer o convite formal, a lady Bracken, para o passeio de quinta-feira. Fiquei decepcionado porque a senhorita não estava. Ele parecia sincero, a voz alegre, olhos risonhos. E parecia feliz em vê-la. Uma hora antes ela também ficaria feliz com aquele encontro. Fez a única coisa que podia fazer. Encarou-o por instantes, virou o rosto e passou por ele, sem uma palavra. Lawrence Carruthers ficou abismado. Permaneceu imóvel. Quando lhe ocorreu que devia haver algum problema, ela já entrara. Havia reparado nos dentes cerrados e no brilho de aço nos olhos cinzentos, em geral doces, suaves. A experiência lhe dizia que era melhor deixá-la acalmar-se, antes de fazer perguntas. Capitulo X Naquela mesma tarde, quando chegou o enorme ramalhete de rosas brancas, num lindo vaso de porcelana Wedgwood, a criadinha levou-o até o quarto de Dora, com esforço mas sorrindo. Ela teve ímpetos de jogar tudo pela janela. Coritrolou-se e aceitou as flores, agradecendo a Betsy, com gentileza. Apanhou o cartão preso no vaso. Era de Carruthers. No verso, duas linhas: "Qualquer que seja o erro que cometi, por favor, me perdoe. Seu devotado admirador e sempre amigo". — Odeio esse homem falso! — exclamou, e assustou-se ao ver que falara em voz alta. Uma hora mais tarde, quando a casa inteira já sabia do ramalhete de rosas, sua raiva aumentou. As flores despertaram a curiosidade de prima Maud, que a mandou chamar. Nos aposentos da lady, ela teve de admitir que recebera grande quantidade de rosas. Lady Bracken falou, observando-a com atenção: — Os criados não se enganaram, ao ler o nome no envelope? Acho que um ramalhete desse tipo deveria chegar para a minha filha. Ela tem tantos admiradores! Ah, sim… Querida, deixe-me dar-lhe parabéns. Sir Perry é conhecido por não ser muito generoso… A declaração deve estar próxima, para ele mandar um presente assim! Dora assentiu, pois não imaginava o que poderia acontecer se a prima Maud descobrisse que as flores eram de Lawrence. Dora… — foi dizendo Augusta, ao mesmo tempo que entrava na saleta — fui a seu quarto para ver as rosas. Que maravilha! Mamãe, deve ter no mínimo quatro dúzias e o vaso é Wedgwood! Sir James é muito gentil! — admirou-se a lady. — Mas acho que enviou um presente um tanto egoísta.Afinal, o vaso Wedgwood irá para a casa dele, mesmo… Dora fez um esforço imenso, mas continuou calada. Augusta ficou decepcionada ao ouvir mencionar sir Perry e foi para o quarto, arrumar-se para o jantar. — Prima, você trouxe a fita certa, hoje. Será que pode colocá-la no meu vestido? — disse Maud, como se pedisse um favor. — Faça um laço bonito. Você tem mais tempo para isso do que a minha pobre camareira… E acho que gostará de ficar em seu quarto, com as rosas de sir James, enquanto trabalha. — Sem dúvida, madame — retorquiu Dora, ríspida. Pegou o vestido, a fita e saiu. Lady Bracken ficou cismando sobre os modos grosseiros da prima. Durante alguns dias a vida de Theodora transcorreu tranquila. Lady Bracken achou que, no interesse de Augusta, era necessário manter a prima o mais possível em casa. Então, passou a acompanhar a filha a todas as festas. Explicou a Dora que sir James ficaria mais ardoroso se não a visse por uns tempos. — Fiz planos para seu próximo encontro com ele. O que pode ser mais romântico do que o campo na primavera? Dora imaginou que ela se referia ao passeio na propriedade de Carruthers. Sabia que ele não convidaria sir Perry. Mas, de qualquer maneira, estava decidida a não ir. Os dias de solidão serviram para que refletisse sobre a falsidade de Lawrence e, por sorte, não foi obrigada a encontrá-lo. Fora difícil ignorá-lo na rua e não agradecer as flores, mas sabia que seria pior sentar-se à mesa do jantar ou jogar baralho com ele. Tentara evitar o passeio no campo, mas não conseguira. Na noite anterior, depois de ler e costurar, pensou no dia seguinte. Como deveria agir se ele a convidasse para ser sua amante? Um passeio no campo poderia ser o ideal para ficar a sós com ela e oferecer-lhe a carte blanche. Ele podia até estar pensando que a proposta a agradaria! Ainda se encontrava acordada, pensando, depois da meia-noite; Acendeu umas velas e pegou um livro. Alguém bateu de leve à porta. Mandou entrar e Augusta surgiu. — Vi a luz — sussurrou, depois de fechar a porta. — Oh, Dora, acho que mamãe conseguiu! Dora ergueu as sobrancelhas. Acenou para a poltrona ao lado da sua, mas a mocinha preferiu sentar na cama. Sabe quem estava no Almack's? O sr. Carruthers. Não diga. Ele perguntou por você. Disse que fará qualquer coisa para que não continue zangada com ele. Eu disse que você nunca se zanga e que ele devia estar enganado. O que mais ele falou? — perguntou Dora, tentando parecer indiferente. Nada… Mas ainda não lhe contei a parte ruim. Ele conversava conosco quando apareceu sir James, com as horrendas filhas. Alice parece, realmente, uma avestruz! Mamãe falou no passeio a Ashvale, amanhã, e o sr. Carruthers teve de convidar a família Perry! — Sir James e as filhas? O passeio não ia ser apenas desagradável: ia ser um inferno! Sinto por você… — disse Augusta, com meiguice. — Tenho certeza de que mamãe planejou isso. Que malvadeza! Agora entendo por que ela quer que eu vá, de qualquer jeito! Obrigada por ter me avisado. Augusta disse à prima que estava ansiosa por conhecer Bucking-hamshire. E, com ar de conspiradora, comentou que talvez arranjassem um jeito de distrair sir James. Então, foi dormir. Dora imaginou por que a priminha queria tanto conhecer aquela região. Será que pensava em ir morar lá, um dia? No dia seguinte, Dora teve vontade de dizer à prima Maud que não se sentia bem e ia ficar em casa. Mas desistiu. Não podia ser covarde. Teria de enfrentar Carruthers mais cedo ou mais tarde. Era melhor que fosse já. Depois, começou a pensar no que vestir. Escolheu a capa mais bonita e o chapéu mais novo. Um rápido olhar ao espelho mostrou-lhe que estava pronta para tudo. Irritada por estar tão nervosa, desceu a escada disposta a lutar contra todos os dragões que encontrasse pela frente. Capitulo XI Três horas mais tarde imaginava se haveria pelo menos uma coisa agradável no dia já mais do que estragado. Para a viagem até Buc-kinghamshire, fora empurrada para a carruagem da família Perry. Ainda assim, poderia ter apreciado o passeio. Mas o percurso se transformou num verdadeiro purgatório. Caroline e Alice Perry não paravam de rir e dizer tolices. Sir James, sentado ao lado dela, sorria maliciosamente. Quando a carruagem parou, Dora desceu e, sem pensar, abriu um sorriso radioso para a pessoa que a ajudava a descer. Era a salvação da narrativa das mais recentes vinte histórias dos pequeninos órfãos! Seus olhos ofuscaram-se à luz do sol, depois da penumbra da carruagem. — Que bom! Estou encantado por vê-la aqui, srta. Thornfield! Dora teve um sobressalto: sorrira para "ele"! Assumiu sua mais fria expressão, fez um aceno com a cabeça e deu-lhe as costas. Carruthers ficou perplexo, depois se recompôs e foi cumprimentar os demais convidados. A grande mansão de Ashvale ostentava uma fachada clássica e era rodeada por um parque com extensão de muitos quilómetros. Entre outras árvores, havia enormes e velhos carvalhos, e via-se veados pastando a distância. Dora queria apreciar a paisagem, mas era cons-tantemente solicitada: um garotinho Perry estava banguela, outro era muito travesso… As convidadas haviam chegado de carruagem e os homens, na maioria, tinham vindo à cavalo. O grupo Perry chegara por último. Os que tinham vindo antes agrupavam-se ao pé da escadaria que dava acesso à mansão, admirando o pequeno templo em estilo grego, que se via a pouca distância, entre o verde do parque. Lady Bracken conversava com o capitão Laughton e Augusta encontrava-se junto de duas mulheres que Dora não conhecia. Deviam ser a mãe e a irmã de Edgar Farley. As garotas Perry, sempre rindo muito, precipitaram-se sobre Augusta, entre cochichos excitados. Sir James, que saíra ofegando da carruagem, pegou o braço de Dora e disse: — Ah, querida srta. Thornfield, desejo muito mostrar-lhe a minha propriedade, um dia. Ela fez um aceno de cabeça, desvencilhou-se e aproximou-se do sr. Farley, que parecia estar confuso. Ele animou-se ao ver o rosto sorridente de Dora. Estou muito feliz em ver a senhorita! Não posso falar com Augusta, que está ocupada com aquelas moças… — Calou-se e parou de sorrir ao ver o pai delas se aproximando. As irmãs Perry são muito alegres — explicou Dora, amável. —Tenho certeza de que as três senhoritas gostarão muito de ter a sua companhia, sr. Farley. Bem… eu… — Edgar parecia estar relutante em se reunir às mocinhas. — Posso apresentá-la a minha mãe e minha irmã, senhorita? E sir James? De novo, sir Perry apoderou-se do braço de Theodora que, para se defender, segurou num cotovelo do sr. Farley. Passaram pela escadaria e aproximaram-se da sra. Farley e de sua filha, Selina. A srta. Selina Farley parecia-se muito com o irmão. Dora calculou que ela teria uns trinta e cinco anos. Usava roupas discretas. A mãe, uma senhora robusta, na casa dos sessenta, usava touca de viúva e roupas simples. Ambas tinham expressões francas e agradáveis, que Dora apreciou. — Sir James — disse Selina Farley, depois de um cumprimento amistoso —, minha mãe e eu notamos as duas encantadoras mocinhas, amigas de Augusta Bracken. São suas filhas? O baronete ficou sensibilizado pelo elogio e pôs-se a relatar o sucesso que as filhas estavam tendo na temporada. Dora já ouvira aquela história e sentiu pena dos Farley por serem obrigados a ouvi-la. Felizmente, o anfitrião chamou a todos e apresentou os que não se conheciam. O grupo inteiro dirigiu-se ao hall de entrada, no qual havia uma imponente galeria de madeira entalhada. No forro, uma das maravilhas da casa: figuras mitológicas pintadas ao redor de um motivo central, em uma abóbada transparente. Que lindo! — exclamou Dora, encantada. Estou feliz com sua aprovação — disse Lawrence, que se encontrava bem atrás dela. Ignorou o estremecimento dela e continou: — Minha casa é uma mistura harmoniosa de estilos, desde o elisabetano, como este hall, até o forro italiano. Por favor, senhoras, posso apresentá-las à governanta? Theodora e as outras convidadas foram entregues aos cuidadosda sra. Taverner, uma mulher de aspecto maternal, que as levou aos aposentos preparados para que descansassem e se refrescassem. Dora, que foi imediatamente posta a costurar um rasgo invisível na barra da capa da prima, viu que Maud fazia esforços enormes para ocultar a irritação diante da família Farley. Mas como eram vizinhos no Surrey, aproveitou para informar-se dos acontecimentos durante sua ausência. Era evidente que considerava os parentes pobres do anfitrião como intrusos numa festa que imaginava ser de Augusta. Quando soube que eles estavam hospedados na casa de Carruthers, em Londres, perguntou à sra. Farley: — Não acha que Carruthers foi muito atencioso organizando este passeio? Minha Augusta está encantada com a propriedade. Quem sabe virá morar aqui… A sra. Farley ficou atónita ao ouvir aquilo e Dora concluiu que era surpresa à ideia de Lawrence casar com Augusta. O anfitrião mandara servir um lanche numa sala dos fundos, com enormes janelas em arcos, móveis pesados e antigos. As janelas e os móveis foram ideia de minha romântica mãe — explicou, quando as senhoras elogiaram o efeito. A querida lady Anne — suspirou a sra. Farley, e contou episódios da vida da admirável senhora. Lady Bracken não aguentava ficar de lado, enquanto uma outra pessoa, principalmente se desprovida de meios, atraía a atenção. O fato dessa mesma pessoa ser a anfitriã de Carruthers a irritava demais. Controlava-se apenas porque aquela mulher era parente do homem que já considerava seu genro. Estou com vontade de passear naquele parque maravilhoso — disse , por fim, colocando um ponto final nas reminiscências da sra. Farley. — Sr. Carruthers, vai nos mostrar primeiro a casa ou os jardins? Madame, estamos na Inglaterra e o sol brilha. Qual é a sua sugestão? Vamos ver os jardins! — exclamou lady Bracken, feliz. Dora, que se encontrava entre sir James e o capitão Laughton, esperava que o passeio não desse oportunidade para os convidados se separarem. Pelo número de elogios aos olhos dela e a seu sorriso, notava que o baronete estava próximo de se declarar. O capitão também percebera e procurava desviar o assunto, da melhor maneira possível. Era desagradável ser convidada de um homem que não merecia a menor confiança, pensava Dora, enquanto caminhavam pelo gramado. O anfitrião tinha dito que poderiam admirar uma paisagem lindíssima do topo de uma colina. Mais uma vez as irmãs Perry estavam ao lado dela, falando da linda propriedade da irmã mais velha, em Shropshire. Theodora imaginou uma segunda lady Perry, rodeada por uma multidão de enteados, visitando a enteada mais velha em algum ponto remoto do Shropshire. Sentiu um calafrio. — Está com frio, srta. Thornfield? — perguntou Alice. — Se estiver, volto e pego o seu xale… Ela apressou-se a dizer que não era preciso. O sr. Carruthers encontrava-se mais à frente, indicando o caminho. Ficou aflita ao perceber que ainda se sentia atraída por ele. Como era possível achar atraente um homem que planejava reduzi-la a sua amante? Um homem que não tivera escrúpulos em discutir o fato com a última amante? Impossível estar apaixonada por um homem tão desprezível! Mas o amor é cego! — murmurou, entre os dentes. O que disse, srta. Thornfield? — perguntou Caroline, e ao ver sua expressão preocupada, resolveu distraí-la. A mocinha começou a relatar como era difícil fazer compras com a irmã. Será que a srta. Thornfield poderia dar-lhes alguns conselhos? Vocês têm uma tia… — começou Dora, ainda olhando para Lawrence, que agora segurava o braço de Augusta. Nossa pobre tia não tem a menor ideia do que está na moda e nem se interessa por isso! — explicou Alice, rindo. As mocinhas continuaram tagarelando, sem que Dora prestasse atenção. Procurou com os olhos a pessoa que julgava estar sofrendo como ela. Pobre sr. Farley! Devia estar arrasado, vendo Augusta com o seu rival! Ficou decepcionada ao ver Edgar conversando animadamente com a irmã. Talvez fosse verdade: a mocidade superava facilmente as decepções amorosas… Carruthers e Augusta pararam numa clareira ensolarada, no final da trilha. Quando os demais chegaram lá, viram que estavam no topo de uma colina. O anfitrião apoiou o pé na porteira que interrompia a cerca, naquele ponto, e indagou: — Que acha, srta. Bracken? Lá está a aldeia de Ashvale. Espero que goste… Augusta sorriu e corou. Lady Bracken, toda entusiasmada, não se conteve e respondeu pela filha: Ah! É uma aldeia lindíssima, sr. Carruthers! Augusta está muda pela surpresa… Aquela grande casa, de pedra, ao lado da igreja, é o presbitério — explicou Carruthers. Alguém sugeriu visitar a igreja, que parecia muito antiga. Edgar Farley contou o que sabia sobre ela. Dora tinha certeza de que Lawrence procurava conquistar Augusta. Se não, por que mostrar-lhe Ashvale? Durante a confusão de manter a porteira aberta para os convidados passarem, ela tomou a decisão e disse, em voz baixa, à prima Maud: Se você não se importa, vou voltar. Pode ir, querida. Tenho certeza de que sir James a acompanhará. Está com enxaqueca? Um pouco… — confirmou Dora, sempre em voz baixa. — Mas prefiro voltar sozinha. Lady Bracken era dona de uma voz que podia ser ouvida de uma ponta à outra de um salão. Exclamou: Que tolice, prima! Ir sozinha! Não permito! Vou pedir a sir James que a leve. Sir James! Senhora? — O homem aproximou-se quase correndo. Minha prima Theodora está com enxaqueca. Por favor, leve-a de volta à casa. Com muito prazer! — respondeu o cavalheiro, animado. Os demais não puderam deixar de notar, porque os protestos de Dora tornaram-se estridentes. Logo a discussão se generalizou. Quem teria o privilégio de escoltar a srta. Thornfield? As irmãs Perry solicitavam a honra para o pai; o capitão Laugh-ton, depois de lançar um olhar preocupado para Dora, ofereceu seus préstimos; o sr. Carruthers disse que ele a levaria, pois queria ter certeza de que ficaria bem. Dora sentia vontade de gritar de desespero e a enxaqueca imaginária tornou-se uma realidade. — Não, não e não! — exclamou, por fim. — Ninguém vai interromper o passeio por minha culpa. Nesse caso, prefiro continuar com vocês… — Era a última tentativa para escapar de sir James. Com surpresa, viu Carruthers se opor: — É evidente que está cansada, srta. Thornfield. Não podemos permitir que se esgote. Vou levá-la de volta. Falou com autoridade. E apesar dos olhares enciumados de sir James e do capitão Laughton, da expressão assustada de lady Bracken e das risadinhas nervosas das irmãs Perry, segurou o braço de Dora e afastou-se do grupo com ela. — Primo Edgar — falou por cima do ombro —, você sabe tudo a respeito de igrejas antigas. Peço-lhe que lidere o grupo. Dê o braço à srta. Bracken. Assim, muito bem… Voltarei depois de deixar a srta. Thornfield descansando. Acompanhada pelo homem que mais temia, Dora afligia-se cada vez mais à medida que se afastavam do grupo. E com razão, pois Law-rence entrou direto no assunto: — Agora que estamos a sós, a senhora pode me dizer o que fiz, para ofendê-la tão gravemente? Dora observou-o de soslaio. O rosto atraente expressava uma preocupação sincera. Sincera! Pois sim! Não devia esquecer que não podia revelar que conversara com Yvette. Ele teria de pensar que sua atitude era um capricho feminino. Sr. Carruthers — começou, tentando parecer calma —, sinto ter ignorado o senhor, na rua, e estou em falta por não agradecer as lindas flores que mandou. Vamos deixar as coisas neste ponto? Sem que me diga o que aconteceu? Antes me concedia um sorriso de vez em quando, agora me evita… Por que desapareceu? Não acredito que se ausentou de todas as reuniões para não se encontrar comigo… Então? — Ele parou de andar e encarou Dora. — Acho que vou exigir uma resposta. Ela ergueu os olhos e assustou-se com a própria reação: ele estava tão perto! Carruthers a observava com atenção. Ela parecia muito constrangida e, de repente, ele compreendeu que Dora não conseguiria falar sobre o que a desagradara tanto. Tinha a modéstia de Dora emelevado conceito. Desde o primeiro encontro tomara cuidado para que sua admiração não fosse evidente demais, porque temia assustá-la. O enorme ramalhete de rosas fora uma exceção. Desejava declarar seus sentimentos, se ela permitisse. Então, decidiu: — Está bem. Não se fala mais nisso, se a senhora não quiser. Não sei o que aconteceu, mas peço desculpas. Será que me perdoa e podemos recomeçar nossa amizade? Dora ficou em dúvida. Via a grande mão bronzeada estendida. Sentia-se ansiosa por apertá-la e esquecer que encontrara Yvette, aquela criatura horrível. Queria dizer que continuariam amigos. Mas como fazer isso sabendo que ele pretendia seduzi-la? Lawrence interpretou o silêncio e a hesitação como anuência e segurou-lhe a mão. Retirou a luva de pelica cor rosa-antigo e enfiou-a no bolso. Beijou delicadamente a palma da mão de Dora. Ela estremeceu, dominada por uma emoção desconhecida. Ele percebeu a reação e passou ao ataque. — Meu amor, tentei ser paciente, procurei esperar um momento mais propício, mas não posso. Preciso de você. Minha vida… Abraçou-a e beijou-a suavemente, depois com paixão, o que despertou uma reação correspondente nela. No entanto, assim que o abraço afrouxou um pouco, ela desvencilhou-se e se afastou. — Por favor, diga… diga que também me quer — murmurou ele, atraindo-a de novo para si. Seus lábios percorreram a testa, as faces, o pescoço de Dora, antes de voltar à boca. Ela se debateu e conseguiu se livrar, gemendo e sacudindo a cabeça. Quem poderia imaginar que um oferecimento de carte blanche poderia se dar de forma tão desconcertante e tentadora? Envergonhava-se e culpava aquele homem de aproveitar-se de sua fraqueza. Colocou as mãos no peito dele e empurrou-o. — Não — disse, ofegante, sem erguer os olhos. — Como ousa? Nunca pensei que realmente ia me pedir isso, sr. Carruthers! O senhor não tem a menor delicadeza? As últimas palavras saíram entre soluços e ela correu para acasa, ansiosa por se afastar dele. Lawrence franziu a testa, perplexo. Que diabo era aquilo? Dora não era uma moça comum, sem dúvida. Primeiro, ardia entre seus braços, depois fugia, acusando-o de grosseria! — Você está brincando comigo! — gritou. Depois, lembrou-se de onde estava, calou-se e resolveu voltar. Tinha certeza de que ela encontraria um lugar para descansar. Nunca mais se aproximaria dela, a não ser que o chamasse! Começou a caminhar e considerou que Theodora era uma jovem simples, que tivera vida retirada, no campo, durante muitos anos. Devia ter pouquíssima ou nenhuma experiência em matéria de arroubos passionais masculinos. Não era de admirar que se tivesse assustado e ficado revoltada. Precisava pedir-lhe perdão por tê-la ofendido e insistir que respondesse a suas perguntas. A essa altura já deveria estar mais calma. Mudou mais uma vez de direção e foi para casa. Dora entrara, quase às escondidas, por uma porta-janela, e se deixara cair numa das poltronas de couro da biblioteca. Tremia. Como ele pudera fazer aquilo? E, o que era mais importante ainda, como ela pudera? O contato dos lábios e das mãos dele a levara a considerar seriamente a possibilidade de renunciar à vida digna e fazer o que ele pedia: tornar-se sua amante. Ia fazer trinta anos e tudo o que sabia sobre intimidades físicas aprendera com as irmãs. Imaginava que a vida de casada era uma sucessão de gravidezes entremeadas por atos nebulosos que provocavam esse estado. Nunca tivera a impressão de que as irmãs achavam esses atos agradáveis. E nunca imaginara que desejos tão indecorosos pudessem brotar em seu próprio corpo. Como seria conhecer Lawrence intimamente?, indagava seu corpo traiçoeiro. Conhecer os segredos do leito nupcial, mas sem as núpcias, ensinados por aquele corpo forte e musculoso, aqueles lábios brutais? Devia ser maravilhoso! Suspirou. Loucura! Era melhor aceitar sir James, quando ele a pedisse em casamento, e garantir que a lua-de-mel fosse o mais longe possível do sr. Carruthers. A porta da biblioteca se abriu com violência e ele apareceu. Devia ter imaginado que insistiria! Um criado me disse que estava aqui, minha querida. — Entrou e ajoelhou-se junto de Dora, impedindo-a de levantar e sair correndo. Segurou-lhe as mãos. — Sinto muito pelo acontecido. Quero dizer, não vou pressioná-la. Mas preciso da sua promessa. Por favor, querida! Seus beijos me dizem que você pode aprender a me amar, se é que já não me ama. Posso… Posso fazer meus planos? Planos?! — O susto devolveu a ela a capacidade de falar. Olhava para todo lado, menos para os olhos verdes e carinhosos, temendo ser dominada pela luxúria que devia haver neles. — Como pode, senhor? Acabo de indicar que não admito suas pretensões lascivas, e o senhor ousa me importunar de novo. Fala em planos! Por acaso, sei que o senhor já organizou os arranjos práticos de suas ligações. O senhor é… o senhor é… é um animal! Conseguiu, então, esgueirar-se da poltrona com apenas um conta-to ardente de um joelho no ombro do cavalheiro. Saiu da biblioteca, batendo a porta. Carruthers ficou imóvel, entre confuso e zangado, mas principalmente estupefato. — Pretensões lascivas? Levantou-se e dirigia-se para a porta, mas resolveu evitar outro con-tato com a explosiva jovem. Ficou ali até se lembrar dos convidados. Então, saiu para ir ao encontro deles. Capitulo XII Dora subiu as escadas e foi para os aposentos reservados para as convidadas. Depois de chorar um pouco e tentar inutilmente se recompor, aproximou-se da grande janela de sacada e olhou para o gramado. Lá estava o sr. Carruthers, provavelmente indo ao encontro dos demais convidados. Ficou a observá-lo até que desapareceu no bosque. Pelo menos, estaria a salvo de suas injuriosas atenções. Mas por que se sentia abandonada? Afastou o pensamento e preparou-se para a encenação da enxaqueca. Tocou a sineta e pediu um chá à copeira. Tirou o chapéu, a capa, os sapatos e deitou-se no sofá perto da lareira, tentando afastar a imagem tentadora de Lawrence, murmurando: "Diga que também me quer…" Ficou surpresa ao ver que a sra. Taverner, a governanta, era quem lhe trazia o chá que pedira. O sr. Carruthers recomendou que eu cuidasse da senhora — explicou a mulher, colocando uma mesinha ao lado de Dora. Com ar de enfermeira profissional, pôs a mão em sua testa. Ele é muito gentil… — comentou Dora, bem-educada. Beba isto, por favor. — A sra. Taverner serviu chá em uma xícara de porcelana de Sèvres. Enquanto ela bebia, a governanta falou: Sim, o nosso sr. Carruthers é um homem muito gentil. É um bom patrão, como foi o pai dele. Comecei a trabalhar aqui, como camareira, no tempo de lady Anne. Imagino que ele era um garoto travesso, que depois endireitou…— comentou Dora, com algum sarcasmo. A sra. Taverner não percebeu a ironia. Sim. Ele era um verdadeiro capetinha. Isso, realmente, não me surpreende… Mas agora é o melhor patrão do mundo. Tem muita consideração, é generoso. Só nos falta uma patroa… — continuou a governanta, com olhar significativo. — Talvez a senhora pudesse resolver esse problema. Desculpe ser intrometida… Dora pensou que o papel que Carruthers lhe destinara dificilmente a levaria a viver na casa ancestral. Compreendeu que a sra. Taver- ner era muito observadora e devia ter percebido as atenções do patrão para com ela. Mas as interpretara de maneira errada… Não sei o que a senhora quer dizer — respondeu, seca. A senhora é muito modesta! — Ao ver a expressão de Dora diante de suas palavras, a governanta achou melhor encerrar a conversa. — Desculpe se tomei tanta liberdade… Vou deixá-la descansar. Obrigada — murmurou Dora, com um sorriso. Mas não conseguia se acalmar. Prometeu a si mesma que aceitaria o pedido de sir James, para apagar a lembrança de Carruthers. Então, lembrou-se de que o marido poderia exigir que cumprisse as obrigações de uma esposa, e isso não a agradava. A timidez e enxaquecas de mentirinha não a protegeriam por muito tempo depois do casamento. Que faria, então? Deixaria aquelas mãos gorduchas acariciarem-lheo corpo, como ainda há pouco imaginara que as mãos de Lawrence poderiam fazer? Decidiu resolver aquilo quando chegasse a hora e sentiu-se mais animada. Pelo menos, havia um homem que poderia se casar com ela, mesmo que por motivos práticos. Então, decidiu descer. Dirigiu-se à sala onde haviam tomado lanche. Ia entrar, quando ouviu a voz de Augusta. — Realmente, senhor, sinto-me mal por enganar meus pais — suspirou a mocinha. Dora parou onde estava. O decente seria afastar-se dali e não ouvir aquela conversa particular. Mas algo impediu-a de fazê-lo. Curiosidade ou, talvez, falta de escrúpulos? Precisava saber com quem Augusta falava. — Minha menina, foi você que exigiu que eles não soubessem do nosso trato… Era uma voz profunda, vibrante. O homem falava baixo, mas não havia dúvida: era Lawrence. — Fui muito atrevida e às vezes sinto vergonha! Essas palavras da garota angustiaram Dora. O canalha! Brincava, também, com o coração de uma menina! Será que ele já havia… O comentário de Carruthers confirmou as suspeitas da mente pre-conceituosa de Theodora. — Você fez o que era natural, considerando as circunstâncias. Não há do que se envergonhar. Fez o que fez por amor. Sei que sua mãe não entenderia, mas eu compreendo. — Oh, o senhor já demonstrou isso — murmurou Augusta. Para Dora foi demais. Abriu a porta e entrou na sala, com os olhos cinzentos fuzilando, os punhos cerrados. Graças a Deus os dois não estavam abraçados, apenas sentados em duas cadeiras próximas. Augusta! — exclamou, altiva. — Você não deve ficar a sós com este homem horrível! Dora! — A mocinha ergueu-se, depressa. — Você ouviu? O bastante — foi a resposta repugnada da prima.- Oh! Prometa que não vai contar! — implorou a garota, com os olhos enchendo-se de lágrimas. Querida, como pode duvidar de mim? É claro que vou guardar segredo. Veremos o que se pode fazer. Mas, Augusta, compreende que errou? — Dora falava com suavidade, tentando tranquilizar a mocinha assustada. Augusta rompeu em choro e saiu correndo da sala. Carruthers levantara-se e procurava fitar os olhos de Dora. Quando conseguiu, sua expressão divertida a enfureceu. — Como se atreveu a seduzir uma mocinha? Seu comportamento para comigo pode ser explicável, porque já não sou jovem… Mas como pôde enganar uma menina, filha de um amigo? Só espero que repare o erro com uma união legal. O senhor compreende? — Dora estava convencida de que era a defensora da honra da priminha. — Seria terrível sir Giles saber o que houve. Embora receie pelo destino dessa mocinha nas mãos de um libertino como o senhor, espero que a trate com carinho — acrescentou, irritada por não conseguir controlar a voz trémula. — O papel de parenta ultrajada lhe cai muito bem, querida… Dava a impressão de que ele mal conseguia conter o riso. Dora ficou fora de si. Se eu fosse um homem, o senhor estaria desafiado para um duelo. Como é impetuosa! — admirou-se ele, dando alguns passos à frente. — Será que esta é, mesmo, a correta e puritana srta. Thornfield? Os olhos verdes soltaram lampejos selvagens, perigosos. De repente, ele agarrou Dora e beijou-a com a mesma energia e paixão da vez anterior. — E vejo que há fogo não apenas nas palavras — murmurou ele, quando a soltou. Ela ofegava. Apesar de todos os esforços, não conseguira se desvencilhar, a não ser quando ele afrouxou o abraço. Que audácia! — Vai pagar por isto, demónio! — exclamou, recuando até ficar fora do alcance dele. — Não quero ser sua amante, caso o senhor tenha esquecido esse pormenor. E quero avisá-lo, como membro da família de Augusta Bracken, que exijo a participação do noivado dentro de uma semana ou tomarei providências. Não a agradava, absolutamente, a ideia de ter de comunicar a sir Giles que a filha tinha sido seduzida. Mas o faria, se precisasse. — É uma promessa que posso fazer tranquilamente — respondeu Lawrence. — Quer que a participação do noivado seja feita em uma semana… Mais alguma coisa? — A voz era alegre e os risonhos olhos verdes a acariciavam. Ela recuou mais um pouco. E nunca mais se aproxime de mim! — ordenou. Bem, isso pode complicar a primeira exigência, querida… —respondeu ele, com exasperante tranquilidade. Dora nunca estivera tão furiosa. O senhor é um homem revoltante! Sabe muito bem o que quero dizer. É claro que como parenta afastada de lady Bracken terei a infelicidade de ver o senhor, mas eu… Mas a senhorita… — insistiu ele, aproximando-se. Será que ele adivinhava seus pensamentos? Dora virou as costas e saiu, o mais altivamente que pôde. O que deveria fazer com Augusta? Descartou um sermão. Ela já devia estar arrasada! Decidiu vigiar a mocinha como um cão de guarda e fazê-la casar logo com o sedutor. Minha cara senhorita! — Sir James e as filhas caminhavam para Dora, impedindo qualquer possibilidadade de fuga. Já voltaram? — perguntou ela, tolamente. Sim, e foi muito interessante — respondeu sir James. Segurou a mão de Dora. — Espero que esteja melhor. Não foi nada grave… Vamos subir e tirar os agasalhos — falou Caroline, arrastando a irmã. — Papai pode contar a ela sobre a igreja. As duas moças subiram a escada às gargalhadas. — O sr. Carruthers prometeu nos mostrar a mansão e depois servir um jantar. É um anfitrião perfeito — sir Perry iniciou a conversa, tímido. — Perfeito… — repetiu Dora, sem saber se devia rir ou chorar. Sir James tratou de levá-la para uma saleta vazia. Chegara o grande momento! O cavalheiro fechou a porta, indicou a Theodora a poltrona mais próxima e, imediatamente, colocou um joelho no chão. — Minha cara senhorita, acho que deve ter interpretado corretamente minhas atenções durante todas estas semanas. — O nariz e as faces dele tornavam-se cada vez mais vermelhos. — Vamos marcar o dia. Anseio por vê-la em meu lar, dando carinho a meus filhos, dirigindo minhas filhas através das dificuldades da vida em sociedade, alegrando minhas horas de folga com a sua beleza! Dora observou o redondo admirador. Era uma proposta honesta. Por que, então, não conseguia falar? Vendo a hesitação dela, o homem prosseguiu: — Entendo que esteja emocionada. Srta. Thornfield. Sua modéstia me parece uma de suas mais louváveis qualidades, e não posso censurá-la por não saber como responder a esta oferta. Mas, minha querida, eu garanto que estou capacitado a escolher uma noiva sem dote. Ela fitou-o nos olhos. Já sabia o que dizer. — Meu senhor, sinto-me honrada e lisonjeada com seu pedido. Mas eu… eu não tenciono me casar. — Quê?! Por favor, considere que assim renuncia a muitas coisas. Com algum esforço, o baronete levantou-se e se colocou em posição mais confortável, em uma poltrona ao lado da de Dora. Sir James, o senhor me oferece muito. Mas não posso lhe dar o carinho que uma esposa deve ao marido. Ah!— O homem pareceu aliviado. — Minha cara jovem, não tenho essas pretensões. Depois da primeira juventude, o mais importante entre esposos… mesmo nos momentos, hum… mais íntimos, é a amizade e o respeito. "Não posso lhe dar nem isso", pensou Dora, mas ficou em silêncio. Não havia necessidade de insultá-lo. Posso falar com minhas filhas, para comunicar a feliz notícia? Senhor, acabo de recusar a sua oferta! — protestou Dora. —Não direi meus motivos, mas peço que os respeite. Hummm! — Sir James observou o rosto de Dora e percebeu sua angústia. — Está bem. Vejo que está cansada, mas me dê uma esperança. Talvez outro dia, quando estiver bem… A propósito, a senhorita tem boa saúde? Para ser mãe de uma bela família, que talvez possa aumentar, vai precisar de todas as energias. Nunca fiquei doente — admitiu Dora, embora tentada a dizer que sofria de mal crónico dos pulmões. Sim, sim. Veremos… — Sir James ergue-se, calmo, como se todos os dias fizesse pedidos de casamento e todos os dias os visse recusados. — É melhor eu ir procurar os outros. Não gostaria de comprometê-la e, assim, obrigá-la a se tornar minha esposa. As irmãs Perry esperavam no hall. Papai! — exclamaram juntas. — Novidades? Ainda nenhuma, queridas. Explicarei tudo maistarde — respondeu sir James, pigarreando. Oh! — fizeram as mocinhas, desanimadas. A srta. Thornfield não está se sentindo bem — explicou ele, rápido. — Hoje não é o dia apropriado para uma conversa séria. Ah! — Caroline e Alice ficaram mais satisfeitas. Dora ficou indignada com a mentira, mas não teve coragem de explicar às mocinhas que tinha recusado o pedido. Compreendera que não poderia fugir do sr. Carruthers casando-se com sir James. Aceitar um casamento sem amor era ruim, mesmo que não estivesse apaixonada por ninguém. Como se sentia atraída, pelo menos fisicamente, por aquele cavalheiro libertino, o casamento com o baronete seria uma total loucura. Tinha de continuar solteira, até esquecer aquele homem. As irmãs Perry sufocavam-na de atenções, oferecendo-lhe o xale, um copo com água, os sais… — Alice tem voz muito bonita — disse Caroline, de repente, levando Dora até uma poltrona próxima do sofá onde estavam a sra. Farley e a filha. — Vou acompanhá-la ao piano. Algumas canções vão lhe fazer bem. Ela sabia que a voz de Alice não era das melhores, mas a sala de visitas de Ashvale, onde os convidados se haviam reunido para depois ir conhecer a mansão, era tão vasta que o piano se encontrava a uma boa distância de onde estava. — Espero que esteja melhor, srta. Thornfield — disse Selina Farley. — As encantadoras mocinhas estão ansiosas em ajudá-la. Isso é lisonjeiro! Dora assentiu e observou a srta. Farley. Sem dúvida deveria ser muito bondosa para achar que as irmãs Perry eram encantadoras! E era muito atenciosa para com a mãe… O cérebro de Dora começou a funcionar: com certeza, a casa de sir James poderia acolher, também, uma mãe idosa. — Diga-me, srta. Farley — perguntou, então, com um sorriso. —Gosta de crianças? — Adoro crianças! — respondeu Selina, com um sorriso radioso. Tinha olhos escuros, suaves, muito meigos. Sir James Perry tem uma família muito grande — prosseguiu Dora, desejando ser diplomática, mas sem saber como. — Talvez as mocinhas gostassem de lhe contar alguns episódios das crianças. São tão divertidos! Minha Selina adora uma boa história — interferiu a sra. Farley, olhando por cima dos óculos. Que ótimo! — comentou Dora, feliz. Ela e a velha senhora fitaram-se, compreendendo-se, enquanto Selina olhava discretamente em outra direção. O resto do dia foi muito desagradável para Theodora. Teve de disfarçar as manobras para evitar o dono da casa, aturar os tímidos e assustados olhares de Augusta, os galanteios desajeitados de sir James e as ordens ríspidas de Iady Bracken, que a mandou duas vezes procurar o mesmo par de luvas. Na hora do jantar, o capitão Laughton conseguiu sentar-se ao lado dela e tratou de conversar, alegre e descontraído. — O senhor é tão gentil, capitão… — disse Dora, a certo momento, quando o capitão conseguiu fazê-la rir. Laughton era, também, muito esperto. — Tenho a impressão de que se sente feliz por eu apenas tagarelar, dizendo coisas sem importância, srta. Thornfield. Devo estar dizendo coisas diferentes das que a senhora ouviu hoje… — disse, e acenou distraído para sir James, que se encontrava do outro lado dela. Dora respondeu apenas com um leve sorriso. Quer dizer que não preciso lhe dar os parabéns? — perguntou Laughton, mais alegre. Céus! Não é o caso! E a senhorita não se importa em manter um flerte, sem consequências, com um cavalheiro que muito a admira? O jeito do capitão continuava brincalhão, mas ela temia que aquelas palavras ocultassem um significado mais sério. Não respondeu. Apenas encolheu os ombros, esperando que ele não estivesse preparando terreno para uma declaração. Embora fosse muito simpático, até encantador, teria de recusar. Chegou à conclusão de que o passeio a Ashvale fora um verdadeiro fracasso. Entretanto, conseguiu algo importante para encerrar o dia: manobrou tão bem que a srta. Selina Farley voltou para Londres na carruagem de sir James Perry. . Capitulo XIII Na noite do dia seguinte ao passeio a Ashvale, Lawrence Carru-thers foi à rua Charles. Estava perplexo. Por algum motivo, Theodora Thornfield esperava que ele anunciasse seu casamento com Augusta, dentro de uma semana. Não via explicação racional para aquilo. Infelizmente, Dora demonstrara tendência para bisbilhotar e sua endiabrada sobrinha insistia em que tudo permanecesse no maior segredo. A única esperança era que Augusta explicasse as coisas à prima o mais depressa possível. Os lampejos dos olhos cinzentos de Theodora zangada e os lábios ardentes que desmentiam as palavras de ódio eram lembranças agradáveis. Precisava dar a ela algum tempo para se acalmar e conversar com a prima. E o anúncio de casamento? Dentro de alguns dias cuidaria disso também. Mas, agora, tinha de se concentrar em um outro problema. O mordomo o fez entrar, porque o sr. Carruthers ainda era quem pagava as contas. E pediu-lhe que aguardasse. — Não precisa incomodá-la. Vou subir e vê-la, na saleta íntima…— disse ele, tendo uma ideia diabólica. O mordomo ficou assustadíssimo e tentou fazê-lo desistir. Mas Carruthers subiu a escada aos pulos e parou diante da porta da saleta. — Pode deixar, Farnham, vou entrar. — Parou e acrescentou: —Pensando bem, mademoiselle já deve estar deitada… Aproximou-se da porta seguinte e colocou a mão no trinco. Farnham, num gesto heróico, colocou-se diante da porta, para impedir-lhe a passagem. Carruthers achou a coisa cómica e ia voltar-se para descer quando a porta se abriu e o mordomo quase caiu para dentro, desequilibrado. — Ah, Laurent — murmurou Yvette, com voz macia. Estava muito bonita, com os cabelos em desalinho, caindo pelas costas, e o penhoar de renda cor-de-rosa. Lawrence apreciou a visão, sorrindo. Teve a impressão de que uma porta dentro do quarto fechava-se, cautelosamente. Vou entrar… Será que me oferece uma bebida? É claro, mon cher\ — Yvette deu as ordens necessárias ao mordomo, depois perguntou: — Já se cansou do mundo respeitável? Esta visita é uma surpresa, mas estou feliz em vê-lo de novo, Laurent. Colocou uma das mãos num joelho dele. Parecia esperançosa e Carruthers ficou quase comovido. — Deixe estar… — disse, afastando a mão. — Vim por outra coisa… Espero que seu parceiro tenha saído de verdade, que não esteja escondido atrás de alguma cortina. Sinto muito ter interrompido seus folguedos. Yvette enrubesceu e baixou os olhos. Estou a par de tudo — continuou Carruthers —, e quero uma explicação. Tudo?! — exclamou a mulher, os olhos soltando chamas. —Então, a solteirona respeitável não cumpre a palavra, mesmo quando jura sobre o túmulo da mamaríl Deus me livre de gente dessa laia! Yvette continuou, despejando uma torrente de palavrões em francês, enquanto ele observava, interessado. Por que ela estava tão zangada? Fora lá para dizer que soubera que Yvette continuava fazendo compras em nome dele e que, depois da grande quantia que lhe dera, gostaria que parasse com isso. Que solteirona? — perguntou, por fim. Aquela velha solteirona revoltante, aquele monstro! — explodiu a francesa, fora de si. Então, a mulherzinha, que parecera tão assustada e chocada, contara tudo a Carruthers! Ele não voltaria mais e ela não teria a parelha de cavalos que tanto cobiçava! Lawrence sentia-se mais intrigado. A única "solteirona" que ocupava seus pensamentos era Theodora, mas Yvette não podia conhecê-la, pois frequentavam ambientes diferentes. Então, lembrou-se das palavras de Dora naquela tarde, de seu choque ao ouvi-lo falar em amor, achando que ele a desejava apenas como amante. Olhou para Yvette com maior atenção. — O que você aprontou? — indagou, sério. Foi então que recordou que as duas haviam estado no baile de lady Lavenham. Yvette podia ter mencionado o relacionamento deles. Yvette percebeu que se enganara. Ele não sabia o que houvera. Nada… eu não aprontei nada! — respondeu, deixando as lágrimas correrem. Você conheceu a srta. Thornfield? — insistiu Carruthers. Que nome engraçado para uma mulher! — riu Yvette. É sobrenome — explicou ele, sorrindo. — Essa jovemcriticou alguns dos meus atributos morais e pensei que você tivesse falado com ela. Eu?! — Yvette parecia escandalizada. — Sabe que não falo com mulheres respeitáveis. Se essa moça ouviu falar de você, deve ter si- do na sociedade, onde não há segredos, chérri. — Pode ser… — Lawrence levantou-se. — Pode voltar a seus folgedos, minha amiga. Entretanto — acrescentou, com a mão na maçaneta da porta —, se quiser uma parelha nova, terá de pagar com o dinheiro que já depositei em seu nome. Carruthers passou pelos criados, que o observavam. Quando o mordomo abriu a porta, perguntou-lhe baixinho: Não quer tomar uma bebida comigo, Farnham? O mordomo olhou para o lacaio, depois murmurou: Em cinco minutos, virando a esquina. O cavalheiro saiu, convencido de que Yvette fizera algo errado. Farnham contou o que sabia, entre doses de vinho e algumas notas no bolso. Lawrence voltou para casa, entre divertido e zangado. Dora, realmente, recebera um choque. Conseguia, também, justificar a audácia de Yvette. Sentia-se lisonjeado. Tomara que o amante de Yvette não tivesse ido embora e que eles estivessem juntos, agora. Lembrou-se da aparência dela ao abrir a porta do quarto. As mulheres ficavam muito mais bonitas quando faziam amor! E o que mais desejava era ver Dora nessas condições. Sabia, depois das cenas em Ashvale, que não precisaria de meses de carinho para despertá-la. Suas reações eram reveladoras. Bastava conseguir que a raiva se transformasse em amor. E quando chegou em casa sentia-se impaciente, querendo que a noite passasse depressa. Theodora decidira não contar a ninguém os desagradáveis acontecimentos de Ashvale. Entretanto, dois dias depois do passeio foi visitar Amélia Lavenham, em quem podia confiar. Amélia ouviu o relato enquanto tomavam chá. — Meu Deus! — exclamou, aturdida. — Que dia! Eu adoraria estar lá! Mas, vejamos: primeiro, sir James a pediu em casamento. Segundo, Carruthers ofereceu-lhe uma carte blanche. Terceiro: você descobriu que ele seduziu sua priminha. Isso é demais, minha amiga! Tem certeza de que é assim, mesmo? Ao ver a expressão sofrida de Dora, Amélia conteve o riso. — Certeza absoluta — retrucou ela, num fio de voz. — Sir James… Amélia abanou uma das mãos. Não duvido que o pobre velho queira se casar com você. E é uma pena não ter conseguido convencê-lo do contrário, mas seria difícil. Ele é convencido! Estou me referindo ao resto: como Carruthers, de repente, virou um canalha? Ele é um libertino! Seduziu Augusta! Tem certeza absoluta de que isso aconteceu? Quando o acusei, ele não negou — respondeu Dora, e corou ao lembrar do beijo e da promessa de anunciar o casamento com Augusta. — Ela, então, estava arrasada. Evita falar comigo. Sei que está envergonhada. Ainda bem que ele vai reparar o erro. Duvido que possam se dar bem, mas precisam casar. Não consigo imaginar aquela menina como uma leviana — falou Amélia, sacudindo a cabeça. — Deve haver algum mal-entendido. Tente lembrar. O que eles disseram? Dora tinha esquecido as palavras exatas. — Ela disse que tinha vergonha por esconder o fato dos pais. Ele respondeu que estava tudo certo, porque ela havia agid,o por amor…Amor! E uma hora antes ele me agarrava e apertava como… como se eu fosse o que quer que ele pense! Amélia observou a amiga com atenção. Mas estou feliz por Augusta, porque Carruthers concordou em casar com ela — continuou Dora, com voz trémula. — Seria terrível se eu tivesse de informar sir Giles. Você agiu direito — comentou Amélia, e indagou: — E como fica a situação do sr. Farley nessa história? Não sei… — disse Dora, sacudindo a cabeça. — Eles se falaram algumas vezes, mas Augusta sabe fingir e nunca notei o carinho que ela me disse sentir pelo rapaz. E mesmo que Carruthers não queira se casar, o pobre sr. Farley não poderia casar com ela, agora que está desonrada. Realmente… — Amélia voltou a sorrir e ofereceu mais docinhos. — Querida, já pensou que Augusta e Farley podem estar disfarçando o seu amor, por causa dos pais dela? Não — respondeu Dora, triste. — Pensei nisso, mas depois de saber o que aconteceu entre Augusta e Carruthers, não acho… Agora, explique melhor seu plano a respeito da srta. Farley e Sir James. Preciso de tempo para pensar no problema de Lawrence Carruthers, querida. Estou achando a coisa muito esquisita! Ele sem pre foi um homem honrado, apesar das pequenas aventuras. Theodora ficou espantada diante do pouco interesse de Amélia pela tragédia de Augusta, mas tratou de não pensar naquilo. Explicou o que pretendia fazer em benefício de Selina Farley. — … e acredito que a sra. Farley vai ajudar. A amiga concordou. Planejava conversar pessoalmente com Carruthers. Queria ouvir a versão dele sobre os acontecimentos. Olhou mais uma vez para Theodora. Estava mais linda do que nunca! Isso era sinal certo de que amava alguém. Como seria bom se ela se casasse! Mas será que havia alguma verdade naquela estranha história? Ou será que os longos anos de solidão tinham levado a pobre Dora a imaginar coisas, ilícitas ou não? Amélia já ouvira falar nesse fenómeno, mas nunca pensara que poderia acontecer com uma de suas amigas, principalmente com alguém da idade dela! Capitulo XIV Amélia Lavenham entrou em ação imediatamente, assim que Dora se despediu. Mandou um bilhete a Carruthers, pedindo a presença dele mais tarde, naquele mesmo dia. Ele apareceu pontualmente na hora indicada. —Estou feliz porque o senhor me atendeu com tanta presteza —disse Amélia, estendendo a mão e sorrindo quando ele a beijou. Convidou-o a sentar-se em uma poltrona ao lado da dela. Havia uma mesinha com bebidas entre as duas. Ela não gostava de ser interrompida por criados durante uma conversa particular. Pegou o bordado. Vejo que são roupinhas bem pequeninas — comentou Lawrence, sorrindo. O senhor é observador — disse a lady, corando um pouco. — Nem mesmo um homem em mil teria reparado nisso… — Ergueu o vestido de batismo, para recém-nascido, que bordava. — Ninguém sabe, ainda: meu filho vai ganhar um irmãozinho. Permita-me felicitá-la, senhora. Amélia lembrou-se de que não havia contado a Dora. Sua amiga devia estar mesmo preocupada, para não perceber. Bordava o mesmo vestidinho enquanto conversavam e tomavam chá. Em geral, ela reparava em tudo! Sem muitos rodeios, Amélia foi ao assunto: —Hoje recebi a visita de minha amiga, a srta. Thornfield. Carruthers, recostado na poltrona, parecia despreocupado, mas os grandes olhos verdes brilharam. —E a senhora achou que eu gostaria de ter notícias dela? Tenho certeza de que sim — declarou a lady, com expressão marota. — Minha vista é excelente e só um cego não perceberia que o senhor se interessa por ela. Quer dizer que não é mais segredo — constatou o cavalheiro, sem disfarçar a satisfação. — Realmente, estou interessado em saber o que ela disse a meu respeito. Dora falou abertamente comigo… E imagino que tenha se queixado de um cavalheiro libertino… se é que ela ainda me chama de cavalheiro! Senhor! Fiquei chocada! E a senhora acha que eu não fiquei? Soube de tudo? Que além de injuriá-la com minhas pretensões lascivas fiz algo que me obrigaa casar com Augusta Bracken em uma semana? Amélia e Carruthers caíram na gargalhada. — O senhor não imagina como foi difícil me manter séria! E quando Dora falou no pedido de sir James… Lawrence não conhecia esse detalhe. — Vejam só, a velha raposa! Devia ter adivinhado que suas manobras para ser incluído no passeio tinham um propósito. Mas ela não aceitou, não é? — quis saber, preocupado. Amélia não resistiu à tentação de brincar um pouco. Principalmente com um homem encantador, mas um tanto convencido. — Ora, sir James seria um ótimo partido para Dora. Todas aquelas crianças e um bom património! Não a censuraria se aceitasse! O susto de Carruthers dava dó e indicava a seriedade de seus sentimentos. Amélia não teve coragem de continuar. Ela recusou, mas parece que sir James não acredita na recusa. Ela imaginou desviar a atenção desse admiradorpara a srta. Farley. Selina não devia ser envolvida numa trama dessas — observou ele, de testa franzida. — Sei que passou por maus pedaços, com a mãe e o irmão. Recentemente descobri que os Farley não dispunham de dinheiro. Pretendo corrigir isso. Quando o rapaz estiver casado, vou fixar uma renda anual para as mulheres e Selina não precisará casar, se não quiser. E se ela estivesse disposta a se casar com sir James? A expressão de Carruthers indicou que nenhuma criatura racional poderia considerar uma proposta do infeliz baronete. Poderia acontecer, sabe? — observou Amélia, divertindo-se com a expressão dele. — Pelo que ouvi dizer, sua prima não é mulher de se deixar empurrar para algo que não a agrade. A prima Selina sabe se cuidar — concordou Carruthers. Depois, todo animado: — Agora, milady, diga-me como devo agir com sua tão teimosa amiga! Para começar, o senhor podia evitar seduzir as primas dela! Milady, a senhora não pode acreditar, seriamente… Amélia estava brincando, mas pediu uma explicação. Ficou contrariada porque Carruthers não a deu e disse que era segredo de outras pessoas. Compensou essa falta de franqueza dando a lady Lavenham um relato censurado de sua aventura noturna na rua Charles e da muito interessante revelação feita pelo mordomo de Yvette. Assim que Dora chegou da visita a Amélia, lady Bracken mandou chamá-la. Permiti que sir James leve você para um passeio hoje, às cinco da tarde — declarou, com um sorriso cheio de subentendidos. — O pobre ficou muito desapontado com sua ausência. Não consegui resistir a sua insistência. Pois é, prima Maud, mas não aceito o passeio. Não devo negligenciar minhas obrigações. Vou mandar um bilhete para sir Perry, agora mesmo, recusando o convite. E, diga-me, o que posso fazer por você? Precisa de um xale? Quer o bordado? Mas não adiantou. — Não posso permitir que você decepcione sir James! — insistiu a prima, firme. — Ele insinuou que queria lhe dizer algo muito especial. Prima, ele está pensando em casamento! Quero ajudar da melhor maneira que puder. Dora subiu, de sobrancelhas franzidas. De repente, teve uma inspiração. Pegou papel de carta, escreveu um bilhetinho e mandou-o para a rua Mount. Algumas horas mais tarde Dora observou, com olhos críticos, que o baronete segurava com firmeza as rédeas da razoável parelha de cavalos cinzentos com as mãos enluvadas, enquanto ela e ele empoleiravam-se, não muito à vontade, no assento de um fáeton muito alto, que um amigo emprestara. — Faz tempo que não levo uma senhora a passeio — explicou ele à bela companheira, enquanto manobrava através da apinhada ala meda do Hyde Park. Dora sabia que sir James não tinha imaginação e que escolheria o parque para o passeio. Senão, pediria a ele que fossem até lá. Mas não foi preciso. A enorme concentração necessária para dirigir um alto fáeton pela primeira vez foi uma verdadeira dádiva divina para Dora. Sir Perry nem pensava em desfiar o rosário de galanteios que costumavam preceder frases de colorido mais afetivo, porque os cavalos o mantinham ocupadíssimo. Ela esperava encontrar as senhoras Farley antes que ele resolvesse parar para repetir a assustadora proposta de casamento. E a expressão dele indicava que estava mais do que decidido a isso. Dora procurava entre a multidão os rostos que queria encontrar e teve um sobressalto. Num tílburi aberto, cercada por cavalheiros a pé e montados, encontrava-se Yvette. Seus olhares entrecruzaram-se por instantes. "Como é bonita", pensou Dora. Suspirando, admirando a capa e o chapéu parisienses da cortesã. "E como sabe flertar com sofisti- cação!" Imaginou aquela mulher entre os braços de Lawrence Car-ruthers e corou violentamente. E a mancha roxa que a francesa lhe mostrara? Teria sido produzida por uma pancada ou pela paixão? Continuava com os olhos fixos em Yvette, abismada. — Srta. Thornfield, aquela mulher não deve atrair a atenção da senhora! — A voz áspera de sir James interrompeu-lhe as divagações! — Por favor, olhe para outro lado. Aquela criatura é uma mulher da vida… Dora obedeceu e olhou para seu acompanhante. Desculpe, sir James, eu não sabia — disse, com o ar mais recatado que pôde assumir, e baixou os olhos. Ah, tão modesta, tão inocente! — Sir James estava radiante. — Querida srta. Thornfield, permita-me irmos para um lugarzinho menos movimentado… Talvez ali perto do lago. Vamos continuar a conversa interrompida ontem… Sem saber como uma recusa tinha se transformado, na cabeça do baronete, em uma conversa interrompida, Dora começou a se preparar para a provoção quando ouviu uma voz: — Srta. Thornfield! Voltou-se, segurando-se no diminuto descanso, para não se desequilibrar. — Sir James, olhe! É a sra. Farley com a filha. Ah, sra. Farley, que agradável surpresa! Severa e determinada, a senhora aproximou-se do fáeton, empurrando a filha para a frente. Não havia nela qualquer indicação de que o encontro fora combinado. Pela surpresa e prazer que se via no rosto da srta. Farley, era evidente que a mãe nada lhe dissera. Sir Perry inclinou-se como podia, no assento estreito, e Dora percebeu que ele estava às voltas com um problema imprevisto. Não trouxera criado. Não havia ninguém para ajudá-la a descer e Selina a subir. Sir James não podia largar os cavalos. — Tivemos um passeio muito agradável, na quinta-feira passada — disse ele, para sair do embaraço. A sra. Farley assentiu e Selina foi eloquente: — Oh, sim! Adorei conhecer a casa de campo do primo Lawrence. E, sir James, gostei muito de conhecer suas filhas. Elas foram encantadoras comigo, na viagem de volta. O anzol fora lançado de modo quase imperceptível e Dora compreendeu que a inteligente Selina estava, de fato, fazendo uma manobra mínima para garantir o futuro. Quem poderia censurá-la, conhecendo sua vida? Augusta lhe descrevera da pensão de viúva da mãe. Os estudos de Edgar deviam ter exigido sacrifícios enormes à mãe e à irmã. Sir James se pavoneava, centro da atenção de mulheres! — Ah, cara srta. Farley! Caroline e Alice também simpatizaram muito com a senhora. Deseja que eu lhes transmita suas lembranças? Olhou de soslaio para a srta. Thornfield e esta se sentiu animada ao ver a expressão furtiva do homem. Sir Perry estava envolvido com duas mulheres! Que interessante! A srta. Farley cumprimentou a srta. Thornfield pela coragem em passear num veículo tão alto. Ah, não é difícil. A senhorita devia experimentar — sugeriu Dora, com entusiasmo. Oh! Até agora só andei no cabriole do meu irmão! Cara senhorita, seria um prazer levá-la para passear algum dia desses — interferiu o baronete, ofegando um pouco porque os cavalos estavam nervosos. E por que não aproveitar esta oportunidade? — perguntou uma voz masculina que Dora conhecia muito bem. O sr. Carruthers destacou-se de um grupo de pessoas e se aproximou. — Cara srta. Thornfield! Prima Olívia e prima Selina! Esperava mesmo encontrá-las. Os criados me disseram que tinham saído a passeio. Recomendaram-me que visse o parque na hora elegante, por ser um dos espetáculos mais lindos da cidade — explicou a sra. Farley, acenando para o primo. É mesmo? — Lawrence olhou para Dora e sorriu ao ver que o rosto bonito exprimia frieza e repulsa. — Sir Perry, é um prazer encontrá-lo aqui. Ouvi o que diziam. Por que não leva prima Selina para dar uma volta, enquanto eu fico com as damas? Aposto que ela gostaria de contar aos amigos do Surrey que andou num veículo esportivo dirigido por um rapaz londrino. Sir James empertigou-se ao ser chamado de rapaz londrino e perguntou a Dora se ela se importaria de ficar a pé por alguns minutos ou se preferia que arriscassem um passeio a três. — Acho que ficaria muito apertado, e tenho certeza de que as damas se assustariam — discordou Carruthers. — Srta. Thornfield, quer me dar licença? E antes que Dora pudesse se preparar, foi sumariamente retirada do fáeton. As mãos' de Lawrence apertavam-lhe a cintura, possessivas, obrigando-a a saltar. Mesmo quando sentiu o chão sob os pés, as mãos fortes continuarama segurá-la por mais um instante e ela arriscou-se a fitá-lo por uma fração de segundo. Os' olhos verdes a acariciavam, com as mãos! Era enfurecedor ver esse homem tão seguro de si depois dos acontecimentos! Dora fervia de raiva enquanto Carruthers ajudava a prima Selina a se acomodar no fáeton. Tome cuidado, querida — recomendou a sra. Farley, preocupada, observando o veículo alto e frágil. Mamãe, a senhora se preocupa muito! — respondeu Selina, com uma gargalhadinha tilitante que não era de seu feitio, enquanto o fáeton se afastava. Carruthers tomou o braço da srta. Thornfield e o da sra. Farley. Saiu caminhando devagar. Então, minhas senhoras, qual é a previsão? Aqueles dois irão se casar? Primo! Selina conheceu esse homem quinta-feira! — protestou a sra. Farley. — E ela já não tem idade para procurar marido. Mas ele é um homem muito respeitado e precisa demais de uma esposa! O que acha, srta. Thornfield? Dora teve a impressão de que Carruthers sabia do pedido do baronete. Estava caçoando dela! — Não posso adivinhar as necessidades de outra pessoa, senhor — foi a pronta resposta. — Ah, duas damas tão reticentes! — suspirou ele, com ar infeliz. — Por que não querem admitir que jogaram Selina nos braços do nosso digno baronete? Agora, é só esperar que ela não seja convencida a fazer algo censurável! A sra. Farley, finalmente, baixou as defesas e riu com o primo. — Lawrence, não brinque com Selina a esse respeito. A srta. Thornfield e eu achamos que essa união pode ser boa, mas a decisão será unicamente dela. E, acredite, um casamento com o "digno baronete" não seria pior do que desperdiçar a mocidade numa aldeia perdida no Surrey, em companhia de uma velha mãe rabugenta e um irmão caçula. Dora ficou sensibilizada com a sinceridade da sra. Farley, que pronunciou as últimas palavras com voz rouca e trémula. Senhora, sua filha jamais concordaria com essa descrição para a vida que leva — disse, com franqueza. — Eu pude ver o quanto ela ama a senhora e o irmão. Posso confirmar isso — apoiou Lawrence. — Você, uma velha mãe rabugenta, prima Olívia? Jamais! E sem dar tempo à prima para voltar ao assunto, começou uma conversa tão divertida que deixou as duas de bom humor. Dora, que se sentia presa por um dos braços, teve de fingir que estava à vontade. Por nada no mundo queria deixar transparecer, na presença da sra. Farley, o ódio que sentia daquele homem. Tinha tanta vontade de dizer uma ou duas coisinhas que o ferissem! Por que estava ali, no parque? Seu lugar era ao lado da pobre Augusta. A mocinha não saíra do quarto o dia todo, provavelmente consumida pela vergonha porque sua desonra havia sido descoberta. E o que fazia o desprezível sedutor? Não ficava a seu lado para consolá-la, afirmando-lhe que faria dela uma mulher honesta! Conversava e ria, como se não tivesse a menor preocupação, de braço dado com duas mulheres, uma das quais destinara para sua amante! Entretanto, as boas maneiras exigiam que os três demonstrassem perfeito acordo. Quando o fáeton regressou e parou, com um leve estremecimento, junto dos três, Lawrence ajudou a prima a descer e devolveu Dora ao elevado assento, ao lado de sir James. Suas mãos tiveram o mesmo toque íntimo da outra vez, ao segurá-la com firmeza. Ela respirou fundo, várias vezes, para evitar a tentação de se encostar nele e soltar-se nos braços do sedutor covarde! Quando voltou a ficar a sós com sir Perry, ele pigarreou, antes de dizer: — Acha que está na hora de levá-la para casa? A tarde está por terminar… Dora percebeu que ele não tencionava repetir o pedido de casamento e não resistiu à tentação de se divertir: — Ah! O senhor não falou que queria me dizer uma coisa? — perguntou, em tom levemente queixoso. O admirador de meia-idade pigarreou mais alto. — Efetivamente, eu queria. Pretendia suplicar à senhora que continue minha amiga, apesar das… hum… das minhas palavras precipitadas de quinta-feira… Dora teve vontade de gritar vivas a Selina Farley. Prometeu amizade eterna ao baronete e voltou para casa sorrindo. Capitulo XV Quando Dora chegou em casa, tentou falar com a priminha. Achou que a encontraria no quarto, aprontando-se para o jantar. Bateu à porta. Ninguém iria estranhar, porque as duas viviam indo uma ao quarto da outra, enquanto se arrumavam. Na maior parte das vezes, era Augusta que aparecia para pedir opinião. Meeker a altiva camareira de lady Bracken, abriu a porta. Gostaria de falar com minha prima — disse Dora, sorrindo, mas a mulher não se mexeu para dar-lhe passagem. Madame, a srta. Bracken está… ocupada. Dora assentiu e voltou para seu quarto, perguntando-se como Augusta faria para não falar com ela a noite toda. Queria garantir à mocinha que seu segredo estava bem guardado e esperava saber até que ponto ela chegara com Carruthers. Pegou o primeiro vestido de noite que estava à mão, escovou rapidamente os cabelos, colocou uma touca de renda recém-passada e desceu para a sala de visitas. — Perfeito! Greaves me disse que alguém viria logo, mas não pensei que ia ficar a sós com a dona do meu coração — exclamou Lawrence, indo ao encontro dela com a mão estendida. Só o percebera quando já se encontrava dentro da sala, e não podia recusar o aperto de mão. Ficou irritada por não ter se arrumado melhor. — Sabe? Embora eu não aprove o uso de touca em jovens da sua idade, devo admitir que essa lhe fica muito bem… — disse ele, admirando os cachos loiros sob a renda branca. Dora virou o rosto, mas seu coração bateu mais forte ao receber o elogio. Era uma situação absolutamente impossível! — A senhora não vai perguntar como tenho o descaramento de me apresentar no seio da família que desonrei? Sem responder, ela dirigiu-se para um canto, onde costumava ficar e onde estava sua bolsa de bordados. Pegou o trabalho. — Que bordado admirável! — comentou Lawrence, pegando uma cadeira e colocando-a ao lado da dela. — Por favor, não se levante! O que vão pensar me vendo persegui-la pela sala inteira? Ela encarou-o, furiosa, os olhos cinzentos lampejantes. O senhor é intolerável! Como pode ser tão ousado? Augusta me evita desde ontem. Vai ter vergonha de se sentar à mesa com o senhor. A não ser que o senhor já tenha falado com sir Giles e o casamento esteja marcado. Ainda não. Por que tanta pressa? Concedeu-me uma semana, não foi? Mas por que torturar assim aquela criança? Criança? — indagou Carruthers, erguendo as sobrancelhas e sorrindo. A lembrança inconveniente dos braços dele apertando-a passou pela mente de Dora. Como era possível, mesmo sabendo que aquele homem era um dissoluto, ela desejar abraçá-lo? Acho que não sabe, mas lady Bracken convidou a mim e meus parentes para jantarmos aqui — explicou ele. — E olhe que não foi fácil incluir os Farley no convite… Onde eles estão? — perguntou Dora, olhando ao redor. Edgar virá com as senhoras. Quando voltamos do parque, me lembrei do convite. Elas precisavam de algum tempo para se preparar e eu vim antes, esperando ter uma palavrinha com a senhorita ou com Augusta. Acha que fui grosseiro vindo mais cedo? Grosseiro, sr. Carruthers? Digamos, sem escrúpulos e maldoso! Pobre do seu primo! Não é muito cruel obrigá-los a ficarem juntos? Pensei que fosse uma boa ideia… — respondeu ele, encolhendo os ombros. — Voltemos a nosso problema, srta. Thornfield. —Hesitou, lançando-lhe um daqueles olhares que davam a ela a sensação de atravessar as roupas e chegar-lhe ao coração. — Não vai me permitir que a chame apenas Dora? Eu gostaria muito. Absolutamente, não! E nada temos a discutir. Au contraire, mademoiselle, como diria uma amiga minha, de tempos passados. Preciso lhe fazer muitas perguntas. Fiquei sabendo que, ultimamente, a senhora se envolveu em atividades questionáveis. Nada pode ser mais questionável do que o que o senhor fez! — respondeu Dora, sem entender a alusão dele. — Vou subir e esperar pelas primas. Levantou-se, encolhendo-se para não esbarrar em nenhuma parte do corpo de seu algoz, mas não conseguiu evitar de roçarlevemente na perna dele, antes de se livrar. Dirigiu-se para a porta, com o rosto afogueado, seguida por uma risada dele, reprimida e sensual. A porta se abriu, antes que a alcançasse, revelando a presença de lady Bracken. — Prima Theodora! O que significa isto? Sei que com a sua idade não precisa de acompanhante, mas mesmo assim! Ficar a sós com um cavalheiro! Ah, sr. Carruthers… A empertigada lady adiantou-se, com um sorriso. As primeiras palavras haviam sido sibiladas e a voz suavizou-se ao cumprimentar o convidado. Lawrence levantou-se, agradeceu o convite, depois disse: Meus primos chegarão logo, milady. A senhora pode perdoar a sua prima e a mim por inconveniência tão chocante? A srta. Thornfield entrou sem perceber minha presença e eu não lhe dei oportunidade de fugir. Mas é claro! O senhor não poderia adivinhar quem entraria na sala! — tagarelou lady Bracken e convidou Lawrence para sentar-se a seu lado, no sofá. Como havia gente suficiente na sala, Dora achou que poderia voltar a seu bordado. Onde está minha filha? — perguntou a prima Maud, com um olhar brejeiro para Carruthers. — Ela ficou tão contente quando soube que o senhor vinha jantar conosco. Aliás, é o mínimo que podemos fazer para retribuir o lindo passeio de quinta-feira. Gostamos demais, minha Augusta ficou extasiada. Ah, prima — levantou a voz e virou-se para o canto onde Dora fingia bordar —, sou tão distraída! Como foi seu passeio com sir James? Há novidades? Nenhuma — respondeu Dora, seca, e com o canto dos olhos percebeu que Carruthers se divertia. Sir Giles entrou. A conversa masculina que se seguiu só foi interrompida pelo mordomo, anunciando a chegada dos Farley. A família tinha o ar provinciano de sempre e talvez isso a tornasse mais cativante. Edgar estava corado e parecia feliz, o que deixou Theodora surpresa: não tinha jeito de quem só podia ver de longe a jovem que amava. A sra. Farley aguentou por alguns minutos as amabilidades frias da anfitriã, explicou ao primo Carruthers que dispensava a poltrona colocada junto da lareira e aproximou-se da srta. Thornfield. Que lindo trabalho, minha querida — disse, em voz alta e, em voz baixa: — Conseguimos! Ele perguntou a Selina se podia visitá-la! Que boa notícia! — murmurou Dora. Olhou para Selina, que conversava com o irmão e Lawrence. Ela não parecia uma solteirona sofredora. Parecia feliz. Dora e a sra. Farley entreolharam-se, sorrindo. Os meus filhos estão bem postos na vida — suspirou a senhora —, embora seja prematuro falar de solução feliz para Selina. Mas estou esperançosa. Os seus filhos? — indagou Dora, surpresa. Ah… — a velha senhora hesitou. — Desculpe, acho que falei demais. É um assunto de família. — Não se preocupe — pediu ela, perplexa. Lady Bracken atravessou a sala. — Conversando com a sra. Farley, Theodora? Que ótimo! Mas, seja um anjo e veja o que está atrasando Augusta. O jantar será servido logo e o sr. Carruthers a levará à mesa. Dora subiu, esperando que Augusta não tivesse se escondido no guarda-roupa. Bateu à porta e entrou no quarto. Parecia vazio. Quando abriu o cortinado cor-de-rosa da cama, deparou com a figurinha triste, vestida de musselina branca. Querida, não quer atrasar o jantar, não é? Oh, Dora! Como posso descer? — perguntou a menina, com olhar desesperado. — Estou tão envergonhada! Dora sentou-se na beirada da cama e abraçou a priminha. Tudo vai acabar bem. O sr. Carruthers jurou… Ele foi tão bom comigo! — suspirou Augusta. — Mas como eu ia imaginar que você acharia tudo um escândalo? Augusta, acho que todo mundo pensaria como eu — retrucou Dora, surpresa. Quer dizer que se alguém descobrir o que fiz… — disse a menina, trémula e angustiada. Não deve falar disso com ninguém. E se você casar logo, o erro cometido não fará diferença. Aliás, a situação dura há muito tempo? Há semanas — admitiu Augusta, baixinho. Deus do céu! Que homem horrível! — Dora abraçou a prima. — Diga, você notou… hum… algum efeito esquisito? Do que você está falando, Dora? Ela achou que uma mocinha talvez não soubesse que o contato amoroso poderia deixá-la grávida. Não queria chamar a atenção de Augusta para isso. O casamento tinha de ser logo! Não pôde continuar a conversa porque o lacaio veio avisar que o jantar estava servido. — Oh! — exclamou Dora. — Esqueci do jantar! Desça e não se preocupe. A culpa não foi sua. Como poderia resistir a um canalha tão experiente? Augusta, que alisava o vestido e beliscava as faces pálidas, imobilizou-se, estarrecida. Você disse um canalha tão experiente! — repetiu, confusa. Esqueça e acalme-se — pediu Dora, abraçando-a. Estou feliz por você achar que a culpa não foi minha. Fiquei com tanto medo de falar com você depois de… Ashvale! Querida, sempre seremos amigas! — declarou Dora, com um sorrido cheio de ternura. Para Theodora, o jantar foi um verdadeiro treino de paciência. Lady Bracken convidara o capitão Laughton, com o velho e riquíssimo tio, o general Percival Laughton. Colocara o general de um lado de Dora; como ele era meio surdo e bastante míope, dedicou-se mais ao jantar do que à conversa. A sra. Farley, sentada do outro lado, também não conseguiu resposta quando perguntou a ele sobre a gota que o atormentava. Por enquanto, a mania de sir Percival atacar mulheres, quando bebia demais, ainda não se manifestara e Dora sentia-se feliz por isso. Seria terrível ele beliscar a sra. Farley! Do outro lado da mesa, o capitão Laughton, sentado entre Augusta e Selina Farley, sorria para Theodora de vez em quando. Arrancava algumas frases de Edgar Farley, quando ele não ficava alheio, olhando Augusta com ar extasiado. O senhor vai ficar mais em Londres? Sim, senhor — respondeu Edgar, amável. — O primo Lawrence recomendou que não tivéssemos pressa de ir embora. Ele é o melhor dos homens! — Ele vibrava de entusiasmo. Dora teve compaixão de Edgar, que não sabia como seu admirado primo era covarde. Olhou para o outro extremo da mesa, onde Car-ruthers, à direita de lady Bracken, conversava em voz baixa com Augusta e nem viu seu olhar furioso. O sr. Carruthers é um homem interessante — disse, então, a sra. Farley. Ele fez tudo para nos sentirmos bem em Londres… Acredito que tenha apresentado o senhor a pessoas influentes na sua carreira? — insistiu Dora. Não havia necessidade, mas ele me apresentou vários homens influentes da igreja. Não era necessário? O senhor não precisa se estabelecer? —indagou ela, antes de perceber que era indelicada. Edgar não ficou ofendido. — Sou um pastor, senhora. Ficaria satisfeito se obtivesse uma igreja… Mas essas coisas costumam acontecer sozinhas. Dora ficou imaginando se o jovem Farley aludia à providência divina ou se era um ingénuo. Durante o jantar, o general tinha se mantido em silêncio, apesar de sua terrível reputação. Quando os cavalheiros voltaram a se reunir com as senhoras, Dora ficou paralisada ao vê-lo aproximar-se em passos rápidos. Você é uma bela potranca! — proclamou, com olhar cobiçoso, enquanto o sobrinho chegava, apressado. Tio, sir Giles tem uma edição rara de Beatson. Quer mostrá-la ao senhor. Venha comigo… O general grunhiu, mas se deixou levar até o anfitrião, que piscou maroto para Dora. Ela mal pôde disfarçar um sorriso e disse a Laughton: Os cavalheiros foram muito amáveis! O general começou a louvar as suas qualidades quando passou para a segunda garrafa — explicou o capitão, rindo. — Por favor, evite chegar perto dele… Foram interrompidos pela dona da casa, que chamou o capitão para ouvir Augusta tocar harpa. Esses recitais da mocinha eram o purgatório dos jantares mais íntimos. Distraída, Dora pensava que Laughton era muito simpático. Com o tempo, depois de esquecer Law-rence, talvez pudesse deixar que ele a amasse. A senhorita parece-me estranha — murmurou a voz de Carruthers, muito perto do ouvido dela. — Espero que não seja por causa do general. Garanto que é um cavalheiro inofensivo. Um cavalheiro inofensivo seria muito agradável, depois de minhas recentes experiências — retrucouela, suave. É mesmo? Agora, quero falar com a senhora. — Tomou-a por um braço e levou-a a um canto isolado. — Estou feliz por saber que uma de suas interpretações erradas foi esclarecida. Augusta disse que a senhorita já sabe tudo a respeito da pequena ousadia dela e que foi perdoada. Admita que acusou falsamente a mim e à mocinha, com sua conclusão absurda. Agora que sabe, acho que nós dois podemos recomeçar. Dora estremeceu. Seguira-o sem se desvencilhar, para não provocar uma cena, mas isto era demais! —Como ousa, sr. Carruthers? Já disse e repito: não quero nada com o sedutor daquela pobre menina. O senhor tem de casar com ela o mais breve possível. Eu disse a Augusta que serei eternamente sua amiga e que a ajudarei sempre. E acho que ela vai precisar! Voltou-se e atravessou a sala com pose altiva e passo marcial. Sentou-se ao lado da prima Maud. Durante o resto da noite, levantou-se apenas para servir chá e ir buscar um xale para lady Bracken. Ignorou os olhares irónicos de Lawrence e não deu atenção, à rápida troca de sussurros entre ele e Augusta, no fim da reunião. Estava cansada das atitudes malucas daquele casal de amantes! Capitulo XVI O sono de Dora foi agitado. Imagens de Lawrence povoavam-lhe os sonhos. Por volta das cinco da manhã, revirou-se mais uma vez na cama. —Dora! — sussurrou uma voz além do cortinado. Logo depois, a cabecinha de Augusta, de touca e iluminada por uma vela, apareceu na fresta do cortinado. Ah! Você está acordada — disse, com um suspiro fundo. Mais ou menos — resmungou Dora, colocando mais um travesseiro atrás das costas para ficar sentada. Augusta colocou a vela na mesinha-de-cabeceira e ajudou-a. Então, deixou-se cair na beira da cama, com os olhos muito abertos e brilhantes. Falou, num repente: Não consegui esperar! Dora, o sr. Carruthers me disse que preciso contar todos os pormenores a você, o mais depressa possível, e ainda falta muito para a hora de levantar. Carruthers? Pormenores? — perguntou Dora, ainda sonolenta. De repente, arregalou os olhos. — Que pormenores? Tenho certeza de que ele não quer que… Ele disse que você não sabe tudo sobre o caso que a fez zangar tanto comigo… — disse a mocinha, envergonhada. Dora não tinha certeza de querer saber tudo… Olhe, Augusta, não importa o que ele disse. Acredito que ele não queira que fiquemos constrangidas… — "Mas acho que ele quer, sim, que eu fique constrangida!", pensou. Tive de prometer, prima! — declarou Augusta, com a pose da mãe quando tomava uma atitude. Theodora suspirou, fechou os olhos e tentou se controlar. Tudo começou no baile dos Vining — falou a garota, suspirando. — Eu não conhecia o sr. Carruthers, embora ele visitasse muito o papai. Mas já ouvira falar nele, porque meu Edgar é seu herdeiro. Seu Edgar? — interrompeu Dora, afoita. — Menina querida, você não continua gostando do sr. Farley, não é? Claro, Dora! Ele é o homem que eu amo! Dora ficou boquiaberta. Era demais! Sabia que meu casamento com Edgar era impossível — continuou Augusta, depressa. — Então, criei coragem para falar com o sr. Carruthers. Achava que um homem rico como ele, de certa forma, tem obrigação de ajudar um parente moço e pobre! — É, pelo menos em teoria — concordou Dora, confusa. Ficou mais confusa, ainda, quando a menina a abraçou. — Eu sabia que você concordaria! Tive de esconder tudo de mamãe e de papai. Também não podia contar a você… Dora começou a duvidar do juízo da priminha. Que história era aquela do rico ajudar o pobre? E de vez em quando você fica implicante! — desabafou a garota. Implicante? — Dora ia reagir, mas reconheceu que a crítica até que era justa. — Acha que eu devia aprovar sua desonra? O quê? Minha desonra? Sei que zangou comigo por eu desrespeitar as conveniências. Sei que pedir ao sr. Carruthers que ajudasse Edgar foi muita audácia, mas não acho que seja desonroso! E me orgulho de ter feito isso! Dora ainda não havia entendido. Augusta — disse, devagar —, quer dizer que tudo o que você fez foi pedir a ajuda dele para seu namorado? Naturalmente! Não podia perder a chance de ajudar meu Edgar a abrir caminho na vida. Tive de aproveitar, pois quem garantia que o sr. Carruthers dançaria de novo comigo? E ele foi muito simpático. Logo se dispôs a nos ajudar. Quando você descobriu, fiquei com medo que contasse a mamãe. Ela ia me censurar a vida inteira por eu ter feito algo que deu a Edgar os meios para se casar comigo. E ele vai se casar com você? Vai! — Augusta sorriu, feliz. — O sr. Carruthers deu a renda de Ashvale para Edgar. É uma boa renda, sabe? Vamos morar lá. Vou ter bastante trabalho, ajeitando o presbitério. Lawrence prometeu mobiliá-lo, como presente de casamento. Dora já não ouvia. Os fatos se encaixavam. Ele não tinha seduzido Augusta. A conversa que ouvira em Ashvale combinava com aquilo. "Você fez isso por amor", tinha dito ele, acalmando os escrúpulos da mocinha, por ter guardado segredo. Você foi muito corajosa, Augusta! Falou com um homem que não conhecia, para ajudar Edgar. É digna de admiração! Jure que não conta para o papai e a mamãe! Acho que meu pai pode até achar graça, mas mamãe teria ataques. Quando Edgar chegar, hoje de manhã, para pedir minha mão, meus pais terão apenas de saber que o sr. Carruthers deu a renda de Ashvale para Edgar. Ele até me agradeceu por lembrá-lo de suas responsabilidades e disse que Edgar era um rapaz de sorte, por ter uma noiva como eu… Você já se considera noiva de Edgar? Dora, estamos comprometidos desde que eu tinha quinze anos —respondeu a menina com ar solene —, e damos valor aos compromissos. É claro! — comentou Dora, contendo o riso. Vai dizer ao sr. Carruthers que contei tudo? Ele foi muito severo comigo, ontem à noite. Por que será, Dora? Ela sacudiu os ombros. Não podia responder. Sua opinião sobre Lawrence mudara, mas não o tornara mais aceitável. Ele ainda a queria como amante! Convenceu a priminha a voltar a dormir e ficou pensando, sem chegar a nenhuma conclusão, a não ser que não pediria desculpas a Carruthers por ter interpretado mal seu relacionamento com Augusta. A reação de lady Bracken foi como Dora esperava. Augusta anunciou, tranquila: — Mamãe, vou me casar. Prima Maud interrompeu o monólogo de autopromoção que Dora ouvia, enquanto fazia uma franja, olhou para a filha, para a prima a seu lado e, por fim, para o marido. — Sir Giles, isso é uma loucura! — gritou, levantando-se e, depois, desmaiou. Dora correu para pegar os sais, recomendando a Greaves para dizer às eventuais visitas que a família não estava em casa. Quando voltou, a prima tinha se recuperado e falava: Sir Giles, esse rapaz, por acaso, tem renda? Os homens mais importantes da cidade correm atrás de Augusta e o senhor vai dá-la a esse… esse garoto estúpido? Devo protestar, senhora. Terminei meus estudos com louvor! — disse Edgar Farley, vermelho. Lady Bracken não tomou conhecimento dele e voltou-se para Dora. Francamente, prima! Nunca pensei que fosse grosseira a ponto de se intrometer num assunto de família. Vim apenas trazer os sais, prima Maud — respondeu Dora, suave, e colocou o frasco na mesinha. Acrescentou: — Parabéns pelo noivado, Augusta querida! Oh! — Os olhos de lady Bracken soltaram chamas. Maudie quer dizer que agradece o cumprimento — interferiu sir Giles. — Ela está emocionada demais com a notícia. É claro, primo… Deixo-os, então, para a conferência familiar — disse Dora, sorrindo. — Dou-lhe licença porque será mais agradável para você, querida — falou sir Giles, levantando-se. — Mas saiba que é, também, mem bro da nossa família. Tire folga, divirta-se. Dora não se sentira insultada pelas palavras da prima e um dia inteiro de folga era coisa boa demais para se desperdiçar. Resolveu escrever para as irmãs, anunciando o casamento iminente de Augusta. Bateram à porta de seu quarto. Com licença, senhora. Trouxeram isto e o lacaio espera a resposta — disse Betsy, a arrumadeira, entregando um envelopoe perfumadíssimo endereçado a "Mademoiselle Thornfield".Obrigada, Betsy. Pode ir. Deve ser da… da minha antiga governanta francesa. Levo a resposta pessoalmente. A criada retirou-se e ela abriu o envelope com mãos trémulas. Tinha lacre púrpura, com o emblema que Dora já conhecia. No interior, um bilhete: "Preciso vê-la imediatamente. Venha com o lacaio. Y". Ir com o lacaio? Para onde? Yvette já fizera uma cena histérica. Será que precisava ter mais certeza de que ela não era sua rival? Ou, quem sabe, fora castigada e queria avisá-la? De repente, decidiu. Guardou a carta que escrevia para Mary, dobrou o envelope perfumado, com o bilhete, e colocou-o na bolsa. Pegou a capa, o chapéu e desceu a escada. Capitulo XVII Um lacaio, alto e musculoso, com a vistosa libré, esperava no hall, sob o olhar desaprovador de Greaves. Um carruagem fechada a esperava. Tinha o mesmo emblema que o envelope. Avisou Greaves que voltaria para o jantar. Saiu, entrou na carruagem, que se deslocou devagar, na rua muito movimentada. De vez em quando afastava um pouquinho a cortina e olhava para fora. Então, estranhou o caminho: a rua Charles ficava em outra di-reção. Tocou a campainha, mas não a atenderam. — Estão me sequestrando! — murmurou, atónita. Mas era tão improvável que alguém quisesse sequestrá-la, que ela não viu nenhum drama. Com certeza, Yvette a esperava. Surpreendeu-se ao ver que se encontrava fora da cidade. Afinal, a viagem terminou. A porta se abriu e os degraus foram desdobrados pelo mesmo lacaio. Ela desceu e olhou ao redor. Espero que tenha uma explicação, meu bom homem. Puxei o cordão da campainha cinco vezes e não me atendeu! Sim, senhora — respondeu o lacaio, impassível. Dora viu que estava diante de uma casa no meio de um jardim florido. Não havia casas à vista. Queira entrar, senhora — pediu o lacaio, sério. Pelo jeito, ela não tinha escolha, mas tentou. Não. Prefiro voltar para Londres, por favor. Receio que é impossível, senhora. O cocheiro também desceu da carruagem. Era tão grande, ou até maior do que o lacaio. Dora atravessou o jardim e entrou na casa. O hall, pequeno, parecia uma miniatura de sala medieval. A escada tinha corrimão de madeira entalhada. À direita, uma porta aberta dava para uma sala decorada no estilo predileto de Yvette. — Srta. Yvette! Responda, por favor! Silêncio. Dora irritou-se porque sua voz soara trémula. Viu um livro aberto sobre a mesa e pegou-o. Começou a ler e, depois de algum tempo, tirou a capa e o chapéu. Distraída com a leitura, não percebeu que a porta se abria. — Ah! O quê? — ribombou uma voz rouquenha. — Você é mesmo um bichinho encantador! Já não a vi em algum lugar? Estarrecida, Dora viu o general Percival Laughton. Fechou o livro e levantou-se. Lembrou que ele não ouvia bem. Olá, general — falou, em voz bem alta. — O senhor também veio visitar a srta. Yvette? Como é? Yvette? — perguntou o velho, fitando-a com insistência. — Aquela sirigaita disse que valeria a pena eu vir até aqui. Fui ontem ao baile das cortesãs e perguntei se conhecia alguma carneirinha nova. Ela disse que ia me arranjar uma raridade! Aquela mulher é uma criminosa! Ela virá aqui? — indagou ela, batendo com a bolsa na mão do general, que tentava apalpá-la. Ele resmungou algo sobre gostar de mulheres bravas. Faz tempo que está na profissão, queridinha? Vou te dar mais cinco guinéus se você me… Senhor! Não sou uma mulher da vida! Sir Percival parou de tentar abraçá-la. Tinha ouvido. — Tolice! Você está aqui, não? Sente no meu colo… Dora procurava na sala algo para distrair o velho, então viu uma garrafa de vinho e ofereceu a bebida a ele, na esperança de que caísse bêbado. — Vinho aguado! — grunhiu o velho, enquanto Dora lhe servia mais um copo. Depois do terceiro, ela achou que não iria conseguir o que queria, mas enquanto tivesse vinho, ele ia beber e não seria perigoso. Só que a bebida acabou. Boa potranca! — bufou o general. — Vamos subir? Deixe-me ir primeiro, para me preparar — berrou Dora. O general concordou, satisfeito. Ela saiu da sala, fechando a porta, e procurou uma saída. Descobriu que todas as portas que davam para fora estavam trancadas. Yvette e seus criados tinham feito um bom trabalho. Não entendia por que ela mandara o velho general. A cortesã devia saber que qualquer mulher com menos de cinqueta anos poderia enganar o velho. Ficou indecisa, depois subiu para o andar superior. Havia vários quartos, mas ela preferiu ficar numa saleta: era mais prudente manter as camas longe! Olhou pela janela e viu que a carruagem havia desaparecido, mas os dois homens estavam lá. Foi para o quarto, do outro lado do corredor. Afastou as cortinas de veludo cor-de-rosa e viu um pequeno pátio, cercado por um muro alto. Não havia porta. Se conseguisse escalar o muro e entrar no mato… Praguejando contra Yvette e desejando ter ficado em casa, voltou ao corredor para verificar outro quarto. — Achei você, belezinha! — gritou o general, segurando-a. General, ordeno que pare! — exclamou ela, exasperada. Mulher briguenta! — grunhiu o velho. Pôs a mão enorme numa nádega de Dora. — Está mais divertido do que eu esperava! Vou gritar! — exclamou Dora, quase aos berros. Com gargalhadas guturais, o general empurrou-a para um quarto. Ela lutava como podia, mas suas pernas tocaram em alguma coisa e Dora caiu para trás. Perdeu o fôlego: estava sobre uma cama, com o general por cima dela. Socorro! — gritou, empurrando o rosto do homem, para evitar que a beijasse. Então, srta. Thornfield — perguntou uma voz risonha, da porta —, o que está acontecendo aqui? Capitulo XVIII Antes do almoço, naquele mesmo dia, Lawrence Carruthers fora até a residência dos Bracken, esperando se divertir. Sabia que Augusta ia contar "tudo" à srta. Thornfield; sabia, também, que Edgar Farley pediria a mão da mocinha. A expressão de Dora ao descobrir seu erro e a derrota de lady Bracken eram espetáculos que não queria perder. A família não está em casa — dissera Greaves, inclinando-se, pesaroso, enquanto recebia o cartão do cavalheiro. Que pena! Ninguém, mesmo? Talvez a srta. Thornfield? Ela saiu, senhor, e o resto da família está indisposto. Saiu, hein? — Carruthers sorriu, esperando que o mordomo lhe indicasse aonde ela havia ido. O mordomo observou a cavalheiro por instantes e disse: O senhor é um bom amigo da família… Acho que não fica bem uma jovem sair em carruagens fechadas. Nossa arrumadeira disse que a srta. Thornfield recebeu um bilhete de sua velha governanta francesa e achei isso esquisito. Disse que voltaria para o jantar. A velha governanta francesa? A carruagem tinha um emblema púrpura e os criados usavam libré vermelha e púrpura? , — Sim, senhor. — Conheço a "velha governanta"! Vou buscar a srta. Thornfield na casa dela. Minutos depois, outro mordomo abria a porta para Lawrence Carruthers. Como vai, Farnham? Mademoiselle está? Imagino que esteja com uma visita, mas pode me anunciar. Visita? Não, senhor. Mademoiselle está sozinha, mas vou ver se pode recebê-lo. Carruthers foi esperar na sala cor-de-rosa. Laurent! — exclamou Yvette, envolta em panos brancos transparentes, esvoaçantes. — Estou feliz em vê-lo, chéri. Onde está a srta. Thornfield? — indagou ele, afastando-a de si. Quem? — perguntou Yvette, fingindo não entender. Deixe de ser engraçadinha! Sei que sua carruagem apanhou Theodora Thornfield, na rua Albermale. O que fez com ela? — A expressão dele era ameaçadora. Yvette encolheu os ombros, fazendo a roupa deslizar. Pode procurar, Laurent! Não há ninguém aqui. Nesse caso, onde ela está, mulherzinha ardilosa? — perguntou ele, desconfiado. Não sei do que está falando… — rebateu ela, firme. Yvette, estou avisando que… Está bem! Se quer, mesmo, saber — respondeu ela, erguendo os olhos, raivosos —, sua amiguinha me suplicou que lhe emprestasse a carruagem. Emprestei, para que ela usasse como e onde quisesse. É claro que ela tem um amante, que precisa ser discreta, mas insiste em fingir que é uma solteirona inocente! Mentirosa! — rosnou Carruthers, agarrando-a pelosombros. — Como se atreveu a interferir na vida de uma mulher respeitável? Para onde a mandou? Ela faz só o que quer! Um homem de verdade não se deixaria enganar por aquela pose de virgem intocada! Yvette, só não a esgano porque tenho pena de você! Onde ela está?! Bem ela… ela falou na minha casinha de campo… — disse a francesa, depois de hesitar um pouco. No Surrey? É verdade? A voz dele demonstrava tanta preocupação que Yvette teve vontade de arranhar-lhe o rosto. — Ela está lá, sim! — gritou. Como o imbecil ligava tanto para uma virgem desajeitada? — Você vai ter uma surpresa, idiota! Com expressão irónica, ele disse: Coitadinha! Você não sabe, mesmo, quando uma brincadeira termina… Tenho bons motivos para achar que você trouxe a srta. Thornfield aqui, para chocá-la, e lhe disse que eu planejava torná-la minha amante… Monstre! — estrilou a francesa, furiosa. Não a faço pagar por isso, porque sei que já está pagando, todos os dias! Adeus. Na mansão dos Bracken, a família havia chegado a um armistício. Sir Giles, com expressão satisfeita e maliciosa, que sua esposa achava cruel, estava em seu gabinete, redigindo o esboço do contrato nupcial, para discuti-lo depois com Carruthers, como conselheiro de Edgar Farley. Maud conseguiu arrastar-se até seus aposentos, com uma expressão de intenso sofrimento estampada no rosto. Deixou Augusta e Edgar sozinhos, e os namorados aproveitaram para se conhecer melhor, até que Greaves, pigarreando, abriu a porta da sala e a deixou escancarada. — Vamos nos casar mesmo, Edgar! — suspirou Augusta. Se sua mãe conseguir impor a vontade dela, vai ser difícil…— respondeu Edgar, beijando-lhe a face. Papai está do nosso lado, não se preocupe. Tenho pena de Dora, que vai ter de aguentar mamãe! Greaves teve de abandonar seu posto de observação, quando alguém bateu à porta de entrada. Era o capitão Laughton. A famílianão está em casa, senhor — avisou Greaves. Trouxe uma carta para lady Bracken — explicou o capitão, mostrando um envelope com lacre púrpura. Uma carta? — Greaves refletiu: casos urgentes mereciam atenção e o envelope era igual ao recebido pela srta. Thornfield. — Lady Bracken está indisposta, mas o senhor acha que é urgente? Mais ou menos. Devo dizer que é uma situação misteriosa —respondeu o capitão, entrando no hall. — Tenho de esperar a resposta — explicou. Greaves entregou o envelope a um lacaio, que o levou para Meeker, a camareira de lady Bracken. Em menos de cinco minutos Meeker desceu a escada aos pulos. — Senhor capitão, lady Bracken descerá já. Quando a senhora desceu, estava vestida para sair e seu rosto ostentava uma expressão dura, belicosa. O senhor leu isto, capitão? — perguntou, depois dos cumprimentos. Não, mas estava incluído na carta que recebi, explicandb que devia entregar esse envelope à senhora. Parece que sua presença é necessária para sermos admitidos no local. É claro que sim! Greaves — ordenou a dama —, diga a sir Giles que voltarei o mais depressa possível. A senhora estará aqui para o jantar? Atrase o jantar em uma hora — respondeu ela, depois de pensar um pouco. — Se eu não voltar, sir Giles pode jantar com Augusta e aquele moço horrível. Está bem, senhora. E a srta. Thornfield? Ela! — Lady Bracken fungou, com expressão altiva. — Aquela vagabunda não voltará mais, se depender de mim! O mordomo inclinou-se, sem saber o que dizer, diante da surpreendente declaração. O capitão Laughton observava lady Bracken perplexo, enquanto saíam da mansão. Recebera uma carta anónima dizendo que a srta. Thornfield encontrava-se em perigo e que os seqiiestradores requeriam a presença de lady Bracken para libertá-la. Mas a orgulhosa senhora logo explicou que sua prima não era uma vítima. A carta que recebera demonstrava uma situação sórdida. Capitulo XIX Dora ofegava, enquanto se debatia. Apesar da presença de outra pessoa, o general não parecia disposto a desistir. Ela queria gritar por socorro, mas não conseguia porque o peso do velho lhe comprimia o peito. Soltou, por fim, uma espécie de guincho. Alguém ergueu sir Percival e ela conseguiu voltar a respirar. Perdoe a exuberância de meu tio, srta. Thornfield — falou o capitão Laughton, sorrindo. — Então, tio, vamos… — E arrastou-o até uma poltrona, do outro lado do quarto. Maldita interferência! — bufou o velho, zangado, resistindo a cada passo. — Ela é uma coisinha de primeira qualidade, entende? Você pode ficar com ela amanhã. Tio, se esta dama conseguir perdoar o senhor, poderá se considerar feliz. E como não posso desafiar meu parente mais idoso para um duelo, vai continuar vivo. Dora tentou sorrir, sentou-se na cama toda desarrumada e quase engasgou de horror. Lady Bracken encontrava-se, majestosa, parada à porta. — Prima! — disse ela, colocando a mão sobre o coração. — Não sabia que você era uma depravada. E pensar que a acolhi em minha casa tão limpa, coloquei minha inocente filha em contato com uma…uma cortesã! Quando saía para passear ou visitar lady Lavenham, na verdade você tratava deste baixo comércio! Guardando um dinheirinho para a velhice, aposto! Ou será que é, apenas, uma criatura revoltante, que precisa satisfazer seus baixos instintos? Dora suspirou. Não sabia se devia rir ou chorar. — Todos vão saber que você é uma rameira! — continuou a prima Maud, com voz estridente. — Vou escrever para suas irmãs e du vido que as portas delas fiquem abertas para você, depois que souberem desta situação nojenta. Vou informar toda a sociedade desta vergonha! Isso é mais importante do que preservar o bom nome da família! Assim, nunca mais poderá se introduzir num lar honrado, sujando-o com sua perversão. O capitão Laughton havia tirado o tio do quarto, levando-o para uma saleta em frente. Voltou e sentou-se na cama, ao lado de Dora. — Senhorita Thornfield — disse, calmo, pegando-lhe uma das mãos. — Acho que a senhora tem um cruel inimigo. Sabe de alguém que gostaria de vê-la desonrada? Dora hesitou. Sabia que Yvette havia preparado aquilo tudo, manejando para que a prima e o capitão a encontrassem em situação comprometedora com o general. Mas como admitir que conhecia aquela criatura? Havia jurado que não revelaria o encontro com Yvette. Nunca soube que tinha inimigos… — murmurou, triste. Inimigos! Isso é ridículo, capitão! — exclamou lady Bracken, que havia voltado para perto da porta. — Uma boa alma indicou o que iríamos descobrir. É só. Vocês, homens, são ingénuos. Uma boa alma? — perguntou Dora, fitando tristemente o capitão. Recebi uma carta anónima — explicou ele, calmo —, dizendo que a senhora estava em perigo, neste endereço, nas mãos de seqúestradores. Havia outra carta, que eu deveria entregar para lady Bracken, com maiores informações. O senhor quer dizer, informando sobre os fatos! — interferiu a prima Maud. Retirou uma folha de papel da bolsa e voltou para perto da cama, abanando-a diante do nariz de Theodora. Ela pegou o papel e leu: "Acredito que madame gostará de saber que abriga uma vipere em seu lar. A Thornfield marcou encontro com um de seus ricos amantes, para esta tarde, no endereço conhecido pelo portador". — Meu Deus! — exclamou, aflita. — Acho que o senhor foi requisitado para cuidar de seu tio… — Acho que sim — confirmou o capitão. — Minha carta especificava que não poderia entrar na casa, a não ser em companhia de lady Bracken. Quem quer que seja, sabia que sua prima ia acreditar nessas coisas! Pode nos contar como foi trazida até aqui? Mais uma vez, Dora viu-se obrigada a esconder a verdade. . Avisaram-me que uma amiga precisava me ver, com urgência, e que uma carruagem esperava para me levar até ela. Quando vi que saíamos da cidade, nada pude fazer. Quando chegamos aqui, o cocheiro e seu ajudante me obrigaram a entrar na casa. Imagino que sejam dois homens altos, musculosos, mal vestidos, que vimos vigiando a porta… Devem ser os mesmos — respondeu ela, achando que deveriam ter trocado de roupa. — Eram muito grandes, sim… Eles fugiram quando nos viram — explicou Laughton. —O que não entendo é como meu tio se prestou a este papel. Mas tio Percival não é de muita confiança quando bebe e jamais recusa uma companhia feminina… Alguém deve ter dito a ele que uma mulher de vida fácil o esperava aqui — sugeriu Dora, pensativa. E esperava, mesmo! — esganiçou-se lady Bracken. — Eu devia ter pena de uma criatura desavergonhada como você, mas a tentativa de nos enganar foi demais. Você veio para cá pela tentação do dinheiro ou do pecado! Ora, lady Bracken, cale a boca! — exclamou o capitão, zangado. Deu umas palmadinhas carinhosas no ombro de Dora e falou, suave: — Eu devia levá-la para casa… a senhora parece exausta. O desgraçado do meu tio colocou-a em uma situação que mulher nenhuma deveria enfrentar. Não culpe sir Percival — pediu Dora, aflita. — Ele acreditou no que o fizeram acreditar. Infelizmente, é surdo e não ouviu minhas explicações. Aposto que foi por isso que o escolheram — comentou o sobrinho do velho. — Mas ele deveria ter respeitado a sua relutância! É exatamente o que penso! — interferiu lady Bracken. — Relutância! Pois sim… Nós os encontramos rolando na cama e o senhor se atreve a acreditar no que afirma esta meretriz, que foi atraída até aqui com um ardil? Para mim chega, capitão. Vou embora com a sua carruagem e, se quiser me acompanhar, se apresse. Deixe esta criatura chafurdar na própria imundície! Lady Bracken atravessou o quarto e parou à porta, ao chamado de Laughton: Lady Bracken, espere! Vou levar a srta. Thornfield para casa e agradeço se a senhora não usar minha carruagem! Para casa! Que casa? É claro que nunca mais permitirei que ela entra na minha casa. E se o senhor pensa em levá-la para a sua, toda Londres saberá disso até amanhã de manhã! — prometeu a dama, virando as costas e quase colidindo com Carruthers. Acredito, minha senhora, que a questão do lar da srta. Thornfield pode ser respondida de maneira satisfatória por mim — disse ele, passando por lady Bracken e entrando no quarto. Ao vê-lo, Dora ficou atónita. Depois abaixou a cabeça. Só faltava isso! Pela primeira vez pensou na desordem de suas roupas e cabelos. Sentiu o olhar de Lawrence carregado de ansiedade e de ardente carinho. — Oh, Dora! — gritou uma voz feminina, e lady Lavenham entrou, correndo, indo sentar-se junto da amiga. — Amélia! — Ela jamais ficara tão feliz ao ver outra pessoa. Viu que a amiga usava véu preto, espesso, próprio para encontros clandestinos, e sorriu. — Carruthers me trouxe por uma questão de conveniência — explicou Amélia. — Como vai, capitão? Lady Bracken? Não sabíamos que alguém ia nos preceder na operação de resgate… — Resgate!? — fungou a prima Maud, em fúria. — Sua grande amiga, lady Lavenham, conseguiu ocultar uma carreira triunfal de meretriz atrás de uma pose de modéstia. Considero minha obrigação trazer a público essa vergonha. Amélia caiu na gargalhada. Laughton levantou-se para ir apertar a mão de Carruthers e os dois falaram em voz baixa. — Fale mais alto, capitão! — exigiu lady Bracken. Mas foi Carruthers que se incumbiu de informá-la: — Estávamos dizendo que a prima da senhora sofreu a agressão de uma criatura de baixa classe, que desejava prejudicá-la. E logo através do general Laughton! Só a mais vil criatura poderia expor uma moça a tal vegonha. Pessoalmente, só consigo pensar numa pessoa cruel o bastante para cometer esse tipo de crime! — E lançou um olhar furioso para a orgulhosa lady. Amélia logo viu onde Lawrence queria chegar. — Maud! Que vergonha! — exclamou, com ar horrorizado. — Eu sabia que você tinha inveja do sucesso de Theodora com os homens, porque tinha medo que ela prejudicasse sua filha… mas fazer uma coisa destas! O que vai dizer lady Cowper? Ou madame de Lieven? Dora achou melhor ficar calada. A acusação era falsa, mas a prima Maud participaria dessa conspiração, se tivesse tido conhecimento dela. Quê?! Quê?! — lady Bracken, com uma das mãos a comprimir o coração, voltou para dentro do quarto e deixou-se cair numa poltrona de veludo vermelho. — Meu Deus! Como se eu pudesse conspirar para envergonhar esta mulher! Pelo que vi, ela não precisa de qualquer ajuda da minha parte, porque está a caminho da desonra por si só! — Seus olhos frios e escuros fitaram Dora com raiva. — E não pense que não vou contar tudo a sir Perry! Imagine só! Você vivendo na mesma casa com aquelas doces e inocentes filhas dele. — Sacudiu a cabeça, fingindo tristeza. — Muitas mulheres de vida fácil tentaram se estabelecer através do casamento, mas você não vai conseguir, prima! Oh, prima Maud — disse Dora, com um suspiro. — Por que não vai embora? Não fiz nada de errado, e estou cansada de ouvir suas injúrias! Concordo com a senhorita, milady — apoiou Carruthers, sério. — Ela não tem qualquer culpa, posso jurar, e a senhora realmente se excedeu nas ofensas. — Voltou-se para Laughton: — Capitão, posso lhe pedir que leve lady Bracken para casa? E, por favor, lembre à senhora que a sociedade não perdoará quem perpetrou essa maldade. De fato, é um ato indigno da esposa de sir GAes. E pode, também, lembrar à senhora o quanto o marido e a filha gostam da srta. Thornfield. — Aliás, pode lembrar, também, à senhora, que sou íntima das mais afiadas línguas do grupo — acrescentou Amélia, sorrindo, sentada ao lado de Dora. O capitão assentiu e os brilhantes olhos azuis indicavam o quanto se divertia com as exclamações de horror de lady Bracken a cada nova investida. Apertou mais uma vez a mão de Carruthers, aproximou-se de Theodora e colocou um joelho no chão. — Minha querida, pensei ser a pessoa apropriada para resgatá-la desta situação, mas olhava para seu rosto quando certa pessoa entrou. Não sou o escolhido, não é? — Oh, capitão… — suspirou Dora, triste, e tocou-lhe o rosto com a mão. — Que romântico! — exclamou Amélia, batendo palmas. — Acho que estou sobrando. Querem que os deixemos a sós? — Não, senhora — respondeu o capitão Laughton, erguendo-se e beijando a mão de Dora. — Não é preciso. Uma boa-tarde… Foi mais uma vez para a porta, onde se encontravam Carruthers e lady Bracken. Ambos tinham observado a cena. O rosto transtornado de Lawrence espelhava todo seu ciúme e a dama mostrava-se enojada. Vamos, senhora — convidou o capitão. — É possível que a senhora chegue a tempo para o jantar. Que coisa! — As palavras carinhosas que acabara de ouvir haviam despertado a fúria de lady Bracken. — Capitão, eu ia comunicar a notícia com delicadeza, mas vou dizer logo. Minha filha ficou noiva de outro homem. E devo dizer que neste momento estou feliz por isso ter acontecido. Ah! Vejo que será uma agradável volta ao lar… — observou ele, sorrindo. — Pode ser, até, que eu viaje junto com o cocheiro. Mas o que faremos com meu tio? O grupo refletiu por alguns momentos. Havia minutos o velho general roncava na saleta em frente. Por que não o deixamos dormindo aqui? — sugeriu Lawrence. — Seja quem for o dono da casa, com certeza não vai gostar, mas nada temos com isso. Grande ideia, Carruthers! — concordou Laughton. — Boa noite, então. E, srta. Thornfield, conte comigo para tudo o que precisar. Segurou lady Bracken por um braço e levou-a para fora do quarto. Ela saiu sem olhar para trás. Então, Amélia olhou ao redor, com interesse. —' Quer dizer que esta é uma casa de pecado. Que coisa! — Pôs-se de pé e foi examinar o excesso de enfeites e espelhos. — Essa sua Yvette tem péssimo gosto, Carruthers! — Amélia! — surpreendeu-se Dora. — Você sabe? Lawrence havia se aproximado de Theodora e a fitava com ironia. Disse: Ela já não é a minha Yvette, lady Lavenham. E o senhor pretende substituí-la, não é? Por mim — explodiu Dora. — Lembra-se do que eu lhe contei, Amélia? Agora pode verificar por si mesma que é verdade. Ficou tão surpresa quando falei… Este homem, que se considera um cavalheiro, me ofereceu uma carte blanche outro dia! Vamos, Dora! — exclamou a lady, rindo. Mas ao ver a expressão indignada da amiga, acrescentou: — Desculpe, meu bem, mas isso é tão engraçado! Imagine Carruthers oferecendo uma carteblanche à cunhada de sir Leonard Fitzhugh, de lorde MacDonald e, como é que o outro se chama, mesmo?… do marido de Lavínia! Dora ficou estupefata. Jamais pensara no assunto naqueles termos. Protestou: — Eu me considero uma pessoa só no mundo! Amélia sacudiu a farta cabeleira escura. Chega, minha querida. Sei que está sem dinheiro, que é orgulhosa e tudo mais, porém você tem amigos! Você é minha amiga ínti ma e até homens mais tolos do que Carruthers… perdão, senhor!… pensariam duas vezes antes de me ofender! Nesse caso — retrucou Theodora, teimosa —, ele é muito audacioso e arrisca perder sua amizade. Lawrence olhou para Amélia, que entendeu e disse: Agora, preciso descer. Essa Yvette tem uma casa tão interessante! Não quero perder nada. Amélia! — suplicou Dora, amedrontada. Não, não me agradeça, meu amor! E fique sossegada. Não vou abrir a boca. Por mim, ninguém vai saber que você ficou sozinha com um cavalheiro no quarto de dormir da mais exclusiva cortesã da cidade! — Amélia soltou uma gargalhada e saiu. Amélia! — gritou Dora e levantou-se, para seguir a maliciosa amiga. Pela primeira vez percebeu que havia um enorme rasgo em sua saia. — Minha querida… — disse Lawrence, dando um passo à frente e impedindo-lhe a passagem —, fique aqui. Não está em condições de ir a parte alguma. Dora bufou, furiosa, e cerrou os punhos. CarrutherS deu mai um passo, abraçou-a e começou a beijá-la sem lhe dar outra possibilidade . a não ser retribuir-lhes o beijo, com todo ardor. Capitulo XX Dora sentia-se flutuar em um mundo de sensações novas. Esquecera-se de tudo que havia acontecido. A coisa mais importante era continuar beijando, era passar as mãos nas faces um tanto ásperas, tão junto de seu rosto, era amoldar seu corpo ao corpo musculoso dele. — Ah! — suspirou Lawrence, parando para tomar fôlego. — Vamos casar logo, amor. Não aguento mais isto! Ao ouvir aquilo, ela viu-se de volta à realidade. Você disse… casar? — sussurrou, incrédula. Já teve dois dias para considerar minha proposta. Sei que não gostaria de tomar uma decisão apressada… Por favor, espere! — Ela quis se afastar um pouco, mas ele não a soltou. — No outro dia, em Ashvale, você disse que me queria como amante! É mesmo? — A voz dele era risonha, os olhos amorosos, e seus lábios fecharam os dela. Mas Dora afastou-se de novo, porque precisava resolver aquele problema. Vai negar, agora? Não negou, quando o acusei. Sei… É que fiquei tão apalermado quando entendi o que você dizia! Principalmente depois que percebi que tinha certeza que eu havia seduzido Augusta… — Os lábios de Carruthers se crisparam. —Eu, seduzir aquela criança! Como pensou que eu seria capaz de fazer uma coisa dessas? Devia me zangar com você, querida! Dora enrubesceu, desviou o olhar e explicou: Ouvi por acaso uma conversa entre vocês. Sei que estava errada, mas as palavras me levaram a acreditar no pior. Admito que o erro foi meu — continuou, fitando-o corajosamente nos olhos. — Hoje cedo Augusta me contou tudo. Você foi maravilhoso com ela e Edgar! Sua priminha não me deu a menor chance de escapar… e a renda estava disponível. Eles vão ser felizes, mesmo contrariando a mãe da noiva. E, agora, diga que vai se casar comigo — continuou, com os lábios ardentes beijando a testa de Dora —, depois voltemos a atividades mais gostosas. — Não. — Ela parecia determinada. — Não foi bem assim! Ne outro dia, você não disse nada sobre casamento. Suas palavras foram as de um homem que… que falava com a amante. — Lembrava-se bem de que ele dissera que a queria e exigira que ela dissesse que também o queria. Lembrava-se disso e do contato físico. — Tudo que Amélia disse sobre meu parentesco e a opinião da sociedade pode ter levado você a mudar de ideia. Mas eu sei, sempre soube, o que você queria de mim. Mas meu amor — protestou ele, carinhoso —, no outro dia não falei em casamento porque você não me deu tempo! Compreendo que foi induzida a pensar desse jeito. Não posso censurá-la por acreditar na cena que Yvette preparou com tanto cuidado! Como é que você soube? Quero dizer… O que você sabe? Sei que minha ex-amante levou-a para a casa dela e lhe disse que eu tencionava substituí-la por você. O mordomo de Yvette gosta muito de ouvir atrás das portas. Ela pediu que eu jurasse, sobre o túmulo de minha mãe, que nunca lhe contaria esse nosso encontro. Coitadinha… — murmurou Dora, apoiando a cabeça no ombro dele. — Está tão apaixonada por você! Duvido muito — retrucou ele, tranquilo. — Admito que sou uma boa presa para ela e imagino que pensou que poderia me fisgar. Mas não conseguiu, e não pretendo mais ter amantes. A não ser que você queira… — Ergueu uma sobrancelha, irónico. Dora levou alguns segundos para perceber que era brincadeira. — Você é revoltante! Afinal, o que vou ser? Esposa ou amante? As duas coisas! — exclamou Lawrence, feliz. — Admito que, sob muitos aspectos, o papel preferido seria o de amante. Mas do jeito como estão as coisas, meu amor, vamos ter de entrar numa igreja londrina, sob os olhares curiosos da sociedade inteira, provavelmente com as irmãs Perry e Augusta como suas damas de honra! Perspectiva divertida, não? E se nós fugíssemos? — sugeriu Dora, não gostando daquela ideia. Ah! Isso não! Vamos ter de casar, mesmo. Escute, será que suas irmãs vão me aprovar? Você não é um homem? Isso basta! — riu Dora, divertida. —Não se preocupe com elas. Ah… O que foi mesmo que você disse sobre atividades mais gostosas? Os braços de Carruthers a apertaram contra si, enquanto os dela cruzavam-se atrás de seu pescoço. Pela primeira vez, os lábios deles se uniram com perfeita compreensão mútua. —Eu amo você… — murmurou Dora, colando-se a ele. E eu te adoro, minha linda noiva — murmurou ele, rouco. O que é isso? — crocitou alguém, da porta, e o casal se voltou, vendo o general Laughton, com as roupas amarrotadas e ar de profunda surpresa. — É você, moço Carruthers? Vai ter de esperar até amanhã, meu rapaz. Ela é de boa qualidade! Tem caráter forte, sabe? Gosto disso numa mulher. Sem a menor cerimónia, Lawrence atravessou o quarto em três passos e fechou a porta na cara do general. — Talvez não seja amanhã… — murmurou logo depois, passando as mãos nos cabelos de Theodora —, mas terei você, amor! Ela deu um sorriso maroto e se ergueu nas pontas dos pés para sussurrar no ouvido dele: —Não tenho nada contra, Laurent! FIM