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P 053 Os Condenados de Isan Kurt Mahr

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OS CONDENADOS DE ISAN
Autor
KURT MAHR
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização
VITÓRIO
Revisão
ARLINDO_SAN
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Aquele mundo sofreu um trágico destino de 
que a Terra se livrou no último instante.
Apesar das hábeis manobras realizadas no espaço galáctico, o trabalho pelo poder e pelo reconhecimento da Humanidade no seio do Universo, realizado por Perry Rhodan, forçosamente teria de ficar incompleto, pois os recursos de que a Humanidade podia dispor na época eram insuficientes face aos padrões cósmicos.
Cinqüenta e seis anos passaram-se desde a pretensa destruição da Terra, que teria ocorrido no ano de 1984.
Uma nova geração de homens surgiu.
E, da mesma forma que em outros tempos, a Terceira Potência evoluiu até transformar-se no governo terrano, esse governo já se ampliou, formando o Império Solar. Marte, Vênus e as luas de Júpiter e Saturno foram colonizados. Os mundos do sistema solar que não se prestam à colonização são utilizados como bases terranas ou jazidas inesgotáveis de substâncias minerais.
No sistema solar, não foram descobertas outras inteligências. Dessa forma os terranos são os soberanos incontestes de um pequeno reino planetário, cujo centro é formado pelo planeta Terra.
Esse reino planetário, que alcançou grau elevado de evolução tecnológica e civilizatória, evidentemente possui uma poderosa frota espacial, que devia estar em condições de enfrentar qualquer atacante.
Mas Perry Rhodan, administrador do Império Solar, ainda não está disposto a dispensar o manto protetor do anonimato. Seus agentes cósmicos — todos eles mutantes do célebre exército — continuam a ser instruídos no sentido de, em quaisquer circunstâncias, manter em sigilo sua origem terrana.
Em Isan, os sobreviventes da guerra nuclear, confinados em abrigos subterrâneos, estão prestes a destruir-se mutuamente. Conseguirá Rhodan infundir-lhes novas esperanças?
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Rhodan — Administrador do Império Solar.
Marshall — Chefe do Exército de Mutantes.
Laury — A bela mutante.
Ivsera — Uma jovem cientista.
Havan — Chefe do abrigo subterrâneo de Fenomat.
Belal — Chefe do abrigo subterrâneo de Sallon.
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1
Ivsera lançou um olhar pensativo para a fileira de objetos brilhantes e reluzentes.
“Devia estar triste”, pensou. “Quem dera que tivesse um único vestido, uma calça ou um casaco!”
Mas não havia nada disso. Nem vestido, nem calça, nem casaco. Nada além das poucas peças de roupa que trazia no corpo.
Ivsera não conseguia ficar triste por isso. Há dias os preciosos aparelhos estavam parados. E há dias não eram fornecidas peças de roupa cujas fibras orgânicas pudessem ser convertidas em alimentos sintéticos. Há dias os ocupantes do abrigo de Fenomat viviam de um pequeno estoque de provisões, que estaria esgotado amanhã ou depois.
Virou-se. Irvin estava atrás dela, encostado a uma mesa, mas com o rosto sério.
— Está triste? — perguntou. 
Ivsera sacudiu a cabeça.
— Não. Já não me importo com mais nada.
— Você devia avisar Havan, não acha? 
Ivsera lançou um olhar de perplexidade para o jovem.
— Havan? Já está informado. Há dez dias.
Irvin empurrou-se da mesa e aproximou-se alguns passos. Usava uma calça muito curta, que começava abaixo do umbigo e chegava até a metade da coxa. No abrigo de Fenomat, nenhum homem podia possuir outra roupa além desta.
— Não se lembrará — afirmou Irvin.
— Mas...
Irvin levantou a mão num gesto tranqüilizador.
— Não há nenhum mas. Acho que não preciso dizer-lhe que tipo de homem é Havan. Ou será que preciso?
Ivsera baixou a cabeça.
— Você não poderia ir em meu lugar e contar-lhe? — perguntou.
Irvin sacudiu a cabeça.
— Prefiro não ir. Não ganharia nada com isso. Havan gritaria para mim e explicaria que a química-chefe lhe devia prestar estas informações pessoalmente.
Ivsera respondeu com um suspiro:
— Você tem razão, Irvin — levantou a cabeça, fitou o jovem e em seu rosto surgiu um sorriso forçado. — Acho que é preferível liquidar isto logo.
Irvin fez um gesto afirmativo.
— Fico torcendo por você.
Ivsera abriu a porta e saiu para o corredor. O ar sufocante, morno e malcheiroso tirou-lhe a respiração. Olhou para os lados e ficou satisfeita ao notar que ninguém a via.
Caminhou depressa os cinqüenta metros que a separavam do elevador. Chamou a cabina, entrou e apertou o botão do pavimento inferior. A cabina começou a movimentar-se lentamente e aos arrancões, o que era um sinal de que as válvulas de ar comprimido já não funcionavam bem.
“Nada está funcionando”, pensou Ivsera. “A renovação de ar não funciona, não se encontra nada para comer e beber.”
Depois balbuciou:
— Quem dera que pudéssemos subir! E continuou pensando:
“Subir para as paragens onde há oito anos não vive mais ninguém. Para as áreas em que a tormenta tange nuvens de poeira radiativa e cada pingo de chuva contém uma quantidade de veneno que daria para matar dez pessoas. Para o lugar em que uma extensão de dez quilômetros de rocha derretida e vitrificada assinala o ponto zero, local onde a bomba fora arremessada quando da mais terrível guerra de todos os tempos.”
Ivsera procurou calcular quantas pessoas teriam sobrevivido. Seis mil haviam procurado refúgio no abrigo de Fenomat. Após oito anos, haviam passado a dez mil. Fenomat era a capital do país, motivo por que num subúrbio havia outro abrigo, o abrigo de Sallon. Sua capacidade era igual à do abrigo de Fenomat.
Em todo o país existia um total de cinco abrigos dessa espécie. Supondo que o inimigo dispunha de igual número no outro continente, concluir-se-ia que cerca de cem mil pessoas teriam sobrevivido à grande guerra de Isan.
Ivsera pensou admirada: “Cem mil num total de três bilhões!”
O elevador parou. A moça abriu a porta.
Do lado de fora, estendia-se um corredor igual àquele de que Ivsera acabara de sair. A jovem dirigiu-se para a esquerda, passou por algumas portas com placas e parou à frente da penúltima delas.
— Havan! — chamou em voz alta. 
Teve de esforçar-se para pronunciar este nome. Havan era o homem que dois dias depois da morte de Ofaran acreditara que Ivsera se ligaria a ele. O homem que lhe causava dificuldades sempre que podia, somente porque ela lhe dissera que pretendia guardar ao menos um ano de luto durante o qual viveria só. Falara-lhe também que nem em dez mil anos um homem como Havan seria capaz de apagar a imagem de Ofaran em sua memória.
Havan respondeu em tom mal-humorado:
— Entre!
Ivsera abriu a porta. Ele estava sentado atrás de uma pesada mesa de imitação de pedra e olhava para ela. Nenhum músculo de seu rosto grosseiro e desagradável se contraiu ao reconhecê-la.
— Então, o que houve? — perguntou.
— Estamos sem mantimentos — respondeu Ivsera laconicamente.
Havan empertigou-se.
— Por que só agora fico sabendo disso? — perguntou.
Os olhos de Ivsera estreitaram-se.
— Já avisei a dez dias que estávamos sem matéria-prima.
Havan respondeu em tom áspero.
— E daí? — perguntou. — Como membro do Conselho tenho o direito de ser mantido constantemente a par — bateu com a mão aberta sobre a mesa. — Se não aprender a cumprir seu dever, mandarei destituí-la.
Vendo que Havan se esforçava ao máximo para humilhá-la e ofendê-la, Ivsera recuperou a calma.
— Não se esqueça de que neste abrigo não cabe exclusivamente ao senhor decidir sobre as pessoas que devem ocupar os postos — retrucou tranqüilamente. — Temos um Conselho, e só deixarei meu cargo quando este decidir assim.
Virou-se, abriu a porta e saiu. Enquanto fechava a porta atrás de si, ainda ouviu Havan gritar em tom furioso:
— Por enquanto, temos um Conselho... Não compreendeu o resto, e nem estava interessada em compreender.
No elevador, encontrou-se com Killarog. Tal qual Havan, também era membro do Conselho. Era um dos elementos mais jovens que participavam do órgão e, na opinião de Ivsera, era um dos que conseguiram um pouco de honra e de dignidadenaqueles difíceis anos de pós-guerra.
Ivsera ia passar com um ligeiro cumprimento.
Mas Killarog parou e segurou-a pelo braço.
— Tem algum problema? — perguntou em tom lacônico, mas que nem por isso chegava a ser áspero.
Ivsera olhou-o.
— Quem não tem problemas numa época como esta? — perguntou.
Killarog continuou sério, embora em seus olhos houvesse um brilho de ironia.
— Conforme sabe — disse em tom propositadamente professoral — sou presidente da Comissão de Questões Pessoais e Psicológicas. Se alguma coisa a preocupa, a senhora tem o dever de me informar a respeito.
Enquanto falava, levantou o dedo. Mas o ar sério logo o abandonou. Voltou a segurar Ivsera pelo braço e levou-a para o corredor de onde havia vindo.
— O que houve, minha filha? Os mantimentos estão no fim? O Conselho sabe disso há dez dias. Não há motivo para preocupações.
Ivsera soltou uma risada amarga.
— Acontece que justamente o presidente da Comissão de Alimentação e Vestuário não sabe de nada — respondeu.
Killarog soltou uma gargalhada.
— Havan? Sabe, sim. Há poucas horas discutimos o assunto.
Ivsera contou o que havia acontecido. Killarog abriu a porta de seu gabinete e deixou que entrasse à sua frente. Convidou-a a sentar. Enquanto caminhava em torno da mesa de imitação de pedra para acomodar-se em sua poltrona, fez um gesto de desprezo.
— Não acredite em nada do que Havan lhe disse — exclamou. — Especialmente quando está falando com a senhora. Além disso, Havan cairia no ridículo se propusesse ao Conselho a destituição da senhora.
Contemplou Ivsera por cima da mesa larga. O olhar tranqüilizou a moça, que perdeu parte do ressentimento trazido desde que visitara Havan.
— Vamos mudar de assunto — principiou Killarog de repente. — O que vamos fazer quando não tivermos mais nada para comer?
Ivsera fez um gesto de perplexidade.
— Se soubesse, eu lhe diria — respondeu. — Talvez possamos sair do abrigo e dar uma olhada lá em cima, para ver se encontramos comida.
Ivsera proferiu estas palavras em tom casual. Por isso assustou-se quando Killarog se levantou de repente atrás da mesa, estreitou os olhos e perguntou:
— Quem lhe deu esta idéia? A senhora deve saber que não é possível sair do abrigo.
Ivsera parecia confusa.
— Desculpe. Não imaginei que estas palavras pudessem assustá-lo. Ninguém me deu a idéia; foi exclusivamente minha. Acho que não é tão difícil a gente lembrar-se desta possibilidade.
Killarog voltou a sentar e suspirou.
— Esqueça — murmurou. Parecia cansado e abatido. — Sou eu que lhe peço desculpas.
Colocou o rosto nas mãos, e olhou para Ivsera entre os dedos abertos.
— O fato é — disse, esticando as palavras — que estivemos lá em cima.
Ivsera levantou-se de um salto.
— Estiveram...
Killarog interrompeu-a com um gesto.
— Não fale tão alto. Ninguém deve saber do caso, senão todo mundo desejará subir. Foi por isso que fiz a pergunta. Aliás, suas esperanças não têm fundamento.
Ivsera quase não conseguiu respirar.
— Por quê?
— Lá em cima não há nada para comer. Nem uma batata cresceu nestes oito anos na área urbana de Fenomat, e numa área de quinhentos quilômetros em torno da mesma está tudo contaminado. Não conseguimos ir mais longe.
— Está certo; mas...
— Não há nenhum mas! — Killarog levantou-se. De repente seu rosto estava muito sério. — Quer ver uma coisa, minha filha? Uma coisa interessante, excitante e... decepcionante?
Ivsera respondeu com um gesto afirmativo.
— Venha comigo.
Saíram do gabinete. Killarog dirigiu-se para a esquerda. Passaram pelo gabinete de Havan. Antes de chegar à última porta do corredor, Killarog parou junto à parede cinza-clara. Pegou uma chave, enfiou-a na fechadura e abriu a porta. Ivsera viu uma sala vazia, com uma abertura na parede oposta. A luz tinha a mesma tonalidade fria que a das outras salas.
— Esta sala não é ocupada por ninguém — disse ele em voz baixa, ao ver que Ivsera o olhava e hesitava. — Pode entrar sem susto.
Entrou. Killarog seguiu-a e trancou cuidadosamente a porta. Atravessou a sala e abriu outra porta.
Com os olhos arregalados de pavor, Ivsera fitou um corredor estreito e baixo, que evidentemente não pertencia ao abrigo propriamente dito. As paredes eram de rocha nua, que mais para o fundo brilhava de umidade. A cada poucos metros uma barra de metal apoiava o teto.
Uma lufada de ar frio saiu do corredor, o que constituía uma verdadeira bênção na atmosfera superaquecida e poluída do abrigo.
Killarog falou em tom penetrante:
— A senhora terá que guardar exclusivamente para si tudo que vai ver daqui por diante. Nem pense em falar com qualquer pessoa a este respeito. As conseqüências não lhe seriam nada agradáveis.
Ivsera confirmou com um gesto, sem tirar os olhos do misterioso corredor.
— Irei na frente — sugeriu Killarog.
Ivsera deixou-o passar. Seguiu-o e fechou a porta atrás de si. Mais adiante havia uma série de lâmpadas, cuja luz era suficiente para que se percebessem os acidentes do terreno.
Killarog caminhava rapidamente; Ivsera teve de esforçar-se para não ficar para trás.
O corredor era mais comprido do que ela acreditara. Andaram durante quinze minutos e as lâmpadas, que ficavam adiante deles, demoraram para se aproximarem. Quando Killarog finalmente parou junto à primeira, haviam caminhado ao menos trinta minutos. Face à velocidade com que ele marchava, isso significava que haviam percorrido mais de um quilômetro.
— Pode andar mais um pouco? — perguntou Killarog em tom preocupado.
Ivsera fez um gesto afirmativo.
Killarog continuou a andar. As lâmpadas tornavam-se cada vez mais numerosas. A luz da última delas, Ivsera descobriu um vulto que parecia estar deitado, completamente imóvel.
Killarog pisou com força no chão. O vulto moveu-se. Ivsera viu uma cabeça levantar-se e um par de olhos desconfiados fitar os recém-chegados.
Ivsera não se lembrava de ter visto o homem diante do qual Killarog estava parado. O que chamava a atenção era que vestia roupa completa, e não apenas a calça curta que os homens deveriam usar.
— Alguma novidade, Thér? — perguntou Killarog.
Thér fez que sim.
— Sim. Estão avançando.
— Quanto tempo ainda nos resta? 
Thér ergueu os ombros e abriu as mãos.
— Uns dois ou três dias. O que esta moça veio fazer aqui?
— Quero que esteja a par de tudo — respondeu Killarog.
Ivsera recuperou-se do espanto e perguntou:
— Por que este homem anda por aí com a roupa completa, Killarog? As peças que carrega inutilmente dariam para produzir ao menos cinco refeições completas.
Thér fitou-a perplexo. Killarog soltou uma gargalhada.
— Ela é nossa nutricionista — explicou, dirigindo-se a Thér. — A maior parte do que você comeu nestes últimos anos saiu de suas retortas.
Dirigindo-se a Ivsera, prosseguiu:
— Sabe lá o que aconteceria a Thér se tivesse de ficar deitado por aí quase nu?
— Bem — disse Ivsera em tom de espanto — ele costuma ficar deitado por aí?
Killarog fez que sim.
— Ele e dois outros. Cada um fica dez horas por dia. Não é nada fácil agüentar esse tempo.
— O que ficam fazendo por aqui? 
Killarog apontou para o chão.
— Mostre, Thér — ordenou.
Thér levantou-se. Só agora Ivsera viu que havia vários instrumentos espalhados em torno dele. Viu caixinhas negras com chaves, botões e escalas.
Dali a poucos metros o corredor chegava ao fim.
Thér prendeu um cabo fino a um dos instrumentos. Na outra extremidade do fio havia um funil igual aos que Ivsera costumava ver nos telefones. Thér colocou o aparelho propriamente dito no ângulo esquerdo formado pelo chão e pela parede. Ivsera notou que a caixinha descansava sobre finos suportes metálicos.
Thér entregou-lhe o cabo com o funil.
— Ouça — pediu.
Um tanto medrosa, Ivsera comprimiu o funil contra o ouvido. Ouviu um ruído monótono. Depois de alguns minutos ainda não havia ouvido outra coisa. Fez menção de devolver o funil a Thér. Mas naquele instante escutou um ribombo surdo que pareciaprovir de um tambor enorme e muito distante. O ruído cresceu, chegou ao ponto máximo e foi diminuindo.
Ivsera ficou muito assustada. Pretendia indagar sobre a origem do som, quando voltou a ouvi-lo.
— Ah! — disse Thér com uma risada furiosa. — Nem precisamos mais do amplificador. Ouço sem ele.
Ivsera tirou o funil do ouvido e perguntou:
— O que é isso?
Killarog respondeu com outra pergunta:
— Quando irrompeu a guerra, a senhora ainda era uma menina. Sabe embaixo de que área de Fenomat nos encontramos?
Ivsera procurou recordar o que sabia a respeito do abrigo. A entrada principal ficava sob o centro da cidade, mas as galerias avançavam vários quilômetros, estendendo-se às vezes para além dos limites da cidade.
As galerias principais começavam no centro e corriam em direção ao norte, leste, sul e oeste. O trecho em que viviam os membros do Conselho pertencia à galeria principal do leste.
— Acho que estamos mais ou menos embaixo do subúrbio de Sallon — disse com a voz tímida.
Killarog confirmou com um gesto.
— Exatamente. O ponto em que nos encontramos fica a pouco mais de trezentos metros da extremidade oeste das galerias do abrigo de Sallon.
Ivsera procurou compreender as relações que poderiam existir entre esse fato e o tambor que acabara de ouvir.
— Conforme já disse — prosseguiu Killarog — estivemos lá em cima com alguns homens e demos uma olhada pelos arredores. Encontramo-nos com um grupo de gente estranha. Talvez sejam de Sallon, mas também é possível que tenham vindo de mais longe. De qualquer maneira, começaram a atirar assim que nos viram. Tivemos de fugir, pois as armas de que dispúnhamos eram insuficientes.
Ivsera parecia assustada.
— E aqui — disse, apontando para a parede da esquerda — os homens de Sallon estão tentando atingir o abrigo de Fenomat por baixo. Thér afirma que dispomos de apenas dois ou três dias para preparar-nos para visita deles. É o tempo que levarão para chegar aqui.
* * *
Ivsera não demorou a compreender. Em sua memória, os habitantes do abrigo de Sallon continuavam a ser o que haviam sido antes da guerra: cidadãos comuns que não quiseram a batalha, mas que se sentiam gratos pelo abrigo que lhes dava proteção.
Killarog afirmara não haver dúvida de que os estranhos com os quais seu grupo se havia defrontado eram pessoas vindas de Sallon. Em sua opinião, numa situação como aquela em que se encontravam, ninguém se arriscaria a ficar na superfície por mais tempo que o absolutamente necessário, e o abrigo mais próximo ficava a quase dois mil quilômetros.
Por outro lado, os abalos eram evidentes. Thér e seus dois companheiros os vinham observando há várias semanas. Os instrumentos ultra-sensíveis registravam as ondas de pressão, certamente provocadas por explosões. Vinham da direção do abrigo de Sallon e, no correr das semanas, haviam avançado até as imediações dos corredores mais afastados do abrigo de Fenomat.
Ivsera ainda conservou alguma esperança de que as intenções das pessoas de Sallon talvez não fossem hostis, mas Killarog disse em tom áspero e lacônico:
— Não diga isso! É claro que apenas pretendem roubar nossos mantimentos. Se não encontrarem nada, talvez até resolvam nos comer.
* * *
Os prognósticos de Killarog sobre o confronto que se aproximava eram sombrios.
— O grupo com que nossos homens se encontraram estava tão bem armado que parecia um destacamento da polícia secreta. Provavelmente esvaziaram o grande depósito de Sallon Norte. Enquanto isso, nós possuímos um total de cinqüenta armas portáteis. Na maior parte trata-se de pistolas antiquadas. E a munição é muito escassa. Se os habitantes de Sallon conseguirem introduzir mais de vinte homens em nossas galerias, sua cabeça-de-ponte estará praticamente garantida. Quanto ao resto, não adiantará nada ficar pensando.
O que impressionou Ivsera foi a resposta que Killarog lhe deu quando perguntou sobre a finalidade da construção da galeria em que Thér se encontrava de vigia:
— Será que a senhora ainda não adivinhou? É que nós pretendíamos roubar os mantimentos dos ocupantes do abrigo de Sallon. Infelizmente tivemos o azar de que eles não demoraram em ter a mesma idéia, e, além disso, estão mais bem armados. Mas — levantou a mão e de repente recuperou o bom humor — se conseguirmos rechaçá-los e persegui-los, economizaremos um bom tempo de trabalho. E, nesse caso, os homens de Sallon terão construído uma galeria para nós.
Ela lançou-lhe um olhar apavorado. Ele riu com uma expressão de amargura e exclamou:
— A senhora já devia ter compreendido. Oito anos depois da última guerra travada em Isan, só nos resta devorarmos ou sermos devorados. Estas palavras podem ser interpretadas literalmente.
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2
Killarog tinha um plano.
Era um plano ousado, que envolvia riscos consideráveis. Por isso precisou de toda a força de persuasão para levar o Conselho a aceitar a idéia.
O Conselho concedeu-lhe oito homens que o acompanhariam, nove trajes à prova de radiações e quase metade das armas do abrigo de Fenomat. Além disso, segundo as instruções de Killarog, três homens foram destacados para montar guarda na comporta superior do abrigo. Os três homens e o grupo de Killarog receberam um radiotransmissor portátil que dispunha de seu próprio suprimento de energia.
O objetivo de Killarog era a comporta de superfície do abrigo de Sallon. Hora do ataque: o momento em que recebesse comunicação pelo rádio de que os homens de Sallon estavam penetrando na parte inferior do abrigo de Fenomat.
O Conselho impôs uma condição a Killarog: se notasse que sua missão não seria bem sucedida, devia voltar imediatamente. Nesse caso, suas armas seriam mais necessárias em Fenomat que na comporta de superfície de Sallon.
Killarog escolheu os homens que o acompanhariam. Mesmo sendo muito jovem, gozava de grande prestígio em todos os setores do abrigo. Apesar da indolência que costumava caracterizar os sobreviventes da grande guerra de Isan, todos se mostraram dispostos a acompanhá-lo na missão perigosa.
Três horas depois da sessão do Conselho, Killarog havia reunido seus homens. Mas, meia hora antes, Ivsera soubera do plano por intermédio de Irvin, que era um dos oito escolhidos.
Procurou Killarog e conseguiu convencê-lo, depois de algum tempo de discussão, de que teria de acompanhá-lo na expedição, em substituição a um dos homens. Seu argumento principal foi o seguinte: se conseguissem penetrar no abrigo de Sallon, deveria haver alguém capaz de identificar imediatamente tudo que fosse comestível.
Se Irvin não tivesse intervindo a seu favor, era bem possível que, apesar do argumento, Ivsera não tivesse conseguido seu intento.
— Leve-a, Killarog! — recomendou. — Senão essa moça nunca mais terá sossego. Desisto em favor dela.
Irvin podia dar-se ao luxo de um gesto deste, pois ele era conhecido como uma exceção humana ao ambiente de indolência e passividade generalizada.
Killarog acabou por concordar. Meio zangado, meio divertido disse:
— Minha filha, desconfio de que a senhora ainda carrega certas idéias românticas sobre as regras humanitárias e sobre as qualidades adoráveis daquela gentinha. Se levar um tiro enquanto estiver acenando com uma bandeira branca para os ocupantes de Sallon, atribuirei a infelicidade à sua falta de instinto.
Ivsera não revelou o verdadeiro motivo de seu gesto. Na verdade, estava cansada de se manter inativa no abrigo e assistir impassível ao que acontecia. Era de opinião que, qualquer pessoa que ainda dispusesse de um pouco de energia, tinha a obrigação de fazer alguma coisa. Não era necessário que fosse uma coisa bem sucedida. Bastava que a ação infundisse a convicção de que os sobreviventes da grande guerra não seriam simples joguetes do destino.
* * *
Era noite quando Killarog e seu grupo, depois de uma hora de viagem de elevador através do poço de dois quilômetros de altura, chegaram à comporta de superfície do abrigo de Fenomat.
No interior da comporta, colocaram os trajes àprova de radiações. Killarog mandou realizar os controles, e Ivsera viu um bom sinal no fato de que tudo deu certo na primeira verificação.
Ele fez questão de cercar a saída da comporta de modo áspero e com ordens proferidas em tom rude, a fim de reprimir qualquer laivo de sentimentalismo. Para cinco pessoas do grupo de nove era a primeira vez que nestes oito anos voltavam a pisar na superfície de seu mundo natal, Isan.
Ao oeste, pouco acima da linha do horizonte, Ivsera viu a gigantesca bola vermelha do sol. Procurou recordar, para verificar se Isan havia mudado depois da guerra. Mas o sol Vilan continuava grande e vermelho como sempre. Vários pontos da superfície pareciam apresentar cicatrizes, e a bola vermelha espalhava mais calor que claridade.
O céu vermelho-escuro estava salpicado de estrelas. Ivsera viu algumas nebulosas tênues. Sabia que essas nebulosas eram formadas por estrelas, e que juntamente com estas formavam um sistema designado pelos astrônomos como a Via Nebulosa.
Ivsera mal conseguiu controlar o nervosismo. Apelou para a razão e procurou convencer-se de que mesmo depois de oito anos de vida subterrânea não havia nada de extraordinário em ver algumas estrelas.
Não conseguiu. Que nem uma sonâmbula tropeçou pelo deserto de escombros no qual as bombas e o vento haviam transformado sua altiva cidade, Fenomat. Killarog teve de adverti-la três vezes para que controlasse seus sentimentos e se concentrasse na tarefa a cumprir.
* * *
A caminhada do poço principal até a comporta de superfície de Sallon era de oito quilômetros. Há oito anos essa distância teria sido percorrida num ônibus ou táxi, e não se gastariam mais que poucos minutos no percurso. Mas, no terreno perigoso e inóspito e com os pesados trajes espaciais, a caminhada consumiria um dia.
Depois de quatro horas de marcha, Killarog ordenou o primeiro descanso. Encontravam-se num setor do deserto de destroços em que, por estranho que pudesse parecer, o nível de radiações correspondia apenas à metade dos valores registrados nos demais pontos. Ninguém sabia explicar o fenômeno, mas de qualquer maneira o lugar era ideal para um descanso.
Na linha do horizonte, ao sul, surgiu o primeiro alvor do novo dia. A cor mortiça de Vilan e a torrente poderosa de luz azul que se derramava sobre o horizonte, vinda do sul, misturavam-se no céu, formando uma tonalidade estranha. As estrelas foram empalidecendo sob a luz de Vilanet, o pequeno sol azul-claro que era a verdadeira estrela central de Isan.
— Percorremos aproximadamente metade do caminho — disse Killarog. — Daqui para diante, teremos de ficar com os olhos bem abertos. Pelo que ouvimos, devemos concluir que os homens de Sallon não são bobos. É bem possível que lhes ocorra a idéia de que poderíamos atacá-los por cima.
Enquanto a claridade aumentava, Ivsera procurou descobrir em que parte da antiga cidade se encontravam. Sabia que a meio caminho entre o centro e o subúrbio de Sallon ficava a rua com as lojas mais caras e sofisticadas, onde sua mãe costumava fazer compras duas vezes por ano: no aniversário de seu casamento e no aniversário da própria Ivsera. Sabia que por ali houvera casas largas, maciças e antigas.
Agora nem sequer se viam os alicerces. A cidade fora aplainada ao nível do solo. Blocos de pedra estavam espalhados por todos os lados, mas não se poderia dizer se eram formados de rocha natural ou se provinham das paredes das construções.
O chão estava coberto de capim. Mas que capim! Os talos, que antigamente eram lindos e esguios, passaram a ser grossos e desajeitados. Atingiam metade da altura de um homem e formavam verdadeiras copas.
“É um fenômeno de mutação”, pensou Ivsera. “As radiações produziram alterações na massa genética do capim.”
Não apenas do mato. Pouco antes de iniciarem a marcha, viram um besouro gigantesco rastejar entre o capim sobre as longas pernas. Conseguiram vê-lo, embora o capim lhes chegasse até o umbigo. É que as pernas do besouro elevavam o corpo alongado e esguio a mais de um metro de altura, embora estivessem dobradas duas vezes, à maneira dos insetos. O corpo tinha um metro de comprimento.
O maior besouro, que existia em Isan antes da guerra, mal poderia cobrir a palma da mão.
Um dos homens levantou a arma para matar o monstro repugnante. Mas Killarog bateu sobre o cano e gritou:
— Pare com isso, seu idiota! Quer revelar nossa presença com o barulho?
Partindo do local de descanso, Killarog tomou a direção nordeste. Não pretendia dirigir-se diretamente a Sallon, porque o risco lhe parecia ser muito grande. Fez um desvio de duas horas para atingir o abrigo de Sallon de um lado em que não os esperariam.
Até então o rádio portátil se mantivera mudo, com exceção da mensagem ligeira transmitida por Thér:
— Agora já os ouvimos perfeitamente sem o amplificador. Vocês dispõem no máximo de cinco ou seis horas. Depois disso estarão aqui. Pelo que calculo, sairão em algum ponto no pavimento inferior.
Ivsera lembrou-se de Havan. A idéia de que, se não conseguisse fugir, seria uma das primeiras pessoas capturadas pelos homens de Sallon, não a deixava nem um pouco satisfeita, apesar do velho ressentimento que nutria por aquele homem.
Após a mensagem de Thér, Killarog insistiu em que se apressassem. Perguntou várias vezes sobre o bem-estar de Ivsera. Esta, depois que decidira manobrar seu próprio destino, já não conhecia o cansaço.
Vilanet subiu pelo céu branco e espalhou um calor que se tornou ainda mais insuportável, pois, na planície coberta de capim em que antigamente ficara a cidade, não havia uma única sombra.
Mais ou menos pelas nove da manhã, depois de outro descanso intercalado na marcha, Killarog impôs o silêncio total. Era verdade que os transmissores e receptores embutidos nos capacetes à prova de radiações funcionavam numa freqüência extremamente elevada. Só por milagre os homens de Sallon poderiam descobrir essa freqüência e captar as mensagens. Mas essa possibilidade não podia ser desprezada.
Killarog mandou que os membros do grupo só se comunicassem para transmitir informações de extraordinária importância. Mesmo nesse caso, deviam evitar na medida do possível a utilização do rádio, comunicando-se diretamente de capacete a capacete.
O terreno tornou-se uma ladeira. Ivsera lembrou-se de que o subúrbio de Sallon ficara na encosta sudoeste de uma colina.
“Ainda bem que as bombas não conseguiram arrasar as montanhas”, pensou satisfeita.
Pelo meio-dia atingiram a linha da cumeeira da colina, sem que tivessem visto uma única pessoa do abrigo de Sallon, fato que deixou Killarog muito satisfeito. Já Ivsera ficou desconfiada. Mas, como em relação à tática do combate de guerrilhas confiasse mais em Killarog que em si mesma, ficou calada.
A entrada e, portanto, a comporta de superfície do abrigo de Sallon era na encosta nordeste da colina. Ao contrário dos demais abrigos, no de Sallon as entradas secundárias não desciam na vertical em direção aos corredores do abrigo, mas atravessavam a colina em sentido horizontal.
A escotilha de superfície de Sallon era assinalada por uma espécie de construção de pedra, que se levantava solitária em meio ao tremeluzir do meio-dia de Vilanet. O ar tremulava sob os raios de sol. O terreno tinha o aspecto de uma terra que ficara abandonada há oito anos. No flanco nordeste da colina, o capim era amarelo e um pouco mais baixo do que o que haviam encontrado na área urbana. A leste, junto à linha do horizonte, o rio Ovial seguia sinuoso. As florestas que antigamente haviam marcado seu curso tinham desaparecido. A estepe estendia-se até onde a vista alcançava.
Killarog não se interessou pelo singular panorama. Através da lâmina do visor de seu capacete, Ivsera notou que os olhos dele brilharam quando viu aquela construção de superfície de Sallon.
— Chegamos! — disse em voz tão alta que Ivsera, deitada a seu lado, ouviu as palavras que tinham de atravessar dois capacetes. — Assim que recebermos o sinal de Thér, daremos nosso golpe.* * *
Há poucas horas num outro lugar de Isan, num ponto não muito distante de Fenomat, uma nave espacial elíptica pousara em meio à ampla estepe coberta de capim.
A tripulação da nave constatou que o solo, o ar e os mares do planeta continham uma dose perigosa de radiatividade. Em vários pontos da superfície, notaram vestígios de aglomerações humanas e descobriram que esse mundo havia sido destruído por uma guerra nuclear, e que os habitantes deviam ter sido quase todos eliminados.
A nave elíptica havia pousado num ponto situado numa pequena área em que a dose de emanações radiativas chegava apenas a um décimo da média do planeta. Era bem verdade que os quatro tripulantes possuíam equipamentos protetores de radiações muito mais aperfeiçoados que, por exemplo, os de Killarog e seu grupo, movendo-se a quinze quilômetros dali, sem que tivessem notado a presença da nave. Acontece que o comandante do veículo espacial tinha por hábito guiar-se em suas decisões pelo princípio da maior segurança e do menor risco. E, em virtude desse princípio, não pousaria numa área em que a dose de radiações chegasse a cem rens por hora, se depois de uma ligeira busca encontraria outra área em que essa dose estava reduzida pelo quociente dez.
A nave, que media trinta e cinco por vinte metros, possuía equipamentos tão sofisticados que, se alguém perguntasse a Killarog ou a Ivsera, estes só poderiam ter respondido que nunca acreditariam que uma coisa dessas jamais poderia existir na história das inteligências galácticas.
Havia um aparelho que não se incluía nesse equipamento sofisticado, embora fosse bastante complicado e por certo teria provocado a admiração de qualquer técnico em alta freqüência de Isan. Era um localizador de impulsos, que classificava automaticamente segundo a respectiva freqüência qualquer transmissão captada pelo receptor acoplado ao aparelho, e ainda fornecia dados à calculadora eletrônica que, em conformidade com os mesmos, decifrava a transmissão captada. Caso o material verbal fosse suficiente, traduzia a mensagem de uma língua estranha para aquela dos tripulantes da nave.
Dessa forma, as comunicações entre Killarog e os membros de seu grupo haviam sido registradas e traduzidas. Constatou-se que a língua de Isan — ou ao menos a que acabavam de ouvir — apresentava forte semelhança com outra que, embora não fosse a dos tripulantes, era-lhes bastante conhecida.
O comandante da nave aproveitou o tempo de que acreditava poder dispor para, mediante um aparelho que pertencia à classe das maravilhas da técnica, aperfeiçoar seus conhecimentos e, principalmente, familiarizar-se com a língua usada por Killarog e pelos membros de seu grupo.
* * *
As horas passaram numa lentidão insuportável. Vez por outra, Ivsera percebia que os olhos, dirigidos ininterruptamente sobre a construção de pedra que dava acesso à comporta de superfície, começaram a iludi-la, fazendo crer ora que esta se levantava no ar, ora que afundava no chão.
A única coisa agradável que aconteceu durante a longa espera foi que o calor ia diminuindo. Vilanet havia passado pelo zênite e deslocou-se em direção ao norte. O capim começou a proporcionar um pouco de sombra.
O fato de que nem uma única pessoa do abrigo de Sallon apareceu junto à comporta deixou Ivsera desconfiada. Transmitiu suas suspeitas a Killarog e, para ser entendida melhor, assumiu um risco, levantando o capacete.
Killarog repeliu seus temores com um gesto e sorriu.
— Não tenha medo, minha filha — disse. — Nas proximidades da comporta de Fenomat não se viu uma única pessoa num espaço de oito anos. Por que teríamos de encontrar alguém em Sallon, justamente durante as poucas horas que estamos aqui?
Ivsera esteve a ponto de responder que não havia a menor dúvida de que os ocupantes do abrigo de Sallon eram muito mais ativos que os de Fenomat. Afinal, há poucos dias um grupo de Fenomat teve que fugir de certo número de homens de Sallon, bem armados. Sallon não podia ser comparado com Fenomat.
Mas preferiu ficar calada. Ainda se sentia constrangida em dar opinião sobre assuntos que pertenciam exclusivamente aos homens.
Vilanet baixou em direção ao horizonte e a esfera vermelha de Vilan subiu, de início fraca, mas tornando-se cada vez mais nítida. As estrelas começaram a brilhar, e seu número crescia a cada segundo que passava, até que cobriram o céu noturno como um tecido fino.
Finalmente Thér deu o sinal. Ivsera ouviu-lhe a voz exaltada no receptor:
— Conseguiram passar. Saíram no pavimento inferior, conforme esperávamos. Estão armados até os dentes. Não sabemos por quanto tempo iremos detê-los. Vejam o que podem fazer por Fenomat.
Essas palavras não eram muito encorajadoras, mas Killarog não parecia incomodar-se com isso. Levantou-se e gritou para que todos ouvissem, mesmo sem o rádio:
— Vamos, rapazes!
Tropeçavam mais do que corriam pela suave encosta abaixo. A construção da comporta de superfície ergueu-se em meio à escuridão. Durante as últimas horas, já a haviam perdido de vista.
A edificação não tinha janelas. Não havia meio de verificar se estava ocupada, ou se realmente o pessoal do abrigo de Sallon não tinha a menor idéia do que o esperava.
Killarog não perdeu tempo em verificar. Ivsera achava que isso era uma leviandade incompreensível. Colocou cargas explosivas de ambos os lados da pesada porta metálica e, na ânsia de lutar, recuou apenas alguns passos antes que as mesmas explodissem.
A porta foi empurrada para dentro. Em meio ao estrondo das explosões, ouviu-se o ruído das pesadas peças de aço que batiam no chão.
Killarog avançou em meio à fumaça, com a arma apontada para a frente. Voltou a ligar o transmissor de capacete e gritou:
— Vamos! A comporta está vazia! Avante!
Aquele recinto era menor que o de Fenomat. A escotilha foi aberta sem dificuldade. Killarog entrou apressado. Pediu aos que vinham por último que voltassem a fechar a porta.
Killarog soltou um grito de triunfo quando olhou para a fileira de botões do elevador e viu que o mesmo se encontrava na altura da comporta.
“Era o que bastava para abrir a porta que fica do lado oposto do recinto”, pensou.
Ivsera viu-o pegar a chave.
— Espere aí! — gritou. — Pense um pouco antes de precipitar-se na desgraça. Isto só pode ser uma armadilha. Estivemos aqui o dia todo e não vimos uma única pessoa; entretanto o elevador está aqui em cima.
— Que nada! — interrompeu Killarog em tom áspero. — Não me faça perder tempo, moça. Daqui a alguns minutos, o abrigo será nosso.
Moveu a chave e a porta do elevador deslizou para o lado.
Killarog esteve a ponto de precipitar-se para o interior. Mas, depois de ter dado um passo, parou como se esbarrasse numa muralha invisível.
Soltou um grito rouco, levantou a pistola destravada que trazia na mão, e disparou contra um grupo de homens que se encontravam no elevador, já com as armas apontadas.
Não foi longe. Estes logo responderam ao fogo, e Killarog caiu sob as rajadas cruzadas das pistolas automáticas.
Os tiros disparados naquele recinto apertado feriram mais cinco dos homens de Fenomat. Ivsera viu-os cair. Os dois últimos de seus acompanhantes que permaneceram de pé atiraram as armas ao chão e, gritando, correram para junto da parede.
Ivsera ficou parada, com o cano da arma apontada para o chão.
— Parem, seus idiotas! — gritou em tom furioso para os homens de Sallon. — Já foi derramado muito sangue. Nós nos entregamos.
Naquele instante, ouviu a escotilha externa da comporta abrir-se. Virou-se e viu do lado de fora um segundo grupo de homens de Sallon.
— Tudo em ordem? — perguntou o que se encontrava à frente.
— Quase tudo — respondeu um dos homens que se achavam no elevador. — Este idiota matou Ifers e feriu gravemente Holran. Mas a moça diz que quer entregar-se.
— A moça? — disse o homem que estava junto à escotilha e soltou uma risada. — Será que em Fenomat não existem mais homens?
Ivsera não respondeu. Sentiu-se tomada de cólera. A cólera dirigia-secontra Killarog, que com sua cega impetuosidade provocara o desastre.
— Quantos homens de Fenomat ainda vêm atrás de você? — perguntaram a Ivsera.
— Nenhum — respondeu.
— Não acredito.
— Pois então não acredite.
— Escute aí, moça, se você acredita...
— Cale-se! — ordenou uma voz áspera. — A moça será interrogada lá embaixo. Vocês ficarão lá fora, até que tenhamos certeza de que mais ninguém vem de Fenomat. A demora não será muita. Garok avisa que está progredindo bem.
“Garok”, pensou Ivsera, “deve ser o homem que dirige o ataque subterrâneo contra Fenomat.”
Tudo indicava que quem falara por último na cabina do elevador era o chefe da turma de superfície. Os outros obedeceram imediatamente. A entrada da comporta voltou a ser trancada. O segundo grupo retornou aos lugares de antes.
“— O capim constitui um ótimo abrigo” — dissera Killarog.
“Tanto para os homens de Sallon como para nós”, completou Ivsera, agora em pensamento.
Killarog foi arrastado para dentro da cabina, tal qual os feridos. Dois destes já estavam imóveis. Os dois homens não feridos, que haviam atirado fora suas armas, foram trazidos atrás dos feridos.
— Entregue sua arma — disse o chefe do grupo, dirigindo-se a Ivsera.
A jovem obedeceu sem dizer uma palavra. O homem estendeu a mão. Mas Ivsera deixou a arma cair ao chão.
Ficou espantada ao ouvir que o homem ria baixinho.
— É orgulhosa, hein, moça? Vocês não têm motivo para isso.
Fitou-o pela primeira vez. Pelo visor do capacete viu um rosto inteligente, que já não era muito jovem. Ao que parecia, o homem havia perdido seu sorriso gentil sob a força das circunstâncias.
Ivsera achou que devia dar uma resposta.
— Se tivessem feito o que eu queria — disse — talvez a esta hora teríamos algum motivo para orgulhar-nos.
O homem fez um gesto sério, mas amável. Depois de fechar a porta do elevador, comprimiu o botão correspondente a um dos pavimentes inferiores.
* * *
O elevador levou uma hora para chegar ao destino. Por isso Ivsera teve tempo para refletir sobre sua situação.
Quanto mais o elevador descia, mais improvável se tornava que Thér ainda conseguisse alcançá-la com seu transmissor de potência reduzida. Não mais dera qualquer aviso, e Ivsera não teve a menor dúvida em ver nisso um mau sinal.
Lembrou-se do que Killarog lhe dissera sobre as armas à disposição dos homens de Sallon, em comparação com as que se encontravam no abrigo de Fenomat. Notou que os homens à sua frente eram mais ativos e corajosos do que aqueles conhecidos em Fenomat.
Seus rostos estavam marcados pela fome. Talvez fosse isso que lhes dava coragem.
Na metade do caminho, os trajes à prova de radiações foram tirados do corpo. Ivsera suspirou aliviada quando deixou cair a pesada vestimenta ombro abaixo.
Ficou espantada ao notar que os homens de Sallon usavam roupas melhores que os de Fenomat. Até chegavam a usar mais vestimentas que ela, uma mulher.
O homem com quem havia falado começou a falar.
— Meu nome é Feriar — disse com uma ligeira mesura. — Sinto muito que tenha sido atingida tão cruelmente pelo destino. Quanto a mim, apenas pretendia aprisioná-los. Esse homem — apontou para Killarog — é o único culpado.
Colocara tamanha ênfase na expressão “quanto a mim”, que Ivsera teve sua atenção despertada para o fato. A essa hora já recuperara a naturalidade.
— Quanto ao senhor? Quem mais poderia estar ligado a isso?
Feriar soltou uma risada triste.
— Sou apenas uma pequena engrenagem do mecanismo. Com o correr dos anos, os dentes desta engrenagem se desgastaram. Por isso muita gente já se pergunta se essa engrenagem não deveria ser retirada do mecanismo para ser substituída por outra, de dentes mais afiados.
Lançou um olhar indagador para Ivsera, a fim de verificar se havia entendido a alegoria. Ivsera fez um gesto afirmativo e Feriar prosseguiu em voz baixa:
— Prepare-se. Em Sallon, quanto maiores as engrenagens, mais afiados são os dentes. Nem sempre as coisas serão tão amenas como estão sendo comigo. Terei de entregá-la assim que chegarmos lá embaixo.
Ivsera agradeceu com um sorriso. Depois sentou num canto do elevador, sobre seu traje especial, a fim de suportar melhor o restante da viagem. Olhava fixamente para a frente. Estava mergulhada em profundas reflexões.
Um acordo tácito parecia ter sido estabelecido entre ela e Feriar. Este, que durante quarenta e cinco minutos não falara com seus subordinados, agora parecia não ter outra coisa a fazer senão dar-lhes tudo quanto era ordem, e gritar-lhes quando não as executavam com a necessária rapidez.
O elevador continuou a descer.
Ivsera sondou a situação. O braço estendido de Killarog com a pistola na mão direita chegava perto de seus pés. Provavelmente não seria fácil abrir os dedos crispados para tirar-lhe a arma. Além disso, alguém poderia desconfiar se esta desaparecesse de repente.
À direita de Ivsera, estava deitado um dos feridos. Achava-se com os olhos fechados e respirava debilmente. Não conseguira tirar a pistola do coldre. Encontrava-se pendurada no suporte de plástico na altura da junção do cano com o cabo.
Depois de algum tempo, Ivsera sentou de modo a aproximar-se melhor do ferido. Abaixou-se para examinar o traje sobre a qual estava sentada.
Quando viu que ninguém estava notando, fez uma terceira investida. Num movimento rápido, tirou a pistola do coldre e escondeu-a sob o cinto da jaqueta que constituía a peça principal de sua vestimenta.
“Ninguém reparou?”, pensou, indagando-se. “Ninguém?”
Talvez Feriar. Mas este fez de conta que não havia percebido nada. Apenas parou de transmitir comandos a seus subordinados.
* * *
Na saída do elevador, os prisioneiros foram transferidos a outro grupo de homens armados. Feriar mal teve tempo para fazer um gesto animador para Ivsera.
Os prisioneiros foram tangidos para dentro da galeria que, partindo do poço do elevador, avançava para o leste.
Marcharam durante uma hora. Ivsera aprendeu a cerrar os dentes para agüentar o passo. Felizmente, com o tempo, os soldados também começaram a cansar-se e passaram a andar mais devagar.
Muita gente cruzou com o triste grupo. A moça notou que todos eles, tanto homens como mulheres, estavam mais bem vestidos que as pessoas que ocupavam o abrigo de Fenomat. Ivsera ficou quebrando a cabeça a este respeito. Depois de uma série de teorias temerárias, lembrou-se do motivo que provavelmente seria o mais plausível.
“Os ocupantes do abrigo de Sallon não dispunham de nenhum químico que soubesse transformar roupas em alimentos. Por isso não havia necessidade de desfazer-se das roupas”, pensou.
Mas só o diabo poderia saber de que teriam vivido durante todo esse tempo.
Finalmente os soldados levaram os três prisioneiros para uma galeria secundária, mais estreita, que seguia para a esquerda. Avançaram mais uns cem metros. Pararam diante de uma porta que, ao contrário das que geralmente são encontradas nos abrigos, quase chegava a ter a largura de um portal.
As duas metades deslizaram para o lado sem que qualquer dos soldados tivesse movido um dedo.
“Provavelmente”, pensou Ivsera, “o comandante do abrigo de Sallon se dava ao luxo de um olho mágico e de mecanismo elétrico que abria a porta.”
Os soldados enrijeceram assim que a porta se abriu por completo. Ivsera ouviu uma voz clara e enérgica, que disse em tom rangedor:
— Entrem!
Os soldados fizeram continência e entraram, acertando o passo. Os prisioneiros seguiram-nos. Ao que parecia, os dois homens de Fenomat sentiam medo e curiosidade ao mesmo tempo. Já Ivsera andava relaxadamente e o mais devagar possível, para mostrar ao povo de Sallon que nada do que eles possuíam a impressionava.
No entanto, o homem que infundia tamanho respeito nos soldados não deixou de impressioná-la. Pelo tom de voz acreditara que encontraria um tipo de oficial alto e rígido. Mas a figura com que se defrontou foi a de um homem ainda jovem, pequeno e gordo, em cujo rosto brilhava uma expressão presunçosa.Os soldados pararam diante da enorme mesa, atrás da qual estava sentado.
— Retirem-se! — ordenou o gorducho. — Esperem lá fora.
Os soldados desapareceram. O oficial contemplou um a um os três prisioneiros.
Só no caso da jovem parecia satisfeito com o resultado da inspeção. Sorriu e com um gesto relaxado mandou que os dois homens de Fenomat se encostassem à parede. Fez outro gesto para dar a entender a Ivsera que devia aproximar-se, mas esta não reagiu.
Ele parecia aborrecido.
— Ei, moça! — gritou. — Aproxime-se. 
Ivsera olhou em torno. Fez de conta que só agora o estava notando.
— Está falando comigo? — perguntou, aparentemente surpresa.
— Claro — resmungou o gorducho. — Com quem poderia ser?
Ivsera não respondeu. Limitou-se a fitá-lo com uma expressão séria. Isso deixou-o nervoso, e o nervosismo fez aumentar sua raiva.
— Eu disse que você deve se aproximar! — gritou depois de algum tempo.
Ivsera não se moveu. Belal levantou-se fungando, saiu de trás da escrivaninha e fez menção de puxar Ivsera pelo braço.
— Pense antes de fazer qualquer coisa — recomendou Ivsera tranqüilamente. — É bem possível que acabe recebendo uma bofetada.
O gorducho estacou, deixou cair a mão, cerrou os olhos e exclamou:
— Espere aí, minha filha. Vou domá-la. Guardas!
A porta abriu-se, e os soldados voltaram a entrar.
— Levem estes indivíduos. Coloquem-nos no campo de trabalho C. Nos próximos cinco dias ficarão sem alimento. São muito gordos.
Os homens de Fenomat não esboçaram a menor resistência ao serem levados. A porta voltou a fechar-se atrás dos soldados e dos prisioneiros por eles conduzidos.
O oficial ficou a sós com Ivsera. Esta receava que não demoraria a chegar o momento em que teria de fazer uso da arma de que se apoderara às escondidas.
Ele sorriu.
— Agora estamos a sós, moça — disse em voz baixa. — Você sabe o que isso significa?
— A única coisa que sei — respondeu Ivsera em tom seco — é que o Conselho do abrigo de Sallon, ou outro tipo de governo que o senhor tenha, não deixará de chamá-lo à responsabilidade por violação das leis da guerra.
O oficial escutou com uma expressão de espanto no rosto. Finalmente soltou uma estrondosa gargalhada.
— As leis de guerra — disse entre os risos — já têm mais de cem anos. Hoje ninguém mais se lembra delas. Ora essa, moça! Você é minha, tal qual o abrigo de Sallon. Não existe ninguém que me possa chamar a responsabilidade.
Ivsera não pôde deixar de observar:
— Pelo que vejo, Sallon pertence a um sujeito muito desagradável.
No mesmo instante, o gorducho perdeu o bom humor. Aproximou-se de Ivsera e chiou:
— Não me faça ficar zangado. Estou disposto a oferecer-lhe um estilo de vida que atualmente nenhuma mulher em Isan desfruta. Por outro lado, poderei dar-lhe um tipo de vida que faça você lamentar-se de ter vindo a este mundo. Entendeu?
Ivsera não perdeu a calma.
— Antes de mais nada, não me trate de “você”; trate-me de “senhora” — respondeu. — Além disso, dispenso o estilo de vida que o senhor me quer proporcionar. Prefiro estar morta que juntar-me a um tipo como o senhor.
Não sabia por quê, mas estava interessada em ofendê-lo. E conseguiu.
O homem espumou de raiva. Segurando-a pelo braço esquerdo, sacudiu-a com tamanha violência que os cabelos voaram de um lado para outro. Pôs-se a gritar:
— Você vai obedecer. Implorará para que lhe poupe a vida. Até hoje ninguém se opôs a Belal por mais que alguns minutos.
Face ao nervosismo do gorducho, Ivsera não teve a menor dificuldade em tirar a pistola. Empurrou o botão da trava e fez pontaria com toda calma, a fim de não errar o alvo.
Apenas cometeu um erro. Avaliou a agilidade do gordo com base no volume de seu corpo.
Belal viu a arma, deixou-se cair para o lado e na queda bateu na mão da jovem, que soltou a pistola. Ivsera gritou de raiva e decepção. Ele rolou rapidamente pelo chão, pegou a arma e levantou-se com um sorriso de deboche.
— Então é isso! — exclamou. — E as leis da guerra? Será que uma prisioneira pode ameaçar a segurança do abrigo inimigo com uma arma escondida?
A moça perdera totalmente o autocontrole:
— Mate-me logo! — gritou. — Vamos, atire!
Belal limitou-se a sacudir a cabeça.
— Não, minha filha. Você continuará a viver.
Ivsera investiu sobre ele, levantando as mãos para golpeá-lo, mas Belal empurrou-a para trás com a maior facilidade. A jovem caiu e bateu com as costas contra a parede.
Até parecia que Ivsera acionara um contato invisível. No momento do choque, a porta abriu-se.
Belal, que até então parecia dedicar todo seu interesse a ela, levantou a cabeça, espantado.
Ivsera fitou o homem alto e de vestes estranhas que parou na entrada e, depois de olhar ligeiramente em torno, penetrou na sala. A porta voltou a fechar-se atrás dele.
“Este homem tem olhos brancos”, pensou Ivsera apavorada. “Quem já viu um par de olhos desse tipo?”
Os de Ivsera e de todas as pessoas conhecidas eram avermelhados.
Belal recuperou o autocontrole.
— Quem é você? — gritou para o desconhecido. — E como se atreve a entrar...
O desconhecido interrompeu-o com um gesto indiferente.
— Não perca seu tempo, meu caro — respondeu em tom tranqüilo. — Não me atrevo a coisa alguma. Ouvi sua gritaria lá no corredor, e pensei que possivelmente alguém estaria precisando de auxílio.
Belal perdeu o fôlego. O desconhecido teve tempo de inclinar-se sobre Ivsera e levantá-la antes que Belal recuperasse a fala.
— Espere aí, rapaz! Logo espantarei essa sua audácia.
Comprimiu uma fileira de botões presos à escrivaninha. O ruído abafado das sereias de alarma penetrou pela porta fechada.
O desconhecido aguçou o ouvido.
— Está chamando sua gente, gorducho? Ainda bem! Só assim verão que seu comandante é um velhaco.
— Você está louco! — gritou Belal em tom histérico. — Daqui a pouco estará morto.
O desconhecido acenou com a cabeça.
— Talvez seja você — respondeu tranqüilamente.
Belal empalideceu. Sua segurança desvaneceu-se. Apoiou-se sobre a borda da escrivaninha e perguntou:
— Quem... quem é você?
— O que lhe adiantará saber meu nome? — retrucou o desconhecido. — Pode chamar-me de Perry; é quanto basta.
Naquele instante, a porta abriu-se. Uma horda de homens armados até os dentes dispôs-se a penetrar no gabinete.
— Matem-no! — berrou Belal. — Ele me ofendeu.
Ivsera viu o desconhecido que se identificara pelo nome de Perry virar-se abruptamente. Levantou o braço direito, do qual parecia emanar uma força misteriosa. Os soldados pareciam grudados ao limiar da porta. Até mesmo a voz esganiçada de Belal morreu.
— Não se apressem — recomendou o desconhecido com toda a tranqüilidade. — Belal está mentindo. Molestou esta moça, que é uma prisioneira de guerra.
Belal soltou uma risada de deboche. Estava acostumado a não ver levado a sério qualquer acusação dirigida contra sua pessoa. Tudo que fazia revertia em proveito imediato do abrigo de Sallon. Dessa idéia derivava a posição de força que o oficial desfrutava.
Mas, pela primeira vez, viu seus soldados com os rostos embaraçados. Não se atreviam a olhar nem para ele, nem para o desconhecido.
— Voltem, rapazes! — ordenou o desconhecido. — Aqui está sendo julgado um homem que durante vários anos cometeu crimes e ficou impune.
Ivsera não acreditou no que seus olhos viam. Os soldados fizeram meia-volta e retornaram ao corredor. A porta fechou-se atrás deles.
Voltara a ficar a sós com Belal e o desconhecido chamado Perry.
O gorducho afundara em sua cadeira, incapaz de pronunciar uma única palavra.
— Viu? — disse Perry com um sorriso. — É o que acontece com quem muito se gaba.
— Isso... isso... — balbuciou Belal.
— Isso é impossível? Foi o que você quis dizer? Não, não está havendo nenhuma bruxaria.
Belal lembrou-se de ter ouvido uma alusão a qualquer julgamento. Sentiu o poder apavorante do desconhecido e percebeu que, se não fizesse alguma coisa, sua vida poderia correr perigo.
— Eu... eu... poupe minhavida! — implorou. — Não farei nada de que você não goste.
Perry soltou uma risada irônica.
— De repente? Não perca tempo, Belal, e não se preocupe. Poderá ficar com sua vida imunda. Tirarei a moça daqui e levá-la-ei a Fenomat. Já que demonstra tamanha boa vontade em fazer-me um favor, eu lhe darei uma dica. Não ponha as mãos em Fenomat, senão você se arrependerá.
Ivsera viu o sorriso de deboche que por uma fração de segundo passou pelo rosto de Belal. Será que o desconhecido havia visto?
Quase como um sonho, sentiu Perry segurar sua mão.
— Venha comigo — disse. — Vamos retirar-nos e deixar nosso amigo a sós com seus problemas.
A porta abriu-se. Ivsera e Perry saíram para o corredor. A jovem olhou para trás e viu que Belal permanecia imóvel atrás de sua escrivaninha. Ainda continuava paralisado pelo susto ou então era cauteloso demais para executar qualquer movimento rápido e revelar suas intenções antes do tempo.
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Perry caminhou pelo corredor com a tranqüilidade de quem não tem um único inimigo em todo o Universo. Algum tempo passou-se até que Ivsera se recuperasse da surpresa o bastante para falar.
Até então haviam-se encontrado apenas com alguns homens sem armas, que os fitaram, mas não esboçaram o menor gesto hostil.
No corredor principal, as coisas seriam diferentes. Por lá havia mais soldados que civis.
— O senhor... — disse Ivsera, trêmula — o senhor acredita que conseguiremos sair sem sermos molestados?
Perry virou o rosto em sua direção e sorriu.
— Tenho certeza — respondeu tranqüilamente.
Foi só o que disse. E foi pouco para satisfazer a enorme curiosidade de Ivsera.
— De onde veio o senhor? Não é nenhum dos ocupantes do abrigo de Sallon, não é? E ainda menos é de Fenomat. Será que é de Othahey?
Othahey era o país com que Heyatha entrara em conflito antes que irrompesse a guerra. E Heyatha era a nação que tinha Fenomat por capital.
Perry sacudiu a cabeça.
— Não, não venho de Othahey. Se viesse, não poderia estar tão bem informado sobre os dois abrigos desta cidade.
Um pouquinho do velho espírito de contradição de Ivsera voltou a manifestar-se.
— Não seria totalmente impossível — respondeu. — Não acredito que os habitantes de Othahey tenham sido estúpidos a ponto de não manterem um serviço de espionagem.
Perry soltou uma risada alegre.
— Talvez tenha razão. Acontece que realmente não sou de Othahey.
Não contou de onde tinha vindo.
Dali a dois minutos, entraram no corredor principal. Perry seguiu para a direita, em direção ao elevador. Aquilo que Ivsera temera aconteceu. Com faixas brancas no braço, uma patrulha militar formada de cinco soldados fortemente armados barrou o caminho de Perry. Este só parou quando esbarrou no primeiro soldado e além do mais pôs-se a gritar:
— Seu pateta! Será que você não sabe sair do caminho?
O soldado parecia ter senso de humor. Levantou a arma, recuou um passo e contemplou Perry, que era muito mais alto que ele, dos pés à cabeça. Finalmente disse com uma risada:
— Queira desculpar, general. Será que apesar dos pesares o senhor não me poderia contar quem é o senhor? Ou será que possui algum documento?
Perry sacudiu a cabeça.
— Não, meu amigo, não possuo nenhum documento. Seu superior é o capitão Feriar, não é? Leve-me à presença dele.
Ivsera sentiu-se espantada, e o soldado também. Em Sallon os soldados não usavam uniforme. Uma pessoa que não os conhecesse não estaria em condições de adivinhar quem era o oficial que comandava cada um, mesmo que conhecesse os homens.
A patrulha fez meia-volta e, com Perry na ponta, marchou pelo corredor principal, em direção ao elevador. Ivsera seguiu-os de perto. O desconhecido passou a infundir-lhe pavor.
O gabinete de Feriar ficava próximo ao elevador. Quatro soldados postaram-se junto à porta, enquanto o quinto conduziu Perry e Ivsera para dentro do pequeno recinto.
Feriar levantou-se de um salto quando reconheceu Ivsera. Não deu a menor atenção a Perry.
— Santo Deus! — disse muito espantado. — Como conseguiu livrar-se tão depressa de Belal?
Ivsera fez um gesto e apontou para Perry. Feriar examinou o homem alto à sua frente.
— Quem é o senhor? — perguntou em tom desconfiado.
Perry sorriu.
— Sou um homem que não possui nenhum documento, mas faz questão de sair deste abrigo sem ser molestado, e com esta senhorita.
Feriar respirava com dificuldade.
— Acontece que é uma prisioneira! — disse, arfando.
Abriu a boca para chamar os guardas, mas Perry interrompeu-o com um gesto.
— Deixe de gritaria — disse em tom enérgico. — Pelo que vejo, o senhor é um homem sensato. Por que vai trabalhar para um sujeito imundo como esse Belal?
Feriar ficou com a boca escancarada.
— O senhor vê que...
— Exatamente. O senhor sente repugnância pelo governo autocrático de Belal, não apenas por uma questão de princípio, mas também porque o ditador vem usando os poderes de que dispõe em proveito próprio — falava rapidamente, não deixando que Feriar respondesse. — Faço-lhe uma proposta. Venha comigo a Fenomat. Garanto que nada lhe acontecerá.
Estas palavras pareceram exercer uma estranha coação sobre Feriar. O tom de sua voz não demonstrava muita convicção, quando procurou formular uma objeção:
— Mas Fenomat está...
— Já sei. Vamos reconquistar o lugar. Será que a tarefa seria de seu agrado?
Feriar fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. Irei com o senhor. 
Ivsera teve a impressão de que estava sonhando. Uma coisa dessas não podia existir. Um homem solitário e, ao que parecia, desarmado, andava livremente num abrigo cujo comandante acabara de ofender mortalmente. Para vencer qualquer obstáculo, apenas dizia algumas palavras e levava os oficiais à deserção.
Acontece que era exatamente isso. Feriar pegou a arma e disse aos guardas que levaria os estranhos de volta para Belal. Depois dirigiu-se para a direita, onde ficava o elevador.
A cabina demorou quinze minutos em chegar. Quando a porta se abriu, estava vazia. Perry deixou que Ivsera e Feriar entrassem antes dele. Viu este último estender a mão em direção ao botão de cima, e exclamou:
— É o contrário, meu amigo. Vamos descer.
Feriar lançou-lhe um olhar perplexo.
— Não pretendo caminhar horas a fio por uma área contaminada — disse Perry. — Se passarmos pela galeria recém-aberta, a caminhada será mais fácil.
Feriar obedeceu. Comprimiu o botão de baixo.
Quando haviam descido quatro pavimentos, um sinal vermelho acendeu-se na parede dos fundos do elevador, junto ao teto. Ao mesmo tempo, ouviu-se um zumbido e, lá fora, o uivo estridente das inúmeras sereias.
Feriar estremeceu.
— É o alarma! — fungou.
Perry fez um gesto de indiferença.
— O que esperava? Que Belal nos deixasse escapar sem mais aquela?
Logo depois, uma voz metálica soou no alto-falante instalado no elevador:
— Atenção! Alarma em todos os pavimentos! Dois prisioneiros muito importantes acabam de fugir: uma mulher vinda do abrigo de Fenomat e um desconhecido que surgiu não se sabe de onde. Ambos foram condenados à morte por sentença regular do tribunal de guerra e por isso terão de ser recapturados, vivos ou mortos.
Seguiu-se uma descrição dos dois prisioneiros. Cabia ressaltar que, em relação a Perry, Belal, que por certo fora o autor da descrição, se enganara um pouco. Ao menos, Ivsera não acreditava que alguém o pudesse reconhecer com base apenas nos dados vagos fornecidos por Belal.
Feriar começou a inquietar-se.
— Sabe quantas pessoas temos em armas em Sallon?
Perry sorriu.
— Espere... cinco mil e quinhentos, não é? Isso corresponde a quase oitenta por cento da população masculina entre quinze e cinqüenta anos.
Feriar ficou perplexo.
— Sabe onde essa gente nos procurará? — prosseguiu Perry. — Lá em cima, na comporta de superfície.
* * *
Perry teve razão. O elevador chegou ao pavimento inferior, sem que ninguém os molestasse. O corredor que se estendia diante deles estava vazio.
Sem a menor hesitação, Perry seguiuo caminho que dava para a direita.
— Guarde a arma — recomendou a Feriar. — Poderei cuidar de nós três. Na medida do possível, quero evitar o derramamento de sangue.
Feriar obedeceu sem dizer uma palavra. Desde o momento em que vira Perry pela primeira vez, Ivsera começou a acreditar que esse homem possuía um estranho poder. Será que ele sabia controlar os pensamentos e desejos de seus semelhantes?
Procurou examinar sua própria mente, mas não percebeu qualquer alteração.
Subitamente o corredor terminou numa parede cinzenta e nua. Mas isso não causou o menor embaraço a Perry. Abriu-a do lado direito e, para surpresa de Ivsera, atrás estendia-se um recinto que tinha o mesmo aspecto do compartimento de Fenomat, que Killarog lhe havia mostrado e, tal qual este, possuía duas portas.
A capacidade de orientação de Perry era espantosa. Dirigiu-se sem a menor hesitação aos dois homens que montavam guarda junto à segunda porta e disse:
— Deixem-nos passar. Temos de ir a Fenomat para executar uma tarefa muito importante.
Ao que tudo indicava, um dos guardas não teve a menor dúvida. Mas o outro baixou o fuzil, fechando o acesso à porta, e disse em tom desconfiado:
— O comandante Belal está procurando uma mulher e um homem que foram condenados à morte. Conheço o capitão Feriar. Mas será que vocês não são os fugitivos?
Perry pôs a mão no bolso. Ele o fez numa atitude indiferente, como quem já está cansado de exibir seus documentos. E, ao que parecia, os dois guardas pensavam que se tratasse da identidade de Perry.
Acontece que Perry acabou por tirar um objeto que tinha certa semelhança com uma pequena pistola. Ivsera não chegou a ver o que Perry fez com o objeto, mas no instante em que sentiu uma dor cruciante na cabeça, os dois soldados caíram imóveis. Nem tiveram tempo para soltar um grito.
Ivsera teve um calafrio.
— Vamos! — disse Perry em tom tranqüilo. — É uma pena que foram tão desconfiados. Levarão duas horas para recuperar a consciência. Mas antes disso alguém os encontrará... e então já saberão onde procurar-nos.
— Não estão... mortos? — gaguejou Ivsera, enquanto Perry abria a porta.
Perry riu.
— Não. Como já disse, não derramo sangue enquanto tenho um meio de evitá-lo.
O corredor pelo qual seguiram era mais largo e alto que aquele que Killarog mandou abrir em prosseguimento ao abrigo de Fenomat. Ivsera começou a compreender que a “guerra dos túneis”, nome que costumava dar ao conflito, fora preparada há muito tempo por parte de Sallon. Deviam ter levado pelo menos um ano para abrir uma galeria desse tipo numa extensão de alguns quilômetros.
O corredor estava profusamente iluminado. Percebia-se que, além dos dois guardas inconscientes, não havia ninguém por perto. Ivsera achou que isso era um mau sinal para Fenomat. Se ainda estivesse havendo luta, a galeria se encontraria repleta de gente armada.
Perry caminhava vigorosamente. Ivsera percebeu que Feriar examinava repetidas vezes o homem desconhecido, como se procurasse compreender com quem lidava. Porém, nada estava conseguindo pois, de vez em quando, sacudia a cabeça, bastante contrariado, e murmurava palavras incompreensíveis. Ivsera o entendia, porque com ela estava acontecendo a mesma coisa. O desconhecido livrara-a de uma situação muito perigosa e, ao que tudo indicava, estava prestes a impor respeito ao regime despótico de Sallon. Portanto, deviam sentir-se gratos. De outro lado, porém, começava a apavorá-la por causa dos seus conhecimentos e capacidades.
Assim, por exemplo, a arma com que acabara de reduzir os dois guardas à inação. O que seria aquilo? Não os matara; apenas lhes roubara a consciência. Ivsera tinha certeza absoluta de que em Isan jamais existira um aparelho daquele tipo.
A conclusão que se poderia extrair dali era um pouco arriscada: o desconhecido não era de Isan. Vinha de outro mundo.
Antes que tivesse início a guerra em Isan, os dois Estados rivais, Othahey e Heyatha, realizavam esforços para conquistar o espaço. Em virtude da inimizade que reinava entre os dois Estados, esses esforços assumiram a feição de uma corrida obstinada. Depois que vários satélites gravitavam em torno do planeta, o lançamento do primeiro foguete espacial estava iminente de ambos os lados. E, em ambos os casos, o destino do foguete seria Vilan II, o planeta que tinha uma órbita entre dois outros que giravam em torno de Vilan.
Mas sobreveio a guerra e destruiu tudo que havia sido criado. Havia uma única coisa que não conseguira destruir: o saber dos homens, que lhes dizia ser a navegação espacial não só possível, como necessária, pois em outros mundos poderia haver outros seres, talvez inteligentes, e que se deveria tentar entrar em contato com eles.
Será que Perry era um desses seres?
* * *
Depois de uma marcha de três horas, durante a qual se haviam encontrado com alguns soldados que não criaram o menor problema, Perry deu outra prova de seus conhecimentos sobrenaturais. Parou e perguntou:
— A senhora não disse que em Fenomat abriram outra galeria em direção a Sallon?
A pergunta foi dirigida a Ivsera. A jovem assustou-se. Tinha certeza absoluta de que nunca havia falado sobre essa galeria. A não ser com Killarog, que estava morto.
“Será que Perry sabia ler pensamentos?”, pensou.
— Não... — respondeu em tom hesitante — não disse nada disso. Mas de qualquer maneira essa galeria existe.
Perry sorriu.
— Onde?
Ivsera descreveu a situação da galeria com a maior exatidão possível. Por algum tempo, Perry parecia bastante pensativo. Finalmente apontou para a parede da esquerda do corredor e disse:
— Se neste ponto abrirmos uma galeria que desça dez graus em relação à horizontal, devemos encontrar a galeria de Fenomat numa distância de cem metros, não é?
Ivsera não sabia. Além disso, a observação lhe parecia ser puramente teórica.
“Quem poderia abrir uma galeria numa hora dessas, e para que poderia servir a mesma?”, refletiu.
— Será preferível que desapareçamos por algum tempo — apressou-se Perry em explicar. — Uma porção de gente está atrás de nós.
Ivsera e Feriar olharam para trás. Mas a galeria que se estendia às costas deles continuava vazia como estivera até então.
Perry pôs a mão no bolso e tirou a pequena arma com que fizera desmaiar os dois guardas; entregou-a a Feriar. Depois fez um gesto em direção à galeria.
— Se aparecer alguma coisa por aí — explicou — aponte o cano da arma nessa direção e aperte o botão vermelho. Isso nos livrará dessa gente. Convém olhar de vez em quando para o outro lado. Provavelmente Belal procurará agarrar-nos num movimento insinuante.
Não houve a menor objeção. Feriar pegou cautelosamente a estranha arma e examinou-a. Ivsera colocou-se a seu lado e, de tão curiosa que estava, nem percebeu de onde Perry tirou o instrumento comprido que dirigiu contra a parede esquerda do corredor.
Mas viu que do cano do aparelho saiu um raio luminoso esverdeado que se alargou em forma de funil e atingiu a parede. Dentro de poucos segundos surgiu um buraco profundo. A rocha abriu-se para ambos os lados, como se tivesse sido transformada em nuvens de gás.
Perry concentrou-se exclusivamente no seu trabalho. Apesar disso parecia notar os olhares espantados de Ivsera e Feriar.
— Tome cuidado, Feriar! — recomendou. — Senão de repente estarão aqui sem que percebamos qualquer coisa.
O misterioso raio verde trabalhava silenciosamente e com uma rapidez inacreditável. Ivsera assistia com o maior espanto, mas de repente sua atenção foi desviada.
Uma gritaria e o ruído de passos invadiram o abrigo de Sallon. À luz das lâmpadas, viam-se soldados que corriam apressadamente pelo corredor. Ao que parecia Perry os percebera, embora já tivesse penetrado bem longe para dentro da parede. Gritou para Feriar:
— Detenha-os apenas por um instante; daqui a pouco tudo estará resolvido.
Tremendo de medo, não dos soldados, mas da arma desconhecida, Feriar dirigiu o cano curto sobre os soldados de Sallon, que já o haviam reconhecidojuntamente com Ivsera e se aproximavam em meio a uma gritaria furiosa.
— Atire! — exclamou Ivsera assustada. 
Feriar apertou o botão. Os efeitos do tiro foram muito maiores do que imaginaria. Até parecia que os homens haviam batido numa parede: tombaram, ficando imóveis.
Os homens que vinham na retaguarda não sabiam o que tinha acontecido aos outros, mas compreenderam o perigo. Abrigaram-se atrás dos corpos dos homens inconscientes e apontaram os fuzis. Feriar hesitou.
— Cuidado! — gritou Ivsera. — Deite!
No mesmo instante em que os fuzis começaram a espocar, deixou-se cair para a frente. Feriar continuou de pé e voltou a levantar a arma. Comprimiu o botão e silenciou outro grupo dos soldados de Sallon. Só vez por outra, um ruído soava pelo corredor.
Ivsera ouviu os projéteis baterem contra as paredes e cantarem ricocheteando.
Algumas peças de metal reluzente caíram bem à sua frente, continuaram a rolar e imobilizaram-se. Incrédula, Ivsera pegou uma delas. Era um projétil de fuzil; alguma força misteriosa fizera com que interrompesse sua trajetória e caísse ao chão.
Ouviu a voz de Perry, que parecia vir através de uma parede muito espessa:
— Venham! Já consegui.
Feriar continuava de pé, com os olhos fitos nos homens inconscientes que estavam jogados no corredor. Ivsera teve de empurrá-lo suavemente para dentro da galeria lateral que acabara de ser aberta por Perry.
Com um espanto enorme, ela percebeu que neste meio tempo a galeria já havia avançado cinqüenta metros. De pé no fim do túnel, Perry lhes fez um sinal com a mão.
— Vamos fechar-lhes o caminho — disse. — Andem depressa!
Feriar despertou do torpor em que se encontrava e começou a caminhar vigorosamente.
— Cheguem bem perto! — pediu Perry. Dirigiu o cano comprido de sua arma contra o teto da galeria que acabara de perfurar. Concentrando os raios num feixe finíssimo, cortou fendas estreitas na rocha. Dentro de alguns segundos, fez com que sua entrada desmoronasse. Prosseguiu na operação, até que a galeria secundária ficasse obstruída numa extensão de cerca de trinta metros.
— Isso! — disse Perry com uma risada. — Acho que levarão pelo menos três dias para remover o entulho.
Prosseguiu no seu trabalho e, logo depois, abriu-se o último pedaço de rocha que dava acesso à galeria do abrigo de Fenomat.
A fuga fora bem sucedida. O corredor estava vazio. Talvez os ocupantes do subsolo de Sallon ainda não o haviam descoberto; ou então, o que era mais provável, não se interessaram por ele, porque de nada lhes poderia servir.
* * *
Para sua surpresa, no pavimento inferior do abrigo de Fenomat só encontraram dois guardas, postados na saída do corredor de Sallon, que dava diretamente para o antigo gabinete de Havan. Ivsera pensou na cara que este deveria ter feito quando de repente a parede desmoronou atrás dele e os soldados de Sallon se precipitaram pela abertura.
Perry liquidou os dois guardas com um único tiro e, ajudado por Feriar, levou-os a uma sala vizinha. Disse que a energia do disparo era suficiente para deixá-los inconscientes por dois dias, e que seria preferível não serem descobertos antes disso.
Depois dessas palavras, Feriar olhou Perry com uma expressão séria. Hesitou por um instante e disse:
— Nós lhe devemos muitos agradecimentos, e sabemos perfeitamente que em Isan deve ser considerado como um tipo de ser superior. Mas ficaríamos muito mais à vontade se quisesse dizer-nos o que pretende fazer e, principalmente, por que pretende fazê-lo.
Perry fez um gesto afirmativo.
— Muito bem. A resposta à primeira pergunta é fácil. Pretendo reconquistar o abrigo de Fenomat. Para dar uma resposta parcial à segunda pergunta, direi o seguinte: se Belal conservar em seu poder no abrigo de Fenomat, isso representará o primeiro passo da escalada que fará dele a potência número um de Isan. Pelo que sei, aqui não existe nenhum lugar em que haja dois abrigos que fiquem tão próximos um do outro. Portanto, não haverá ninguém com maior domínio que Belal. Depois desse passo, o gorducho fará o possível para dominar todo o planeta; e, uma vez que será o maior poder, deverá conseguir.
Perry fez uma ligeira pausa e prosseguiu em tom ligeiramente irônico.
— Uma vez que Belal pretende instalar o sistema ditatorial em Isan, deveremos estragar seus planos.
Feriar fez um gesto afirmativo; parecia muito sério.
— E a outra parte da resposta? — perguntou Ivsera.
— Deveremos estar juntos por mais algum tempo antes que eu possa dar a resposta integral. Por enquanto, nada posso adiantar.
Feriar interveio:
— O senhor dispõe de uma série de armas que lhe garante uma superioridade absoluta sobre qualquer inimigo. Mas será que conseguirá dominar a guarnição do abrigo, que deve ser superior a mil homens? Convém não esquecer que estas instalações são muito complicadas. Para uma pessoa isolada é praticamente impossível orientar-se por aqui.
Perry exibiu um sorriso condescendente.
— Para mim não haverá o menor problema; pode acreditar — respondeu.
Perry pôs a mão num dos bolsos de seu traje esquisito. Tirou um objeto quadrado, achatado e que, de tão pequeno, facilmente poderia ser escondido na palma da mão de qualquer pessoa.
Ivsera ouviu-o dizer algumas palavras, enquanto encostava o pequeno aparelho à boca. Não compreendeu essas palavras.
Mas, em Isan havia uma única língua, motivo por que o conceito de idioma estrangeiro era totalmente desconhecido dos habitantes do planeta. Por isso Ivsera viu no fato de não ter entendido a fala de Perry mais uma prova de que o mesmo provinha de um mundo desconhecido.
Ao que parecia, Feriar ainda estava longe de chegar a uma conclusão desse tipo. Fitou-o com uma expressão incrédula enquanto Perry falava para dentro do minúsculo aparelho. Mas, quando de repente, ouviu uma voz saindo desse aparelho, e que tal qual Perry emitia sons de uma língua estranha, ficou apavorado.
* * *
John Marshall ocupou o lugar de Perry Rhodan, enquanto este foi verificar o resultado do empreendimento do qual tivera conhecimento por meio da escuta das palestras de Killarog.
E a transmissão que tanto espanto causou em Ivsera e Feriar foi dirigida a Marshall. E este captou um ligeiro relato da situação e obteve estas instruções:
— Arme-se com um desintegrador e um radiador de impulsos térmicos e venha até aqui. Vamos atacar o abrigo simultaneamente de dois lados. Laury ficará com Rodrigo. Entendido?
— Perfeitamente. Permanecerei em contato com o senhor.
— Está bem — concluiu Rhodan. — Faça o possível para não matar ninguém.
* * *
A reconquista do abrigo de Fenomat não passou de uma farsa. Perry atravessou os corredores e deixou todo mundo inconsciente com a arma misteriosa. Caberia a Feriar e Ivsera separar os homens de Fenomat dos de Sallon. Os primeiros ficariam estendidos no chão até que recuperassem os sentidos; os outros seriam amarrados.
Antes do início da operação, Perry fechara as extremidades de ambas as galerias, a fim de impossibilitar a remessa de reforços de homens e materiais para Fenomat, ao menos por via subterrânea.
O abrigo de Fenomat era formado de um total de cem pavimentos. Face à arma de grande alcance de que dispunha, Perry não demorou mais de uma hora na operação de limpeza de cada um. Vez por outra, recorria ao aparelho quadrado para conversar com alguém numa língua estranha. Quanto ao conteúdo das palestras, apenas disse a Ivsera e Feriar que um amigo seu havia iniciado a limpeza do abrigo, começando da parte de cima e que, dentro em breve, se encontrariam com ele na altura do qüinquagésimo pavimento.
Uma coisa que quase chegava a ser mais espantosa que a série de acontecimentos foi a persistência com a qual Rhodan se dedicou à tarefa. Depois de concluída a limpeza de dez pavimentos, Feriar teve de ser substituído por um elemento de Fenomat, já que não conseguia manter-se de pé de tão cansado que estava. Ivsera desistiu depois de mais dois pavimentos, após ter providenciado um substituto saído

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