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1 CEDERJ – CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR A DISTÂNCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO MATERIAL EM EDIÇÃO – USO EXCLUSIVO DA DISCIPLINA PORTUGUÊS VI NA PLATAFORMA CEDERJ CURSO: LETRAS DISCIPLINA: Português VI CONTEUDISTAS: Ana Cláudia Machado Teixeira/ Ivo da Costa do Rosário / Monclar Guimarães Lopes AULA 09 Domínio memorialístico: carta pessoal, diário, autobiografia META Compreender o domínio memorialístico como esfera de produção discursiva que abrange gêneros textuais de escrita intimista cujo autor se vê refletido e reflete sobre si mesmo, bem como particulariza seu ato de escrita. OBJETIVOS Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de: 1.Compreender o domínio memorialístico como instância de produção discursiva que propicia o surgimento de discursos específicos caracterizados por um tipo de escrita peculiar, íntima e pessoal;; 2 2. Reconhecer o conteúdo temático, a estrutura composicional e o estilo dos gêneros carta pessoal, diário e autobiografia, relacionando os processos de leitura aos de produção textual;; 3. Promover a apropriação desses gêneros em sala de aula, colaborando com o ensino de língua por meio de situações reais de uso. INTRODUÇÃO Nesta aula, adentramos em um domínio discursivo muito específico da linguagem. O caráter memorialista da expressão linguística evidencia a subjetividade do autor e, nesse sentido, é por meio do espaço de criação subjetivista que os textos são constituídos. Assim, a estreita relação do escritor com a sua produção revela o Eu, as memórias mais pessoais e importantes, implicando uma atuação explícita, sobretudo se considerarmos que o ato de escrita singular delineia um sujeito que se vê refletido e que reflete sobre si mesmo. Levando isso em consideração, os gêneros textuais abordados aqui permitem a identificação do Eu impresso no discurso. Paralelamente, interferências externas podem servir de influência ou condicionamento para esse processo. O espaço da memória como “faculdade pela qual o espírito conserva ideias ou imagens ou as readquire sem grande esforço1” figura como a possibilidade de encontro com a história pessoal em que há a probabilidade de ressignificação do sujeito. Daí ser um domínio discursivo específico. Como destaca Magda Soares (1991), é olhar, como olhos presentes, para o passado. Dessa forma, há um interesse de se registrar um momento particular, expressando um estado de espírito em função de um dado momento e de uma dada inter-relação, quando pensamos no gênero carta pessoal. Nos gêneros diário e autobiografia, por sua 1"Memória", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008- 2013, http://www.priberam.pt/dlpo/mem%C3%B3ria [consultado em 15-08-2016]. 3 vez, há um reviver do sujeito que pensa em si no ontem. Nos três, há sempre uma referência identitária fortemente marcada em razão da explicitude do sujeito- escritor. A esfera de atuação memorialista funciona como um manancial para a formação de enunciados relativamente estáveis em que práticas sociais se efetivam e por meio dos quais nos comunicamos. Portanto, vamos estudar três gêneros que refletem condições e finalidades específicas para cada momento e para cada necessidade comunicativa, concretizadas tanto pelo conteúdo temático – aquilo que se tenciona dizer por meio da carta pessoal, do diário ou da autobiografia, quanto pelo estilo da linguagem materializado por meio dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais, ou seja, todos os recursos linguísticos que efetivam de forma particular cada um dos gêneros em questão. Se estamos diante de gêneros prioritariamente peculiares, típicos, distintos e específicos que marcam uma identidade igualmente distinta, pessoal e exclusiva, é de se esperar que tenhamos um número maior de recursos que visem a marcar um estilo singular. Tratando do quesito estrutura composicional, embora cada enunciado seja particular, a esfera memorialista agrupa seus tipos relativamente estáveis de significação. Há, dessa forma, um objetivo subjacente à estrutura empregada e, assim, a composição terá o caráter específico a partir da função social a que cada gênero esteja filiado. No que se refere aos gêneros carta pessoal, diário e autobiografia, é crítico dissociar conteúdo temático de estilo, visto que vários aspectos da individualidade podem e geralmente são mais utilizados nesses gêneros textuais. Por conta disso, pensamos apenas que cada um desses quesitos se interpenetra e se combina sem necessariamente um se sobressair ao outro. A estrutura composicional, entretanto, marca efetivamente funções sociais distintas que são muito mais fáceis de se observar. Por essa razão, objetivamos mostrar a relação do processo de 4 leitura e do de produção textual principalmente a partir da função social, tendo em vista a importância de demonstrar a atuação do autor bem como a postura interpretativa do leitor em gêneros desse tipo. Dessa perspectiva, podemos considerar os três quesitos que compõem os gêneros, fazendo uma associação entre a maneira com que lemos a subjetividade inscrita nesses textos e como podemos inscrever a própria subjetividade ao produzi-los. Esse caminho distinto e complementar entre leitura e produção pode ampliar a mera questão de extrair sentidos de textos para atribuir sentido a eles, levando em consideração o que se entende por função social e sua respectiva materialização representada nos gêneros. Complementarmente a essa questão, nesta aula você vai entrar em contato com textos que, a partir do domínio discursivo memorialista, permitem o trabalho em sala de aula a fim de colaborar com o ensino de língua por meio de situações reais de uso. O estudo, portanto, tem como objetivo valorizar práticas discursivas que possam inserir os alunos em novos contextos discursivos. Dessa forma, consideramos que nossa contribuição seja relevante na sua formação como professor. Vamos lá! 1. O GÊNERO CARTA PESSOAL Em nosso dia a dia, somos cercados de textos orais e escritos. Afinal, nós nos comunicamos por meio de textos, que são responsáveis por verbalizar nossas experiências e codificar nossas emoções, intenções, objetivos etc. Dentre os inúmeros gêneros que circulamà nossa volta, destacamos a carta pessoal. De uma forma bastante geral, dizemos que a carta pessoal é um gênero epistolar do domínio memorialístico, que tem o objetivo de estabelecer nossa comunicação com alguém próximo de nós, como alguém da família ou algum amigo. Em outras palavras, na perspectiva de Silva (2002, p. 80), é uma 5 “produção de linguagem, socialmente situada, que engendra uma forma de interação particular”. Mesmo em meio a esses tempos de alta tecnologia, com vários outros gêneros sendo utilizados de maneira muito prática e rápida, como mensagem de whatsapp, tweet, mensagem de texto, e-mail, etc, a carta pessoal ainda sobrevive e guarda com ela um certo “charme”, no sentido de transmitir mensagens normalmente marcadas pela expressão de sentimentos, em tom intimista. Além desse aspecto afetivo, vale lembrar que nem todas as pessoas estão conectadas ao mundo virtual. Em lugares com pouco ou nenhum acesso à internet, por exemplo, as cartas pessoais continuam sendo usadas com alguma frequência. Também podemos pensar nas pessoas mais idosas. Principalmente pelo grande conservadorismo, muitos ainda preferem sistemas de comunicação mais tradicionais. Por fim, devemos pensar que as cartas pessoais continuam sendo cobradas em alguns processos seletivos como ENEM, concursos públicos e outros. Essas são algumas instâncias da vida real que continuam a exigir conhecimentos desse gênero, especialmente como prática de leitura. Tudo isso justifica o estudo da carta pessoal que, como não poderia ser diferente, ajuda-nos a compreender a própria organização da sociedade onde é usada. De fato, gênero textual e vida social imbricam-se fortemente: [...] os gêneros, construídos no seio de uma sociedade, expressam os modos como as pessoas interagem e se organizam socialmente no interior das esferas das atividades sociais da vida para responder às suas necessidades comunicativas (pessoais e profissionais, por exemplo). Dessa perspectiva, afigura-se importante pensar que os esquemas de participação engendrados no interior dos eventos comunicativos dos gêneros existentes em uma sociedade retratam, em larga medida, como as pessoas se organizam e se relacionam, social e interativamente, no cotidiano da sociedade. (SILVA, 2002, p. 90) 6 Logo, o uso de cartas pessoais em um determinado grupo social revela boa parte das preferências das pessoas com relação às formas mais comuns de comunicação, bem como sua organização social como um todo, especialmente na expressão das memórias e intimidades. Quem nunca enviou uma carta de amor ou de amizade para alguém, mesmo que na infância ou adolescência? Sem dúvida, você já viveu essa experiência, e isso certamente o ajudou a comunicar algum sentimento ao destinatário, sendo uma forma especial de carinho ou afeto. Assim, percebemos que o uso de um determinado gênero textual não visa apenas à transmissão de um conteúdo, mas envolve uma série de outras questões igualmente importantes, como fatores pragmáticos que balizam as interações humanas. Dessa forma, mesmo com todo avanço das tecnologias da informação e comunicação, a carta pessoal ainda persiste, pois cumpre um papel que outros gêneros não podem cumprir. Silva (2002, p. 103) ajuda-nos a compreender melhor a função desse gênero: [...] a carta pessoal é um espaço interlocutivo através do qual são abertas possibilidades de formar novas relações sociais [...]. Aliás, sobre isso, não poderia deixar de lembrar aqui que, como sabemos, grandes amizades foram construídas e alimentadas apenas por meio de cartas. Um dos exemplos clássicos é o da interlocução mantida por cartas entre Santo Agostinho e São Jerônimo, por longos anos. Até aqui, deve ter ficado claro para você que a carta pessoal não apenas comunica uma mensagem, mas o faz de maneira especial, muito particular. Carrega consigo uma boa carga de afeto e constrói (novas) relações sociais. Reiteramos que é verdade que o avanço da tecnologia e os novos tempos ajudam a tornar a produção desse gênero cada vez menos frequente, entretanto a carta pessoal segue sendo utilizada em situações especiais e, em termos pedagógicos, a leitura desse gênero pode ser uma experiência bastante enriquecedora. Vejamos um exemplo de carta pessoal, extraída de Silva (2002, p. 107): 7 Nesta carta que acabamos de apresentar, existe uma primeira informação: “Marília, 05 de agosto – 1997”. O local e a data são informações muito presentes em cartas pessoais, a ponto de os considerarmos como elementos caracterizadores desse gênero. Servem para enquadrar o evento que será desenvolvido ao longo do texto. Em seguida, verificamos que Samantha (a remetente), logo no início, usa uma saudação, por meio de um vocativo. Com isso, ela tenta se aproximar de Roberto (o destinatário) de maneira afetiva e até mesmo íntima (pelo uso do apelido “Beto”). A abertura da carta funciona, portanto, como uma forma de instaurar um espaço de interatividade, em que ficam claros os “lugares” do remetente e do destinatário, ou seja, são pessoas que se conheceram e que desejam continuar se correspondendo, a fim de solidificar essa amizade. Por ser uma relação assincrônica, tendo em vista que remetente e destinatário não dialogam como em uma situação on-line, a remetente utiliza diversos recursos que tentam suprir a ausência física do interlocutor. Ela usa 8 expressões como “Lembra de mim?”, “Espero que você lembre”. Ela conta com a colaboração do interlocutor nessa situação comunicativa. Caso a interação fosse fisicamente presencial ou até mesmo pelo telefone, pelo skype, etc, essas expressões seriam desnecessárias, naturalmente, tendo em vista o feedback imediato. No jogo dialógico, a remetente tenta influenciar atitudes do destinatário, convidando-o a manter a rotina de troca de cartas. Naturalmente, ao lançar essa proposta, a missivista espera que o destinatário acene positivamente para a sua solicitação. Após alguns parágrafos, Samantha despede-se de Roberto de maneira muito afetuosa (“Um beijão”) e assina a carta. A breve análise realizada permite a depreensão de um esquema básico para o gênero em tela. De fato, podemos postular que a estrutura básica da carta pessoal conta com os seguintes elementos: a) local e data;; b) vocativo;; c) corpo do texto;; d) despedida;; e) assinatura. Silva (2002,p. 148), por exemplo, apropria-se desse esquema básico e, com mínimas diferenças, ao analisar diversas cartas pessoais, apresenta a seguinte esquematização para a carta pessoal: 9 Esse esquema pode ser sintetizado da seguinte maneira (cf. SILVA, 2002, p. 139): 10 Como vimos insistindo, os gêneros textuais são relativamente estáveis, com uma boa margem de maleabilidade. Isso significa que nem sempre uma carta pessoal apresentará todos esses elementos e nessa ordem. Pode ser que a data venha ao final, que o remetente não a assine e por aí vai... Também é possível que a carta conte com outros elementos adicionais. Apesar de haver possíveis diferenças de cartas pessoais no plano estrutural, especialmente ao longo do tempo, você deve estar percebendo que a estrutura básica é muito semelhante, pois a função de comunicar algum conteúdo a outra pessoa é mantida. Isso significa que o gênero carta pessoal é caracterizado, em maior medida, pelos seus aspectos funcionais, podendo haver variação em seus aspectos formais. De fato, a estrutura básica é variável, mas o esquema geral de introdução – corpo do texto – conclusão é sempre mantido. Quanto à variação na estrutura das cartas, podemos citar alguns pontos. Por exemplo, o vocativo pode ir desde algo muito íntimo, como “Meu amor” até algo menos informal como “Prezado senhor” ou “Estimada senhora”. Isso, como já foi dito, depende do destinatário e do grau de intimidade entre quem envia e quem recebe a carta pessoal. Em cartas mais afetivas, o tratamento, como é esperado, também seguirá essa linha. Por outro lado, se a carta é endereçada a alguém em uma relação mais assimétrica, as demonstrações de carinho e/ou afeto serão mais raras e até mesmo inexistentes. Essas são questões de ordem pragmática, pois têm relação com o uso linguístico em contextos reais de interação. O mesmo pode ser observado com relação à despedida, que pode variar desde um informal “Grande abraço” ou “Saudades” até algo mais formal como 11 “Atenciosamente”, “Cordialmente” etc. Aliás, pode ser que algumas cartas pessoais nem contem com despedida. Isso descaracterizaria o gênero “carta pessoal”? Afirmamos que não. Afinal, a plasticidade e a maleabilidade desse gênero estão sempre presentes. Alguns missivistas utilizam recursos já bastante consolidados para acrescentar alguma informação até então esquecida ou que mereça maior relevo no final da carta pessoal. Para isso, utilizam a abreviação latina P.S. (post scriptum) – como demonstrado anteriormente por Silva (2002) - ou Obs. (observação). Com base nas análises realizadas até este ponto, podemos tentar traçar as características da carta pessoal, que, em vias muito gerais, é um gênero com características simples, ou seja, não conta com muitas regras em termos estruturais. Em geral, esses são seus traços principais: • Possui um remetente e um destinatário. • A comunicação é assincrônica. • Costumeiramente é escrita em primeira pessoa, tendo em vista a sua subjetividade. • O assunto é normalmente livre, geralmente de ordem sentimental, íntima e/ou afetiva. • A linguagem, em geral, é informal, com coloquialismos e até gírias, a depender do nível de intimidade entre remetente e destinatário. • A extensão da carta é variável, estruturando-se em parágrafos. Se o conteúdo é codificado em poucas linhas, já temos outro gênero – o bilhete. Em sentido oposto, não é muito comum haver cartas pessoais com muitas páginas. 12 • A transmissão da carta pode ser feita em mãos ou por meio dos Correios ou outra agência responsável. • A mensagem é usualmente manuscrita, podendo também ser datilografada ou digitada. Um ponto que merece ser destacado é a questão da transmissão da carta. Caso o remetente decida enviá-la por meio dos Correios, deverá dominar outro tipo de conhecimento, que é o preenchimento dos dados do remetente e do destinatário nos envelopes apropriados para esse fim. Assim, deverá dominar conhecimentos acerca da disposição das informações (nome e endereço com CEP – código de endereçamento postal), o lado da carta onde se registram os endereços (na frente, o destinatário;; no verso, o remetente), o pagamento do envio com a imposição de um selo etc. Existe um script a ser seguido, até que a carta encontre o seu destinatário, como é naturalmente o objetivo. INÍCIO DE BOX EXPLICATIVO Scripts são “conjuntos de conhecimentos sobre modos de agir altamente estereotipados em dada cultura, inclusive em termos de linguagem;; por exemplo, os rituais religiosos (batismo, casamento, missa), as fórmulas de cortesia, as praxes jurídicas” (KOCH;; TRAVAGLIA, 2004 p. 72-73) FIM DE BOX EXPLICATIVO Enfim, essas são algumas informações mais básicas e centrais sobre o gênero carta, que se inclui, como já afirmado anteriormente, no domínio memorialístico. Com base em tudo o que você leu, surgem algumas perguntas: Você tem costume de enviar ou receber cartas? Você já tinha pensando na estrutura e na função desse gênero? Essas são questões bastante pertinentes. 13 Atividade 1 Atende ao objetivo 1 Em algumas situações, o gênero carta pessoal foi poetizado por alguns artistas brasileiros. Leia a letra da música A CARTA, de Erasmo Carlos: Escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor Porque veio a saudade visitar meu coração Espero que desculpes os meus erros por favor Nas frases desta carta que é uma prova de afeição Talvez tu não a leias mas quem sabe até darás Resposta imediata me chamando de meu bem Porém o que me importa é confessar-te uma vez mais Não sei amar na vida mais ninguém Tanto tempo faz, que li no teu olhar A vida cor-de-rosa que eu sonhava E guardo a impressão de que já vi passar Um ano sem te ver, um ano sem te amar Ao me apaixonar, por ti não reparei Que tu tivestes só entusiasmo E para terminar, amor assinarei Do sempre, sempre teu... 14 Disponível em https://www.vagalume.com.br/renato-russo/a-carta.html Acesso em 19/08/2016 A letra de música apresentada fala sobre uma carta de amor. Com base no que estudamos até o momento, procure identificar quais foram as motivações para o remetente escrever a referida carta (indicadas na música) e que relações podem ser estabelecidas entre essa carta e o domínio memorialístico. Resposta comentada A letra de música apresenta umasituação em que o remetente escreve uma carta, de forte cunho emocional, para um destinatário. A carta é escrita por conta da saudade sentida pelo remetente a ponto de ele confessar um grande sofrimento. O texto deixa bastante claro que há memórias muito marcantes entre remetente e destinatário. O remetente reconhece que a carta poderá não ser correspondida. Isso demonstra uma possível assimetria entre ambos. Trata-se, portanto, de uma situação comunicativa fortemente marcada por afetividade e intimidade, como é bastante característico às cartas pessoais, no domínio memorialístico. 2. O GÊNERO DIÁRIO . A escrita intimista manifestada por meio do gênero diário evoca experiências marcantes, iniciativas, momentos e etapas da vida seja pessoal seja profissional, bem como a atuação social do indivíduo, ou seja, o que o indivíduo vivenciou em situações interativas. Esse gênero textual, portanto, constitui-se pela relação do Eu com o meio que, por sua vez, permite viabilizar tanto a expressão das emoções e sensações que essas experiências provocam, quanto expor pontos de vista e perspectivas que ancoram esse Eu como autor do seu discurso. O gênero, assim, tem como função social principal documentar, registrar as experiências 15 humanas, situando-as no tempo, tendo em vista que tais experiências acontecem e são marcadas na memória. Dessa forma, em termos de conteúdo temático, distintos assuntos podem ser tratados. Como estamos falando de uma escrita pessoal acerca das vivências no mundo, podemos arrolar alguns tópicos, como por exemplo, os seguintes: trajetos/fases/momentos de vida, relação consigo e com os outros;; rememoração de vivências significativas;; posicionamentos e condutas;; iniciativas/opções pessoais;; práticas/experiências e suas consequências, individualidade/identidade;; sentimentos/emoções;; ponderação/meditação;; conflitos/busca pela paz interior;; introversão/dinâmicas introspectivas;; apreensão/impressão/captação por meio dos sentidos. Já em termos de estilo ou caracterização linguístico-discursiva, o gênero diário é marcado, principalmente, por discurso na primeira pessoa. Estamos diante de uma escrita intimista e, muitas vezes, reflexiva em que o processo de individuação é claro. Há predomínio da instância do Eu, seja ele explícito ou subentendido;; formas verbais da primeira pessoa;; verbos do campo semântico do “ser” - que se traduzem, na maior parte das vezes, num sentido de definição e permanência - e de verbos do campo semântico do “estar” - que se revela por meio da caracterização dos momentos em si -;; existência de pronomes pessoais e adjuntos adverbiais de tempo e espaço – atuação da dêixis de pessoa, espaço e tempo -;; presença de determinantes e pronomes possessivos;; predominância da linguagem conotativa e emotiva;; uso preponderante de nomes mais abstratos, adjetivos expressivos, marcas de intensificação;; pontuação interjetiva;; interjeições e frases interrogativas e exclamativas;; utilização de recursos estilísticos como metáfora, paradoxo, antítese, metonímia, etc. 16 INÍCIO DE BOX EXPLICATIVO A multiplicidade da linguagem pode ser sistematizada sob a forma de seis funções ou finalidades básicas (Função Referencial ou Denotativa, Função Poética, Função Fática, Função Metalinguística, Função Conativa ou Apelativa e Função Emotiva ou expressiva)das quais descrevemos as duas aqui citadas: EMOTIVA: Reflete o estado de ânimo do emissor, os seus sentimentos e emoções. Um dos indicadores da função emotiva num texto é a presença de interjeições e de alguns sinais de pontuação, como as reticências e o ponto de exclamação. Exemplo: Que maravilha de programa! CONATIVA: Seu objetivo é influenciar o receptor ou destinatário, com a intenção de convencê-lo de algo ou dar-lhe ordens. Como o emissor se dirige ao receptor, é comum o uso de tu e você, ou o nome da pessoa, além dos vocativos e imperativo. É a linguagem usada nos discursos, sermões e propagandas que se dirigem diretamente ao consumidor. Exemplo: Compre Batom, compre Batom, seu filho merece Batom! FIM DE BOX EXPLICATIVO 17 INÍCIO DE BOX EXPLICATIVO A raiz etimológica do vocábulo dêixis remete à noção de indicação. Dêixis significa, na tradição greco-latina, “apontar”, “indicar”, “demonstrar”;; mas, na Linguística contemporânea, faz referência à função dos pronomes pessoais e demonstrativos, tempos verbais e outras categorias gramaticais que relacionam enunciados aos aspectos de tempo, espaço e pessoa na enunciação, isto é, dêixis é a localização e identificação de pessoas, objetos, eventos, processos e atividades sobre as quais falamos ou a que nos referimos no momento da interação verbal. Veja mais em: http://conhecimentopratico.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica- ortografia/22/artigo179006-1.asp FIM DE BOX EXPLICATIVO Segundo Pimentel (2011, p. 5): O diário, de um modo geral, cria a ilusão da espontaneidade e do imediatismo por meio tanto das fragmentações e das elipses, quanto do pacto entre autor e leitor. Deve-se considerar o diário como um registro de experiências pessoais e observações passadas, identificado como um documento pessoal, em que o sujeito que escreve inclui interpretações, opiniões, sentimentos e pensamentos, sob uma forma espontânea de escrita, com a intenção de falar para si mesmo. O diário é, portanto, um retrato de quem o escreve, já que o diarista registra, praticamente no momento em que vive, uma experiência, captando as disposições do espírito e os pensamentos mais íntimos. Para percebermos como essa definição mais geral se configura na prática, trazemos como exemplo um trecho do famoso diário de Anne Frank. Esse texto já foi muito requisitado para se tratar desse gênero discursivo, pois se tornou importante documento histórico, além de ter se tornado livro e ser produzido cinematograficamente. Domingo, 14 de junho de 1942 18 Vou começar a partir do momento em que ganhei você, quando o vi na mesa, no meio dos meus outros presentes de aniversário. (Eu estava junto quando você foi comprado, e com isso eu não contava.) Na sexta-feira, 12 de junho, acordei às seis horas, o que não é de espantar;; afinal, era meu aniversário. Mas não me deixam levantar a essa hora;; por isso, tive de controlar minha curiosidade até quinze para as sete. Quandonão dava mais para esperar, fui até a sala de jantar, onde Moortje (a gata) me deu as boas-vindas, esfregando-se em minhas pernas. Pouco depois das sete horas, fui ver papai e mamãe e, depois, fui à sala abrir meus presentes, e você foi o primeiro que vi, talvez um dos meus melhores presentes. Depois, em cima da mesa, havia um buquê de rosas, algumas peônias e um vaso de planta. De papai e mamãe ganhei uma blusa azul, um jogo, uma garrafa de suco de uva, que, na minha cabeça, deve ter gosto parecido com o do vinho (afinal de contas, o vinho é feito de uvas), um quebra-cabeça, um pote de creme para o corpo, 2,50 florins e um vale para dois livros. Também ganhei outro livro, Câmera obscura (mas Margot já tem, por isso troquei o meu por outro), um prato de biscoitos caseiros (feitos por mim, claro, já que me tornei especialista em biscoitos), montes de doces e uma torta de morangos, de mamãe. E uma carta da vó, que chegou na hora certa, mas, claro, isso foi só uma coincidência.(...) INÍCIO BOX INFORMATIVO SAIBA MAIS O diário de Anne Frank foi escrito por Annelies Marie Frank entre 12 de junho de 1942 e 1 de agosto de 1944 durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1947, o pai, único sobrevivente da família, decidiu publicar o diário sob a forma de livro. O diário está no Instituto Neerlandês para a Documentação da Guerra. Para saber mais, acesse: https://pt.wikipedia.org/wiki/Di%C3%A1rio_de_Anne_Frank. Caso 19 queira assistir ao filme na íntegra, acesse em: https://www.youtube.com/watch?v=8skcEbuKJD8 FIM BOX INFORMATIVO SAIBA MAIS Sendo um dos gêneros que constitui o registro dos acontecimentos cotidianos a partir de uma visão pessoal, o tom intimista e confidente fica claro. Além disso, observa-se a questão da fragmentação que é típica desse contexto de produção, já que a motivação da escrita perpassa pela vivência diária do sujeito face ao mundo que o rodeia. O diário se inscreve na ordem do relatar e, por conta disso, tem como principal tipo textual o narrativo. O ato de relatar, contar, narrar é tão básico quanto a atuação dos seres humanos em situações interativas, mesmo daquelas em que, a princípio, estamos diante de nós mesmos. Ao fazer referência a algo ocorrido, é inevitável, portanto, usar a memória, recobrando não só fatos como também nossas experiências sensoriais e pessoais diante de uma situação que nos perturba ou nos alegra. O tipo textual narrativo, definido por propriedades linguísticas como vocabulário, relações lógicas, tempos verbais, construções frasais etc, caracteriza um modo de organização discursiva em que, no gênero diário, revela um interlocutor que é a mesma pessoa que o escreveu. Assim, a linguagem empregada tende a não seguir necessariamente a norma padrão da língua e a se filiar muito mais a um tom espontâneo, coloquial, informal. Em função disso, o que se verifica é o uso preponderante da primeira pessoa do singular e o relaxamento quanto à rigidez estrutural. Esse último detalhe está diretamente relacionado ao fato de se escrever para si, apesar de sempre nos expressarmos por meio de uma estrutura composicional definida. Nesse gênero singular, nem sempre “seguimos” a mesma estrutura toda vez que resolvemos registrar nossas experiências mais íntimas. 20 Por falar em estrutura e ao estudar esse gênero de texto, é inevitável tratar do vocativo – “meu querido diário” - que pode servir tanto para nos situarmos na prática social – “agora vou escrever acerca das minhas experiências no meu diário” ou mesmo simplesmente “vou escrever um diário” – como para começar a estruturar o texto a fim de nortear a escrita. Tanto numa como na outra perspectiva, esse componente da estrutura composicional do diário ancora o gênero em si. A leitura do que vem depois já está ancorada num enquadre específico. Nesse sentido, embora a questão crucial do gênero seja a manifestação íntima e privada e, nesse contexto, o interlocutor seja o próprio autor do texto – o diarista –, o diário mantém a característica de ato comunicacional, já que apresenta um diálogo entre um eu – o autor – e um tu – o autor-leitor ou, ainda, entre um eu- sujeito e um eu-objeto. A segunda parte da díade comunicativa é representada pelo diário propriamente dito. Isso, de certa maneira, pode ser explicitado pela presença de elementos de comunicação como a saudação, o já citado vocativo, o desenvolvimento que abrange o relato em si e a despedida. Apesar de, no famoso texto do diário de Anne Frank, não constar a saudação inicial tão marcante do gênero em questão, na sequência compreendemos que a primeira experiência vivida e relatada por Anne foi justamente a de ganhar um diário que ela diz ter sido “o primeiro que vi, talvez um dos meus melhores presentes”. Em termos de estrutura composicional, podemos observar outro item, a data que, por sinal, vem após o vocativo tão característico. Apesar de a data ser um componente também muitas vezes omitido, seu uso funciona como um lembrete para que o fato seja lido mais tarde e que possa ser relacionado a alguma fase da vida ou a outro evento. Acerca desse ponto é importante ressaltar que, no diário de Anne, por exemplo, a data tem uma importância ímpar, já que se tratava do dia 21 em que ganhou um presente incrível numa data importante para a autora, seu aniversário. Ainda com relação ao texto de Anne Frank, mas agora tratando do quesito estilo, podemos indicar, sobretudo, os tempos verbais que estão, em sua maioria, no pretérito perfeito e na primeira pessoa (ganhei, vi, acordei, tive, deu, fui, etc.). Ficam evidentes também as marcas de anterioridade e posterioridade típicas dos relatos e das narrativas, destacando, por exemplo, “na sexta-feira”, “pouco depois”, bem como as referências espaciais que visam a descrever pormenorizadamente a cena – “sala de jantar”, “em cima da mesa” –, além da presença da primeira pessoa do discurso: “meus outros presentes”, “eu estava junto”. Como já mencionado, o diário em geral não se dirige a alguém especificamente, entretanto, a intenção de escrever pode se manifestar por um interlocutor determinado que pode ser real ou fictício. É exatamente esse o mote do exemplo de diário a seguir. Sergipe, 12 de outubro de 1994.Para você! Hoje não vou escrever para o meu querido diário, mas vou deixar aqui toda minha raiva por que meu diário é meu confidente. Se não fosse esse meu confidente muitas vezes não sei o que seria de mim, acho q teria um troço. L Eu não esperava que você fosse fazer isso comigo! Como deixar de falar comigo no dia do meu aniversário? Você poderia pelo menos ter me dito qualquer coisa.... tudo bem que você poderia ter esquecido, não levaria a mal, mas pq não falar nada quando viu outras pessoas me cumprimentarem? Que raivaaaaaaaaaaaaa... Não vou te perdoar, q cara de pau! Quero só ver o q você vai falar amanhã, a não ser que não queira mais falar comigo. Será? Agora vou ficar pensando que eu fiz alguma coisa... q raiva de mim, viu? Você não falou por que não quis e pronto. Raivaaaaaaaa.... Sergipe, 13 de outubro de 1994. 22 Meu querido diário, Hoje estou muito mais aliviada! Carlos falou comigo mais tarde ontem, ele ficou sem graça de falar logo depois que os outros me cumprimentaram para não parecer que esqueceu...sei lá... não entendi muito bem, mas pelo menos ele falou comigo. Graças a Deus que você é meu confidente. Imagina se eu falasse do jeito que estava? Já era qualquer chance de continuar conversando com ele. Beijos Nesses exemplos, o interlocutor, apesar de talvez nunca ter lido a mensagem, não é fictício. Essa é uma característica do diário pessoal: embora em algumas situações a escrita seja dirigida a alguém, é pouco provável que esse alguém tome contato com o texto. Nesse último exemplo, as mesmas marcas linguístico- discursivas podem ser notadas, o conteúdo temático se mantém no assunto trajetos/fases/momentos de vida e a configuração estrutural é bem parecida, mantendo-se a data, sendo que, no segundo, o vocativo é explícito e, como se trata de um texto menor em relação ao trecho do diário de Anne, podemos constatar uma despedida. Outra questão importante acerca da circulação dos gêneros se atém ao suporte ou mesmo ao canal de materialização escrita do texto. Como texto da área do cotidiano, o diário é registrado, em geral em um caderno, agenda ou ainda num livreto específico que, em muitos casos, já vem com uma chave, sinalizando o secretismo com que as memórias são assinaladas. Em outros casos, entretanto, diários como os de Anne Frank são publicados sob a forma de livros, bem como transpostos a outro tipo de canal comunicativo com a reprodução cinematográfica. Como tudo o que mais se usa tende a modificar no tempo e no espaço a fim de se adequar às expectativas dos usuários, muitos diários passaram a conter, além do 23 texto escrito, desenhos, imagens, ingressos de show, papéis de bala, emotions, marcas de batom, entre outras informações. É o que podemos verificar na figura abaixo: Diagramador – colocar uma figura parecida com esta retirada do texto : http://www.omarrare.uerj.br/numero14/carmenPimentel.html Para resumir rapidamente o que abordamos até aqui, segue um pequeno esquema para assimilar as características gerais do diário: 24 O diário pessoal ainda possui um desdobramento mais específico que poderíamos classificar com o subtipo denominado diário de viagem. Como o próprio nome ressalta, as experiências vividas vão se ater mais especificamente às viagens a que o diarista se submeteu. Nesse sentido, a estrutura composicional e o estilo não mudam muito. O quesito que mais tende a modificar é a estrutura composicional, uma vez que pode conter mais dados relativos a lugares assim como fotografias, partes de jornais locais, observações de teor mais jornalístico, já que se pretende registrar as curiosidades de pessoas nativas, falares, experiências de outrem, causos, conversas ou mesmo investigações acerca de fatos históricos, clima, tradições, festivais, artes (música, dança, literatura), comidas típicas, pontos turísticos mais importantes, etc. 25 Quando o diário assume um caráter literário, necessariamente ele passará a ser lido por outras pessoas e veiculado em outros suportes como o livro, ou mesmo a internet. Esse tipo de escrita ainda permanece intimista e particular, porém não necessariamente real em função da possibilidade de se expressar literariamente por meio desse gênero. Um exemplo bem atual desse tipo de literatura é Diário de um banana - um romance em quadrinhos de Jeff Kinney, cuja sinopse reproduzimos a seguir: Não é fácil ser criança. E ninguém sabe disso melhor do que Greg Heffley, que se vê mergulhado no ensino fundamental, em que fracotes subdesenvolvidos dividem os corredores com garotos mais altos, mais malvados e que já se barbeiam. Em 'Diário de um Banana', Greg nos conta as desventuras de sua vida escolar. Em busca de um pouco de popularidade (e também de um pouco de proteção), o garoto se envolve em uma série de situações que procura resolver de uma maneira muito particular. INÍCIO BOX INFORMATIVO SAIBA MAIS A história baseia-se num garoto que, no seu dia a dia, tem que lidar com os seus irmãos Rodrick e Manny, os seus pais Frank e Susan, e a escola. Além disso, ele tem o desejo de se tornar famoso e popular. Para saber mais sobre a coleção de livros do “Diário de uma banana”, leia mais em 26 https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Di%C3%A1rio_de_um_Banana_(s%C3%A9rie). Sobre o filme, assista aos traillers em http://www.youtube.com/watch?v=7CtyrVGldJs;; http://www.youtube.com/watch?v=YAtfp_iYr5g;; http://www.youtube.com/watch?v=7CtyrVGldJs&feature=related e FIM BOX INFORMATIVO SAIBA MAIS O livro em questão também foi reproduzido em filme, porém é distinto do diário de Anne Frank no que se refere à condição de produção. Esse último foi originalmente escrito apenas como forma de registrar memórias pessoais, agregando um componente histórico de extrema relevância. Já o diário de Greg foi concebido pelo autor Jeff Kinney, misturando muitas histórias vindas da própria infância do autor com a imaginação e o poder da criação literária2. Porém, ambos pretendem veicular a narrativa sob a égide do domínio discursivo memorialista, que se institui, basicamente, em descrever, relatar e narrar fatos vividos, a fim de não só sensibilizar o público, mas também de fornecer oportunidade de catarse e/ou orientação comportamental. INÍCIO DE ATIVIDADE Atende aoobjetivo 1. ATIVIDADE 2 Leia os textos 1 e 2 abaixo e responda ao enunciado: Texto 1 2 Trecho baseado na entrevista do escrito Jeff Kinney ao canal crianças UOL, disponível em http://criancas.uol.com.br/novidades/2013/05/28/autor-de-diario-de-um-banana-conta-curiosidades- e-responde-fas.jhtm, acessado em 15/08/2016. 27 http://www.miniweb.com.br/literatura/Artigos/imagens/diarios_banana/banana2g.jpg Texto 2 A escrita intimista que provém da esfera discursiva memorialista pode se manifestar por meio do gênero diário. Tendo em vista que esse gênero pode se 28 desdobrar em subtipos, quais as características que se revelam tanto em um como no outro subtipo? As diferenças são substanciais? Em que pontos se distanciam? (DIAGRAMAÇÃO: Deixar 10 linhas para resposta) RESPOSTA COMENTADA: O gênero diário, seja ele pessoal ou de viagem, seja de cunho literário ou confessional, visa a descrever, narrar, relatar experiências que foram fonte de alegria ou tristeza vividas por um Eu no mundo. Como estamos falando de uma escrita pessoal, esperamos que você descreva alguns dos tópicos arrolados na aula que caracterizem o quesito conteúdo temático assim como os do quesito estilo, já que os dois compartilham características. A resposta, então, é a de que a estrutura composicional e o estilo não mudam muito. O quesito que mais tende a se modificar é a estrutura composicional em função de poder conter elementos mais visuais – desenhos, imagens, fotos - partes de material que rememoram situações como convites, embalagens, marcas de pintura, batom, flores secas, perfume, presentes ou mesmo investigações acerca de fatos históricos, entrevistas, entre outros. Atende ao objetivo 2 ATIVIDADE 2 Depois de tudo o que vimos até aqui é hora de pensar na relação entre o processo de leitura e o de produção textual. Uma questão que se torna pertinente é se cada gênero constituído pelos elementos conteúdo temático (sobre o que os gêneros podem tratar), estrutura composicional (o formato em que o texto é materializado) e o estilo (as características linguístico-textuais que especificam e distinguem mais 29 particularmente os gêneros entre si) pode funcionar como um esquema que, uma vez apreendido por meio do contato com textos diversos, serve como guia para a compreensão e confecção desses mesmos textos. Queremos saber o que você pensa sobre a relação entre as práticas de leitura e produção de escrita de gêneros, a partir dessa noção de esquema que facilita a compreensão e elaboração de textos. Leia o trecho do diário de Anne Frank e, a partir do que estudamos até aqui, descreva que ponto do conteúdo temático e/ou estrutura composicional e/ou estilo desse gênero pode acionar o esquema diário, facilitando tanto sua identificação quanto auxiliando sua (re)produção. (DIAGRAMAÇÃO: Deixar 7 linhas para resposta) RESPOSTA COMENTADA: A resposta é livre. A ideia é que você compreenda de que maneira os gêneros como enunciados relativamente estáveis podem funcionar como verdadeiros esquemas que facilitam a leitura e compreensão dos textos e podem, assim, viabilizar uma produção mais eficiente. Quanto mais esses esquemas divididos em características/quesitos são apreendidos, mais fácil se torna o acesso a eles por meio da memória discursiva. FIM DE ATIVIDADE 30 3. O GÊNERO AUTOBIOGRAFIA Segundo Bakhtin (1992), os gêneros do discurso são tipos de enunciado relativamente estáveis, determinados sócio-historicamente. Nesse sentido, defende-se que os gêneros se constituem a partir de relações comunicativas recorrentes, que se “fixam” em um determinado padrão comunicativo, caracterizado por certos conteúdos temáticos, construções composicionais e estilo, o que torna a comunicação verbal inteligível. Inclusive, segundo o autor (1992, p. 283), Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. Não obstante, é importante frisar que o próprio estudioso põe essa fixidez em xeque ao considerar uma relativa estabilidade. Isso significa que tanto os exemplares de um gênero podem apresentar diferenças configuracionais – mesclando-se, inclusive, a outros gêneros, ou seja, tornando-se um híbrido – quanto podem vir a sofrer mudanças com o tempo, já que são articulados às práticas sociais (o telegrama, por exemplo, pode vir a desaparecer num futuro próximo, em virtude dos novos gêneros que surgiram com o desenvolvimento tecnológico). BOXE DE EXPLICAÇÃO Segundo Dell-Isola (2006, p. 76), um gênero híbrido é aquele que “aparentemente infringe convenções estabelecidas e caracteriza-se por uma estrutura em que há 31 ruptura do convencional, do previsível, a qual parece se manifestar no texto sob a forma de uma incongruência, em que se espera do leitor uma ‘descoberta’ de sua função social no texto que não está na superfície de sua macroestrutura”. FIM DO BOXE DE EXPLICAÇÃO Para falar de autobiografia, é necessário compreender essa dimensão de relativa estabilidade do gênero de texto. Afinal, a autobiografia é um gênero bastante plural: pode apresentar-se em verso ou em prosa;; pode ser extenso como um romance ou curto como um conto;; pode carregar elementos ficcionais ou não;; pode ser o eixo principal de uma obra (isto é, escreve-se uma autobiografia porque a própria história de vida é o objeto de investigação) ou seu pano de fundo (a autobiografia, nesse caso, representa apenas um dos gêneros de uma obra maior, e por isso normalmente tem menor importância);; pode ser o resultado da compilação de outros gêneros que, originalmente, não eram autobiografias (como veremos mais à frente);; entre outros. Haja vista as diversas potencialidades da autobiografia, poderíamos considerar que este se trata, na verdade, de uma instância superior, ou melhor, de um hipergênero. No lugar de definir este último, preferimos aqui recorrer à explanação de Maingueneau (2006, p. 244), que é bastante clara em relação ao que venha a ser um hipergênero: Nocaso dos rótulos que se referem a um tipo de organização textual, mencionamos em primeiro lugar aquilo a que demos o nome de hipergêneros. Trata-se de categorizações como “diálogo”, “carta”, “ensaio”, “diário” etc. que permitem “formatar” o texto. Não se trata, diferentemente do gênero do discurso, de um dispositivo de comunicação historicamente definido, mas um modo de organização com fracas coerções que encontramos nos mais diversos lugares e épocas e no 32 âmbito do qual podem desenvolver-se as mais variadas encenações da fala. A despeito das diversas possibilidades macroestruturais da autobiografia, existem características configuracionais básicas, sem as quais não poderíamos reconhecer um exemplar de texto como sendo pertencente a esse gênero. Buscando essa descrição, Baccin (2008) chega às seguintes conclusões quanto à configuração do gênero autobiografia, a partir de uma série de critérios para análise configuracional dos gêneros de textos elaborados por Cristóvão, Durão, Nascimento e Santos (2006): Conteúdo temático 1) Os textos tentam mostrar os principais episódios da vida do autor, de forma quase sempre cronológica. Alguns dão maior ênfase a determinados períodos ou acontecimentos;; 2) Os textos que circulam pela internet ou são publicados em livros destinam-se a leitores em geral, sobretudo aos que têm interesse em conhecer melhor a vida de determinadas pessoas, sejam elas celebridades ou anônimas. Construção composicional 1) O protagonista da história é, obrigatoriamente, o próprio autor;; 2) As autobiografias são textos com marcas de implicação (o autor se mostra no texto). Quanto ao tipo de discurso, predomina o RELATO, uma vez que discorre sobre fatos reais expostos ao leitor. Por isso, são textos do tipo predominantemente narrativo. 3) Quanto ao seu plano global (estrutura geral do texto), podem organizar-se tanto como um texto longo (no caso de livros que relatam minuciosamente a história/trajetória do autor) como textos curtos (é o caso de textos autobiográficos que circulam na internet, ou textos em que o autor quer apenas mostrar passagens de sua vida de forma mais 33 objetiva);; Estilo ou caracterização linguístico-discursiva Quanto a análise das marcas linguísticas, os textos revelam: 1) Narração em primeira pessoa (narrador-personagem);; 2) Predominância dos tempos do pretérito;; 3) Abundância de expressões circunstanciais de tempo e de espaço para promover a progressão do enredo e a mudança de parágrafos;; 4) Expressões modalizadoras do discurso, principalmente advérbios e operadores argumentativos;; 5) Emprego de expressões vocabulares em desuso para referir-se a passado remoto. Quadro 1. Características básicas do gênero autobiografia. Observemos, como ilustração, um trecho da Autobiografia de Vergílio Ferreira, escritor e professor português: Vejo o meu pai, no limite da minha infância, dobrar a porta do pátio, com um baú de folha na mão. Vejo-o de lado, e sem se voltar, eu estou dentro do pátio e não há, na minha memória, ninguém mais ao pé de mim. Devo ter o olhar espantado e ofendido por ele partir. Mas alguns meses depois o corredor da casa de minha avó amontoa-se de gente, na despedida de minha mãe e da minha irmã mais velha que partiam também. Do alto dos degraus de uma sala contígua, descubro um mar de cabeças agitadas e aos gritos. Estou só ainda, na memória que me ficou. Depois, não sei como, vejo-me correndo atrás da charrete que as levava. O cavalo corria mais do que eu e a poeira que se ia erguendo tornava ainda a distância maior. Minha mãe dizia-me adeus de dentro da charrete e cada vez de mais longe. Até que deixei de correr. [...] Maio, 1977. 34 Vergílio Ferreira – http://mym-pt.blogspot.com.br/2009/10/autobiografia.html - acesso em 16/08/2016 Embora a autobiografia tenha compromisso com as experiências verídicas, vividas pela pessoa biografada, pode, com frequência, apresentar elementos ficcionais. Uma vez que as narrativas são contadas da forma como são lembradas no presente, é comum que os textos produzidos integrem ao vivido o imaginado. Soma-se a isso uma tendência tanto a recorrer a figuras de linguagem quanto a recorrer a uma seleção vocabular para a obtenção de fins estéticos, o que atribui ritmo ao texto e conduz o leitor a cenários e situações reais ou imaginárias. Por esse motivo, muitas das autobiografias podem ser vistas como memórias literárias, tal como podemos observar no texto de Vergílio Ferreira. Além disso, com frequência, o escritor da autobiografia não é o próprio biografado. Há no mundo pessoas e celebridades que, por razões várias, contratam um escritor profissional que transcreva as histórias de sua vida. Nesse tipo de situação, os biografados narram a história de sua vida ao redator e tomam várias decisões quanto à composição dos textos. A esse tipo de profissional, a indústria costuma chamar ghostwriter (escritor fantasma, em português), até mesmo porque a autoria é atribuída oficialmente ao biografado, e não ao escritor. No entanto, poderíamos especular que, na verdade, a autoria pertence a ambos, na medida em que o escritor jamais prescinde de sua subjetividade na redação do texto. À guisa de uma definição, a partir dos argumentos aqui apontados, podemos conceber a autobiografia como a história de vida de uma pessoa relatada por ela própria, em que ela comunica a um interlocutor, por meio de fatos e sensações, sua visão do mundo e de si mesmo. Em virtude da finalidade do texto, o texto pode, de um lado, explorar a função emotiva da linguagem e abrir terreno para uma certa ficcionalização da narrativa. Afinal, se o autor – seja ele o escritor seja o narrador – objetiva enaltecer sua face positiva perante a sociedade – mostrar-se 35 como uma pessoa socialmente relevante ou admirável – é natural que ele recorra a recursos da linguagem literária na narrativa. De outro, pode apresentar-se mais objetivo, como na linguagem jornalística. As autobiografias curtas, que normalmente objetivam à breve apresentação da vida de alguém, geralmente são deste último tipo. Em virtude de seu hibridismo, as autobiografias, além de conterem características de outros gêneros, podem ser o resultado de um gênero distinto. ODiário de Anne Frank, por exemplo, pode ser considerado – além de um diário –, uma autobiografia a partir do momento em que ele foi publicado e destinado ao amplo público. O diário, como vimos, além de sua estrutura composicional específica, também se define pela função social: servir como memória para o próprio autor. Com a mudança de suporte e com a nova destinação do texto, tem-se um novo gênero. É por esse motivo que alguns autores – como BONINI (2001) – defendem que o suporte seja uma espécie de hipergênero, na medida em que ele pode mudar a função social de um texto. Nesse sentido, poderíamos especular que uma receita de bolo, num livro de receitas ou num livro didático, apresenta funções distintas e, por isso, não é a mesma coisa – se entendemos o gênero como uma ação social tipificada (MILLER, 1984). As mesmas considerações podem ser feitas para outros gêneros do domínio memorialístico: um conjunto de cartas pessoais, por exemplo, publicadas postumamente em um livro, podem transformar-se em uma autobiografia, dependendo do conteúdo temático. As cartas de Mário de Andrade a Otávio Dias Leite (MORAES, 2006) e de Emily Dickinson (EBERWEIN, 2009), por exemplo, compiladas, são consideradas autobiografias. Paralelamente, a antologia O artista inconfessável, de João Cabral de Melo Neto (2007), é uma autobiografia construída a partir de poemas em que o eu lírico e o autor estão em perfeita simbiose, isto é, aquele reflete a vida deste. INÍCIO DE ATIVIDADE Atende ao objetivo 2 36 Abaixo, seguem três trechos extraídos de diferentes obras autobiográficas. Leia-os e responda ao enunciado abaixo: Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres). Só aos sete anos, quando tive de apresentar na escola primária um documento de identificação, é que se veio a saber que o meu nome completo era José de Sousa Saramago… Não foi este, porém, o único problema de identidade com que fui fadado no berço. Embora tivesse vindo ao mundo no dia 16 de Novembro de 1922, os meus documentos oficiais referem que nasci dois dias depois, a 18: foi graças a esta pequena fraude que a família escapou ao pagamento da multa por falta de declaração do nascimento no prazo legal. José Saramago - http://www.josesaramago.org/autobiografia-de-jose-saramago/ “Carlos, devote-se ao Brasil junto comigo. Apesar de todo o ceticismo, apesar de todo o pessimismo e apesar de todo o século XIX, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lindo. (…) Nós temos que dar ao Brasil o que ele não é, e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo o sacrifício é grandioso, é sublime” Trecho de carta de Mário a Carlos Drummond em novembro de 1924. http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/18/cultura/1442605571_969684.html - Acesso em 16/08/2016. 37 Alguns Toureiros Eu vi Manolo Gonzáles e Pepe Luís, de Sevilha: precisão doce de flor, graciosa, porém precisa. Vi também Julio Aparício, de Madrid, como Parrita: ciência fácil de flor, espontânea, porém estrita. (...) João Cabral de Melo Neto – O Artista Inconfessável (2007) Dentre os três trechos acima, embora sejam construções autobiográficas, um é mais prototípico (na medida em que apresenta as características mais centrais do gênero autobiografia) do que os dois outros. Explique. (DIAGRAMAÇÃO: Deixar 10 linhas para resposta) RESPOSTA COMENTADA: Nos três exemplares supracitados, temos diferentes construções autobiográficas. No primeiro trecho, temos um caso mais prototípico, na medida em que José Saramago o escreveu com a finalidade de ser uma autobiografia, seguindo as características temáticas, composicionais e de estilo do gênero. No segundo, no entanto, o valor autobiográfico não é dado à carta isoladamente, mas ao conjunto de cartas de Mário de Andrade, compiladas em um único livro. Afinal, a carta apresenta um destinatário único, com objetivos comunicativos distintos do da autobiografia. O mesmo raciocínio do segundo caso pode ser empregado na antologia de João Cabral de Melo Neto, escrita em versos. 38 FIM DE ATIVIDADE 4. UMA PROPOSTA DE TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA PARA O TRABALHO COM OS GÊNEROS DO DOMÍNIO MEMORIALÍSTICO Para fechar esta aula, atendendo ao terceiro objetivo, propomos uma reflexão acerca da abordagem dos gêneros textuais do domínio memorialístico em sala de aula. Entendemos que a apropriação desses gêneros de caráter cada vez mais peculiar no mundo globalizado dos blocos de notas, blogs, vlogs e aplicativos de texto passa pela projeção de um Eu que tem necessidade de se registrar e também de refletir acerca desse mesmo registro. Segundo Pimentel (2011, p. 6), no que diz respeito ao gênero diário, “há uma projeção natural do leitor naquele personagem-autor do diário, e vice-versa. A presença de um leitor, mesmo que imaginário, leva o autor, também movido pela curiosidade, a desnudar sua vida”. Consideramos que o mesmo tipo de raciocínio pode ser aplicado ao gênero autobiografia. Como a busca principal dos produtores dos gêneros de domínio memorialístico é a reflexão acerca das vivências e, para isto, remete-se à própria subjetividade, é natural que em termos de características linguísticas possam ser trabalhados pontos gramático-textuais que visem a abordar a pessoalidade. Enfatizamos que os tópicos das classes de pronomes e advérbios que visam a dar conta da dêixis de pessoa, espaço e lugar são importantes e muito usuais nesses gêneros de textos. 39 Paralelamente, pode-se investigar o emprego de diversas classes linguísticas que favorecem a expressão da subjetividade: verbos de processo, estado e relação, verbos modalizadores, adjetivos e advérbios avaliativos, o usode rotulações, encapsulamentos e demais expressões referenciais que reconstroem os objetos de discurso, por exemplo. Ademais, também se torna bastante produtivo investigar como esses elementos se apresentam nas sequências narrativas e descritivas, ou ainda, na relação figura-fundo. BOXE DE EXPLICAÇÃO Segundo Cunha, Costa e Cezario (2003, p. 39), “por figura, entende-se aquela porção do texto narrativo que apresenta a sequência temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis, sob a responsabilidade de um agente, que constitui a comunicação central. Já o fundo corresponde à descrição de ações e eventos simultâneos à cadeia da figura, além da descrição de estados, da localização dos participantes da narrativa e dos comentários avaliativos”. FIM DO BOXE DE EXPLICAÇÃO Nesse sentido, uma abordagem interessante a partir desses gêneros é situar a diferença entre textos de caráter pessoal pertencentes a outros domínios e a maneira como a língua é acionada no uso efetivo da linguagem. Mesmo em textos em que a subjetividade é explícita, como, por exemplo, no artigo de opinião, há uma ótima oportunidade de mostrar aos alunos as diversas maneiras de codificar- se a subjetividade. Assim, apresentar textos em que a escrita intimista e, muitas vezes, reflexiva pode ser representante do domínio memorialista leva à compreensão de que a instância do Eu, esteja ela explícita ou esteja subentendida, pode ser tomada de forma mais ou menos privada. Assim, 40 compreendemos o papel do conteúdo temático, já que esse quesito demonstra quais os assuntos serão veiculados pelos textos. Como proposta de atividade, sugerimos que os alunos sejam expostos a exemplares variados dos gêneros do domínio memorialístico. É através da leitura que os alunos serão levados a importantes abstrações quanto às características configuracionais dos gêneros. A orientação aqui é simples: quanto mais monitorado for o gênero e quanto mais distante for da realidade dos alunos, mais o professor deve investir nessa fase – desde que o gênero seja socialmente relevante, é claro. É de grande importância também que, dentro das possibilidades do professor, ele ofereça aos alunos o exemplar integralmente em seu próprio suporte (e não apenas trechos). Provavelmente, os gêneros diário e autobiografia exigirão maior atenção do professor, haja vista que são estruturalmente mais complexos que a carta pessoal. A despeito de a carta e o diário terem relativa semelhança organizacional (a seleção de data, vocativo, sequências narrativas e descritivas, por exemplo), este se volta mais para a expressão de um mundo interno e subjetivo do que aquele. Não obstante, embora saibamos que a escrita de um diário pode ser relativamente simples, na medida em que qualquer pessoa com pouco domínio de escrita pode produzir um, os exemplares publicados – que se tornaram famosos – apresentam certo valor literário, até mesmo pela valorização estética no uso da linguagem. Nesse sentido, a leitura exige um nível maior de abstração que a maioria das cartas pessoais – quase sempre de estrutura linguística mais simples. Além disso, seria interessante o professor comparar os recursos linguísticos dos gêneros do domínio memorialístico com os textos de opinião. A partir do que estudamos até aqui, a ideia é demonstrar que o diário e a autobiografia encerram características próprias, como, por exemplo, a questão de o protagonista e o narrador serem coincidentes, ou seja, são a mesma entidade. Por esse motivo, a 41 modalidade de enunciação do discurso utilizada é a primeira pessoa, sendo tais gêneros testemunhas de uma situação de comunicação unilateral e monologal. Ao compará-los com um artigo de opinião, o objetivo é tornar claro como a inscrição em um domínio distinto aciona recursos discursivo-pragmáticos diferentes, mesmo que os linguístico-gramaticais se apresentem em ambos, embora aplicados de forma diferenciada. Após o trabalho com a leitura do gênero, em que os alunos tenham sido levados a compreender não só as características estruturais do texto, como também sua função discursivo-pragmática, suas condições de produção e seus meios de circulação (quem escreve, para quem escreve, em que suporte, onde encontramos tais gêneros?), é importante que o professor oportunize a produção de texto. No entanto, as abordagens atuais de ensino de gênero, sobretudo a abordagem sócio-retórica – que será tratada mais detidamente na aula 16 –, consideram a atividade de produção textual nas formas tipificadas de ação social a que chamamos de gêneros textuais ou discursivos uma oportunidade de agência (BAZERMAN, 2006), isto é, de tomada da palavra em situações sociais de uso, com o objetivo de permitir ao aluno transitar entre os diferentes espaços sociais (na medida em que cada espaço social é caracterizado por determinados gêneros discursivos). Nesse tipo de abordagem, a escrita é finalisticamente orientada para uma situação real de discurso, isto é, os textos são destinados à circulação, e não apenas à correção pelo professor. Nesse sentido, se vamos escrever uma carta pessoal, esperamos que, após todo o trabalho linguístico, ela seja destinada a uma pessoa real, e não somente ao professor. Uma estratégia interessante para esse gênero, por exemplo, é permitir que pessoas se conheçam através de cartas. Dois professores com turmas de séries afins, mas de escolas diferentes, poderiam promover um intercâmbio de cartas entre os alunos de tais turmas, por exemplo. No que se refere ao diário, os alunos podem ser estimulados a registrarem suas próprias histórias em um caderno e, se desejarem, compartilhar um ou outro texto 42 com a turma durante as aulas em que esse gênero for trabalhado. Por fim, a autobiografia pode futuramente compor um livro da turma etc. A despeito da defesa de uma escrita finalisticamente orientada para uma situação real de interlocução, não há impedimentos para a escrita ensaística. Nesse sentido, como sugestão, a turma pode compor textos coletiva ou individualmente a partir de estratégias variadas como forma de aperfeiçoar sua competência textual na redação de tais gêneros. O professor pode, por exemplo, selecionar algumas imagens e solicitar aos alunos que escrevam uma página de diário pessoal ficcional ou autobiografia e depois identifiquem, também
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