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P 107 O Sistema Azul K. H. Scheer

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O SISTEMA AZUL
Autor
K. H. SCHEER
Tradução
RICHARD PAUL NETO
Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
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Seus súditos o odeiam — e o povo de seus
antepassados também. Mais uma aventura de Atlan.
O vôo do cruzador experimental Fantasy, realizado no início do século XXII, representa uma nova época para a Astronáutica, pois trata-se da primeira espaçonave equipada com o sistema de propulsão linear.
Mas esse vôo trouxe uma conseqüência: os misteriosos ancestrais dos arcônidas, ou seja, os acônidas, que até então se julgavam seguros atrás do campo energético que envolvia seu sistema e não se interessavam pela política galáctica, lançaram mão de meios inescrupulosos para investir contra a Terra e Árcon.
Por pouco o monstro de plasma, enviado pelos acônidas, não destrói a Humanidade. Também a frota-fantasma esteve prestes a transformar a Terra num inferno atômico, até que a destruição do conversor de tempo voltasse a atirar essa frota para o passado, do qual viera.
Esses acontecimentos deixaram Atlan muito preocupado. Sua posição como Imperador de Árcon é bastante difícil, pois as intrigas e os atentados lhe amarguram a vida. Atlan supõe que no Sistema Azul podem pensar em jogar o Império de Árcon contra o Império Solar.
Por isso Atlan convidou Perry Rhodan a comparecer à sua presença, afim de conferendarem sobre a situação. Os dois soberanos encontram-se na sede do grande centro de computação, quando os acônidas voltam a golpear...
= = = = = = = Personagens Principais: = = = = = = =
Atlan — Que é odiado por seus súditos. Só os terranos são seus amigos. 
Perry Rhodan — Administrador do Império Solar. 
Tama Yokida — Um membro do Exército de Mutantes, um elemento da “velha guarda” de Perry Rhodan. 
Major Jefe Claudrin — Um homem adaptado ao meio-ambiente do planeta Epsal. 
Auris de Las-Toor — Uma mulher jovem, bela e perigosa. 
Lempart de Fere-Khar — Presidente do Conselho Supremo de Ácon.
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O homem, que se sente só, anseia, mais que qualquer outro, pelo amor e pela simpatia, pela amizade sincera e pelos divertimentos interessantes.
Eu me sentia só! Provavelmente chegava a ser o indivíduo mais extraviado do grupo estelar M-13, pertencente à constelação de Hércules, cujos sóis e planetas, segundo se dizia, pertenciam a mim.
Sentia-me só em meio a alguns bilhões de arcônidas e quinhentos mil terranos, aos quais permiti, na minha qualidade de Imperador Gonozal VIII e soberano absoluto, que ingressassem nos territórios dos planetas arcônidas.
Mas os homens também não conseguiram redimir-me, embora há meses eu me esforçasse para descontrair as numerosas recepções e festividades, que se perdiam em meio a uma série de formalismos rígidos.
Ainda não conseguira romper com o velho cerimonial, a fim de estabelecer relações menos convencionais e mais cordiais com os representantes da Humanidade.
Eu era o imperador! Portanto, tinha que agir como tal, conforme o mestre do cerimonial, Drautherb, fazia questão de ressaltar a cada momento. Segundo dizia, a manutenção do necessário respeito era uma questão de “discrição representativa”, que em hipótese alguma poderia ser substituída por um aperto de mãos — nada dignificante — quando me encontrasse com outras inteligências. Os funcionários da corte também viviam enfatizando esse ponto.
Não saberia dizer o que significava a expressão “discrição representativa”. Na minha opinião, a mesma envolvia uma contradição. Se eu quisesse fazer a apresentação representativa do grande império, isso não poderia ser feito sem pompa e gastos.
Acontece que isso não se harmonizava com a palavra “discrição”, que para mim significava aquilo que realmente deve designar, ou seja, um comportamento modesto e uma conduta ilibada.
Ao que tudo indicava, no curso dos milênios haviam surgido usos e costumes que eu, como simples soldado e chefe de frota arcônida, não conseguia compreender.
Não demorei a perceber que não poderia nadar eternamente contra a corrente. Minha indignação inicial contra a ordem social reinante nos planetas de Árcon fora substituída por uma atitude de resignação. Se dispusesse de um número suficiente de arcônidas que tivessem conservado a agilidade espiritual, a modificação desse estado de coisas teria sido possível. Nesse caso, provavelmente conseguiria varrer os detritos decadentes de atitudes mentais enrijecidas que enchiam os salões.
Mas, da forma que as coisas estavam, dependia dos terranos não muito numerosos, que se achavam ocupados com seus próprios problemas.
A pompa inacreditável das festas, a atitude ruidosa e vazia dos indivíduos ociosos e bajuladores, a arrogância oca dos conselheiros e oficiais das frotas — todo esse estado de coisas transformara-se num ingrediente do império, que já não poderia ser despertado do sono em que se embalava.
Quanto a mim, costumava pensar em termos que poderiam ser válidos antes para a Terra distante que para o Império Arcônida.
A essas dificuldades ainda se acrescentava um perigo permanente. Por mais de uma vez haviam tentado eliminar-me, lançando mão de vários recursos. Os atentados contra minha vida quase chegavam a ser um assunto corriqueiro, até que passei a adotar medidas enérgicas e deixei de comutar algumas sentenças de morte.
Muita gente me odiava! Eu, o velho almirante arcônida Atlan, membro da família regente de Gonozal, era temido e impopular. Há muito confessara a mim mesmo que era mais terrano que arcônida. Meus amigos verdadeiros e sinceros viviam no sistema solar, situado a trinta e quatro mil anos-luz de Árcon. Perry Rhodan, o Administrador do Império Solar, era um homem no qual eu podia confiar em todos os sentidos.
Perry mostrara-se digno da minha confiança, e por isso não via nenhum motivo sério para criar dificuldades à política comercial e colonial dos homens. Intimamente, sabia que, apesar das tentativas de regeneração por mim levadas a efeito, o tempo áureo dos arcônidas já pertencia ao passado.
Mesmo assim era-me doloroso saber que Perry Rhodan conhecia minha situação.
Mais uma vez tivera de solicitar seu auxílio, embora o tivesse feito há apenas dois meses. Certos poderes desconhecidos haviam atacado tanto o Império de Árcon como a Terra. O ataque fora realizado com recursos extraordinários, circunstância que provava que a arrogância sem limites dos arcônidas, que conservavam a agilidade mental, não tinha razão de ser.
Na verdade, sentia-me contente, pois justamente Perry Rhodan, que para muitos arcônidas continuava a ser um bárbaro, conseguira provar que nós, os arcônidas, não passávamos de descendentes degenerados dos colonos de um grande povo, que há vinte mil anos mandara os antepassados dos arcônidas para as profundezas do espaço, a fim de desempenharem as funções de colonos galácticos.
Tomei conhecimento desse fato há apenas dois meses. Com isso crescia a responsabilidade e a importância de meu cargo de Imperador de Árcon.
Acontecera algo com que nós, os arcônidas, nunca teríamos sonhado: no centro da Via Láctea existia um povo que nos tratava com a mesma arrogância que nós costumávamos demonstrar perante as demais inteligências. Naturalmente Rhodan não pôde deixar de, num gesto irônico, chamar minha atenção para o fato.
A mim não conseguiu ofender. Mas, diante das explicações do “bárbaro”, outros arcônidas empalideceram visivelmente. A idéia de que nossos antepassados talvez não nos levassem a sério, por nos verem como os descendentes degenerados de seus colonos, que adotavam costumes depravados, era simplesmente ignominiosa.
Quando o grande couraçado linear terrano Ironduke irrompeu em alta velocidade na atmosfera do planeta e se preparou para pousar no espaçoporto do imperador, era esta a situação reinante no planeta de cristal do Império de Árcon.
* * *
O céu parecia arder. O sol branco de Árcon empalideceu sob os jatos chamejantes do gigante de oitocentos metros, que desceu sobre a pista de aço plastificado, estendendo as colunasde apoio.
A Ironduke era um couraçado terrano da classe Stardust. A um ligeiro exame, dificilmente se notaria qualquer diferença de outros veículos do mesmo tipo. Porém eu sabia perfeitamente que a gigantesca esfera abrigava máquinas e propulsores que não tinham igual em Árcon.
Rhodan avisara laconicamente pelo hiper-rádio que desta vez apareceria com a primeira espaçonave linear de grande porte — isso dois meses depois de me ter apresentado os primeiros cruzadores pesados equipados com mecanismos de propulsão linear.
Batizara essa espaçonave maravilhosa com o nome Ironduke, que significa “duque de ferro”. Esse nome me fez recordar minha longa peregrinação pela História da Terra. O pequeno ativador celular, que me mantivera jovem e sadio há vários milênios, continuava a pulsar incessantemente sobre meu peito. Quanto tempo ainda duraria essa situação? Quando soaria minha hora?
Cheio de sentimentos amargos, observei a precisão da manobra de pouso da Ironduke, cuja massa considerável foi conduzida facilmente em direção ao solo.
Os funcionários e oficiais, que se encontravam em minha companhia, esconderam-se atrás das paredes blindadas, construídas especialmente para esse fim. Fiquei só no amplo terreno, e fiz com que meu campo defensivo individual absorvesse e detivesse a onda de ar quente e comprimido, causada pela nave que pousava.
Ouvi o zumbido agudo do minirreator, que se achava no estojo que trazia às costas, juntamente com mais alguns instrumentos.
Depois de termos rechaçado o ataque dos acônidas, também conhecidos como pré-arcônidas, resolvi que andaria constantemente com um projetor individual. Meus inimigos que, segundo parecia, eram inumeráveis, não costumavam acanhar-se na escolha dos meios. Por isso pertencia aos homens pouco invejáveis da História Galáctica, que temiam dia e noite pela vida e pela saúde.
Ainda recentemente haviam tentado fazer com que um robô de guerra reprogramado me matasse a tiro, mas esse ato era apenas uma variante dos atentados anteriores.
Não queria nem podia compreender por que se obstinavam tanto em procurar tirar-me do caminho. Sempre houvera arcônidas ambiciosos, mas os assassinos raramente tinham surgido na história do grande império.
Desde que se ficou sabendo que, segundo todas as probabilidades, descendíamos de um povo que, antes que se desenvolvesse o poder arcônida, já fora muito mais poderoso que nós, pareciam ter surgido grupos de resistência com objetivos confusos. Com isso, provavelmente eu passara a representar um obstáculo muito maior que antes. Nem pensava em submeter-me à vontade de pessoas desconhecidas, numa tentativa de salvar os restos lastimáveis da antiga grandeza.
A onda de pressão desfez-se num chiado. Os propulsores da Ironduke cantavam enquanto iam parando.
Moku, minha cadela boxer, saltou em minha direção, latindo. Parou perto de meu campo defensivo, cuja periculosidade já conhecia em virtude de algumas experiências nada agradáveis. Pouco depois uivou tristemente e, levantando a pata dianteira direita em minha direção, “pediu” que a deixasse entrar.
A cadela era um presente de Rhodan. Enviara-me o animal maravilhoso por meio de uma nave-correio e, na carta que acompanhava o presente, fizera questão de ressaltar que a dedicação de um cão terrano era mais sincera e preciosa que as manifestações de submissão de cem mil arcônidas.
Moku continuava a implorar. Parecia saber quem estava chegando na grande nave. Não podia fitar seus olhos castanhos úmidos, sem sentir-me tentado a abrir o campo defensivo. Como de costume, o animal se encostaria tanto a mim que eu poderia voltar a ligar o campo, e a cadela não correria qualquer perigo.
Olhei rapidamente em torno. Mais adiante, quinhentos robôs de guerra estavam enfileirados. Evidentemente, o administrador de uma grande potência amiga teria de ser recebido com todas as honras militares.
O regimento de guardas dos naats, que eram seres de três olhos, também entrara em forma. Naquele momento, a voz potente do comandante atravessou o campo de pouso.
Logo atrás de mim estavam reunidos alguns funcionários da corte e mais de dez oficiais da frota. Enquanto eu mesmo, por pura teimosia, envergara meu uniforme de serviço com as discretas divisas e o símbolo de minha família, aqueles cavalheiros envergavam trajes de gala. Os cientistas do Grande Conselho usavam roupa branca, vermelha e violeta, enquanto os oficiais exibiam os uniformes de gala da Frota Espacial de Árcon.
Conhecia Perry Rhodan e sabia que a única reação que ele esboçaria diante da quantidade enorme de metais nobres, fazendas brilhantes e condecorações cintilantes seria um franzir de testa. De todas as vezes que o vira, envergara o simples uniforme de campanha, mas de talhe extremamente bem feito, que costumava ser usado a bordo das naves de guerra.
Moku soltou um uivo de cortar o coração. Nem mesmo um imperador arcônida seria capaz de ficar insensível diante da expressão de súplica de um animal como este, especialmente um imperador do meu tipo.
— Venha logo — gritei e, com um simples movimento, desliguei o campo defensivo.
Moku soltou um latido e se dispôs a dar o habitual salto de cumprimento, que geralmente principiava com um forte impacto, para terminar com algumas lambidas nas minhas orelhas.
Fazia bem, muito bem, sentir estes sinais de simpatia sincera e genuína. Abri os braços e recuei o pé direito, para absorver o peso da cadela. Naquele momento ouvi um ruído atrás de mim.
Uma descarga energética quentíssima passou junto ao meu peito, fazendo fumegar as fibras de plástico do meu uniforme.
Moku foi atingida durante o salto. O impacto do raio térmico arrancou-a da trajetória e a atirou ao chão com tamanha violência que ouvi nitidamente o impacto.
A cachorra permaneceu imóvel. Devia ter morrido imediatamente. Virei-me, rubro de raiva. Toquei o contato e a arma, que trazia no cinto, surgiu na minha mão, pronta para disparar. Ao mesmo tempo bati com a mão esquerda sobre o botão largo do dispositivo automático de defesa. O campo defensivo voltou a funcionar.
— Lloyd! — gritei em tom nervoso.
A pesada arma de radiações subiu sob a força de minha mão.
Fellmer Lloyd, um dos mutantes do exército especializado da Terra, ainda segurava a arma de radiações. Fitou-me com uma expressão indiferente. Fazia apenas trinta dias que Lloyd fora destacado para minha proteção especial, isso depois que o oficial de ligação terrano, estacionado em Árcon, comunicara ao chefe supremo o quanto eu era molestado com atentados. E agora Lloyd disparara contra mim, num momento em que desligara por um instante o meu campo defensivo individual.
Teria realmente atirado em mim?
O setor lógico de minha mente deu sinal de sua presença, com uma intensidade dolorosa.
“Seu idiota! Será que ele poderia ter errado o alvo a essa distância? E contra um homem de seu tamanho?”
Os impulsos constringentes de meu cérebro adicional, que acabara de ser ativado, fizeram-me estremecer. Instintivamente baixei a arma. O dedo curvado em torno do gatilho descontraiu-se.
Fellmer Lloyd, um homem musculoso de cabelos escuros, continuava a fitar-me. Finalmente disse com a voz arrastada:
— Perdoe-me, sir. Só notei a presença do pequeno ferrão quando Moku iniciou o salto.
— Do ferrão? — gaguejei, perplexo.
— Isso mesmo, sir. Conhecia perfeitamente os modelos de impulsos cerebrais da cadela. Quando ela saltou do carro-planador de seu robô de serviço, registrei dor, angústia, e mais alguma coisa que não compreendi muito bem. O animal estava desesperado. Alguma coisa tinha acontecido com Moku. Correu imediatamente em sua direção, como se quisesse comunicar-lhe a dor que sentia. Acontece que havia alguém que contava com isso, sir. E esse alguém sabia perfeitamente que o senhor não seria capaz de deixar de abrir o campo defensivo. Quase cheguei a hesitar demais. Peço-lhe que acredite que não havia outro meio de deter Moku. Tive de atirar.
Fiquei parado como quem se sente estonteado. Meus olhosvagavam entre o mutante, meus acompanhantes muito pálidos e a cachorra boxer que jazia morta.
Alguns oficiais haviam sacado as armas. Sentindo-se seguros, voltaram a guardá-las nos coldres.
— Que ferrão é esse? — perguntei, ofegante. — Não compreendo o que quer dizer.
— Sua Excelência Administrativa aproxima-se, eminência — cochichou Truk Drautherb, com uma ligeira nota de desespero. — Eminência, a recepção...
Fiz um sinal violento para que o tagarela enfeitado se afastasse. Um veículo parou atrás de mim. Ouvi o zumbido do motor, mas não virei a cabeça.
Contrariando os impulsos de advertência do meu cérebro adicional, voltei a desligar o campo defensivo individual. Não poderia deixar de examinar o melhor amigo que tinha em Árcon. Ai de Fellmer Lloyd se alguma coisa não estivesse em ordem...
— Mahaut Sikhra, o imperador está indefeso. Faça alguma coisa! — disse uma voz fria e controlada
— Comando, espalhe-se e destrave as armas — disse outra voz, em tom preocupado. — Se alguém puser a mão na arma, abra fogo sem aviso.
— Sem considerar a qualidade da pessoa — acrescentou o homem que falara em primeiro lugar.
Ouvi o ruído surdo das solas elásticas. Talvez os cavalheiros que me acompanhavam tivessem ficado ainda mais pálidos, mas não virei a cabeça. Concordei com as instruções do homem que por certo observara o tiro de radiações com todas as suas conseqüências.
Ajoelhei-me junto à cachorra. Fellmer Lloyd colocou-se a meu lado. Levantou cautelosamente a cabeça do animal, que não fora ferida, e abriu-lhe as mandíbulas. Com uma cautela ainda maior, afastou a língua da cadela, e então eu mesmo vi.
Um ferrão, fino como uma agulha, de cerca de cinco centímetros de comprimento, fora colocado sob a língua, por meio de uma cola bioplástica. Era o mesmo bioplástico utilizado na Medicina, para fazer com que os cortes das operações se fechassem sem deixar cicatrizes.
Se Moku me tivesse cumprimentado da maneira como costumava fazer, sem dúvida teria sido ferido pela ponta do ferrão. Perplexo, fitei o artefato assassino mais traiçoeiro que já me fora dado ver. Alguém agira com uma habilidade diabólica. Esse alguém sabia da minha simpatia por Moku, e utilizara o inocente animal como portador de uma terrível arma.
— Procuraremos analisar o veneno colocado na ponta, Atlan — disse o homem com a voz fria. — Levante-se, velho amigo. Lloyd realmente não teve outra alternativa: viu-se obrigado a atirar. Não havia meio de deter o animal.
Alguém segurou meus ombros trêmulos e me pôs de pé. Depois de algum tempo, quando me virei, fitei os olhos cinzentos de Rhodan. Havia neles um brilho frio e hostil, até que, ao verem meu rosto, modificaram sua expressão.
Perry Rhodan era um dos poucos homens que sabiam sorrir com os olhos. Ao menos tive a impressão de sentir fisicamente o calor que, de súbito, surgiu nos mesmos.
A poucos metros do lugar em que me encontrava viam-se cerca de trinta homens de um comando especial terrano. Eram figuras altas e bem treinadas.
Eram homens do tipo aos quais eu, o Imperador de Árcon, tinha de renunciar. Em todos os planetas do império não havia um único soldado que possuísse as qualidades daqueles terranos.
Os cavalheiros que se encontravam em minha companhia contemplavam, parte assustados e parte enfurecidos, as bocas cintilantes das armas energéticas terranas. Rhodan não tivera a menor dúvida em ameaçar os nobres da corte com as armas. Sem dúvida, compreendia perfeitamente o perigo que me ameaçava.
Abaixei-me sobre o corpo inerte da cachorra. Segundo as leis vigentes em Árcon, teria de ser incinerado numa câmara e a seguir dissolvido. Em Árcon nunca houvera cemitérios.
No momento em que Fellmer Lloyd tomou os restos mortais do animal nos braços e caminhou em direção ao planador que me esperava, desprendi-me do quadro. Sabia que cuidaria de tudo.
— Não há dúvida de que salvou minha vida — disse, e esforcei-me para pensar apenas no presente.
Eu precisava esquecer o rosto fiel de Moku, no qual se liam com tamanha facilidade os sentimentos do animal.
O amor de Rhodan pelos animais fez com que ele próprio se abstivesse de qualquer observação supérflua. Qualquer outra pessoa seria capaz de dizer que o incidente era lamentável, mas afinal tratava-se apenas de um cachorro. Naquele instante, dificilmente seria capaz de suportar uma expressão desse tipo, sem perder o autocontrole.
Alguns sons retumbantes de tambor, seguidos imediatamente de terríveis dissonâncias, fizeram com que estremecesse de susto. Rhodan soltou um suspiro de resignação, que logo foi superado pelas batidas, chiados e fanfarradas cada vez mais rítmicas.
Virei-me, esbravejando furiosamente. Algum mestre-de-cerimônias de terceira classe resolvera usar a música militar, a fim de salvar alguma coisa da recepção frustrada a “Sua Excelência Administrativa Perry Rhodan”.
A banda musical de robôs, programada para oitocentas peças, marchou em nossa direção, com sons retumbantes e tilintantes. Inúmeros braços metálicos desciam sobre tambores de fibra de plástico, produzindo um barulho de fim de mundo.
Outros músicos conduziram os fluxos de ar de seus competentes compressores para dentro das trombetas, fanfarras e outros aparelhos barulhentos. Faziam-no com tamanha força que não se entendia mais uma única palavra.
Gritei algumas pragas para o mestre-de-cerimônias, que marchava à frente do destacamento, e sacudi os punhos. Porém o treinado cortesão não permitiu que meus gestos perturbassem suas atividades.
Não tivemos outra alternativa senão esperar até que a horda selvagem passasse por nós. Os membros do comando terrano fitavam o espetáculo com uma expressão que quase chegava a ser de perplexidade. Rhodan, num gesto de resignação, colocou a mão no boné bordado de ouro, enquanto um major terrano, que nunca havia visto, sorria de forma tão franca que logo me senti melhor.
Só mesmo um ser humano seria capaz de torcer os lábios dessa forma. Para mim, a visão daquele oficial robusto, de rosto moreno e marcante, tinha algo de refrescante.
Levei alguns segundos para perceber que o major trazia no uniforme o distintivo de comandante de couraçado. Além disso, não parecia ser um terrano igual a qualquer outro. A largura de seu corpo quase era igual à altura, e os feixes de músculo que apareciam sob o uniforme quase chegavam a infundir medo. Esse homem devia possuir uma tremenda força física.
Rhodan seguiu meu olhar. Percebi que se sentia satisfeito por poder desviar minha atenção discretamente dos acontecimentos que acabavam de desenrolar-se.
— O Major Jefe Claudrin, comandante da Ironduke — disse em tom um tanto apressado, a título de apresentação. — Nasceu em Epsal.
— Em Epsal...?
— Trata-se de um planeta colonial cuja gravitação é de 2,1G. Jefe costuma levar consigo um microgravitador, que lhe confere o peso a que está habituado.
Um tanto curioso, aproximei-me do homem e, num gesto impulsivo, ofereci-lhe a mão. Alguém soltou o ar com tamanha violência que até se parecia ouvir um apito.
Virei a cabeça e fitei o mestre-de-cerimônias, que parecia encontrar-se na iminência de um colapso nervoso. Na verdade, o fato de eu, que era o Imperador do Reino Estelar, estender a mão a um simples major, tinha algo de catastrófico.
Era uns vinte centímetros mais alto que Jefe Claudrin, que media no máximo um metro e sessenta de altura e outro tanto de largura. Mas quando senti seu aperto de mão, tive de esforçar-me para não gemer e dobrar os joelhos. No entanto, tinha certeza de que Claudrin sabia avaliar sua tremenda força e dificilmente estaria apertando minha mão conforme costumava fazer.
— Fico muito satisfeito em conhecê-lo, sir — trovejou sua voz profunda.
Sem dúvida o timbre da mesma combinava com aquele homem extraordinário. O tratamento de sir me fez soltar uma gostosa gargalhada. Finalmente voltava a ouvir palavras razoáveis, depois de vários anos em que todos me tratavam de Vossa Eminência.
E Claudrin ainda era interessante sob outro pontode vista. Constituía a prova viva do espírito empreendedor dos terranos, que se arriscaram a povoar planetas grandes, com elevado grau de gravitação, por homens iguais a quaisquer outros, a fim de, mediante esse tipo de manipulação cosmo genética, criar um povo novo, adaptado ao ambiente. Provavelmente Claudrin era um dos primeiros homens nascidos num mundo em que a gravitação chegava a 2,1G.
Lancei um olhar pensativo para Rhodan, que me fitava com uma visível tensão interior. Sorri ligeiramente para ele. De repente me senti muito cansado. Esses pequenos bárbaros podiam apresentar uma lista de feitos bem-sucedidos que devia deixar certas pessoas bastante contrariadas.
Poucos decênios se haviam passado — mais precisamente, uns 59 anos — desde que conseguira, com o apoio de Rhodan, vencer e reprogramar o grande centro de computação.
E nesse tempo os terranos conseguiram transformar o Império Solar, que ainda era bastante fraco, numa potência galáctica de primeira categoria.
Ainda me lembrava perfeitamente do dia em que a frota dos druufs, que são criaturas não humanóides, lançou seu ataque contra a Terra. Na oportunidade mandei minhas naves robotizadas em auxílio da Terra. Hoje esse auxílio não seria mais necessário, mesmo que esses monstros, vindos de outra dimensão temporal, voltassem a atacar.
Sabia que a lua terrana fora transformada, segundo o modelo arcônida, num astro destinado exclusivamente a abrigar os estaleiros de espaçonaves. Era possível que a capacidade de construção de naves dos terranos já ultrapassara a dos arcônidas.
Lancei um olhar para a Ironduke, que certamente pertencia a um novo tipo de supernaves. O gigantesco vulto esférico media oitocentos metros de diâmetro. Gostaria de saber quanto tempo se levava na Terra para construir uma nave desse tipo. Provavelmente não seria mais que alguns meses, enquanto há poucos decênios ainda se tinha de contar com um tempo de construção de ao menos doze anos.
Jefe Claudrin fitou-me sem rebuços. Parecia adivinhar meus sentimentos e pensamentos. Apressei-me em pedir desculpas e, com um sorriso embaraçado, acrescentei:
— O senhor tem uma bela nave, comandante. Parabéns.
Claudrin inclinou o crânio pesado, sobre o qual o boné fazia uma figura um tanto esquisita.
— Muito obrigado, sir. A Ironduke tem suas qualidades.
Acreditava plenamente no que acabara de ouvir. O sistema de propulsão linear do couraçado espacial por si só já representava um milagre. A curiosidade de técnico despertou em meu interior.
A voz aguda de um oficial baixo, de quadris estreitos, com um rosto marcante, despertou-me das reflexões. Rhodan, que se encontrava de pé a meu lado, parecia indiferente a tudo. Sabia, porém, que levara apenas alguns segundos para analisar-me. Afinal, era um psicólogo brilhante.
O chefe do comando mandou que os homens se acomodassem. No momento em que entraram no carro-planador, Rhodan disse em seu tom indiferente, que já adquirira uma triste celebridade:
— O barulho terminou; escapamos sãos e salvos aos olhares venenosos dos seus cortesãos. Se depender de mim, podemos dispensar a palhaçada da recepção. A Ironduke está pronta para decolar. Gostaria de saber quanto antes o que o computador-regente conseguiu apurar. Então, o que me diz?
Olhou em torno, indignado. Ao que parecia, os homens que me acompanhavam não sabiam o que fazer.
Dispensei-os com uma ordem lacônica, suspendi as festividades em honra do Administrador Solar e dirigi-me ao planador do comandante da Ironduke.
Senti uma alegria tremenda ao ver os rostos apavorados dos cortesãos, até que Rhodan disse com um sorriso matreiro:
— Se você trata o pessoal dessa forma, não terá por que admirar-se com os atentados.
— Quero que o diabo os carregue — respondi em inglês. — A eles e a todo esse cerimonial que tanto repugna ao meu coração. Tenho coisas mais importantes a fazer do que cumprimentar cinco mil representantes das famílias mais importantes e deleitar-me com suas mesuras.
O mestre-de-cerimônias aproximou-se, banhado em suor. Havia um brilho úmido em seus olhos vermelhos de arcônida. Estava prestes a chorar.
Com prolixos pedidos de desculpa, interpôs-se em nosso caminho. Rhodan inclinou a cabeça, num gesto amável, enquanto eu fervia de raiva. Sempre era assim. Nunca se conformavam com as medidas que resolvia adotar. Sempre havia alguém que julgasse necessário chamar minha atenção para este ou aquele detalhe, numa linguagem polida e formalista.
— Eminência, os representantes mais importantes da sociedade aguardam com a maior simpatia e humildade a presença de Vossa Eminência e de Sua Excelência Solar. Permita-me que, com todo o respeito que sinto por Vossa Eminência, mencione o fato de que a política interna de Árcon I exige o benévolo comparecimento de Vossa Eminência. Vejo...
— O senhor ouviu minha ordem — disse em tom áspero, interrompendo o mestre-de-cerimônias com seus gestos efeminados.
— Sua Eminência age assim a pedido expresso formulado por mim, sir — disse Perry com um sorriso radiante. — Queira transmitir minhas melhores recomendações aos nobres de Árcon. Certos acontecimentos da maior importância, que se verificaram na política exterior, nos obrigam a renunciar ao prazer da recepção tão bem arranjada pelo senhor. Estou inconsolável, sir.
Isso também não deixava de ser uma recusa. Apenas, Rhodan soube enfeitá-la com palavras mais amáveis.
O funcionário de minha corte compreendeu. Fazendo um esforço tremendo para resguardar sua dignidade, retirou-se. Saltei para o planador, que partiu com um solavanco assim que Rhodan também entrou.
Cumprimentei a guarda de honra que continuava em forma. Os gigantescos naats fitaram-nos com uma expressão estúpida e indiferente. O grande comando de robô subitamente fez meia-volta, para abandonar o campo de pouso.
Jefe Claudrin riu, enquanto eu não sentia a menor vontade de fazer o mesmo. O nativo de Epsal parecia não ter a menor idéia da tremenda violação dos sagrados usos e costumes que acabara de ser cometida por mim. Nunca poderia atrever-me a tomar uma atitude como esta, se não tivesse ocorrido o atentado contra a minha vida.
Rhodan tirou o boné, estreitou os olhos, piscou para o escaldante sol de Árcon e enxugou a testa, ensopada de suor.
— Atlan, posso dizer-lhe uma coisa de amigo para amigo, na linguagem franca do soldado?
Não olhei para ele. Sem nada falar, fitei a espaçonave que se aproximava. Os abaulados flancos de aço do artefato obstruíam a visão das instalações do espaçoporto, situadas mais ao norte.
— Pois não.
— Você não passa de um pobre cachorro.
Não me senti ofendido nem melindrado. Esperava que Rhodan dissesse mais ou menos isso. Será que devia dizer-lhe que o que mais desejava era voltar a singrar as amplidões da Galáxia juntamente com os astronautas terranos?
Deveria dizer-lhe que, para mim, sua simples presença era algo de maravilhoso, que era maravilhoso ouvir sua voz e fitar os rostos francos e sorridentes de verdadeiros homens?
Não; era preferível não dizê-lo. Rhodan já sentia muita pena de mim, e isso me deixava triste. E há tempos, já havia tentado matar esse homem, apenas porque pretendia barrar-me o caminho que levava ao meu mundo natal!...
Hoje sabia que pensara e agira com a maior coerência. Com um sorriso forçado e uma ironia fingida, respondi:
— O pobre cachorro nem sequer pode latir à vontade. Como são as coisas no interior de sua nave?
— Você pode latir à vontade; apenas peço que não me morda.
Nós nos havíamos compreendido. Nunca mordera a ele — vale dizer, à Terra. Árcon já não tinha forças para isso. Mas unidos representávamos um poder invencível.
Seríamos mesmo invencíveis? Lembrei-me da interpretação final do regente. Alguém abalara os alicerces dos dois impérios. Já estava na hora de fazer alguma coisa contra isso.
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A rigor, a nave terrana Ironduke era uma usina energética espacial, em cujo interior parte alguma, por menor que fosse, deixou de ser aproveitada.
Durante ocurto vôo que nos levou ao terceiro planeta de Árcon, não houvera necessidade de usar o lendário sistema de propulsão linear, que os terranos haviam copiado dos druufs; conseguiram construí-lo depois de um prolongado trabalho de pesquisa. Por isso não pudera observar as novas máquinas, nem realizar o estudo visual das mesmas. Aliás, era bastante duvidoso que Rhodan me fornecesse as respectivas informações.
A Ironduke era a nave do futuro. Sua combativa capacidade tática era muito superior à de qualquer outro veículo espacial. E os homens iguais ao Major Jefe Claudrin simbolizavam o tipo de comandante dotado de imensa resistência nervosa e capacidade de reação para capitaneá-la.
As naves pertencentes à série da Ironduke representavam instrumentos extremamente perigosos em mãos do comando espacial dos terranos, ainda mais que os novos meios de vencer o tempo e o espaço permitiam usá-las praticamente em qualquer ponto.
Era bem verdade que com as naves convencionais isso também se tornava possível, mas essas não podiam ser dirigidas com a mesma rapidez para os pontos estratégicos mais importantes. Além disso, o abalo estrutural provocado no momento do salto permitia sua localização, o que não acontecia com as espaçonaves de propulsão linear. Estas não saltavam pela quinta dimensão; atravessavam a estrutura instável, situada entre o espaço normal e o hiperespaço, num vôo contínuo realizado a uma velocidade milhões de vezes superior à da luz, durante o qual a tripulação podia ver o ponto de chegada. Não havia a dor da desmaterialização e da rematerialização, e, além disso, os tripulantes não ficavam sujeitos à carga psicológica advinda das transições que até então se costumava realizar.
As vantagens das novas espaçonaves eram evidentes. Por isso preferi não incomodar Rhodan e os cientistas a bordo com perguntas a esse respeito.
Depois de nosso pouso em Árcon III, o mundo dos estaleiros espaciais e das indústrias acessórias dirigidas por robôs, ponderei algumas idéias que não deixavam de ser egoístas.
Há alguns dias conhecia perfeitamente o perigo que surgira nas profundezas do centro galáctico. Era a única pessoa que possuía os dados indispensáveis para que Rhodan traçasse seu procedimento futuro.
Conforme as circunstâncias, poderia mostrar-se disposto a revelar-me espontaneamente o segredo do sistema de propulsão linear. Comecei a namorar a idéia de reprogramar as gigantescas linhas de montagem do mundo industrial, a fim de equipar as grandes unidades da frota arcônida com a máquina fantástica.
No entanto, Rhodan não fez menção de colocar em discussão este ponto. Estava interessado, antes de mais nada, em saber de mim ou do computador-regente de onde vinha o povo dos arcônidas e qual era seu parentesco com os chamados acônidas.
Conseguira apoderar-me desses dados.
Para isso recorrera aos armazéns de velhos dados do maior centro de computação da Via Láctea.
* * *
Pela primeira vez um não-arcônida teve permissão para penetrar nos centros subarcônidas.
Também neste ponto resolvi deixar de lado todas as idéias convencionais, ainda mais que, além de mim e de Rhodan, dificilmente havia qualquer ser vivo que estivesse tão bem informado sobre essas instalações.
Juntos havíamos vencido o famoso centro de computação, que até poucos decênios atrás era completamente autônomo e conhecido como uma entidade impiedosa. Conseguira provocar a reação do dispositivo de segurança instalado por meus antepassados, e depois disso os atos do regente, que escapavam a todo e qualquer controle, chegaram ao fim.
Agora as gigantescas instalações passaram a ser empregadas em finalidades úteis. O enorme aparelho administrativo do império, tremendamente ramificado, era dirigido exclusivamente pelo centro de computação. No entanto, ele já não intervinha nos acontecimentos políticos e militares sem ordens especiais de minha parte.
Rhodan pediu que lhe fosse permitido levar um dos seus mutantes. Concordei depois de ligeira hesitação, embora não soubesse por que fazia questão dessa companhia.
Tama Yokida, um terrano de estatura mediana, um tanto atarracado, vindo do estado federado do Japão, era um homem quieto e modesto, cujo dom especial consistia na capacidade de mover e manipular objetos materialmente estáveis exclusivamente pela força de sua vontade.
Também a Tama fora concedida, por ordem de Rhodan, a chamada ducha celular. E foi assim que três criaturas relativamente imortais se aproximaram do campo energético em favor do grande centro de computação.
“Por quanto tempo ainda seria possível enganar a natureza com nossos recursos biotécnicos?”, pensei. Quando chegaria o momento da decadência celular irreversível? Rhodan, Yokida, eu e muitos outros mutantes representavam exemplares curiosos na estrutura da natureza onipotente. Nossa existência fundava-se num truque sujo, conforme dissera corretamente um cientista terrano.
Essa afirmativa aplicava-se especialmente a mim, pois sempre conseguira cuidar do meu microativador celular, para que a regeneração das células nunca fosse interrompida por um tempo muito longo. Às vezes, a coisa estivera por pouco, e nessas oportunidades comecei a compreender que o misterioso Ser coletivo do planeta Peregrino, ao entregar-me o aparelho, se guiara por idéias estatísticas.
A julgar pela lei das grandes séries, já deveria estar morto há muito tempo. Durante minha longa peregrinação pela História da Terra houve centenas de possibilidades de perder o ativador.
E isso acontecera muitas vezes. Apenas, ao contrário das expectativas estatísticas, sempre conseguira recuperar o aparelho antes do momento crítico.
O pigarro de Rhodan sobressaltou-me em meio às reflexões. Virei a cabeça.
O campo energético defensivo do centro de computação erguia-se bem à nossa frente. A Ironduke pousara dois quilômetros atrás de nós. O carro, que nos levara até a linha vermelha que delimitava a zona de perigo, aguardava fora da área mortal.
Já havíamos transposto o grande dique, atrás do qual certa vez estivéramos deitados, disparando contra qualquer peça de metal que enxergássemos à nossa frente. Fazia mais de sessenta anos.
Naquele momento podíamos caminhar tranqüilamente em direção à guarda de robôs que nos esperava atrás do campo defensivo e pedir em nome do imperador que nos deixasse entrar.
Rhodan e Tama Yokida pararam. Sem dizer uma palavra, seguiram-me com os olhos. Sabiam que seus impulsos individuais teriam de ser captados e registrados pelo dispositivo de segurança e retransmitidos, com as respectivas ordens, às estações defensivas.
O gigantesco campo abobadado abriu-se à minha frente. Atravessei-o e liguei o aparelho de comando preso ao pulso esquerdo.
— Bem-vindo, eminência — disse a voz fria e mecânica do regente, saída do alto-falante. Era o cumprimento que costumava ser usado há cerca de sessenta anos. Resolvi ser lacônico.
— Permita a entrada do Administrador do Império Solar e de seu companheiro. Prepare o retrato, armazene-o e transmita-o sob a forma de um impulso condensado às unidades de defesa.
Se é que um cérebro positrônico é capaz de ficar perplexo, isso deve ter acontecido nesse instante. Um forte zumbido fez-se ouvir em meu aparelho de comando. A resposta do regente demorou alguns segundos, e foi muito diferente do que eu esperava.
Depois de um forte estalido no alto-falante, ouviu-se outra voz, fortemente modulada.
— Dispositivo de segurança A-l falando, eminência. Minha programação, realizada pelos antepassados, faz-me não permitir a entrada de estranhos, a não ser que circunstâncias extraordinárias obriguem um arcônida a pleitear, no interesse do Império Estelar, a entrada dos mesmos. Um pedido desse tipo terá de ser muito bem fundamentado.
Fiquei perplexo por um instante. Aquilo constituía uma novidade. Virei-me apressadamente e fiz um sinal para que Rhodan, que já se aproximava da linha vermelha, recuasse. Notei que a abertura, que se formara no campo defensivo, voltara a fechar-se.
Rhodandeu um salto para trás. Sem dúvida compreendera. Procurei aproximar o aparelho de comando dos lábios.
— Imperador dirigindo-se ao dispositivo de segurança A-l — disse, acentuando as palavras. — Surgiram as circunstâncias extraordinárias que tornam indispensável a entrada de um estranho, no interesse do Império Estelar. Os dados extraídos das memórias antigas provam que a existência do império está em jogo. O conflito com a raça de que provêm os arcônidas, conhecido pelo nome de Guerra do Centro, entrou num novo estágio crítico. Há dois meses os acônidas atacaram o grande império, fazendo com que o terceiro planeta recuasse quinze mil anos. Nesta época o governante era o Imperador Metzat. Os arcônidas que então viviam, desaparecidos, em sentido relativista, há muitos milênios, despertaram para uma vida nova e incompreensível. Uma velha frota arcônida ia atacar a Terra. Esta, por sua vez, não foi influenciada por nenhum campo temporal. A eliminação do deformador de tempo, introduzido por desconhecidos, trouxe-nos de volta à situação normal. Esses dados já são do seu conhecimento.
— São do meu conhecimento, eminência — confirmou o dispositivo de segurança. — Qual é a relação entre eles e os estranhos a que Vossa Eminência acaba de aludir?
Refleti febrilmente. O único meio de convencer um computador era a lógica pura. Seria inútil dizer que Rhodan apenas pretendia examinar, a título de informação, os velhos relatos em filme. Teria de encontrar um argumento mais convincente.
— A degenerescência dos atuais arcônidas também é um fato conhecido. Para defender-nos do ataque da raça-mãe necessitamos do auxílio do Império Solar. Sua Excelência Administrativa, Perry Rhodan, precisa ser informado pessoalmente da situação. Seu companheiro exerce as funções de ajudante e é dotado de faculdades para-normais.
— Será possível utilizar essas faculdades no interesse do Império Estelar? — indagou A-l.
Já ganhara a partida. Logo após minha resposta afirmativa, o setor A-l voltou a chamar.
— O requerimento de Vossa Eminência foi deferido sob reserva, uma vez computados os dados disponíveis.
— Sob reserva?
— É o que determina minha programação, eminência. Os não-arcônidas podem penetrar na sala de apresentação número sete. Os outros setores do computador-regente não podem ser visitados por estranhos, nem observados por meio de aparelhos de inspeção à distância. O auxílio armado, que Vossa Eminência julga imprescindível, obriga-me, face às ordens introduzidas em mim, a permitir a entrada do não-arcônida. Não é possível fazer outras concessões.
Sentia-me satisfeito por ter conseguido ao menos essa permissão. Admirei contra vontade a sábia previdência dos homens que, num trabalho de vários séculos, haviam construído e programado o gigantesco centro de computação. Não se esqueceram de nenhum detalhe. Minha vida não valeria mais nada, se ainda me atrevesse a levar Rhodan a outro lugar que aquele que me fora ordenado. Neste ponto parecia terminar meu poder de dar ordens, que em outros setores era irrestrito.
Esperei até que o armazenador de dados móvel parasse ao meu lado. Só depois surgiu a abertura no anteparo energético. Saí e fiz um sinal para Rhodan. Perry continuou parado. Parecia estar preparado para saltar a qualquer momento.
Senti seu olhar desconfiado. Voltara a ser o terrano, sempre cauteloso, que ponderava a situação, numa atitude fria e tranqüila, embora admitisse certa dose de risco.
Senti a dor na parte traseira do crânio. Os telepatas a bordo da Ironduke procuravam averiguar o conteúdo do meu pensamento consciente, muito embora soubessem há muitos anos que não conseguiriam fazê-lo contra minha vontade.
Bloqueei imediatamente minha mente por meio do cérebro adicional. Com isso emudeci parapsicologicamente para os telepatas.
Não me aborreci nem um pouco com a tentativa frustrada. Era principalmente Gucky, o rato-castor petulante, que não podia deixar de experimentar-me com constância.
O que mais me apavorava era a idéia de que os mutantes deviam ter agido por ordem de alguém. Rhodan possuía uma capacidade telepática bastante limitada e, como não tivesse sido muito dotado pela natureza, cultivara tal capacidade por meio da parapsicologia moderna. Sabia comunicar-se perfeitamente com um bom receptor. Porém suas transmissões não iam muito longe.
Naturalmente ele, que era uma criatura desconfiada, irradiara uma ordem para seus homens, para que fizessem o possível para arrancar-me alguns fragmentos de idéias. Nesse instante perdi toda esperança de algum dia saber desse homem como funcionavam os novos hiperpropulsores.
Reprimi a contrariedade que sentia. Esse terrano nunca aprenderia. Passara por uma escola dura e impiedosa. A vida e as situações calamitosas, que se espalhavam pela Galáxia, haviam-lhe ensinado que não se devia confiar em ninguém.
Este princípio não podia ser considerado falso, e muito menos deveria ser interpretado como uma manifestação constante de maldade. Apenas, não deveria ter chegado ao ponto de incluir seus amigos sinceros no círculo das pessoas contra as quais dirigia sua desconfiança.
Liguei meu rádio portátil e falei em tom irônico para dentro do microfone:
— Muito obrigado pela prova de confiança, bárbaro. Caso os senhores mutantes da Ironduke me estejam escutando, quero que saibam que as tentativas de espionagem paramental continuarão a ser infrutíferas.
A posição de Rhodan descontraiu-se. Dali a pouco soltou uma risada, e então não consegui ficar mais zangado com ele. Afinal de contas, era um terrano que mais uma vez se identificara com toda a Humanidade. Preferiria que o fizessem em pedaços a permitir que algo de mal acontecesse a essa Humanidade.
Tirou do cinto o radiotransmissor e encostou-o à parede. Numa atitude típica, não formulou nenhuma pergunta, mas fez uma constatação em tom terminante:
— Você teve problemas. O que houve?
— Foi o dispositivo de segurança A-l.
— Entendido. Isso foi uma novidade para você, não foi?
— Você compreendeu com uma lógica perfeita.
— Bendito seja seu senso de humor, arcônida. Será que já posso aproximar-me sem correr nenhum perigo?
— Você pode entrar na sala de apresentações número sete; só isto.
— Quer dizer que há mais de uma.
— É de se supor que haja.
Rhodan soltou uma risada que desarmaria qualquer pessoa. Foi caminhando lentamente, juntamente com Tama Yokida. No momento em que ultrapassaram a linha vermelha de perigo, meus olhos ficaram úmidos. Era um sinal de agitação interior. Qual seria dali em diante o comportamento do regente, especialmente do seu setor de segurança? Se Rhodan morresse por ocasião de uma visita amistosa, as conseqüências seriam inimagináveis.
Só suspirei aliviado quando os dois homens haviam passado pela coleta dos dados individuais. Aguardei até que os capacetes detectores fossem tirados de suas cabeças e o setor A-l voltasse a chamar para confirmar o registro.
Os robôs de guerra, enfileirados sob a distante abóbada de aço, desapareceram. O centro de computação teve bastante confiança em mim para deixar a meu cargo os cuidados com Rhodan e Yokida.
Informei-os apressadamente e concluí:
— Peço-lhes encarecidamente que não façam tolices. Tama, o senhor deve renunciar às suas brincadeiras telecinéticas. Estamos lidando com uma máquina-mamute, que não entende de brincadeiras nem atitudes petulantes.
Rhodan usou sua faculdade telepática para entrar em contato com a Ironduke. Naquele momento não havia nenhuma possibilidade de intercâmbio falado. O campo energético do centro de computação impedia todas as comunicações pelo rádio.
— Está bem; vamos andando. Meu pessoal está informado. Se alguma coisa nos acontecer, ao menos não acreditarão que seja por sua culpa.
Lançou-me um olhar penetrante; a exclamação furiosa que pretendia soltar ficou presa na minha garganta. Rhodan falara sério.
Virei a cabeça sem dizer uma palavra. Um planador antigravitacional levou-nos até a abóbada achatada, que mal sobressaía do solo, naqual terminava um elevador antigravitacional. Meus antepassados fizeram questão de colocar as instalações de comando bem abaixo do nível do solo.
Rhodan e o telecineta seguiram-me de perto. E não se desgrudaram dos meus calcanhares quando nos encontrávamos a dois mil metros de profundidade, e atravessávamos as últimas eclusas blindadas. Naquele instante penetramos no labirinto misterioso de uma tecnologia que os arcônidas daqueles dias já não dominavam. Nem mesmo eu estaria em condições de reparar um setor que por algum motivo deixasse de funcionar.
Acontece que meus veneráveis antepassados — que a rigor eram meus descendentes — haviam pensado no caso. O regente reparava-se a si mesmo.
Um robô especializado sem armas aguardava-nos na entrada da sala de apresentação número sete. Vimos à nossa frente um recinto quadrado, com o teto abaulado apoiado em colunas.
Só se via uma série de telas enormes, uma mesa de programação em ferradura e um envoltório de aço que sobressaía da parede e continha os elementos dos estágios finais de computação.
À frente da maior das telas viam-se confortáveis poltronas articuladas, que já haviam abrigado os maiores cientistas e estadistas da História de Árcon.
Sem dizer uma palavra, apontei para as poltronas. A apresentação já fora preparada. Não havia necessidade de formular indagações detalhadas, já que os dados armazenados no computador, solicitados há alguns dias, estavam inseridos no setor lógico.
Antes que pudesse desencadear o impulso, que seria importante, se não decisivo, para Rhodan e para mim, disse no tom mais indiferente que me foi possível:
— Perry, seu avanço inesperado para o Sistema Azul, que provavelmente só se tornou possível graças à nave de propulsão linear, provocou uma verdadeira avalanche de acontecimentos. Os fatos que você apurou são corretos. Os pré-arcônidas, ou melhor, os acônidas, são os antepassados dos arcônidas que você conhece, e aos quais eu pertenço. Para os membros do Grande Conselho de Árcon esse fato é bastante lamentável.
— Por quê?
Fitei-o com uma expressão pensativa.
— Você sabe. Em nossa raça cumpriu-se uma lei natural à qual, segundo parece, ninguém consegue escapar. Quase todos os sociólogos, biólogos e médicos são acordes em afirmar que um povo arrancado de seu habitat original não pode permanecer para sempre num outro mundo em que as condições são totalmente adversas. Isso se aplica tanto à Cultura e à Ética, como também ao patrimônio técnico e científico. A degenerescência inegável dos arcônidas de hoje é uma simples conseqüência dessa lei sombria. Já sabemos por que o Império de Árcon é um colosso sobre pés de barro. O enigma, que há tanto tempo procurávamos solucionar, encontrou sua solução graças ao seu vôo experimental, que o levou ao centro da Galáxia.
“Somos descendentes de colonos de um grande povo, e por isso degeneramos. Quase todos os arcônidas, inclusive as cabeças dirigentes do Grande Conselho, encontram-se na situação psíquica de certo grupo de doentes mentais que nenhum psiquiatra consegue convencer de que realmente são doentes. Logicamente a situação nos imporia o dever de convencer os arcônidas de que chegamos ao fim do nosso caminho. Mas nunca conseguirei fazer isso. À medida que progride a decadência, mais arrogantes se tornam as pessoas.
“Evidentemente, essa arrogância não tem o menor fundamento. Face a isso dependeremos exclusivamente da nossa capacidade. Os dados armazenados no cérebro revelam que há cerca de vinte mil anos do calendário terrano irrompeu uma terrível guerra entre os acônidas e meus antepassados.
“Tratava-se de direitos documentados, pretensões à autonomia, relações comerciais e outros pontos que constantemente têm surgido como causas de conflitos desastrosos. No chamado Sistema Azul, você deve ter notado que essa guerra ainda não foi esquecida, e os últimos acontecimentos provam que realmente não o foi. Os acônidas procuram remover o perigo representado por sua pessoa. Você se tornou um elemento perigoso, já que possui o sistema de propulsão linear.”
Rhodan fitou-me prolongadamente. Ao que parecia, nenhuma das minhas emoções escapava à sua atenção.
— Isso mesmo — limitou-se a dizer.
— O regente constatou com cem por cento de certeza que a eliminação de sua pessoa representaria o fim da Terra e do Império de Árcon. Por outro lado, você não conseguiria manter-se se eu deixasse de existir, já que controlo a frota espacial arcônida. Dessa forma pouco importa em que ponto os acônidas resolvam lançar seu ataque. Foi por isso que solicitei sua presença.
— Será que as informações fornecidas pelo regente realmente são tão inequívocas como o senhor acredita, sir? — perguntou Tama Yokida.
— São ainda mais inequívocas. No dia em que eu deixar de ser imperador, minha frota atacará a Terra. Quanto a isso não existe a menor dúvida. Se a Terra for enfraquecida por outro motivo, não mais poderei defender-me dos meus inúmeros inimigos. Será que posso começar?
— Um momento — disse Rhodan, em tom indiferente, levantando-se.
Senti-me curioso e, depois de algum tempo, fiquei inquieto. Seu rosto parecia tenso.
— Pois não.
— Recebi sua mensagem de rádio no momento em que me preparava para decolar. Pretendia, e ainda pretendo, dirigir-me mais uma vez ao Sistema Azul, a fim de procurar remover as causas dos conflitos.
O silêncio passou a reinar na grande sala. Rhodan observou atentamente minha reação às suas palavras. Não me sentia muito surpreendido. O projeto constituía um sinal do sentido sempre alerta para as necessidades estratégicas.
— Compreendo. Você acha que a comunicação que acaba de fazer é tão extraordinária assim?
O rosto de Rhodan permaneceu impassível. Apenas ficou um pouco mais pálido.
— Para falar com franqueza, acho. Não tive a intenção de informá-lo antecipadamente a este respeito.
Levantou-se e ficou à minha frente. Por um instante olhamo-nos fixamente.
— Então é isso...! — respondi em tom hesitante.
— Conhecemos a situação política interna do sistema de Árcon! — disse Rhodan, em tom apressado. — Achei que seria perigoso revelar minhas intenções agora.
— Você pode ter certeza de que eu não as teria revelado aos meus incompetentes ministros — disse em tom amargurado. — Quer dizer que você pretendia decolar sem que eu soubesse, apesar de termos sido atacados ao mesmo tempo. O que pretende fazer agora?
Mais uma vez entreolhamo-nos. Rhodan virou-se lentamente e voltou à sua poltrona. Uma vez acomodado, disse:
— Ainda bem que recebi sua notícia em tempo. Não supunha que as previsões mais sombrias dos pesquisadores terranos encontrassem uma confirmação tão crassa.
— Quer dizer que você mudou de opinião, administrador?
Rhodan limitou-se a sorrir. De repente pensei que compreendia por que não pretendia informar-me. Não passava de uma figura decorativa no trono de Árcon, muito embora fizesse tudo que estava ao meu alcance para corrigir as condições insustentáveis do império.
— Não me chame assim, amigo! De qualquer maneira, você seria informado sobre os resultados de nosso vôo.
Aquilo ao menos era uma informação positiva. Iniciei a apresentação, sem formular outras perguntas.
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— ...e então a décima-segunda esquadra de cruzadores espaciais, comandada pelo Almirante Talur, decolou a fim de executar o programa de contragolpe, que visava à destruição da base acônida de abastecimento de Tarkta, o quarto planeta do sistema central de Opogon. A Her-Akal, nave capitania, abrigava veículos auxiliares. Vejam a décima-segunda esquadra no ataque decisivo, que, depois de quatro anos de batalhas de retaguarda, representou uma contribuição decisiva à contenção da ofensiva dos antepassados.
A voz mecânica do regente superou o barulho das armas. As grandes telas tridimensionais de visão global mostravam um acontecimento que se desenrolara há 20.418 anos do calendário terrano.
O conflito entre os antepassados dos atuais arcônidas e o povo que então era formado por colonos novos, conhecidopelo nome de Guerra do Centro, irrompera apenas 182 anos após o início da colonização do grupo estelar M-13.
Os emigrantes, equipados com os recursos mais modernos dos antepassados, logo alcançaram a autonomia. Lançando mão de um contingente enorme de espaçonaves e armas de todos os tipos, conseguiram subjugar em menos de sessenta anos as inteligências de todos os graus de classificação que viviam no grupo estelar M-13.
E foi assim que surgiu o Império de Árcon. Cerca de 180 anos depois do dia em que a primeira nave com colonos pousou no planeta, houve uma reviravolta na política interna. Proclamou-se o absolutismo imperialista, e todas as resistências internas foram eliminadas implacavelmente.
O primeiro imperador foi Gwalon I que, sete anos depois da subida ao poder, proclamou a independência do novo império e, num ataque-relâmpago, procurou destruir as fortificações avançadas e as bases de suprimentos dos antepassados, situadas no grupo M-13.
A ação foi bem-sucedida.
Os antepassados retiraram-se, mas não o reconheceram como imperador. Depois disso houve a Guerra do Centro, que durou onze anos. No curso da mesma os colonos que, numa imitação quase perfeita do nome primitivo, passaram a chamar-se de arcônidas, envolveram-se nos conflitos mais violentos da História acônida.
Os numerosos filmes sonoros de cinegrafistas já falecidos mostravam cenas das batalhas travadas entre os arcônidas e os acônidas, que naquela época já habitavam o sistema solar central que Perry Rhodan descobrira por ocasião de um vôo experimental, realizado em março de 2.102.
Estávamos no dia 16 de dezembro de 2.102 mas, ao fitar a tela, tive a impressão de que a história exibida na mesma só se desenrolara há poucos instantes.
As frotas, que provavelmente eram as maiores que já percorreram a Galáxia, entraram em choque. Dezenas de milhares de espaçonaves de todos os tipos, entre as quais se viam os gigantes de oitocentos metros de diâmetro, espalhavam a morte e a destruição.
Esses acontecimentos apavorantes não concorriam para firmar meu prestígio diante de Rhodan. Os atos de meus antepassados representavam uma regressão à barbárie.
Ouvimos os comentários originais, que há vários dias eu já julgara muito duros. Mas agora, que os dois terranos se encontravam presentes, enrubesci de vergonha. Evitei olhar para Rhodan. Provavelmente ele sentia o que se passava comigo.
A atuação da décima-segunda esquadra de cruzadores chegou ao fim com a primeira aplicação da recém-criada bomba de gravitação.
Sistemas inteiros foram arrancados da estrutura espácio-temporal. Segundo rezava a tradição, o Almirante Talur fora o maior chefe da frota dos colonos. No entanto, agia sem a menor contemplação, tal qual o inimigo.
Senti-me satisfeito quando a reportagem cinematográfica chegou ao fim. Para concluir, o regente disse:
— A interpretação de todas as circunstâncias que prevaleciam durante a Guerra do Centro, com acréscimo dos novos dados, prova com cem por cento de segurança que nossos antepassados são idênticos aos acônidas. O tratamento dispensado a Sua Excelência Administrativa, Perry Rhodan, no mundo acônida, constitui prova evidente de que por lá a guerra ainda não foi esquecida. O perigo representado pelo sistema de propulsão linear dos terranos deve causar preocupações aos acônidas. Outros ataques, desfechados pela maneira já conhecida, deverão ser esperados.
“A existência de um campo defensivo azul e brilhante que, segundo os dados fundamentais, envolve um sistema solar inteiro, corresponde a um desenvolvimento científico-tecnológico extremamente avançado. Recomenda-se procurar um entendimento com os acônidas, ou então travar uma guerra de extermínio contra os mesmos. O mecanismo de propulsão linear dos terranos oferece a possibilidade de atravessar o campo energético, impenetrável para as naves saltadoras convencionais. Deve-se procurar enviar a frota robotizada com pelo menos dez mil unidades pesadas. O que se torna necessário são os mecanismos propulsores lineares.”
Lancei um olhar ligeiro para Rhodan, que se mantinha em sua poltrona articulada, respirando pesadamente e com os olhos fechados.
— Recusado!
Estremeci. Raramente ouvira Rhodan falar com tamanha frieza e reserva. O regente registrou o pronunciamento e processou-o. Alguns segundos depois, extraiu a conseqüência lógica do mesmo.
— Com isso a possibilidade de um ataque de surpresa torna-se ilusória, a não ser que os terranos consigam romper o Sistema Azul por meio das naves disponíveis, a fim de possibilitar a penetração de uma frota convencional.
— Poderemos falar a este respeito, caso as negociações pacíficas por mim pretendidas não sejam aceitas. Não vejo qualquer motivo para um ataque-relâmpago segundo o modelo arcônida, a não ser que os acônidas comecem a atacar a Terra, os mundos comerciais terranos ou o Império de Árcon. Nessa hipótese ver-me-ia obrigado a formular a declaração de guerra.
Rhodan falara no mesmo tom monótono de antes. Parecia profundamente comovido.
— Vossa Excelência não considerou a necessidade estratégica de um ataque desfechado sem aviso.
— A lógica da sua argumentação é sedutora, mas não se pode exigir de seres humanos que ajam em conformidade com suas recomendações.
Quanto a mim, não disse uma palavra. Rhodan sabia perfeitamente que nosso computador-regente não poderia usar outra linguagem. Suas comunicações eram o resultado de cálculos matemáticos. E a Matemática não conhece nenhum sentimento humano.
— Por enquanto não vejo nenhuma solução viável que não envolva certo risco para nós — disse a gigantesca máquina. — Recomenda-se a entabulação de negociações de paz, desde que os antepassados também as desejem. Prevejo com noventa e nove por cento de certeza que as tentativas nesse sentido serão inúteis. O comportamento que os acônidas adotaram por ocasião do pouso de Sua Excelência foi negativo. Os atos que se seguiram revelaram uma inimizade capital, e os acontecimentos que se seguirão levarão os dois impérios à beira do abismo. A superioridade técnica dos acônidas está demonstrada. Também possuem mecanismos propulsores lineares e, além disso, têm uma forma imaterial de transporte de matéria a grande distância. Recomendo encarecidamente uma ponderação coerente da minha exposição. Fim.
O regente desligou. Por um momento tive a impressão de que se sentia ofendido, o que evidentemente não passava de um absurdo.
A luz acendeu-se. Rhodan fitou-me com um sorriso forçado no rosto. Pigarreou fortemente. Senti que minha garganta também estava seca.
— Seus antepassados não tinham muita consideração uns pelos outros — disse, esticando as palavras. — Devo confessar que tive um pouco de medo. Não gostaria de tê-los como inimigos.
— Na época, o planeta Terra era habitado pelo homem-macaco. E para ele não havia o menor perigo.
— Isso é uma desculpa um tanto esfarrapada para justificar essa fúria, que atingiu até mesmo certos povos que nada tinham a ver com o conflito. Nunca concordarei em acatar o conselho do computador, para seguir as pegadas de seus antepassados. Decolarei dentro de uma hora.
Levantou-se rapidamente e olhou para o relógio. Quanto a mim, desisti de qualquer explicação para os atos dos meus antepassados. As palavras seriam incapazes de reparar o que quer que fosse.
Rhodan já sabia como fundáramos o grande império. Procurei raciocinar de forma coerente. Sua reação deixou-me indiferente, já que era da mesma opinião que ele. O procedimento dos velhos arcônidas era indesculpável. E o que havia sido pior fora seu ataque contra o sistema natal, fato que não deixei de mencionar.
— Naturalmente! — exclamou Rhodan em tom exaltado. — Naturalmente não havia nenhuma justificativa para isso. Não se deve atacar à traição o antepassado e mestre, logo depois que se julgue ter atingido um grau de maturidade que permita dispensar os seus serviços. Isso é um crime.
Olhei para o lado. Que resposta poderia ter dado a essas palavras?
Rhodan percebeu os sentimentosconflitantes que me enchiam, e com isso assumiu atitudes mais conciliadoras.
— O senhor não é culpado disso, sir — disse Tama Yokida.
Estava prestes a confirmar com um aceno, quando Rhodan estremeceu de repente. Atirou a cabeça para trás e fechou os olhos.
Minha mão esquerda subiu quase contra minha vontade, até tocar na chave que se encontrava sobre meu peito. Ouvi a advertência de Rhodan no momento em que meu gerador de campo defensivo começou a zumbir. Devia ter percebido alguma coisa que nem Tama nem eu ouvimos.
A mão de Rhodan pegou a arma e o corpo esguio entesou-se para dar um salto. Mas, naquele momento, aconteceu alguma coisa que nunca teria esperado ocorrer nos recintos hermeticamente fechados do centro de computação.
Enquanto meu campo defensivo se levantava, percebi uma luminosidade vermelha, que surgira junto às portas blindadas da sala de apresentação. Levei alguns segundos para compreender o que estava acontecendo, pois nunca vira um transmissor especial acônida e ainda mais com esse formato.
Rhodan deu um salto para a frente. Yokida seguiu-o. Continuei como que paralisado, quando o fenômeno luminoso passou a assumir contornos nítidos, transformando-se num portão escuro que dava para um recinto negro. Parecia que tudo atrás da linha arqueada vermelha se desfizera.
Movimentei-me a fim de abrigar-me atrás de uma das poltronas. Levei uma fração de segundo para notar os feixes de ondas verdes cintilantes que saíam do arco luminoso, enchendo a enorme sala.
Rhodan gritou alguma coisa que não entendi. No momento em que suas palavras morreram no ar e seu corpo esticado no chão enrijeceu, compreendi o que estava acontecendo no interior das instalações muito bem protegidas do centro de computação.
Meu cérebro adicional fez-me lembrar do relatório de Rhodan, quando este falara a respeito do estranho fenômeno. O fluxo de impulsos de radiações fora por ele designado como a luminosidade verde. Pelo que dizia, no planeta principal do Sistema Azul os acônidas procuraram colocar os tripulantes da primeira nave de propulsão linear fora de combate por meio do fenômeno. O efeito manifestava-se numa paralisação mais ou menos rápida dos reflexos nervosos, embora a capacidade de raciocínio, a visão e a audição não fossem afetadas.
Levei apenas um segundo até compreender. O arco energético era um transmissor acônida de matéria, da qual saíam os raios paralisantes. No momento não estava interessado em saber como o estranho aparelho pôde entrar no subterrâneo do regente. Só uma ação muito rápida poderia salvar-nos.
Sem dúvida, Rhodan ouviu meu grito, mas não conseguiu responder mais. Ele e Tama Yokida haviam sido surpreendidos, sem a menor proteção, pela luminosidade verde e viram-se colocados fora de ação mais depressa do que eu teria imaginado, face às informações fornecidas por Rhodan. Provavelmente aqui, na grande sala de exibições, estavam trabalhando com uma intensidade muito maior.
Também senti uma série de estranhos repuxos e contorções, que começaram junto aos tornozelos, para subir rapidamente pela barriga da perna.
O pânico fez com que me levantasse de um salto e saísse de trás da poltrona. No mesmo instante, o regente deu o alarma. Ouvi os uivos estridentes das sereias e o barulho dos apitos, que me infundiram nova coragem.
Se os robôs de guerra conseguissem atravessar com a necessária rapidez as pesadas portas de segurança, estaríamos salvos. A luminosidade verde em si não traria o menor perigo, enquanto não aparecesse ninguém que se aproveitasse da paralisia provocada pela mesma.
Atirei-me ao chão ao lado de Rhodan, cujo rosto estava desfigurado. Quando encostei a mão a seu corpo, tive a impressão de tocar numa tábua. O braço de Yokida também assumira a dureza da pedra.
Rhodan segurava a arma na mão estendida. Não chegara a atirar, pois não havia nada contra que pudesse disparar. O campo gerado pelo transmissor não poderia ter sido eliminado por meio de sua arma, ainda mais que não se via o menor sinal do respectivo aparelho de projeção. A única coisa que se via era o arco vermelho e seu interior negro.
Usei meu aparelho de comando para entrar em contato com o computador. Já desistira de avançar até a porta. Por lá, as radiações deviam ser ainda mais intensas, e estava interessado em manter-me ativo o maior tempo possível.
Minhas pernas começaram a endurecer. Apesar disso dei-me conta de que meu potente campo defensivo individual conseguira neutralizar por algum tempo o campo paralisante. Mas agora não conseguia proteger-me mais.
Num gesto desesperado levantei a pesada arma de radiações. Tentaria remover o arco vermelho do transmissor. No último instante consegui controlar-me. Provavelmente o raio térmico poderia derreter a porta que ficava bem atrás do fenômeno luminoso, a tal ponto que não mais seria possível abri-la sem o uso de meios especiais. Além do mais eu esperava a chegada dos robôs, motivo por que não deveria disparar.
Meu setor de lógica me dizia com toda insistência que a geração do campo e das radiações azuis devia ter alguma finalidade. Se alguém queria pôr outra pessoa fora de combate por esse meio, isso só poderia ser feito no intuito de colocar tal pessoa num estado em que ficasse totalmente incapaz de reagir.
Aguardei esse instante, que chegou menos de um segundo depois. Atrás do arco de radiações que se via na sala de exibição, tudo continuava imóvel.
Onde estavam os robôs de vigilância do computador?
Uma idéia terrível surgiu em minha mente.
Será que os desconhecidos utilizaram sua técnica avançadíssima para fazer com que os robôs não pudessem aparecer?
Não pude levar o raciocínio ao fim. Dentro do arco, o negrume começou a desmanchar-se. Uma ofuscante luz violeta surgiu. Dois vultos, usando vestes estranhas, se materializaram sob o arco.
Então eram estes os misteriosos acônidas, que já travaram uma luta tão encarniçada contra meus antepassados. Não poderia perder mais tempo. Meu corpo já estava praticamente imobilizado. A rigidez atingiu os ombros e começou a afetar a musculatura dos braços.
Reunindo as forças que me restavam, levantei a pistola térmica. Um dos acônidas notou. Saltou para a frente e dirigiu contra mim uma arma que eu não conhecia.
Apertei o gatilho.
Não tive oportunidade de dar um segundo disparo. Alguma coisa bateu com uma força terrível contra meu campo defensivo, que não mais conseguiu compensar a pressão.
Ouvi o uivo estridente do reator que trazia nas costas. No mesmo instante meu campo defensivo desmoronou. O outro intruso também disparara contra mim.
Privado do campo defensivo, fui atingido diretamente pela luminosidade verde, que me colocou de imediato num estado de rigidez total.
Ouvi passos. Alguém aproximou-se. Um rosto estreito e indiferente apareceu no meu campo de visão. O cano cintilante de uma arma estranha surgiu à minha frente, mas o desconhecido preferiu não mais disparar. Parecia saber que eu também fora atingido pela luminosidade verde.
Não se interessou mais por minha pessoa. Suas pernas, que mal e mal conseguia enxergar, saíram de meu ângulo de visão. Dali a alguns segundos notei pelos ruídos que um dos terranos estava sendo arrastado. Era Tama Yokida, conforme pude ver dali a pouco. Ainda consegui ver o arco do transmissor.
Depois disso foi a vez de Rhodan. O intruso arrastou-o para junto do fenômeno energético, empurrou o corpo imobilizado do administrador para dentro do arco e esperou que o processo de desmaterialização se concluísse.
Depois chegou minha vez. Não senti nada, enquanto estava sendo arrastado pelo chão. Fui empurrado para dentro do espaço existente entre as linhas de força. Não senti o fenômeno da desmaterialização. Apenas os sentidos, que ainda funcionavam, mergulharam numa névoa. Era um fenômeno análogo ao que costumava ocorrer durante as transições das espaçonaves.
Bem, não poderia ser mais do que uma transição em sentido mais amplo. Dediquei meu último pensamento ao centro de computação, que falhara lamentavelmente.Tivera tempo de sobra para intervir. Por que não acontecera nada? E como foi que os acônidas conseguiram introduzir um aparelho de transmissão para o interior do centro de computação?
Se isso aconteceu por ocasião do último ataque, durante o qual uma outra dimensão temporal se sobrepusera a todas as influências presentes, a montagem do aparelho seria perfeitamente explicável...
Mas nem por isso se explicava que este não tivesse sido descoberto depois da normalização dos efeitos temporais. Um aparelho como este não poderia deixar de irradiar impulsos constatáveis por meio dos instrumentos de medição. Por que esses impulsos não foram captados?
Não tive oportunidade de achar a explicação. De uma hora para outra meu raciocínio consciente foi apagado pela desmaterialização.
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4
Nela tudo era fascinante. Era uma daquelas mulheres que, graças à sua aparência e à sua conduta, sabem combinar o espírito com o charme.
Fitei-a com uma atenção persistente.
Notei a harmonia de seu rosto estreito e expressivo, e o vermelho-cobre de seu cabelo, que, sob os efeitos da luz, emitia reflexos fluorescentes.
Bela e, em seu conjunto, realmente chegava a ser fascinante. Sem dúvida, as arcônidas da época das conquistas eram como essa mulher. Não tive a menor dúvida de que era uma representante da raça dos antepassados.
Rhodan e Tama Yokida também haviam acordado. Ao que parecia, o restabelecimento no interior de um grande transmissor, montado numa estação cuja localização não nos era conhecida, fora instantânea.
Não sabíamos onde estávamos. Uma viagem pela estrutura superior do hiperespaço não oferece base para quaisquer conclusões sobre o tempo decorrido e as distâncias, que, de qualquer maneira, assumem caráter apenas relativista.
Estávamos deitados sobre estreitas camas de dobrar, nas quais havíamos sido colocados, antes que nossos corpos ficassem livres da rigidez provocada pela luminosidade verde.
Nesses leitos recuperamos o controle dos nossos músculos, mas isso praticamente não nos servia para nada.
O ruído de máquinas desconhecidas e outros sinais levaram-nos a supor que nos encontrávamos a bordo de uma espaçonave não muito grande.
Depois da moça, mais dois representantes do Império de Ácon entraram no pequeno camarote. Aqueles homens altos seguravam armas.
Poucos segundos depois da recuperação de minhas energias físicas, tive de constatar que me haviam tirado a mochila com o projetor e o conversor de energia. Apenas o ativador celular pendurado ao meu peito continuava no mesmo lugar.
Será que conheciam a importância vital que esse aparelho assumia para mim?
A moça — ou mulher — usava uniforme justo, do tipo que, segundo parece, costuma ser usado por todos os povos de astronautas. Apenas a pequena capa que lhe cobria o ombro parecia um tanto extraordinária. Esta peça de seu vestuário era feita de um material fluorescente violeta.
Fitou-nos um por um.
— Olá, Auris de Las-Toor, como vai? — disse de repente uma voz.
Era Rhodan. Falava um excelente arcônida antigo, o que também representava um resultado de seu extenso treinamento hipnótico. Evidentemente, eu também dominava a língua dos antepassados com igual perfeição. O fato surpreendeu-me, até que me lembrei de que, durante seu relato, mencionara uma jovem cientista acônida que, segundo se dizia, tivera certa participação no resultado feliz de seu vôo experimental. Seria esta moça? Meu interesse tornou-se ainda mais intenso.
Seu rosto moreno aveludado empalideceu. Se tivesse recebido a educação das moças arcônidas de outros tempos, as palavras de Rhodan deviam deixá-la chocada.
Um tanto tenso, aguardei sua reação. E esta foi exatamente o que eu esperava.
Os dois companheiros da moça lançaram um olhar contrariado para Perry, que naquele momento se erguia do leito. Um ligeiro movimento de mão da acônida serviu-lhe de advertência. Preferiu não colocar no chão o pé que já levantara.
Seu sorriso irônico fez com que mais uma vez a acônida mudasse de cor. Dali em diante não tive mais a menor dúvida de que conhecia Rhodan. O que a teria impressionado nesse terrano?
Teria sido o vulto esbelto, a expressão fria dos olhos, ou a aura misteriosa de sua imortalidade?
Rhodan não pôde deixar de irritá-la. Achei que na situação em que nos encontrávamos isso era perigoso.
— Quer dizer que acabamos por reencontrar-nos — disse com a voz tranqüila. — É bem verdade que esse reencontro se dá em circunstâncias que fazem parecer bastante duvidosa a disposição pacífica de seu povo.
A moça enrolou os dedos longos e finos na borda da capa.
— Peço-lhe encarecidamente que só fale quando lhe pedirem que o faça — disse em tom áspero. — Não lhe cabe fazer uso da palavra antes do anfitrião.
Não me senti nem um pouco surpreso.
Já conhecia os usos e costumes de meus antepassados, face aos estudos que tinha realizado. A palavra anfitrião devia causar uma impressão bastante estranha em Rhodan. Provavelmente não sabia que o termo costumava ser empregado mesmo nos casos em que não era adequado.
Rhodan logo exibiu seu tristemente célebre sorriso.
— Será que ouvi bem? A senhora falou em anfitrião? Não me lembro de ter sido convidado ou ter vindo espontaneamente. Acho que a senhora está fazendo confusão, madame.
Continuava a sorrir. Os dois acônidas olharam para além dele, como se não existisse. Por ordem minha, o regente interpretara os relatórios dos membros da expedição terrana. Dessa interpretação se depreendia que tanto os terranos como os arcônidas eram considerados uma espécie de praga.
Pela primeira vez na vida, senti na própria carne a arrogância com que os representantes de meu povo haviam tratado as outras inteligências galácticas durante muitos milênios.
Provavelmente não viam em mim o imperador de um grande império estelar, mas um cacique de colonos que caíra na barbárie e não fazia uso de boas maneiras.
Rhodan não tinha a mesma paciência e compreensão que eu. Um brilho de cólera surgiu em seus olhos.
Levantou-se, sem dar a menor atenção às armas que o ameaçavam. Auris de Las-Toor parecia insegura. Seu olhar dizia tudo. Então era isso que a fascinava em Rhodan. Aquele homem, que não passava de um arrivista vindo de um sistema planetário insignificante, que permanecera desconhecido até poucos anos atrás, atrevia-se a enfrentar abertamente os representantes de um povo superior. Foi assim que tratou, muitos decênios antes, os representantes de uma expedição científica arcônida. Em virtude disso, uma arcônida pertencente a uma das famílias mais nobres tornara-se sua esposa; e um dos principais cientistas arcônidas, seu melhor amigo.
Levantei-me num gesto exaltado. Meus olhos doíam. Auris dedicava sua atenção à minha pessoa. Embora achasse que agia erradamente, resolvera adotar a tática de Rhodan.
— Vocês estão falando com o soberano de um império planetário — disse em tom enérgico. — Sou o Imperador Gonozal VIII, que governa o Império de Árcon. Exijo uma explicação de seu comportamento injustificável, que não corresponde às boas maneiras nem aos usos diplomáticos.
A moça lançou-me um olhar estranho. Seus acompanhantes mantinham-se num silêncio obstinado.
— Sei com quem estou lidando — disse Auris.
— É justamente por isso que exijo informações sobre as finalidades das medidas adotadas que, conforme as circunstâncias, poderão levar a um conflito sério entre nossos povos.
Auris fitou-me com uma expressão que representava uma mistura de compaixão, interesse e orgulho.
— Não recebi instruções para dar atenção aos seus argumentos pouco convincentes.
— Quais são suas instruções? — indaguei.
— Estas “instruções” representam um seqüestro e um crime — acrescentou Perry.
O rosto de Auris mudou de cor. Em seus olhos escuros surgiu um brilho de cólera. Estes olhos apresentavam um pouco de semelhança com os das arcônidas modernas.
“Isso é um sinal da degenerescência já verificada”, avisou o setor lógico de minha mente.
— As decisões do Conselho Governamental

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