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1 Fiódor Dostoiévski e Gilbert K. Chesterton António Campos Sociedade Chesterton Portugal Março 2015 2 Índice Capítulo I - Fiódor Dostoiévski………………………………………….………..3 Capítulo II – Eu, Fyodor Mychailovich…………………………………………10 Capítulo III – Chesterton, Os Amigos e…Dostoiévski………………………..18 Capítulo IV – Dostoiévski e Chesterton………………………………………..25 Capítulo V – O Homem Comum ………………………………………………..31 O Solipsista……………………………………………………………..31 Do Caminho Largo ao Caminho Estreito………………………….....34 3 Capítulo I - Fiódor Dostoiévski (1821-1881) Hoje, 22 de Dezembro, levaram-nos até à praça Semionovskaya, onde nos leram a todos a sentença de morte, nos permitiram beijar a cruz e nos enfiaram as camisas brancas para irmos ao encontro da morte. Amarraram os três primeiros ao poste e executaram-nos. Executavam três a três, eu era o sexto; tinha um minuto de vida. Ouviu-se um toque militar de retirada e comunicaram-nos que Sua Majestade Imperial nos concedia a vida. Acusado de atentar contra a segurança do Estado, Dostoiévski foi privado do seu título de nobre, da sua graduação militar (tenente) e dos seus direitos civis. Cumpriu a sua condenação em Omsk, no presídio militar, entre Janeiro de 1850 e Fevereiro de 1854. Serviria como soldado raso na Sibéria até 1859. Em 1860 publicaria Memórias da Casa dos Mortos: “Vivíamos amontoados todos numa barraca. No Verão havia uma intolerável proximidade; no Inverno um frio insuportável. A sujidade, no chão de madeira podre, tinha cerca de três centímetros de altura, fazendo-nos escorregar e cair. Pulgas, percevejos e baratas pululavam; estavam no seu meio. As janelas tinham três centímetros de espessura de gelo. Do tecto, goteiras e correntes de ar. Dormíamos sobre tábuas nuas e estendíamos sobre nós os sobretudos de pele de ovelha que deixavam os pés destapados. Passávamos a noite toda a tiritar”. Na prisão de Omsk, uma dúzia de prisioneiros pertenciam à nobreza; os restantes, rudes e agrestes, tinham-lhes um ódio infinito: “Receberam-nos com hostilidade e alegravam-se com a nossa desgraça. Eram cento e cinquenta inimigos que nunca se cansavam de nos atormentar. Era inimaginável a miséria de todo o primeiro ano na prisão. A contínua aversão com que me tratavam, por eu ser fidalgo, envenenou toda a minha vida”. Um dia, deitado naquele chão infecto, Dostoiévski lembrou-se de um episódio da sua infância: tinha nove anos e ouviu um grito de alerta de um lobo a rondar o bosque. Desatou a correr para fora do bosque, em direcção a um rude camponês que estava a lavrar para o seu pai. Marey interrompeu o seu trabalho, sorriu para a criança atemorizada e trémula e, como uma mãe, fez sobre ela o sinal da cruz. Assegurou-lhe que não existia lobo nenhum, que fosse para casa descansado e que a partir dali nunca o perderia de vista. Esta recordação, “foi Deus quem contemplou lá do alto a ternura delicada, quase feminina de um rude camponês, profundamente ignorante, que não poderia ter olhado para mim com mais amor, ainda que eu fosse seu filho único”, originou uma mudança radical na sua atitude para com os colegas de prisão: 4 “Levantei-me do soalho e vi aqueles desgraçados com um olhar radicalmente diferente. Todo o ódio e todo o rancor se desvaneceram do meu coração”. Descobriu que a maioria dos camponeses era muito melhor do que ele suspeitava: “Era gratificante descobrir o ouro por baixo da dura cerviz. Alguns deles eram fantásticos. A um moço condenado por assaltar nos caminhos, ensinei-lhe a ler e a escrever; encheu-me de agradecimentos. Outro chorava ao despedir-se de mim; costumava dar-lhe umas moedas…uma ninharia”. Impressionou-o particularmente o impacto do Natal, quer nos presos quer na população civil: “Muito poucos se embebedavam e todos se comportavam com seriedade. Os presos sentem que pela observância do Natal estão em contacto com o género humano e com o resto do mundo. Não havia na cidade uma única mãe de família que não enviasse alguma coisa que tivesse preparado, como saudação natalícia”. Pouco depois de ter entrado para a prisão, uma menina dos seus dez anos aproximou- se e colocou-lhe uma moeda na mão: - Toma este Kopeck em nome de Cristo! Dostoiévski guardou a moeda como um tesouro durante muitos anos. De futuro opor- se-á a todos os que tentam substituir a caridade cristã por uma mera ética. Experimentou o cristianismo em circunstâncias que teriam suprimido qualquer moral: “Antes de entrar na prisão, umas mulheres aproximaram-se, benzeram-se e entregaram-nos o Novo Testamento, o único livro permitido na prisão. Mantive-o debaixo da almofada nos meus quatro anos de trabalhos forçados. Com ele ensinei a ler um prisioneiro”. A partir desta experiência, nunca mais entenderá Cristo como um conhecimento teórico ou uma ideia sublime. Cristo seria a pessoa mais bela, razoável, profunda, compreensiva, viril e perfeita – nada há de melhor, nem pode haver! Dostoiévski morrerá com 60 anos, mas terá vivido séculos de tormento: “Deus açoitou-me toda a vida!”, dirá Kirilov. 5 Tolstoi vive na órbita de Schopenhauer, quer atingir o nada, o niilismo, a não violência, a paz totalitária, o sincretismo religioso: “Sinto que não posso viver, já não possuo desejos, a vida é absurda”. “A base do mal é a propriedade”, indica o latifundiário burguês Tolstoi, que viria a tornar-se o ícone da juventude. “A base do mal é a morte, mesmo a de animais", afirma o vegetariano Tolstoi. A base do mal é o prazer, pelo que devemos procurar o asceticismo: “aquele que fita uma mulher, mesmo a própria esposa, já cometeu adultério”, indica o Tolstoi dos 13 filhos e das várias infecções venéreas. “No camponês, no mujique, está a verdadeira virtude”, indica o milionário novelista. Tolstoi indica um caminho mas nunca é capaz de o seguir. “Os sentimentos da nossa sociedade resumem-se a três: o orgulho, a sensualidade e o cansaço de viver”. Tolstoi via-se ao espelho: por várias vezes pensou no suicídio, mas apenas Ana Karenina o executou. Apaixona-se por Rousseau, passa a trazer a sua fotografia num medalhão: “A solução para o problema individual não é bastante, ela deve servir toda a humanidade”. Tolstoi quer mudar o mundo, funda uma religião, mas aparta-se do homem. Tolstoi via o homem como um ser tão negativo, que chegou a defender a extinção total da humanidade pela prática do celibato universal. Morre afogado no seu drama: “ Tanto dinheiro, luxo e celebridade. Para que me serviram? Quanto ao mal, à indigência à minha volta, nada pude fazer!”. Um dos maiores novelistas de sempre morre, em 1910, no drama de não se poder evadir de um conforto material que ele condena. Tudo na sua vida foi uma estranha mistura do estúpido e do sublime. 6 Dostoiévski encontra o seu verdadeiro mundo no abismo do coração humano. As suas personagens, de carne e osso, vivem sempre a inquietação do espírito: tímidos, medrosos, humilhados, confusos, desassossegados…Permanentemente, perante o mistério, procuram a verdade, aos tropeções: “Quem sou? Que faço neste mundo? Que posso esperar de Deus?”- Dostoiévski transporta a angústia da criatura concreta perante o silêncio de Deus. O seu mundo situa-se no céu da religião, obcecado pelos problemas eternos. Dostoiévski não quer mudar o mundo, quer tentar compreender o caminho do ser humano. “Preciso de Deus porque é o único ser a Quem sempre se pode amar”. Alioscha e Ivan Karamazov exprimem o pêndulo entre a fé e a incredulidade. Precisar de Deus e não o ver claramente, eis o suplício. Mas o Deus do silênciotambém fala: fala pelo exemplo das pessoas santas, pela beleza da natureza e, sobretudo, pelas páginas bíblicas. Quando Nietzsche nasce, o super-homem estava na moda. Kant tinha falado do homem numénico, o legislador supremo; Hegel tinha falado dos mais fortes que se deveriam impor pela força. Em 1865, tinha Nietzsche 21 anos, surge Rodian Raskolnikov: vive em Crime e Castigo desde então, decidido a provar à machadada a sua condição de super-homem. Quer provar que um homicídio é equivalente a um espirro ou a um passeio: “O meu crime? Que crime? Será crime matar um parasita vil e nocivo? Tenho a consciência tranquila”. Raskolnikov segue o caminho do seu criador e termina na prisão. A sobreposição autobiográfica não termina aqui. É também na prisão que mudará dramaticamente. Um dia tem um sonho em que uns estranhos micróbios provocam uma estranha forma de loucura: o infectado fica convencido que está na posse absoluta da verdade. A epidemia alastra e provoca discussões intermináveis, pois ninguém admite ceder. As relações sociais e familiares dissolvem-se e o mundo torna-se um manicómio. Os 7 homens infectados têm raciocínios lógicos, mas subjectivos, que não guardam relação com a realidade das coisas. - Que havemos de fazer com um super-homem mentalmente desequilibrado? Para além da moral e da consciência situa-se o abismo da loucura. Valerá a pena pagar pelo super-homem o preço de um psicopata? – questiona Dostoiévski. Nietzsche responderia mais tarde à sua pergunta. Mas, contrariamente a Nietzsche, Raskolnikov encontra a sua redenção. Na forma em que a maioria dos homens encontra a sua. Sónia tinha um passado duvidoso, mas um coração de ouro: - Derramaste sangue! Quando sente o seu amor por ela, percebe que ela tem toda a razão. Não existem argumentos, nem discussão, nem faz falta a lógica. Uma coisa tão natural como o amor corrige a razão e destrói as argumentações lógicas do super-homem. Rodian sabia que a toda a palavra, outra se lhe poderia opor; mas não encontrou palavras que se comparassem às de Sónia. - Porque é que tu rezas? - pergunta-lhe. Ele pensou que Sónia o aborreceria falando- lhe continuamente nas escrituras. - Cala-te! Que seria de mim sem Deus? Faz tudo por mim - responde Sónia, baixando o olhar. Sónia teve que se vender para suportar a sua vida miserável, mas a sua vitória não é intelectual, não é baseada em argumentos, mas na grandeza do seu coração. Era essa grandeza de coração que lhe permitia abandonar-se a si mesma e partilhar o destino dos outros. Foi essa mesma grandeza que fez com que Sónia nunca lhe tenha tocado nas escrituras. Ele mesmo lhe tinha pedido o livro, mas não o tinha aberto. Apenas pedira a Sónia que lhe lesse a passagem de Lázaro em que Cristo demonstra o seu poder sobre a morte. Mantinha o livro sob a almofada: - Será possível que a crença dela seja também a minha? Poderei eu ter uma fé diferente da dela? Deus ama e perdoa aquele que aceita o sofrimento da sua vida. Diz-lhe Sónia: - Aceita o sofrimento. Tens que fazer isso para te salvares. Depois vem a mim que eu carregarei a tua cruz e então rezaremos e caminharemos juntos. Ippolit, de O Idiota; e Kirilov, de Os Demónios, justificam o suicídio, porque “o homem é o senhor do próprio destino”. 8 Suprimido Deus, o homem torna-se o único senhor do seu destino, a última instância de apelo. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação à vida diminui, e a perda do vínculo e do sentido último da vida conduz inevitavelmente ao suicídio. Estes comandantes da nova era trouxeram a noite sobre a Rússia mas também a sede pelo seu Deus. A imortalidade, ao prometer a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana, é porque ela espelha a própria natureza do ser humano, provando que a imortalidade existe. Nesta crença reside a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência geral para a humanidade. Um Deus que perdoa os seus filhos é um Deus que transborda de alegria. Dostoiévski e os seus personagens não só estão convencidos disso, como se emocionam com isso: - Entrai também vós bêbados. Entrai vós os de carácter fraco e dissoluto. – dirá. Sois uns brutos e levais a marca da besta, mas vinde a Mim. Então os sábios e os prudentes perguntarão porque os acolhe. - Acolho-os porque nenhum deles se julgava digno desta honra. - Então abrirá os braços para nos acolher e nós lançar-nos-emos neles a chorar. Dostoiévski foi um dos autores mais rotulados. Tudo lhe assenta: ateu, agnóstico, um dos fundadores do existencialismo. Talvez seja mais sensato ouvir as palavras do próprio Dostoiévski do que ouvir aquilo que os entendidos dizem que ele disse: “Os ignorantes troçaram do obscurantismo e do carácter retrógrado da minha fé. Mas esses imbecis nem sequer concebem uma negação de Deus tão forte como a que eu manifesto no romance (Os Irmãos Karamazov). Em toda a Europa não se encontra uma expressão tão forte de ateísmo. Portanto, eu não creio em Jesus Cristo como uma criança. Foi pela prova da dúvida que consegui o meu hossana.” Nicolai Berdyaev (1874-1948) diria, em Solidão e Sociedade, “a filosofia…é a percepção criativa, pelo espírito, do real significado da existência humana”. 9 Notas: 1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoiévski. Editora Panamericana Lda, Rio de Janeiro, 1926. 2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O Público, 1997. 3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951 4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de Coimbra, 2010. 5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous Novelists. Arden Library,1982. 6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky 7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche. www.erealizacoes.com.br/renegirard 8 - http://wearetime.blogspot.com.br/2013/09/ensaios-de- interpretacaodostoievskiana.html 9 - http://www.biography.com/people/leo-tolstoy-9508518?page=1 10 – http://wearetime.blogspot.com.br/2014/01/dostoievski-sobre-o- conservadorismo.html 10 Capítulo II - Eu, Fyodor Mikhailovich “Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto.” Jo 12:24. A minha família era originária da Lituânia, católicos, de sangue escandinavo, muito pobres. Emigraram para a Ucrânia e trocaram a sua religião pela religião ortodoxa. Era uma tribo de intelectuais nómadas à procura de alimento e das respostas últimas para os eternos problemas das almas. O meu pai era médico e trabalhava num hospital de indigentes, a nossa casa era-lhe sobranceira. Um muro alto separava a nossa casa do jardim dos doentes. No Inverno, o vento gélido de Moscovo sibilava e congelava os corpos semi-adormecidos e enrolados nos bancos do jardim; no Verão, o vento continental quente trazia- me a falta de asseio, os velhos que se consumiam na doença e na decadência e as crianças estropiadas que sorriam, num sorriso desdentado e simples, como os farrapos que vestiam. Percebi o terrível paradoxo da vida: uma natureza poética e bela na qual se desenrola o sofrimento humano. O meu pai surpreendeu-me uma noite a esgueirar-me para o jardim dos doentes. Furioso, fechou o portão e ordenou-me que jamais o voltasse a abrir: - Constrói um muro à volta de ti mesmo. Conserva-te a salvo do contágio dos colegas. Mas eu não deixava de sentir compaixão por todo aquele sofrimento. Decidi dar-me umasova por dia para partilhar o sofrimento dessas pobres almas. Sofrimento no meio da beleza. É necessário sentir dor para que se possa entrar num jardim. Aos dezasseis anos o meu pai inscreveu-me na Escola de Engenharia de São Petersburgo. Foi um choque. Eu era um totó, mas era tomado por um snob. A mulher era para mim um ser tão estranho e esquivo como uma doninha e tão fascinante e belo como uma marta. Em contrapartida, os meus colegas já sabiam tudo o que há para saber sobre mulheres e sexo. Escarneciam de mim, da minha timidez e embaraço, da minha pele alba e cerácea. A minha companhia eram os meus sonhos, sonhos de algo grande e belo, sonhos de escrever um drama romântico. Esqueci os conselhos do meu pai e juntei-me a esses rapazes. Bebíamos vodka, recitávamos Putschkin e pecávamos com as mulheres. O meu pai invariavelmente 11 recusava os meus pedidos de dinheiro. A morte do meu pai deixou-me órfão, mergulhei nas trevas da noite. A noite encontrava-se povoada de sombras, visões aterrorizadoras e fantasmagóricas. Agora que conhecia a cabeça do povo russo, queria conhecer-lhe o coração sofredor. Parece que um homem solta a língua à frente de um copo de vodka, mas eu olho de soslaio, sou tímido e tenho cara de poucos amigos. Como ouvir um homem, com a cabeça baixa e os ouvidos bem abertos? Numa partida de bilhar! Eu era um péssimo jogador: perdia dinheiro, mas ganhava sabedoria. E assim surgiu Gente Pobre. Homens feitos pela metade, idiotas com olhos bonitos e membros retorcidos. Eu não via sentido para a sua vida. A obra foi um sucesso, muito pela mediação do poeta Nekrasov e do crítico literário Bielinski, que adorava o realismo e considerou o livro o primeiro do género na Rússia. Voltei pois para os intelectuais e Bielinski abriu-me as portas de par em par. Os intelectuais eram a chave do progresso do homem; eles mudariam a face da Rússia, derrubariam o Czar e ergueriam uma república de homens livres. Não era nenhum Deus, mas sim o Homem, o resgate da humanidade. Será a razão que nos levará do sofrimento ao êxtase. Entrei para uma comunidade hermética e iniciática, o Círculo Petrashevski, um grupo de fanáticos radicais, inimigos do Czar. Nikolai Spechniev inspirou-me para escrever Os Demónios, onde é Nikolai Stavróguin. A organização permaneceu secreta até após a queda do regime, pois só se tornou conhecida em 1922. Já não ia às reuniões há 3 meses quando fui preso, em 1849. Poupado ao fuzilamento, fui deportado para a Sibéria. Na primeira paragem do comboio, uma mulher entregou- me uma bíblia e uma nota de 25 rublos. Com ela comprei tabaco, sabão, pão branco e roupa branca. As minhas mãos habituadas à caneta conheciam agora as agruras do trabalho forçado. Na prisão tinha-se revelado a minha epilepsia da qual tinha ataques periódicos. É verdade que o Freud afirmou mais tarde que se tratava de uma histeria, por complexo da morte de meu pai. A sua afirmação leviana expressa apenas a sua própria circunstância e não contém qualquer 12 fundamento científico. Um homem esquece sempre que as palavras que profere nos dizem mais sobre o emissor do que sobre o destinatário. No entanto, ele tirou proveito material da fantasia que escreveu, Dostoiévski e o Parricídio. A verdade é que a terrível experiência da prisão colocou-me na rota do transcendente. Passei a compreender que o Homem não conseguia redimir os irredimíveis, não conseguia encontrar um sentido para a vida dos brutos e dos miseráveis. Além disso não encontrava equilíbrio entre o crime e a maldade do homem nem entre o castigo imposto pelos tribunais e a vontade de Deus. Deus salva muitos daqueles a quem os homens punem. Deus salva tanto o justo como o pecador. Desta experiência resultou Memórias da Casa dos Mortos, o volte face. A mudança profunda que sofri após os dez anos na Sibéria descrevo-a em O Diário de um Escritor na boca do mujique Marei: Sou filho da descrença e da dúvida, até ao presente e mesmo até à sepultura. Que terrível sofrimento me causou, e me causa ainda, a sede de crer, tanto mais forte na minha alma quanto maior é o número de argumentos contrários que em mim existe! Nada há de mais belo, de mais profundo, de mais perfeito do que Cristo. Não só não há nada, mas nem sequer pode haver. Saído da prisão, em 1854, ainda na Sibéria, fui obrigado a servir como soldado por mais quatro anos. Apaixonei-me pela mulher do comandante, Maria Dmitrievna Issaïeva. Ela era uma loira bonita, de média estatura e delgada, exaltada e ardente. O marido estava à morte. Já contava trinta e cinco anos e era a primeira vez que estava apaixonado. Mas pensava que deveria viver como celibatário e que jamais me deveria casar. O marido morreu em 1857 e nós casámos. Voltei à Rússia. Maria entretanto adoeceu com tuberculose, a doença de seu marido, a sua face estava irreconhecível. Lembrei-me da minha infância e do jardim dos doentes. Os sãos de um lado do muro, os doentes do outro lado…os doentes devem morrer, os sãos sobreviver. Em Dezembro de 1859 permitiram-me regressar a São Petersburgo. Publico Humilhados e Ofendidos. Entretanto, Memórias da Casa dos Mortos tornou-se um grande sucesso. 13 Os anos de 1862-63 trazem-me viagens pelas cidades europeias e…Apolinaria Pankratievna Suslov. Esta jovem estudante marxista escrevera-me uma carta de amor no final de uma conferência. Ela era friamente voluptuosa. Até no amor era uma atormentadora. Seria capaz de cometer um crime com a maior indiferença. Era por vezes gélida, como o gelo do Inverno, no entanto nunca vi mulher tão sensual. Entretanto escrevo Crime e Castigo, onde descrevo o super-homem, Raskolnikov. Apolinária escorraça-me, atormenta-me, obriga-me a seduzi-la e a odiá-la. Ela trai-me e eu imploro-lhe continuamente que não me exclua da sua vida; de joelhos, em lágrimas, peço-lhe que não me exclua do seu quarto. Recebo entretanto a notícia de que a minha mulher, Maria Dmitrievna, está nas últimas. Resolvo voltar a São Petersburgo. Contrato uma estenógrafa e secretária para acelerar o termo de Crime e Castigo. Ana Gregorievna sentiu-se particularmente impressionada naquela manhã ao ver-me escrever ao lado da minha esposa moribunda. Maria morre em 1864 e logo depois o meu irmão Mikhail. Fico com os seus quatro filhos a cargo, bem como com o meu irmão alcoólico, Nikolai, para já não falar em dívidas na ordem dos 25 mil rublos. Edito Cadernos do Subterrâneo, que exerceria uma influência marcante em Nietzsche, Tolstoi e Sartre. Lembro-me desse rapaz alemão, o Nietzsche, pelas comparações que se fizeram comigo. Até disseram que eu iniciei o existencialismo e o niilismo. Quando eu terminei Crime e Castigo esse rapaz tinha 21 anos. Ainda andava na sua fase pessimista. Alguns dizem que ele partilha comigo, como princípio de partida, a ideia de que o homem é livre de determinar o seu destino, embora essa liberdade lhe acarrete angústia e sofrimento. Entretanto, eu não compreendo como se é livre num determinismo de eterno retorno. Mas a diferença maior não se encontra no ponto de partida, mas sim, no ponto de chegada: é que enquanto eu chego ao homem-Deus, i.e., Cristo, ele deifica o homem e inventa a sua fantasia do super-homem, o monstro que quer ser Deus. Eu não necessito odiar o homem nem matar Deus. Eu mantenho o homem sem ser dissolvido em Deus e Deus sem engolir o homem. A minha obra tem uma tendência para construir e não para destruir, o meu estado de alma impele-me para a afirmação e não para a negação. Eu creio que o homem e o seu destino passam pelo destino da liberdade e o seu preço: a purificação e a libertação. Sem liberdade o homem não existe. O caminho da liberdade é o caminho do sofrimento que deve ser percorrido pelo homem. Eu concebo a relaçãodo homem com Deus, com todas as angústias da acção das trevas. Eu compreendo a natureza do niilismo, mas eu sou anti-niilista. Esse rapaz leu o meu livro, Cadernos do Subterrâneo, que comprou numa livraria em Nice e que o influenciaria profundamente. Mas ele nunca fala dos momentos negativos da sua experiência, pelo contrário, afunda-se neles. Essa é a sua loucura. Ele dirá que 14 eu exprimo, de um modo que ninguém alguma vez fez, as oscilações do mundo moderno, da consciência humana, entre a exaltação e a depressão. Fá-lo apenas para deixar clara a sua participação. Mas eu fugi da minha loucura, por meio da força satírica, pela porta da religião. Ele deixou-nos a sua ilusão, que ainda vivemos. A ilusão em que cada um se sente plenamente vitorioso num universo em que todos se encontram derrotados e perdidos. Por isso ficou demente. As descrições clínicas que ficaram dos médicos de Nietzsche são atrozes e apavorantes; por isso geralmente se omite que ele teve a pior das derrotas: morreu louco! Em 1865 sai Crime e Castigo e, em vinte e seis dias, escrevo O Jogador, para Ana Gregorievna. Ela tinha vinte e quatro anos, eu mais vinte: - Fyodor Mikhailovich, duas montanhas não poderão unir-se, mas dois seres humanos sim. Casei-me de novo. Para fugir aos credores fomos viver para Dresden, Genebra, Milão, Florença e novamente Dresden. Em 1868 morre a minha primeira filha, Sónia. Fico arrasado. Publico O Idiota: O príncipe Myshkin é epiléptico como eu, idiota como eu. Este príncipe é um simplório, confiante na natureza humana, apesar da malícia humana. Há uns patifes que lhe batem e o roubam e ele não ergue um dedo para os deter. Recusa ser “esperto” diante dos expedientes humanos, tudo perdoa porque acredita na bondade humana. É isso que exaspera os adversários. Apercebem-se que ele não é um tolo, apenas vive num nível superior ao deles. Também, como eu, ele teve uma paixão por uma decaída. Uns jovens sentam-se na minha mesa à hora em que tomo chá. Querem derrubar o Czar e estabelecer uma república como a americana ou a francesa. Eu replico: - Parem! Para regenerar o mundo não precisamos de um acto de violência, mas de uma acção grandiosa, de uma grande revolução interior. 15 Perguntam-me como é possível insuflar em todos os homens a inspiração que os leve a praticar essa acção grandiosa, essa revolução interior. - Porque precisam vocês de todos os homens? – respondo eu. Não compreendem o poder que pode ter um homem justo? Apareça um nessas condições e todos o seguirão. Em 1879, escrevo Os Irmãos Karamasov, uma obra-prima. Nele relato o caminho da dúvida até à fé, na conversa entre Aliosha, o místico, o seu irmão Ivan, cínico e prático, e o pai de ambos, Fiódor: - Pela última vez, Ivan, e de forma categórica, Deus existe ou não? - Em absoluto, não! - Então quem é que troça do mundo? - Provavelmente, o diabo – gracejou Ivan. Nele relato o Deus da alegria, nas palavras do terceiro dos irmãos, Dimitri, o apaixonado impulsivo, positivista: - Que grande é a ciência que explica tudo. No entanto falta-lhe Deus. Não matei o meu pai mas aceito a expiação. Estaremos acorrentados, privados de liberdade, mas da nossa dor ressuscitaremos para a alegria sem a qual o homem não pode viver nem Deus existir, pois é Ele quem a concede: é o seu grande privilégio. Um condenado pode passar menos sem Deus do que um homem livre. Nele relato o Deus do perdão, na conversa entre o starets Zósima e a camponesa homicida: - Há três anos que sou viúva. Era impossível viver com o meu marido. Era velho e batia-me muito. - (…) Não temas. Enquanto houver arrependimento, Deus tudo perdoa. O amor tudo redime e tudo salva. Se eu, que sou um pecador como tu, me emocionei e senti piedade de ti, com mais razão a sentirá o Senhor. O homem, e não o mundo, é o meu objecto. Esse anjo-demónio, sábio na sua loucura, louco na sua sabedoria. Aos meus idiotas, sábios, criminosos, santos, eu faço as grandes perguntas da vida. Os homens quando estão zangados falam em fraternidade e humanidade…Quando cometeram crimes inventaram a justiça; para manter os códigos da justiça inventaram a guilhotina. Entretanto apareceram uns homens que começaram a meditar em como podiam ser tão unidos entre si que cada um, sem deixar de se amar a si próprio acima de tudo, não se atravessasse no caminho dos outros. Por essa ideia foram feitas várias guerras. Chorei por eles. Ele virá, o Deus- homem, a quem o mundo tratou malevolamente de Idiota. Ele virá, esse Idiota- Salvador, a esta terra onde o Homem parece real e é espectral e onde Deus parece espectral e é real. 16 Chegámos a 9 de Fevereiro de 1881, tenho 60 anos. Ocorre-me que não se deve zombar da vida nem temer a morte. Uma estranha caquexia tem-se apoderado de mim. A tuberculose é a doença que recebi por herança do comandante da guarnição da Sibéria, por meio de Maria, a minha primeira mulher. Ana, a minha segunda mulher, e os meus filhos colocam círios em volta do meu cadáver. O significado da vida não está na transmissão de coisas materiais de geração em geração, mas sim na transformação do homem, de bruto em anjo, de pecador em santo. Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso fazer mais; todo o mundo é capaz de compreender. Trata-se da verdade antiga, repetida milhões e milhões de vezes, e que, entretanto, não criou raízes em lugar nenhum. É necessário continuar a repeti-la. Sou bastante fraco em filosofia (mas não no meu amor a ela; no meu amor a ela sou forte). Notas: 1 - Berdiaeff, Nikolai. O Espírito de Dostoievski. Editora Panamericana Lda, Rio de Janeiro, 1926. 2 - Queiroz M: Leon Tolstoi (1828-1910): Oitenta vidas que a morte não apaga. Ed. O Público, 1997. 3 - http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/7752/4951 17 4 - José Ramón Ayllón. Dez Ateus que Mudaram de Autocarro. Ed. Gráfica de Coimbra, 2010. 5 – Thomas H, Thomas D L: Fyodor Dostoyevsky, Living Biographies of Famous Novelists. Arden Library,1982. 6 - http://en.wikipedia.org/wiki/Fyodor_Dostoyevsky 7 - O Sentido da História. Höderlin, Dostoievski e Nietzsche. www.erealizacoes.com.br/renegirard 8 - http://wearetime.blogspot.com.br/2013/09/ensaios-de- interpretacaodostoievskiana.html 9 - http://www.biography.com/people/leo-tolstoy-9508518?page=1 10 – http://wearetime.blogspot.com.br/2014/01/dostoievski-sobre-o- conservadorismo.html. www.erealizacoes.com.br/renegirard 18 Capítulo III - Chesterton, os amigos e…Dostoiévski “Tudo é bom e belo porque é verdadeiro…Uma vez que a Palavra é para toda a criação, e toda a criatura e toda a pequena folha obedecem à Palavra, cantando louvores a Deus, chorando as mágoas a Cristo, sem terem de tal consciência plena, alcançam esse desiderato pelo mistério da sua existência sem pecado.” F. A. Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, 1879 “O homem é mais ele próprio, mais humano, quando a alegria é o seu traço fundamental, e a tristeza é apenas superficial. A melancolia deve ser um interlúdio, uma moldura leve, transitória e inocente da mente; a gratidão deve ser o ritmo permanente da alma…A alegria é o mecanismo tumultuoso pelo qual todas as coisas vivem.” G.K. Chesterton, Ortodoxia, 1908 É curioso como quem descobre Chesterton (1874-1936), descobre outros autores de língua inglesa como Stevenson (1850-1894) ou Dickens (1812-1870), autores de língua francesa como Vítor Hugo (1802-1885) e autores de língua russa, como Tolstoi (1828-1910) ou Dostoiévski (1821-1881). De Stevenson, Chesterton disse que ele parecia tersempre a palavra certa na ponta da sua caneta como um homem que joga mikado.1 "Talvez o ponto que Stevenson melhor sublinhou é que nós devemos admirar a virtude (o Bem) pelo seu próprio valor intrínseco e beleza, e não pelo valor que se lhe atribui numa dada época ou num dado local".2 Stevenson diria sobre Dostoiévski: “Raskolnikov é, sem sombra de dúvida, o melhor livro que eu li nos últimos dez anos. Muitos pensam que é maçudo; Henry James não o conseguiu acabar: pela minha parte, o que eu posso dizer é que ele quase acabou comigo”.3 19 De Vítor Hugo, Chesterton escreveu: “A verdade é que Hugo representa todas as coisas últimas e fundamentais: o amor, a ira, a compaixão, a reverência, o ódio e, consequentemente, entre outras coisas, a vaidade”.4 Se pensarmos que Hugo não era cristão, nem possivelmente baptizado, que fez experiências ocultas para contactar com a sua falecida filha Leopoldine, que era um deísta, como a maioria dos intelectuais franceses da sua era, que afirmou que Paris devia mudar de nome em sua honra, entendemos melhor o mundo maravilhoso de G. K. Chesterton. Chesterton não esqueceu que Hugo salvou a catedral de Notre Dame de Paris e a Sainte Chapelle da demolição, após terem sido armazéns de farinha. Mas, Chesterton sobretudo não esqueceu Jean Valjean, Cosette, Os Miseráveis, essa obra extraordinária que ilumina a alma humana para sempre. Sem a ler, ninguém poderá jamais avaliar correctamente Vítor Hugo. Thomas Merton sintetiza essa atitude: “Nós somos suficientemente sensatos para perceber que um autor pode ser profundamente bíblico no seu trabalho sem ser crente ou um frequentador da igreja e nós também percebemos que no nosso tempo é muitas vezes um artista só e isoladamente, enfrentando os problemas da vida sem a consolação da religião, que realmente sofre, em toda a sua profundidade, os problemas existenciais da criatura humana”.5 Chesterton concluiria profeticamente sobre Hugo: “…Hugo é uma figura distante e vaga, um autor polémico e pouco conhecido. No entanto, ele foi, sem sombra de dúvida, um dos maiores homens de letras que alguma vez existiram na Europa; o dia do seu retorno ao triunfo intelectual estará longe com efeito, mas é certo”.4 A West End e a Broadway, com Les Misérables, fariam jus a estas palavras. Vós que chorais, vinde a este Deus, porque Ele chora. Vós que sofreis, vinde a Ele, porque Ele cura. Vós que tremeis, vinde a Ele, porque Ele sorri. Vós que passais, vinde a Ele, porque Ele perdura. (Vítor Hugo, Écrit au bas d’un crucifix). 20 De Tolstói, Chesterton criticaria a sua falta de fé na bondade humana; no valor da vida; na dicotomia farisaica entre o que dizia e o que fazia; na adoração da humanidade vilipendiando homens, mulheres e crianças, o homem concreto; no puritanismo contra os pequenos pecados dos homens num homem a quem não faltavam pecados; a descrença dos valores da Pátria ou da família. Tudo reside, para Chesterton, no equilíbrio entre a lógica e o misticismo, ausente em Tolstoi: “Na verdade, desde que o tempo é tempo, o misticismo manteve a sanidade no homem. O que enlouqueceu o homem foi a lógica. A única coisa que manteve o homem longe dos extremos do convento e do navio pirata, do clube nocturno e da câmara de gás, foi o misticismo” – a crença de que a lógica nos pode enganar e de que as coisas não são o que parecem. Tudo isto pode ser encontrado no livro que lhe dedicou6 e no livro anterior, Twelve Types.7 Mas, também para ele, Chesterton deixou a sua apreciação final, cheia de cavalheirismo: “Não sabemos o que fazer a este pequeno e ruidoso moralista que habita num canto de um homem grande e bom”. Para Dickens, Chesterton citou Dante, paradoxalmente: “abandonai todo o desespero, vós que entrais aqui” (nas obras de Dickens).8 E ainda “A camaradagem e a alegria não são interlúdios na nossa viagem…antes, a nossa viagem é um interlúdio na camaradagem e na alegria, que, por meio de Deus, durarão para sempre. A estalagem não aponta para a estrada, mas a estrada para a estalagem. E todas as estradas apontam finalmente para uma última estalagem, onde encontraremos Dickens e todas as suas personagens. E quando bebermos de novo, será pelos grandes jarros da taberna do fim do mundo”.9 “Dickens era mais preciso quando era mais fantástico…Ele exagerava quando tinha encontrado uma verdade, para a exagerar…Em certo sentido, só a verdade pode ser exagerada, nada mais pode suportar a pressão”. É sabido que Dostoiévski tinha em Vítor Hugo, o herói literário da sua juventude. Foi mesmo convidado a ir ao Congresso Internacional de Escritores de Língua Francesa, presidido por Hugo, mas não compareceu por problemas de saúde. Enviaria uma nota 21 em que dizia. “Ao grande poeta cujo génio exerceu sobre mim uma enorme influência desde a minha infância”. Dostoiévski escreveria sobre Hugo: “A ideia de Hugo é a ideia básica da arte do século XIX…Esta ideia é cristã e profundamente moral; a sua fórmula é a da regeneração dos homens caídos, esmagados injustamente pela força das circunstâncias e pelo poder do preconceito social. Esta ideia é da justificação dos párias da sociedade, humilhados e repelidos por todos”. Esta admiração não o impediu de criticar Hugo quanto às suas descrições de origem burguesa, quer dos personagens republicanos, quer dos personagens amorosos. Escreveria a uma sua leitora, Sofia Lurye: “É onde os seus seres miseráveis emergem que nós podemos observar a humanidade, o amor e a magnanimidade de Vítor Hugo”.10 Dostoiévski, chamou a Dickens o seu mestre e também lhe chamou “o grande cristão”. Ele confessou à sua sobrinha ter lido Dickens na prisão e os dois homens realmente encontraram-se em Londres em 1862, onde tiveram oportunidade de discutir a dualidade intrínseca à natureza humana. Ambos, contrariamente a Tolstói, sentiram o espírito de Rousseau, como retratado por Shakespeare em King Lear: o príncipe das trevas é um cavalheiro! Viam em Rousseau um aristocrata burguês, um filósofo, que criticava o amor-próprio ou o sentir individual, nutrindo um ódio ao indivíduo concreto que se traduziu em misantropia, acompanhada por uma adoração platónica à humanidade (Rousseau abandonou os seus cinco filhos com Thérèse Le Vasseur na “roda”). Quer Dostoiévski quer Dickens compreenderam e retrataram este tipo de personalidade, repugnante e mesquinha, egoísta e diletante, nas suas obras. Tal como criticaram o utilitarismo, recusando que uma teoria filosófica ou política, assente no puro interesse individual, pudesse ser o sustentáculo de qualquer ética.11 Existia ainda um poderoso factor que identificava estes dois homens: Dostoiévski esteve preso; o pequeno Dickens, de doze anos, todos os domingos atravessava a ponte de Blackfriars a caminho da prisão de Marshalsea para visitar os seus pais, que se encontravam detidos (o pai detido e a mãe e filhos mais novos a viver na prisão, como era hábito na época). O pequeno Charles vivia com uma amiga da família e trabalhava dez horas por dia numa fábrica, a pintar e rotular potes de graxa preta, num local imundo e cheio de ratos. Dickens escreveria mais tarde: “É incrível como alguém pode ser um pária numa idade tão jovem”.12 22 Chesterton diria que Dickens, sabia melhor que ninguém que o sentido fundamental da fraternidade humana só poderia existir no âmbito de uma verdadeira religião.1 O papel da Polónia na queda do muro de Berlin dar-lhe-ia razão. Chesterton referiu-se a Dostoiévski, publicamente, por duas vezes: uma em 191213 e outra em 1934.14 Claro que todo o ambiente de Crime e Castigo o envolvia, pelo menos desde 1908, tal como acontecia com os seus amigos, admiradores e promotores de Dostoiévski, Gissing15 e Edward Garnett,16 com quem ele escreveu um ensaio sobreTostoi, em 1903, e Maurice Baring, que escreveu vários livros sobre a sua permanência na Rússia, entre os quais, Landmarks in Russian Literature, metade do qual é dedicado a Dostoiévski. Em 1910, o teatro Garrick apresenta a dramatização de Crime e Castigo sob o título de A Lei Não Escrita, cuja tremenda popularidade torna Dostoiévski conhecido em toda a Inglaterra.3 É neste ano que é publicada a primeira história de O Padre Brown, A Cruz Azul. É possível que Crime e Castigo tenha influenciado Chesterton em obras como as histórias do Padre Brown, O Homem Que Era Quinta-feira (1908), O Homem Que Sabia Demais (1922) e O Poeta e os Lunáticos (1929). Mark Knight afirma que Chesterton terá conhecido o trabalho do escritor russo entre 1898 e 1906.15 Ambos partilham o gosto pelas histórias de detectives,17 o uso do grotesco18,19,20 e das personagens metafóricas, o recurso aos duplos,21,22 o fascínio pela insanidade23 e a centralidade na liberdade humana, o livre arbítrio.21 Muitos alegam que o paralelo Chesterton – Dostoiévski não assenta num pressuposto sólido.24 Por um lado, Chesterton nunca escreveu romances com a profundidade e a densidade psicológica de Dostoiévski; por outro lado, nos contos policiais, Raskolnikov não encontra paralelo em Flambeau. Adicionalmente, personagens com um cunho existencialista, frio e desvinculado, como Raskolnikov em Crime e Castigo, Ivan em Os Irmãos Karamazov e o homem subterrâneo em Cadernos do Subterrâneo, não têm 23 paralelo em Chesterton (aquela gratidão pela existência que vemos no Innocent Smith de Manalive), mas sim uma espécie de revolta pela existência e uma vitimização. O homem subterrâneo admite que só quis humilhar e abusar de Lisa: “Era só pelo poder, eu queria sentir o poder, esse fascínio de um jogo. Eu queria as tuas lágrimas, a tua humilhação, sentir-te destroçada, era isso que eu queria.” O culminar do tributo de Chesterton a Dickens vem com uma espécie de bandeira: “Há grandes homens que fazem com que todos se sintam pequenos, mas o verdadeiro grande homem é aquele que faz com que todos se sintam grandes”.9 Ora, esta frase poderia ter sido aplicada a Dostoiévski por Chesterton e todo o esforço deste artigo consistirá em defender esta tese. Notas: 1 – G. K. Chesterton. The Victorian Age in Literature. Henry Holt and Co., 246, London, 1917. 2 – G. K. Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies: Stevenson.1902. IHS Press, Norfolk, VA, 2002. 3 - Helen Muchnic. “Dostoevsky English Reputation 1881-1936”. New York, Octagon Books, 62-110, NY, 1969. 4 - G. K. Chesterton. “Victor Hugo, Pall Mall Magazine,1902”, reprinted in A Handful of Authors: Essays on Books and Writers, ed. Dorothy Collins, Sheed and Ward, 1953. 5 – Thomas Merton. Opening the Bible, Collegeville, Minnesota: The Liturgical Press, and Philadelphia, Pennsylvania, Fortress Press, 1970. 6 – Gilbert K. Chesterton, George H. Perris, Edward Garnett. Leo Tolstoy, Hodder and Stoughton, 1903. 7 – Chesterton. Twelve Types: A Collection of Mini-Biographies, 1902. Leo Tolstoy. IHS Press, Norfolk, VA, 2002. 8 – G. K. Chesterton, Charles Dickens, 1906. 9 - G. K. Chesterton. The Flying Inn, 1914. 24 10 – Kenneth A. Lantz. The Dostoevsky Encyclopedia. Greenwood Press, 2004. 11 – http://payingattentiontothesky.com/tag/dostoevsky-and-dickens/ 12 – J. Forster. The Life of Charles Dickens [1872–1874]. Diderot Publishing London 2006. 13 - G. K. Chesterton, The Collected Works, Illustrated London News, 269-70, 1911- 1913. Ignatius Press, SF, 1988. 14 – G. K. Chesterton, “Revolutionists and Revivalists of the 19th Century”, The Listener (14 November 1934), 836. 15 – George Gissing. Born in Exile, Hogarth Press, London, 1985. 16 – Mark J. Knight. "Dostoevsky & England." English Literature in Transition, 1880- 1920, 43.4: 471-474, 2000. 17 - Anthony Cross. “A People Passing Rude. British Responses to Russian Culture”. Open Book Publishers, 2012. 18 - John Coats, “The Return to Hugo, A Discussion of the Intellectual Context of Chesterton’s View of the Grotesque”. ELT, 1880-1920, 25:2, 1982. 19 – Mark J. Knight, “The Concept of Evil in the Fiction of G. K. Chesterton: With Special Reference to his Use of Grotesque. University of London, PhD Thesis, 1999. 20 – Donald Fanger. “Dostoevsky and Romantic Realism: A Study of Dostoevsky in Relation to Balzac, Dickens and Golgol. University of Chicago Press, Chicago, Il, 228- 240, 1965. 21 – Mark Knight. “Chesterton, Dostoevsky and Freedom”, English Literature in Transition 1880-1920, 43.1: 37-50, 2000. 22 - Dmitri Chizhevsky. “The Theme of the Double in Dostoevsky”, Dostoevsky: A Collection of Critical Essays, ed. Rene Wellek, New Jersey: Prentice-Hall, 1962. 23 – Russell Kirk. “Chesterton, Madmen and Madhouses”, Myth, Allegory and Gospel, ed. John Warwick Montgomery, Minnesota: Bethany, 1974. 24 – Gary Wills. Chesterton: Man and Mask, Sheed and Ward, NY, 1961. 25 Capítulo IV - Dostoiévski e Chesterton Aqueles que alegam não existir paralelo entre Chesterton e Dostoiévski apoiam-se em diferenças no que respeita à complexidade (mas não à dualidade) das personagens, à atmosfera psicológica e à densidade dos ambientes. Outra grande diferença existe, nas histórias de detectives, na descrição do criminoso, não existindo em Dostoiévski um paralelo para Flambeau ou em Chesterton um paralelo para Raskolnikov. É verdade que as descrições de Chesterton, quer de personagens quer de ambientes, são mais pobres, mas ele próprio admite que o que o preocupa são as ideias e não a descrição dos seus portadores: “Resumindo, eu não sou um romancista, porque eu vejo os conceitos e as ideias nus, e não vestidos, numa espécie de baile de máscaras, como homens e mulheres”, Autobiografia. O seu irmão Cecil já tinha escrito em 1908 que Chesterton via apenas ideias onde os outros escritores viam pessoas. Mas, aquilo que as personagens de Chesterton e de Dostoiévski descrevem não são simplesmente ideias ou pessoas; o que elas descrevem são tipos: o céptico, o místico, o agnóstico, o revolucionário, o cientista, o louco, o cínico, o excêntrico, o homem comum. Ambos confrontam estes tipos, as diferentes tonalidades da alma humana, ora expondo-os ora percorrendo com eles a viagem, do desespero à esperança. Um dos maiores pontos de encontro entre Chesterton e Dostoiévski reside precisamente nas histórias de detectives, não exactamente do lado do criminoso – embora em ambos exista uma noção de que o crime tem uma origem perfeitamente racional, entendível por qualquer ser humano – mas mais propriamente do lado do investigador. Em Crime e Castigo, a investigação conduzida por Porfirii Petrovich encontra paralelo nos heróis detectivescos de Chesterton. Os detectives de Chesterton continuam o arquétipo iniciado com Petrovich: O investigador que decifra crimes por uma combinação de incongruência, perspicácia, intuição e surpresa, além dos métodos policiais mais convencionais, sempre evitando deduções fantasiosas e tácticas sensacionalistas, ou uma postura egoísta, tão ao gosto de Conan Doyle. 26 Em Dostoievski e Chesterton, o crime resolve-se por uma intermitência de pretensão e reconhecimento. No início, quer o detective quer o criminoso se representam equivocamente: o criminoso alega inocência, o detective apresenta-se como incompetente e caótico. O criminoso interpreta incorrectamente a atitude do detective como genuína; o detective interpreta correctamente a atitude do criminoso como falsa. No momento do desenlace, finalmente, o criminoso avalia correctamente o detective e, num momento suspenso no tempo, ambos os homens experimentam um período de admiraçãomútua. Este clímax psicológico final também influenciou Michael Mann, que o incluiu no argumento do filme “Heat”, com Al Pacino (como polícia) e Robert de Niro (como assaltante), que experimentam um interlúdio de auto-reconhecimento mútuo. Os detectives de Dostoiévski e de Chesterton decifram o caso por intuição, mais do que por evidência, porque entendem sempre o motivo do crime e se colocam sempre no lugar do criminoso, tentando pensar como ele. Na verdade, subentendem que uma distância muito curta separa a virtude do crime, no sentido em que um homem normal sob determinadas circunstâncias pode ser um marginal, tal como um criminoso pode encerrar em si mesmo um homem perfeitamente normal. Em O Segredo do Padre Brown, o padre explica a Mr. Chase como resolve o crime: "Bem vê, eu próprio os assassino, por isso sei como foi feito”. O padre explica que ele partilha a natureza humana com o criminoso e portanto compreende-o. Em O Martelo de Deus: “Eu sou um homem e portanto tenho todos os demónios no meu coração”. É exactamente por essa partilha de uma natureza caída, essa identificação, que é possível propor ao criminoso uma saída, a conversão. Esta recusa radical do dualismo que observamos em Chesterton e Dostoiévski é uma das facetas mais radicalmente diferentes da narrativa do vilão que é habitual observar no mundo moderno. 27 Ambos colocam os seus detectives como pessoas muito comuns, num tempo em que o arquétipo do detective era uma personagem seca e áspera. Porfirii é um polícia comum, o padre Brown é um sacerdote, Horne Fisher é um secretário, Gabriel Gale é um poeta, Gabriel Syme é um amador profissional, um diletante. Os quatro detectives de Chesterton juntam-se a Porfirii Petrovich como defensores do comportamento humano. Chesterton escreveu em 1901: “As histórias de detectives recordam-nos que a civilização é a mais fantástica das partidas e a mais romântica das rebeliões.” E ainda: “O agente de justiça é uma figura poética e original. O romance policial é, portanto, o maior romance do homem”. É curioso que dois outros escritores de contos policiais, como Dickens e Stevenson, apenas tenham visto Crime e Castigo como uma narrativa de um estranho crime e de uma estranha ingenuidade do detective. Para compreender a extensão do drama psicológico, a inovação literária e estilística e o realismo social de Dostoiévski, era necessário a esses dois escritores criar uma Sónia inglesa, coisa de que não foram capazes, ou por conformismo ou porque simplesmente ela não existe. No nível filosófico, o único escritor inglês que aprecia a vastidão do universo dostoievskiano é G.K. Chesterton. Ambos procuram a essência da pessoa e, só depois, reconstituem os limites físicos do ser humano em torno dessa essência. Ambos criam caricaturas de pessoas; ambos escrevem como um jornalista que cria uma narrativa, num movimento de fluxo variável ao longo do livro. E, sobretudo, usam o exagero, a hipérbole, de um modo original e criativo. 28 O uso da alegoria encontra-se, em Dostoiévski, na história da “conversão” de Raskolnikov e na analogia com a história da ressurreição de Lázaro ao fim de quatro dias (para a mentalidade judaica o prazo em que a alma se encontra necessária e definitivamente separada do corpo); na história do Príncipe Mishkin; na luta entre o ideal aético, puramente estético de Oscar Wilde (a arte pela arte ou o egoísmo, o carpe diem) e os ideais ético e religioso; ou ainda na alegoria inversa da luta entre o ideal empirista e racional grego de sair da caverna para a realidade ou o ideal místico russo, representado pelo homem subterrâneo, de fugir da realidade para fora da racionalidade, numa espécie de egoísmo circular em progressão concêntrica em círculos lógicos perfeitos, cada vez mais pequenos e mais subterrâneos ou, por oposição, com Lisa, na área do sentimento e da religião. Chesterton diria no seu ensaio sobre Oscar Wilde: “Ele por vezes fingia que a arte é mais importante do que a moralidade, mas isso era apenas fachada. A moralidade ou imoralidade é mais importante do que a arte para ele e para toda a gente”. A conversão de Wilde no leito de morte daria um ênfase particularmente dramático a estas palavras de Chesterton. Sobre o valor da alegoria, diria Chesterton: “Toda a grande literatura sempre foi alegórica porque nós temos uma visão da existência, goste-se ou não, que altera, ou melhor, que engloba tudo aquilo que escrevemos ou que afirmamos, goste-se ou não. A Ilíada é grande porque a vida é uma batalha, a Odisseia é magnífica porque a vida é uma viagem, o Livro de Job é tremendo porque a vida é um enigma”. Diz Gabriel Gale em O Poeta e os Lunáticos: “Eu duvido que qualquer verdade possa ser dita excepto por uma parábola”. Existe uma pequena história em O Poeta e Os Lunáticos chamada O Pássaro Azul, em que Gabriel Gale pergunta a um dos amigos: “Algum dia foste um triângulo isósceles?” Gale interroga-se quão claustrofóbico será estar rodeado de linhas rectas e se será preferível estar dentro de um círculo. Parece irrelevante, mas não é. Curiosamente, Gale está a colocar-se na mente de um anarquista russo (!), que tem a fixação por explodir todas as barreiras – existe obviamente aqui um paralelo com o homem subterrâneo, que quer fazer explodir todos os limites, matemáticos e lógicos, para se poder conhecer a si próprio e só assim ser verdadeiramente livre – a neurótica centralidade no “Eu”, que tanto influenciaria Nietzsche e Freud. Gale interroga-se sobre o que é a liberdade. E conclui que, em primeiro lugar, é a capacidade que alguém pode ter de ser ele próprio. Mas para Gale, em oposição ao homem subterrâneo, a capacidade de ser ele próprio, que é a liberdade, consiste na auto-limitação. Nós encontramo-nos limitados pelos nossos corpos e pelas nossas mentes; se sairmos de nós, deixamos de ser nós próprios para ser…provavelmente coisa nenhuma. Como o pássaro que, liberto da gaiola, não tem qualquer hipótese de sobrevivência num meio hostil ou, como o peixe que, partido o aquário, termina a sua existência. 29 Esta tentativa de romper as barreiras geométricas também encontra paralelo na tentativa de Raskolnikov abolir as barreiras éticas. Mas, tal como o anarquista que Gale descreve, Raskolnikov não consegue sobreviver sem limites bem definidos, após se ter soltado da “jaula” da sociedade. Também o homem subterrâneo, quando pensa que atingiu o conhecimento de si, ao se separar de todos, encontra o inevitável paradoxo: “Quem sou eu? Se ao menos eu fosse um preguiçoso, se não fizesse rigorosamente nada, todos poderiam dizer que eu era um preguiçoso.” Entretanto, do fundo da sua extrema solidão, dessa radical infelicidade e separação, desse desespero, ele ainda se crê superior a todos os outros homens! Mas Dostoievski colocou-o no seu devido lugar: subterrâneo, ou seja, abaixo de nós. Este é um argumento incontornável que desacredita um preconceito muito comum: o de que Dostoiévski foi um dos fundadores do existencialismo. Cadernos do Subterrâneo foi publicado em 1864, dez anos após a saída de Dostoiévski da prisão, onde ocorreu a sua conversão. Crime e Castigo seria publicado apenas dois anos depois. Nele, também se encontra uma prostituta redentora, não Lisa, mas Sónia ou Sónetchka Marmeládova. A ideia errada de um Dostoiévski existencialista assenta no conceito de que Lisa não converteu nem resgatou o homem subterrâneo; de que neste livro não é expressa a ideia de que a natureza humana só pode ser modificada por meio de uma fé religiosa. Esse foi também o equívoco de Nietzsche, que chamou a Doistoiévski "O grande psicólogo". A explicação de Dostoiévski não necessita de palavras mais compridas, uma vez que remete aos sensores a amputação,mais do que a omissão, dessa ideia: 30 “Era melhor não publicar o penúltimo capítulo (onde a ideia é expressa) do que publicá-lo com as frases esfaceladas e contradizendo-se a si próprias. Porcos de censores! Onde escarneço de tudo e blasfemo a fingir, deixam passar; mas onde concluí disso a necessidade da fé em Cristo, proibiram!” Lord Ivywood de The Flying Inn, é um dos retratos feitos por Chesterton deste mesmo tipo de insanidade circular: “Eu fui onde Deus não se atreveu a ir”, afirma Ivywood no momento da sua ruína, ecoando um defunto Nietzsche. “Eu estou acima do ridículo super-homem tanto quanto ele está acima do mero homem. Onde eu caminho, nos céus, nenhum homem colocou o pé antes de mim; encontro-me sozinho no jardim. O que se passa comigo pode ser descrito como a cena de alguém que colhe solitariamente as flores de um jardim; e eu ficarei com esta flor para mim…”. Trata-se do “Eu, e nada mais do que eu!”. Este orgulhoso solipsista, este lunático, é o maior inimigo do homem, da sua vida e do seu espírito – é um espelho de uma opção antiga, ocorrida antes do tempo. Chesterton expressa-a quase visualmente em 1900, por ocasião da morte de Nietzsche, em The Wild Knight and Other Poems, The Mirror of Madmen: “Eu sonhei com o Céu, tudo era branco como a geada, A calma esplêndida de um hospedeiro vivo; Numerosos coros de faces voltadas lá estavam, alinhados. Subitamente gelou-me o sangue, porque todas as faces eram o meu rosto”. Encontram-se, nestas alegorias, a universalidade do pensamento de Dostoiévski, a inteligência de G. K. Chesterton e a intemporalidade de ambos. 31 Capítulo V - O Homem Comum Não será estranho que o escritor inglês mais conhecido como o mestre do paradoxo sinta fascínio por um escritor cuja popularidade reside ela própria num paradoxo: como é que Dostoiévski tem tanto sucesso em captar o coração dos seus leitores, em lhes enlevar o espírito, se lhes fala continuamente de tumulto e de revolta? A resposta só pode ser de raiz filosófica. Chesterton e Dostoiévski partilham a abordagem do homem comum e a do seu oposto, o solipsista racionalista (que pensa que o universo existe apenas dentro e a partir de si) com as suas múltiplas máscaras: o intelectual, o filantropo, o revolucionário redentor, o chefe icónico, o cínico no afecto, o prático que idolatra o dinheiro. No fundo, as duas metades do cérebro humano, em maior ou menor grau presentes em cada um de nós e na sociedade em geral. Terminado o milénio, no século XVI, o homem ficou "livre", entregue a si próprio. Estas duas metades parecem combater entre si, sem uma aparente intervenção de uma verdade superior. É exactamente a tradução deste facto que parece caracterizar estes dois escritores. Eles não têm uma personagem principal, mas duas; por vezes mais. E insistem em que todas são, não só humanas (mesmo quando aparentemente inumanas), mas perfeitamente compreensíveis, racional ou afectivamente. O SOLIPSISTA Encontramo-lo, com Doistoiévski, em Raskolnikov de Crime e Castigo, em Ivan de Os Irmãos Karamasov, em Stavróguin de Os Demónios, em O Homem Subterrâneo de Os Cadernos do Subterrâneo. Encontramo-lo, com Chesterton, em Lord Ivywood de A Taberna Errante, no professor Lúcifer de A Bola e a Cruz, em Buck de Napoleão de 32 Notting Hill, encontramo-lo em Gregory e no professor de Worms, projecções de G. B. Shaw, em O Homem Que Era Quinta-feira ou em Simon Wolfe de O Poeta e os Lunáticos. Mas, quer em Chesterton quer em Dostoiévski, estes solipsistas apenas triunfam por um tempo antes da ruína, ou em alternativa, encetam o caminho da conversão. Stravógin suicidou-se, o Homem Subterrâneo ficou só. Raskolnikov iniciou com Sónia uma forma de conversão, Dimitri aceitou a prisão e a conversão. Diz o Innocent Smith em Manalive: “Em certas épocas torna-se necessário uma outra espécie de sacerdotes, os poetas, para lembrar aos homens de que eles ainda não estão mortos. Os intelectuais entre os quais vivo nem sequer estão suficientemente vivos para recearem a morte. O homem são sabe que a vida serve para aprender como morrer, mas para estes pequenos ratos brancos a morte é a única possibilidade de aprenderem a viver.” O solipsista é o mais louco de todos os lunáticos e o maior inimigo quer do corpo quer da alma, como a disseminação das ideologias e os massacres do século XX demonstraram, chamasse-se ele, Adolf, Vladimir, Leon, Ossip ou Mao. Uma forma de solipsismo mais refinada, a do filantropo, intelectual burguês ou professor, é a adulação da humanidade em abstracto e a indiferença perante o indivíduo concreto. Em 1902, escrevia Chesterton na Pall Mall Magazine, num artigo chamado Vitor Hugo: "Se existe uma verdade fundamental sobre a democracia genuína, é que a democracia genuína se opõe ao conceito de multidão. A democracia genuína baseia- se fundamentalmente na existência do cidadão, e a melhor definição de “as massas populares” é a de um corpo de mil homens em que não existe um cidadão. Hugo defendeu o conceito de que a democracia girava à volta do cidadão como as religiões ancestrais giravam em torno da alma…Portanto, a sua figura mais sublime, o seu tipo de humanidade, não era nem o rei nem o republicano, mas um homem numa ilha deserta.” Hugo, se fosse possível, teria acrescentado: “Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles.” Não será por acaso que os sofismas modernos, como o kantismo, o egoísmo, o desconstrucionismo e outras formas de solipsismo, são completamente omissos, perversos ou desdenhosos perante a maior imagem do ser humano: a mulher que é mãe. 33 Por seu turno, diria Dostoiévski em Os Irmãos Karamasov: "Gosto da humanidade, mas eu próprio me admiro: quanto mais gosto da humanidade em geral, menos gosto das pessoas em particular. Muitas vezes sonho com a ideia apaixonada de servir a humanidade e, se calhar, seria mesmo capaz de subir ao calvário pela humanidade, se tal fosse necessário; mas, ao mesmo tempo, sou incapaz de conviver com alguém no mesmo quarto por dois dias. Digo-o por experiência. Mal alguém fica perto de mim, logo a sua personalidade me oprime o amor-próprio e me constrange a liberdade. Sou capaz de detestar, de um dia para o outro, a melhor das pessoas: odeio este porque come devagar ao almoço, odeio aquele porque está constipado e não pára de assoar o nariz. Basta as pessoas tocarem-me ao de leve para me tornar inimigo delas. Entretanto, sempre me sucedeu que, quanto mais detestei as pessoas em particular, mais glorioso era o meu amor pela humanidade em geral.” 34 DO CAMINHO LARGO AO CAMINHO ESTREITO - O REGRESSO AO HOMEM COMUM - A Conversão: O homem comum de Chesterton e o camponês de Dostoiévski exprimem uma e mesma ideia: a conversão dos homens instruídos, pelo seu regresso à condição de homens simples. Desse ponto de vista, esta ideia de camponês ou de homem comum tem quase um sentido mitológico, uma atitude e um viver prático. É a vida prática de um dia a dia esforçado, que deixa pouco espaço à leitura, mas que afasta o homem da dúvida pela constatação do fundamental: é necessário trabalhar, o amor pelos filhos e pela mulher são a maior realidade da vida, o homem é um ser limitado, existe a morte. Os miseráveis de Vítor Hugo, os personagens de Dickens e os tipos de Dostoiévski, pelos seus dramas, sofrimentos e heroísmo, transformam a mente dos seus leitores. Mas o que é este homem comum? Ele é um homo sciens, mera parte da natureza, tal como uma pedra, um cacto ou um camelo ou é um homo sapiens, aquele homem que na visão de Dr. Johnson ou de Milton– duas grandes influências em Chesterton – possui a experiência do Bem inteligível, a visio Dei, que está disponível e cuja busca é obrigatória e inevitável, não apenas para os místicos, especialistas ou crentes, mas para todos os homens em vários graus, desde que possuam a vontade genuína de encetar essa busca. Esta é uma atitude que pode perfeitamente ser adoptada por um intelectual ou um homem rico se fizer a viagem de volta ao mais importante da vida: as coisas primeiras. - O Caminho Estreito: O caminho da conversão de Dostoiévski inicia-se na história do camponês Marey e obtém o reconhecimento no seu epitáfio, a parábola do grão de trigo, que é contada em Jo 12:24: “Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, não dá fruto.” Chesterton e Dostoiévski várias vezes tomaram o paradigma do livro de Job: o Deus que não responde às nossas perguntas, mas tem, Ele próprio, perguntas para as quais não 35 encontramos respostas. Ambos vivem assombrados pela sensação de que, para o Criador do Universo, a dúvida ou a capacidade de duvidar é um atributo ainda maior do que o conhecimento da própria verdade. Ele próprio, o guardião do livre-arbítrio humano, à custa do seu próprio sofrimento. Ambos, Chesterton e Dostoiévski, usam o exercício da dúvida para conduzir o homem a Cristo. A referência é sempre indirecta, não ritual, profana. Depois vem o enlevo do coração e o homem comum de Chesterton ou o camponês de Dostoiévski são a voz do intelectual convertido, do professor, do sábio, que se tornou um homem comum. Afinal, esta é a última condição, insuspeitada, de ser acima de sábio, flutuando, livre do peso do orgulho, do lastro da auto-suficiência. Esta dualidade da alma humana, expressa por estes dois escritores, não é produto da imaginação, uma vez que ela teve uma realização concreta, por meio da conversão, em muitos inimigos do espírito. Foi o caso da conversão tardia de Voltaire (que seria na verdade um grande tormento) ou de um grande escarnecedor de Chesterton, Oscar Wilde; foi o caso de Charles Péguy, de Paul Claudel (um admirador de Chesterton), de T. S. Eliot ("In my begining is my end; in my end is my begining") e de W. H. Auden; foi o caso dos "poetas malditos": Baudelaire, Verlaine e Rimbaud. Outros, pelo contrário, acabaram loucos como Nietzsche (os relatórios dos médicos que o tratavam são aterradores) ou entregues ao seu solipsismo e tenebrosa eugenia, como Shaw. 36 - A Confissão: Stavrógin é não só uma espécie de Rousseau, como Rousseau é, ele mesmo, um Stavrógin, na sua descrença na bondade humana, na sua misantropia. Ambos tentam contrapor à confissão cristã, como meio de obter a redenção, uma confissão secular, cheia de impasses e de hesitações. O resultado é a ausência de gratidão e do conforto da verdade. A revolta em vez da vergonha, esse sentimento tão intrinsecamente humano que faz a alma mirar-se no espelho de Deus, a observar as suas manchas na túnica branca. A revolta como a resposta daquele que se recusa mirar-se a esse espelho. Esse foi afinal o grande motivo porque Chesterton se tornou católico: “Porque me queria livrar dos meus pecados!” - Ciência e Sapientia: Quer Dostoiévski quer Chesterton concretizam a grande missão da mente humana: o encontro entre as ciências e as humanidades, entre o saber empírico e o conhecimento que forneceu a definição do método científico, ele próprio fora do âmbito científico, mas assente numa fé. A fé de que o universo obedece a uma ordem racional; de que ele é externo à mente humana e de que a mente humana pode conhecê-lo, porque a razão humana guarda analogia com o ordenamento racional do universo. Como diria Chesterton, o homem são vê com dois olhos: o olho da ciência e o olho da fé. Quando Chesterton refere que “não é natural ver o homem como um produto natural”, ele joga com o sentido equívoco da palavra natureza: toma natureza no sentido de encaixado ontologicamente, em oposição à qualidade de ser além da matéria, do espaço e do tempo, mas presente neles, como é próprio à mente humana e ao espírito do homem. A natureza do homem em oposição à natureza física, que consiste na matéria aprisionada no tempo e submetida às leis que o governam, onde se encontra presente. Estas duas ideias de natureza, constituem na verdade o core da arte, filosofia e literatura da civilização ocidental, o paradigma das duas ideias de natureza em King Lear. Quando fundimos estas duas dimensões da natureza do homem apenas numa, a natural, no sentido estritamente material, caímos numa contradição: Uma vez que apenas dependemos de leis mecânicas, o livre-arbítrio, o pensamento racional e a finalidade tornam-se absurdos. Da impossibilidade de livre arbítrio resultou o 37 determinismo; da ausência de finalidade resultaram a religião dos estetas, como Oscar Wilde e do egoísmo, como Nietzsche; do absurdo do pensamento racional, resultou o desconstrucionismo. O absurdo a que chegámos levou os filósofos franceses e os naturalistas a afirmar que a falta de significado na linguagem faz com que não possamos falar de nada com significado. Mas a contradição é óbvia: como pode o autor de tão blasfema afirmação pretender que ela tenha significado, se afirma que todo o discurso não exprime um significado? C. S. Lewis, em A Base do Pensamento do Século XX, indicou-nos o caminho proposto por Dostoiévski e por Chesterton: “Nem a vontade nem a razão são produtos da natureza.” Um camelo e um cacto não são dotados nem de razão nem de livre-arbítrio, mas apenas, no caso do camelo, de condicionamento, como Pavlov já havia demonstrado. O homem encontra-se na natureza e fora dela, em simultâneo. Como afirmou o reputado historiador da ciência, Stanley L. Jaki, em 1970, “Bacon não foi o fundador de ciência nenhuma; a ciência funda-se num saber muito anterior a ele, quer grego quer escolástico, de que se o universo é racional ele pode ser descoberto pela mente humana.” Esta ideia de um universo racionalmente inteligível é uma das pedras de toque de toda a civilização ocidental. Lewis afirmaria em Futilidades: “A menos que tudo aquilo a que chamamos conhecimento seja uma ilusão, devemos afirmar categoricamente que, ao pensar, não estamos a traduzir para a razão um universo irracional, mas pelo contrário, estamos a seguir uma racionalidade que preenche o universo.” A fé de Chesterton assentava num teísmo cristão racional – a religião no sentido de uma regra; uma confiança profunda na existência de um padrão externo da realidade. “O homo sapiens, a glória, a graça e o enigma do mundo, é uma criatura demasiado valiosa para ser apertada e esmagada nessa pequena cela chamada o universo científico”. A sua crítica à crença no progresso inevitavelmente virtuoso viria a ter a sua confirmação nas bombas atómicas, nos Gulag e nas câmaras de gás: “Eu não gosto de triunfos inevitáveis”. Ele acreditava em reformas voluntárias e graduais introduzidas por cidadãos comuns inteligentes. Ele acreditava numa liberdade tangível não numa utopia teórica: “Serei de 38 todo incompreendido se se pensar que apelo a um retorno a Atenas ou ao jardim do Éden, porque eu não quero apanhar o comboio mais barato da utopia. Eu quero conhecer a largura e não apenas o comprimento do mundo; eu quero sair do comboio quando ele passar nas antigas planícies da liberdade”. Estas ideias de partilha de racionalidade entre o homem e o universo, do livre-arbítrio, da finalidade, da democracia, da natureza bivalente do homem, constituem o senso comum que é característica do homem comum. Lewis diria: “A igualdade é um termo quantitativo e como tal o amor é-lhe de natureza estranha.” E ainda: “A verdadeirarazão para a democracia é que o homem é um ser tão falível que não se pode confiar em nenhum homem que tenha um poder indiscriminado sobre os seus semelhantes.” Quando Chesterton afirma que “não é senso comum chamar ao homem um ser oriundo meramente do campo ou do mar”, ele está a fazer o mesmo com a palavra comum que fez com a palavra natureza. Ele escreve: “As coisas que são comuns, como a morte ou o primeiro amor, não são, de modo nenhum, um lugar-comum”. (…) “Nós não vemos um homem correctamente (também significa direito, em grego orthos) se o vermos como um mero animal. Não é normal. É um pecado contra a luz, contra essa imensa luz da proporção que é o princípio funcional de toda a realidade.” Este termo “proporção” encerra toda a doutrina ortodoxa da sapientia et recta ratio, ou a razão correctamente usada para discernir os objectos e as leis de um universo inteligível. Com a sua metafísica de senso comum, Chesterton lutou toda a vida para manter o conceito tradicional do homem como homo sapiens contra a ameaça de que a ciência possa desantropomorfizar o homem. Ele escreveu em 1922 que “O credo que realmente está a cobrar a dízima e a invadir as escolas…é o grande sistema de pensamento que começou na Evolução e terminou na Eugenia. O Materialismo é, na verdade, a nossa Igreja”. 39 Kierkegaard apontaria a origem, quer liberal quer revolucionária, deste pensamento materialista: "A mente burguesa caracteriza-se precisamente pela impossibilidade de pairar acima da realidade do espaço e do tempo. Tem sempre a preocupação pelos meios sem a consideração pelos fins; o fascínio pela técnica sem a consideração pela finalidade." No nosso tempo, apesar dos reveses com os campos de concentração e os Gulags, a eugenia está de volta. Os desastrosos equívocos do materialismo foram sempre objecto da crítica de Chesterton e ele sempre afirmou que a Igreja se lhes oporia com o seu dualismo de senso comum: “A Cristandade, logo no seu início, combateu os maniqueus porque eles não acreditavam em nada além do espírito; agora tem que combater os maniqueus, porque eles não acreditam em nada além da matéria.” Mas a ideia de um homem comum não é equivalente a uma ideia de um homem vulgar. Lewis diria: “Não existe tal coisa, uma vez que aquilo que nos é comum a todos, não é de modo nenhum uma coisa comum.” Em 1941, em Oxford, diria: “Não existem pessoas vulgares. Nunca falámos com um mero mortal. Nações, culturas, artes, civilizações – são mortais…Mas são imortais aqueles com quem brincamos, com quem casamos, a quem humilhamos, a quem exploramos. À semelhança do Santíssimo Sacramento, o teu próximo é o objecto mais sagrado que te é apresentado aos sentidos.” 40 Citando Dante, Paraíso V:19-20, Chesterton afirma a convicção de que ao fazer um uso correcto da razão em liberdade, o homem se assemelha ao Deus que o dotou de tal razão. Chesterton considerava uma loucura obscena alterar a percepção do homem como imagem de Deus para o perceber como um mero produto da matéria: “Alguma coisa no espírito vil do nosso tempo nos faz inclinar a encontrar uma explicação material ou mecânica para tudo, para as nossas acções e para as acções de outras pessoas, quando se sabe que estas geralmente resultam da parte não mecânica do homem, essa qualidade sagrada da criação: a livre escolha”. Chesterton jornalista, Dostoiévski engenheiro, Lewis historiador e professor de filosofia e literatura…filósofos ou não? Diz Étienne Gilson: “Chesterton é um dos mais brilhantes pensadores que alguma vez existiram, apesar de não ter sido um académico, nem um filósofo profissional, nem sequer aquilo a que hoje se chama um intelectual. Ele era apenas um jornalista, em certo sentido, um jornalista contundente. Ele era um jornalista metafísico, um escritor contundente que viu a vida como um todo, como ela é. Ele tentou obter para cada um uma visão da vida à luz de uma filosofia geral. Numa época de especialistas, ele era generalista; numa época de professores de filosofia, ele era um filósofo; numa época de notícias da actualidade, ele esforçou-se por apresentar as verdades ancestrais de uma forma nova, poder-se-ia dizer na forma de uma novela.”
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