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Arq Bras Cardiol
volume 72, (nº 3), 1999
Marin-Neto e cols
Cardiopatia chagásica
247
Correspondência: José Antonio Marin-Neto - Div de Cardiologia, Depto de Clínica
Médica – Hospital das Clínicas - FMRP-USP - Av. Bandeirantes, 3900 - 14048-900
- Ribeirão Preto, SP
A doença de Chagas (DC) já afligia a humanidade há
cerca de 4.000 anos, como evidenciado pela recuperação de
material gênico do T. cruzi em cadáveres sul-americanos
mumificados 1. Durante expedição à América do Sul, Charles
Darwin pode ter-se tornado chagásico, a julgar por sua vívi-
da descrição da picada do inseto transmissor e pelos sinto-
mas apresentados posteriormente 2. Entretanto, somente
no início do século XX, Carlos Chagas, em um dos feitos
mais insólitos da História da Medicina, descobriu não so-
mente a entidade mórbida que o imortalizou como epônimo,
mas também o agente etiológico e seu mecanismo essencial
de transmissão: excretas eliminados por insetos da família
Reduviidae (subfamília Triatominae), contaminadas com o
T. cruzi, permitem sua inoculação no local da picada
hematófaga 3.
O parasito invade células de hospedeiros mamíferos,
por mecanismos ainda não inteiramente conhecidos. Entre-
tanto, trabalhos experimentais sugerem que a ativação do
receptor do fator de crescimento transformante beta seja
implicada nesse processo. Assim, não há penetração ou
replicação do parasito em células desprovidas de tais recep-
tores. Em contraposição, a capacidade invasora do T. cruzi
é potenciada por administração desse fator de crescimento
em modelos experimentais 4.
Virtualmente, qualquer sistema orgânico pode ser aco-
metido. Envolvimento visceral digestivo ocorre, em cerca de
6%, e distúrbios neurológicos, em aproximadamente 3% da
população chagásica, porém a cardiopatia constitui a mais
séria complicação, atingindo, em algum momento de sua
vida, um terço dos indivíduos sorologicamente positivos.
Aspectos epidemiológicos
Há condições propícias para transmissão vetorial no
Continente Americano, entre as latitudes 42ºN e 40ºS, em
território abrangendo desde o México até a Argentina. Le-
vantamentos sorológicos, ainda que imperfeitos, permitem
estimar que 4 a 7% de 200 milhões de latino-americanos em
21 países sejam chagásicos, e que 65-90 milhões de outros
estejam expostos ao risco 5.
José Antonio Marin-Neto, Marcus Vinícius Simões, Álvaro V. Lima Sarabanda
Ribeirão Preto, SP
Cardiopatia Chagásica
Estado da Arte
Estudos epidemiológicos transversais no Brasil e na
Venezuela avaliaram a prevalência das manifestações clíni-
cas e a mortalidade associadas à cardiopatia chagásica. En-
tretanto, em virtude de não terem sido realizados estudos
em larga escala, apropriadamente concebidos, não se dis-
põe de visão concreta da epidemiologia deste grave proble-
ma de saúde pública no subcontinente sul-americano. Além
disso, a notificação epidemiológica não é inteiramente
confiável, mesmo em regiões altamente endêmicas. Taxas de
morbidade e mortalidade relacionadas à cardiopatia
chagásica são muito variáveis até em regiões endêmicas de
um mesmo país. Isso decorre, provavelmente, de diferenças
importantes em características relativas às cepas parasí-
ticas, e a fatores genéticos, climáticos, socioeconômicos,
condições higiênicas e alimentares, e a políticas de saúde
pública, atuando variavelmente em diversas regiões 6.
Embora sua real prevalência seja ignorada, as estimati-
vas aproximadas acima indicam que a miocardite chagásica
constitua a forma nitidamente mais comum de cardio-
miopatia nos países sul-americanos 7. Devido à atual onda
globalizante, correntes migratórias tendem a tornar o pro-
blema com características de ubiqüidade 7. Para exemplificar
esta tendência pode-se citar a recente conscientização so-
bre a presença de cardiopatia chagásica nos Estados Uni-
dos da América (EUA). Com base em prevalência de
serologia positiva para DC, da ordem de 4,5% em 205 imi-
grantes latino-americanos e em estimativas deste contin-
gente populacional nos EUA, acredita-se existir nesse país
aproximadamente meio milhão de indivíduos chagásicos 8.
Em adição, expressiva migração da zona rural para a urbana,
ocorrida no Brasil durante as últimas três décadas, foram
responsáveis pelo aporte de 500 mil chagásicos para as
grandes cidades 6.
Mecanismos adicionais de transmissão
Embora, infreqüentemente, a infestação também pode
ocorrer por transmissão congênita, por via oral, aleitamen-
to, contaminação laboratorial acidental e transplante de ór-
gãos. Infestação por via transfusional tem sido objeto de in-
tenso escrutínio recente, tendo em vista que levantamento
efetuado, entre 1988 e 1990 em 850 municípios brasileiros,
revelou que a triagem serológica para o diagnóstico de in-
fecção chagásica, somente era executada em cerca de dois
terços dos doadores 6. Revisão de levantamentos seroló-
gicos, realizados em vários países durante a década de 1980,
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demonstrou taxas de positividade serológica para moléstia
de Chagas variáveis entre 10% e 50% dos doadores em re-
giões endêmicas 9.
Prevenção - A cardiopatia chagásica reveste-se de
muito intenso impacto social. Estima-se perda de mais de
750 mil anos de vida produtiva anualmente, por morte pre-
matura nos países latino-americanos, a custo aproximado de
1200 milhões de dólares americanos/ano de vida 10. Por isso,
a eliminação da transmissão vetorial (por melhora do pa-
drão habitacional e uso de inseticidas de ação residual) e
transfusional, em regiões endêmicas e não-endêmicas 11-13,
constitui claramente política de saúde pública dotada de
elevada razão benefício/custo 7,10. Apesar de formidáveis
obstáculos econômicos, estas metas já foram atingidas em
áreas geográficas esparsas 14-16.
O programa denominado Iniciativa do Cone Sul,
deslanchado em 1991, a custo de 207 milhões de dólares
norte-americanos para os seis países sul-americanos envol-
vidos, tem produzido resultados muito significativos 5,16,17.
No Brasil, redução de 89% no número de municípios com
infestação domiciliar, associou-se queda de 6,5% para 1%
na taxa de doadores de sangue com serologia positiva para
moléstia de Chagas, de 1982 a 1993 16,17. Com base nesses
resultados, projeta-se para o ano 2000 a virtual extinção da
transmissão de T. cruzi, no Brasil, Argentina, Chile e Uru-
guai 5,18. Contudo, relatos esporádicos de transmissão em
regiões supostamente sob controle epidemiológico, reco-
mendam cautela em tais projeções 19.
História natural e fatores prognósticos
Conceitualmente, costuma-se dividir a história natu-
ral da cardiopatia chagásica nas fases de miocardite aguda
e crônica, separadas pela longa (10-30 anos, usualmente) e
enigmática forma indeterminada 7,20,21. A base científica
para esta divisão conceitual deriva de evidências experi-
mental, patológica e clínica. Mais recentemente, tem avul-
tado a reagudização, com expressão clínica muito protei-
forme, em chagásicos portadores da forma crônica, que
exibem imunodepressão natural ou iatrogenicamente de-
senvolvida 22-25.
Vários estudos observacionais em regiões endêmicas
do Brasil, Argentina e Venezuela, iniciados nos idos de 1940,
possibilitaram o desvendamento da história natural da
cardiopatia chagásica 7,26-43. Dispõem-se também de muitos
estudos descritivos de séries de casos na fase aguda, adqui-
rida por transmissão não-vetorial, mas tem valor limitado para
o conhecimento da história natural da cardiopatia 7,22-26.
Os trabalhos sobre a história natural são predominan-
temente de cunho transversal, sobre pacientes infectados
em regiões rurais dos países mencionados. Muito poucos
estudos tiveram o caráter de descrição de casos e controles
não-chagásicos 7. Outro grupo de estudos observacionais
enfocou a descrição e o seguimento de coortes de pacien-
tes chagásicos internados 7,38-41.Há flagrantes limitações de ambos os tipos de estudos
- rurais e hospitalares, para avaliação dos fatores prognós-
ticos que influenciam a história natural da cardiopatia
chagásica 7. Assim, nos estudos baseados em populações
rurais geralmente não se faz exploração adequada do
envolvimento cardíaco 27-37. Em contrapartida os resultados
dos trabalhos com pacientes hospitalares, embora superio-
res na caracterização da cardiopatia, não podem ser livre-
mente extrapolados para o conjunto da população chagá-
sica 8,38-41. Adicionalmente, devido ao extremamente
protraído curso da cardiopatia chagásica crônica (CCC), des-
de a fase de miocardite aguda até as formas avançadas de in-
suficiência cardíaca (IC) e/ou arritmia maligna, não há estudos
prospectivos englobando todo o espectro evolutivo da do-
ença, em populações numericamente adequadas 7,42.
Prognóstico na fase aguda - Muito embora resultados de
biópsia cardíaca e de estudos necroscópicos evidenciem a
presença constante de miocardite na fase aguda, os estudos
descritivos de séries de pacientes em áreas endêmicas, utili-
zando testes sorológicos específicos, mostram que apenas
cerca de 10% dos casos apresentam manifestações clínicas
condizentes com o diagnóstico de moléstia de Chagas 26,27, di-
ficultando sobremaneira a percepção dos distúrbios que
aparecem na transição para a fase crônica, em humanos. En-
tretanto, os aspectos citados são reproduzidos em modelos
experimentais da doença.
Quando o diagnóstico clínico da moléstia foi possível
(em subgrupo pequeno), o envolvimento cardíaco foi
detectável em próximo de 90% de 313 casos sucessivos; 70-
80% apresentavam cardiomegalia radiológica, em contraste
com apenas 50% de casos com anormalidades eletro-
cardiográficas. A gravidade da miocardite é inversamente
proporcional à idade, sendo a IC duas vezes mais intensa
em crianças menores de dois anos, comparativamente àque-
las com idades de dois a cinco anos 27. A mortalidade da fase
aguda nesse estudo foi de 8,3%, superior, portanto, às cifras
de 3-5% relatadas em estudos similares em áreas endêmicas
do Brasil, Argentina e Uruguai. O eletrocardiograma (ECG)
foi normal em 63,3% dos casos não fatais, em apenas 14,3%
daqueles falecidos durante a fase aguda. Ocorreram 75%
dos óbitos em crianças com menos de três anos. Sem se
correlacionar com a idade, a IC, acompanhada ou não de
encefalite, foi complicação constante nos casos fatais 27.
Outro estudo de 172 pacientes com fase aguda conhe-
cida por resultados sorológicos e clínicos, seguidos por até
40 anos em Bambuí, Minais Gerais, mostrou que o apareci-
mento de sintomas, e alterações do exame físico ou do ECG
ou radiológicas, ocorria em 33,8%, 39,3% e 58,1%, respecti-
vamente após períodos de 10-20, 21-30 e 31-40 anos 27. Em
outra resenha de 268 pacientes da mesma região, com fase
aguda determinada em média 27 anos antes, a mortalidade
global no período foi de 13,8% 27.
Nos pacientes que sobrevivem observa-se desapare-
cimento dos sintomas e sinais do envolvimento cardíaco,
em cerca de 1-3 meses, e normalização do ECG em mais de
90% dos casos após um ano. Entretanto, não há qualquer
evidência de cura espontânea da infecção, como demons-
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trado em testes seriados de xenodiagnóstico e sorologia,
em grupos de várias centenas de pacientes chagásicos 7.
Prognóstico na forma indeterminada - Embora a rele-
vância clínica desta designação seja atualmente questio-
nável, o conceito de fase indeterminada da moléstia de Cha-
gas implica na ausência completa de sintomas e alterações
físicas imputáveis a essa etiologia, positividade de reações
sorológicas específicas e/ou do xenodiagnóstico, e nenhu-
ma anormalidade atribuível à doença, no ECG e exames ra-
diológicos cardíaco, esofágico e do cólon. Portanto, esta
fase, por definição, termina com o aparecimento de quais-
quer dessas manifestações clínicas ou laboratoriais.
O potencial evolutivo deste estágio da doença, deter-
minado por fatores ainda desconhecidos, é indiscutivel-
mente mostrado por estudos longitudinais de coortes em
áreas endêmicas. Nesses trabalhos o envolvimento cardía-
co tem sido surpreendido com taxas anuais de 1-3% 7.
Entre 400 adultos jovens seguidos por 10 anos, 91
(23%) tiveram alterações clínicas, no ECG ou na radiografia
torácica. Contudo, dentre oito óbitos registrados no perío-
do, apenas um decorreu da doença, por reagudização da
cardite chagásica 30.
Outro estudo longitudinal, em Bambuí, comparou a
evolução de 885 pacientes chagásicos jovens, na forma
indeterminada, com a de 911 pacientes, também chagásicos,
porém com alterações no ECG, já presentes no início do pe-
ríodo de seguimento de 10 anos. Em cada um desses grupos
a sobrevivência foi de 97,4% and 61,3% 31.
Um 3º estudo longitudinal, realizado em região rural
venezuelana, endêmica, seguiu 364 pacientes chagásicos
por período médio de quatro anos. Nesses indivíduos, a
taxa anual de aparecimento de DC foi de 1,1%. Esta etiologia
foi diretamente responsável por 69% dos óbitos ocorridos
nesse período, sendo a mortalidade geral da comunidade
igual a 3% 32.
Em 1973, iniciou-se no nordeste brasileiro estudo lon-
gitudinal de campo, em área rural endêmica. Pela avaliação
inicial, de 644 indivíduos com idade >10 anos, 53,7% tinham
sorologia positiva para a DC. Essa mesma população foi
reavaliada em 1977, 1980 e 1983. O desenvolvimento de anor-
malidades no ECG ocorreu a taxa anual de 2,57% para os
chagásicos, contra 1,25% dos indivíduos sorologicamente
negativos, configurando risco relativo de 2, para a mesma
área geográfica. A taxa de mortalidade ajustada etariamente
foi de 8,9/1.000/ano em 488 chagásicos, enquanto a de 509
indivíduos sorologicamente negativos foi de 7,8/1.000/ano.
A mortalidade foi nitidamente associada à presença de dis-
túrbios de condução e arritmias ventriculares 33.
Em suma, esses estudos indicam que, enquanto os in-
divíduos chagásicos permanecem na forma indeterminada,
seu prognóstico é excelente 7. Deve-se ressalvar que esses
resultados foram obtidos em populações chagásicas com
>50% dos indivíduos tendo idades <20 anos. De fato, a
prevalência da forma indeterminada da doença tende sempre
a decrescer para populações menos jovens, em virtude da
natureza evolutiva da moléstia de Chagas. Mesmo assim, é
oportuno enfatizar que após 10 anos, quase 80% dos pacien-
tes chagásicos permanecem com a forma indeterminada da
doença, e que provavelmente 50% da população global de
infectados com o T. cruzi jamais apresentarão qualquer mani-
festação clinicamente significante associada a esta etiologia.
Permanece decepcionantemente elusiva a razão pela qual
apenas certa proporção da população chagásica geral con-
serva-se protegida quanto a complicações cardíacas. É pro-
vável que a explicação do fenômeno seja multifatorial 7.
Prognóstico na forma crônica da cardiopatia - Os es-
tudos acima referidos, analisando fatores prognósticos já
na fase indeterminada em populações rurais, e avaliando de
forma bastante superficial o desempenho cardíaco, de-
monstram que a simples manifestação de alterações
eletrocardiográficas constitui sinal bastante ominoso 34,35.
Também um trabalho retrospectivo, em chagásicos segui-
dos por 18 anos, revelou que o bloqueio de ramo direito
(BRD) do feixe de His era três vezes mais freqüente em casos
de óbitos do que nos sobreviventes nesse período 34.
Além dos distúrbios eletrocardiográficos, a noção de
que o gênero masculino represente fator de mau prognósti-
co, em pacientes com doença cardíaca manifesta, deriva de
estudos com seguimento longo de coortes hospitalares e de
um estudo tipo caso-controle 27-29. Este último trabalho tam-
bém sugere possível segregação geográfica, agregação fa-
miliar nos casos de cardiopatia chagásica, em áreas
endêmicas 29.
Poucos estudos de seguimentode casos-controle fo-
ram executados em regiões endêmicas 7,36,37. No Brasil cen-
tral 36 duas avaliações clínicas transversais foram efetuadas
em 1974 e 1984, incluindo o ECG-12 derivações e o estudo
radiológico da silhueta cardíaca. Indivíduos sorologi-
camente positivos foram cotejados com controles pareados
por idade e gênero. Na 1ª das avaliações, 264 pares foram
incluídos, dos quais 110 puderam ser recompostos e
reexaminados com os mesmos métodos, 10 anos depois. A
incidência de cardiopatia (diagnosticada por aparecimento
de sintomas, e/ou distúrbios no ECG/radiografia de tórax),
em chagásicos previamente hígidos, foi de 38,3% durante a
década transcorrida com o trabalho. A mortalidade global
entre os chagásicos foi de 23%, em comparação com ape-
nas 10,3% no grupo controle. Ademais, a mortalidade
cardiovascular, incluindo morte súbita (MS) e por IC, foi
17% no grupo sorologicamente positivo, contraposta a
apenas 2,3% entre os controles. Significativamente, a morta-
lidade global foi superior nos chagásicos do gênero mascu-
lino, e predominou na faixa etária de 30 a 59 anos 36.
O mesmo grupo de investigadores, empregando méto-
dos similares em região nordestina brasileira, encontrou ta-
xas de mortalidade de 1,6 e 0% para 125 grupos pareados
respectivamente, de indivíduos chagásicos e controles,
seguidos por 4,5 anos 37. A progressão da doença, avaliada
eletrocardiograficamente, ocorreu em apenas 10,4% dos
chagásicos, em comparação a 4,8% de alterações no ECG,
verificadas entre os controles. Embora sem comprovação
direta levantou-se a hipótese de se dever à diversidade de
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cepas do T. cruzi a diferença de morbidade e mortalidade
encontrada entre as duas regiões 7.
Há também suficiente evidência para apoiar a noção de
que a mortalidade associada à cardiopatia chagásica seja
nitidamente correlacionada com a gravidade da disfunção
ventricular 7. Assim, sobrevivência até dois anos, após o
primeiro episódio clinicamente manifesto de IC, foi de ape-
nas 33.4% em 160 pacientes 38. A notar, 10% dos óbitos fo-
ram súbitos, inesperados. Nos 98 pacientes que foram au-
topsiados nessa série, documentou-se prevalência <20%
de formas tissulares do T. cruzi, com flagrante predomínio
deste aspecto em homens 38.
Em estudo de 107 pacientes chagásicos seguidos por
10 anos, significante redução da expectativa de vida, com-
parativamente à de 22 indivíduos controles, ocorreu apenas
naqueles portadores de alterações clínicas e/ou eletro-
cardiográficas. Quando havia sinais de IC no início do perío-
do de seguimento, a mortalidade em 10 anos alcançou o ní-
vel de 82% em 34 pacientes, contrastando com sobrevivên-
cia de 65% em 10 anos, para os pacientes sem IC, mesmo que
portadores de alterações no ECG, quando do início do perí-
odo observacional 39.
Outra investigação, envolvendo 104 pacientes chagá-
sicos masculinos internados por IC, relatou taxa de mortali-
dade de 52% após cinco anos. Os preditores mais relevan-
tes para sobrevivência foram a fração de ejeção de ventrí-
culo esquerdo (FEVE) e o consumo máximo de oxigênio du-
rante esforço físico 40.
Em série de 42 pacientes com cardiopatia chagásica
diagnosticada nos EUA, 11 mortes ocorreram durante segui-
mento médio de aproximadamente cinco anos, sempre em
associação com disfunção de ventrículo esquerdo (VE), re-
gional ou global. A IC na apresentação ou superveniente
durante o seguimento constituiu importante preditor de
mortalidade. Isso, surpreendentemente, não se verificou
com a MS abortada nem com a ocorrência de taquicardia
ventricular sustentada (TVS) 8. Estes resultados conflitam
com a evidência obtida em outro estudo, com 44 pacientes
seguidos por dois anos, para os quais a taquicardia ventri-
cular detectada durante o esforço físico representou rele-
vante risco de MS 41. A discrepância entre esses dois estu-
dos provavelmente explica-se pela limitação comum a am-
bos, de englobarem relativamente pequeno número de pa-
cientes e curto período de seguimento.
Em síntese, há evidência substancial de que o mais
importante fator de mau prognóstico na CCC manifesta seja
o grau de disfunção miocárdica. Quando se instala falência
ventricular, o prognóstico é bastante sombrio, comparável
ao descrito nas coortes de Framingham, com mortalidade
próxima a 50% em quatro anos. É possível, embora não se
disponha de evidência sólida para embasar esta noção, que
arritmias ventriculares e MS contribuam relativamente mais
para a mortalidade geral associada à cardiopatia chagásica
do que à devida a outras etiologias de IC 7.
Manifestações clínicas
Após a inoculação do agente etiológico, segue-se pe-
ríodo de incubação de cerca de 7 a 10 dias. As lesões conhe-
cidas como “chagomas”, incluindo o típico mas não especí-
fico sinal de Romaña, decorrem de edema de mucosa ou
cutâneo, no local na inoculação. Alterações cardíacas sem-
pre podem ser detectadas em qualquer fase da cardiopatia
chagásica, mas, caracteristicamente, na fase aguda, verifica-
se notável dissociação entre a gravidade da miocardite e a
escassez de manifestações clínicas 7. Sintomas e sinais
sistêmicos infecciosos (febre, hepato-esplenomegalia,
sudorese, mialgias) são acompanhados, na fase aguda, por
alterações laboratoriais igualmente não-específicas:
leucocitose, com linfocitose absoluta, cardiomegalia radio-
lógica, e distúrbios eletrocardiográficos [sendo os mais fre-
qüentes taquicardia sinusal, batimentos ectópicos ventri-
culares, baixa voltagem, alterações difusas da repolarização
e bloqueio atrioventricular (BAV) incompleto]. Durante as
primeiras semanas os testes sorológicos para infecção
chagásica são usualmente negativos, mas o xenodiag-
nóstico pode comprovar formas circulantes do T. cruzi. O
diagnóstico de miocardite chagásica aguda causada por
transfusão sangüínea requer elevado grau de conscien-
tização e acuidade clínica, principalmente em regiões não-
endêmicas 42. Este princípio também é aplicável ao problema
diagnóstico representado pela reagudização da DC em pa-
cientes crônicos cursando com deficiência imunológica 42.
Estudos necroscópicos e investigações in vivo, empregan-
do diversos métodos de avaliação da função contrátil, da
perfusão miocárdica, do controle autonômico sinusal e do
ritmo cardíaco, bem como biópsia ventricular direita, de-
monstraram que virtualmente todos os indivíduos chagá-
sicos (inclusive aqueles com a forma indeterminada), são
afetados por alterações de graus variáveis do desempenho
cardiovascular 7,43-48.
Torna-se oportuno enfatizar que todas as alterações
anatômicas e funcionais detectadas em vida são consisten-
tes com os resultados de autópsias efetuadas em séries ex-
tensas de pacientes falecidos nos vários estágios evo-
lutivos da cardiopatia chagásica 43,44,49,50.
Tendo em vista as implicações prognósticas discutidas
acima, é conveniente classificar os pacientes cardiopatas
chagásicos de acordo com vários indicadores: sintomas, si-
nais físicos, alterações eletrocardiográficas, presença de
cardiomegalia radiológica, grau de disfunção ventricular di-
reita e esquerda sistólica e diastólica, defeitos perfusionais
miocárdicos, disautonomia cardíaca e anormalidades
teciduais detectadas pela biópsia de ventrículo direito (VD)
(tab. I). Os sintomas e sinais físicos presentes na forma crôni-
ca da cardiopatia chagásica derivam de três síndromes essen-
ciais, que podem coexistir no mesmo paciente: IC, disritmias,
e tromboembolismo sistêmico e/ou pulmonar.
A IC de etiologia chagásica é geralmente de padrão
biventricular. Caracteristicamente, as manifestações de in-
suficiência ventricular direita (aumento da pressão venosa
jugular, edema, ascite, hepatomegalia) são mais pronuncia-
das do que as de congestão pulmonar (dispnéia, estertores
crepitantes) 51. Outro sintoma comum é a fatigabilidade. O
examefísico geralmente evidencia sopros regurgitantes
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Cardiopatia chagásica
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mitral e/ou tricúspide, amplo desdobramento da 2ª bulha,
devido à combinação dos efeitos da hipertensão pulmonar
e do BRD, além de impulso apical impulsivo e/ou amplo.
A arritmia cardíaca, incluindo salvas de extra-sístoles,
causa palpitação, lipotimia, pré-síncope e síncope 52. Esses
sintomas podem também ser causados por BAV completo,
que pode ser diagnosticado por inspeção meticulosa do
pulso jugular e pela ausculta cardíaca. Como referido, a
complexidade da arritmia cardíaca tende a se correlacionar
com a intensidade da disfunção ventricular. Entretanto, não
é incomum encontrar-se pacientes chagásicos com formas
avançadas de arritmia ventricular e preservação da FEVE.
Em geral, tais pacientes apresentam distúrbios regionais da
mobilidade ventricular 52.
MS ocorre com incidência não bem determinada, mas
certamente não é um fato irrelevante e pode ocorrer, embora
muito raramente, mesmo em pacientes previamente assin-
tomáticos. Esse tipo de desfecho é muitas vezes precipitado
por esforço físico estrênuo e associa-se, nos casos em que
foi possível documentá-lo, com taquicardia degenerando
para fibrilação ventricular, ou, muito menos freqüentemente,
a assistolia e BAV. Estudos necroscópicos revelam que pa-
cientes que sofreram MS em tais condições apresentavam
graus variáveis porém constantes de miocardite e depo-
pulação neuronal cardíaca 44. Em alguns desses pacientes,
havia evidência em vida, ou post-mortem de aneurismas
ventriculares em diversas áreas ventriculares (posterior,
ínfero-lateral ou apical) 42.
Embolia sistêmica ou pulmonar, originada das próprias
câmaras cardíacas ou de trombose venosa profunda preci-
pitada por débito cardíaco baixo cronicamente, constitui
complicação freqüente e grave da cardiopatia chagásica.
Muito provavelmente a real incidência dessa complicação é
subestimada, clinicamente. Assim, um estudo de 1.345 au-
tópsias consecutivas de pacientes chagásicos mostrou
trombose cardíaca ou embolização periférica em 44% dos
casos, onde, embora a formação de trombos murais afetasse
igualmente as câmaras direitas e esquerdas, a embolia
sistêmica era mais freqüente do que a embolização pulmo-
nar, sendo que esta última complicação relacionava-se dire-
tamente com a causa mortis em 14% de todos os casos 50.
Dor torácica, usualmente atípica para isquemia miocár-
dica, é outro sintoma comum 8,47,53,54. Em um contingente
pequeno, mas não desprezível de pacientes chagásicos,
esse sintoma mimetiza muito fielmente o quadro de síndrome
coronariana aguda 55,56.
Métodos diagnósticos complementares
É um fato marcante da CCC, que alguns portadores de
anormalidades eletrocardiográficas e áreas de dissinergia
ventricular significante possam ser trabalhadores braçais
por longos períodos, sem sintomas decorrentes de sua in-
tensa atividade física 7,44,47.
De forma geral, o uso judicioso de diversos tipos de
exames laboratoriais pode indigitar a presença de anormali-
dades anatômicas e funcionais e contribuir para o estabele-
cimento de diagnóstico e prognóstico apropriados, em vári-
as condições clínicas 42.
Exames sorológicos - Métodos capazes de detectar
anticorpos dirigidos a antígenos parasitários específicos
permitem o diagnóstico etiológico da doença 57. De utiliza-
ção mais freqüente são os baseados em fixação de comple-
mento, imunofluorescência e ELISA, os quais, rigorosamen-
te padronizados, alcançam sensibilidade e especificidade
superiores a 90%. Métodos mais modernos e acurados con-
sistem no emprego de técnicas de biologia molecular para
Tabela I - Classificação fisiopatológica da cardiopatia chagásica crônica conforme o estágio evolutivo,
baseada em evidências clínicas e laboratoriais de dano miocárdico
Forma clínica Indeterminada cardiopatia clinicamente manifesta Insuficiência cardíaca
Estágio evolutivo IA IB II III
Sintomas Ausente Ausente Mínimos Conspícuos
Exame físico Normal Normal Pode ser anormal Anormal
Alterações no ECG Ausente Ausente BRD, BRE, BAV, BEVP + ondas Q TV
Área cardíaca Normal Normal Normal Aumentada
(radiografia torax)
VD: anatomia e função Normal Pode estar deprimida Freqüentemente anormal Anormal
VE: função diastólica ? Anormalidades leves Anormal Anormal
VE: função sistólica Normal Leve dissinergia regional Dissinergia segmentar Depressão global
Defeitos perfusionais ? Podem ocorrer Freqüente Freqüente
Função autonômica ? Pode ser anormal Pode ser anormal Freqüentemente
Biópsia VD ? Pode ser anormal Anormal Anormal
Teste de esforço Normal Pode ser anormal: Pode ser anormal: Anormal:
- arritmia - arritmia + redução da
- déficit cronotrópico - déficit cronotrópico capacidade física
Arritmia/morte súbita Ausente Muito raro Freqüência variável Freqüente
* Modificada6, com permissão. VE- ventrículo esquerdo; VD- ventrículo direito; ECG- eletrocardiograma; BAV- bloqueio atrioventricular: BRD- bloqueio do ramo
direito do feixe de His; BRE- bloqueio do ramo esquerdo; BEVP- batimento ectópico ventricular prematuro; TV- taquicardia ventricular; ? - desconhecido.
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Marin-Neto e cols
Cardiopatia chagásica
Arq Bras Cardiol
volume 72, (nº 3), 1999
detectar DNA parasitário 58-60. Tais técnicas também am-
pliam o potencial de melhor caracterizar diagnóstica e
prognosticamente a infecção chagásica, por permitirem
identificar mais adequadamente a cepa parasitária 60.
Eletrocardiograma - O ECG de 12 derivações rotineiro
detecta, com muita freqüência, BRD associado ou não a
hemibloqueio anterior esquerdo, alterações difusas da
repolarização ventricular, batimentos ventriculares ectópi-
cos, isolados ou em salvas, muitas vezes multiformes. Tam-
bém são comuns ondas Q patológicas, e graus variáveis de
BAV. Em estágios mais avançados da cardiopatia pode apa-
recer baixa voltagem generalizada e fibrilação atrial 61.
Radiologia do tórax - O aspecto mais característico, em
muitos doentes, consiste de cardiomegalia global, des-
proporcionalmente intensa perante o grau discreto de con-
gestão pulmonar 42.
Monitorização eletrocardiográfica dinâmica (Holter)
- Praticamente todos os tipos de disritmia atrial e ventricular,
incluindo-se a disfunção do nó sinusal, o BAV intermitente,
e a ectopia ventricular complexa podem ser detectados 52,62.
Ecocardiografia - Nos estágios iniciais da doença, este
exame é valioso para detecção de áreas dissinérgicas, inclu-
sive a virtualmente patognomônica lesão apical. Nos está-
gios mais avançados da doença verifica-se hipocinesia e di-
latação global, comumente associada a regurgitação mitral e/
ou tricuspídea 63.
Teste ergométrico - Este exame é relativamente limita-
do para avaliação de pacientes chagásicos com dor
precordial, porquanto muitos deles apresentam alterações
no ECG basal, que virtualmente impossibilita sua interpreta-
ção durante o esforço físico, com relação a possíveis dis-
túrbios isquêmicos 64. Entretanto, o teste ergométrico pode
representar alternativa adequada ao exame de Holter, para
detecção de arritmias ventriculares durante o exercício 41,65.
Também pode ser constatada deficiente resposta cronotró-
pica ao esforço, devida à depressão do controle parassim-
pático sinusal 66,67.
Angiocardiografia nuclear - Ainda que menos dispo-
nível do que a ecocardiografia para finalidades clínicas, este
exame tem se mostrado muito útil em pesquisas visando à
análise da função biventricular, em fases precoces da
cardiopatia. Assim, em pacientes com a forma digestiva,
isolada ou indeterminada, disfunção ventricular direita re-
gional e global pode ser surpreendida na ausência de
envolvimento aparente do VE 68,69.
Cintilografia miocárdica de perfusão - Distúrbios
transitórios (do tipo reversível ou paradoxal) e irreversíveis
são detectáveis, com bastante freqüência, em chagásicos
portadoresde síndromes anginóides. Essas alterações da
perfusão miocárdica regional ocorrem na vigência de nor-
malidade coronária subepicárdica pela angiografia e, prova-
velmente, decorrem de disfunção ao nível microcirculatório
ou fibrose localizada 8,47,53.
Estudo hemodinâmico intravascular e angiografia de
contraste - O cateterismo cardíaco acompanhado de estudo
angiográfico torna-se muitas vezes imperativo, em pacien-
tes com sintomas sugestivos de isquemia miocárdica, e re-
sultados inconclusivos pela avaliação com ECG e cintilo-
grafia miocárdica, para confirmar ou, mais comumente, afas-
tar a presença de doença coronária obstrutiva. O método
também possibilita visibilização muito acurada das
dissinergias parietais ventriculares, que podem ser compli-
cadas por trombose 42,53-56.
Estudo eletrofisiológico intracardíaco - Exame indica-
do em casos selecionados para avaliar a função sinusal e a
condução AV, quando a origem dos sintomas permanece
obscura após avaliação não-invasiva 42. Embora sem de-
monstração objetiva de benefício direto, aceita-se a utilida-
de deste exame em dois outros subconjuntos da população
cardiopata chagásica: sobreviventes de episódio de MS; e
pacientes com TVS , para avaliar o prognóstico e ajudar na
escolha da estratégia terapêutica (medicações antiarrítmi-
cas, cirurgia, ou desfibrilador implantável) 70,71.
Em muitos pacientes com preservação da função glo-
bal de VE, que não apresentam taquicardia espontânea
(apenas indutível), ou somente sofrem de episódios não-
sustentados, a eletrofisiologia intracardíaca deixa de ter re-
levância prognóstica. Assim, a estimulação programada não
se mostrou capaz de induzir taquicardia ventricular em qual-
quer dos 72 pacientes apresentando de 400 a 1200 extra-
sístoles/hora, dos quais 35% tinham taquicardia ventricular
não sustentada (TVNS) durante a monitorização por méto-
do de Holter 71. Nesse grupo a FEVE era em média de 60%.
Apenas um entre os 72 pacientes apresentou TVS durante
seguimento médio de três anos 71.
Eletrocardiografia de alta resolução - Existe apenas
experiência preliminar com esta técnica. Em pacientes sem
distúrbios dromotrópicos, sugere-se que os potenciais tar-
dios ocorrem mais freqüentemente quando coexistem episó-
dios de TVS 72. Essas alterações também parecem se
correlacionar com o grau de disfunção ventricular, mas o seu
significado prognóstico permanece por estabelecer 73.
Ressonância magnética - Este método, conquanto
ainda não utilizável para fins clínicos habituais na cardio-
patia chagásica, demonstra potencialidade para revelar o
processo inflamatório subjacente, além de propiciar a ava-
liação anatômica e funcional da função cardíaca, com exce-
lente resolução espacial 74.
Avaliação autonômica cardíaca - Diversos testes
autonômicos simples (inclusive a medida da variabilidade
da freqüência cardíaca durante a monitorização eletro-
cardiográfica) podem ser empregados para demonstrar
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volume 72, (nº 3), 1999
Marin-Neto e cols
Cardiopatia chagásica
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disautonomia (predominantemente parassimpática) em pa-
cientes cardiopatas chagásicos crônicos 47,75-77. Todavia, as
anormalidades da regulação autonômica não produzem sin-
tomas nem causam hipotensão postural, de forma que seu
significado clínico é incerto.
Alterações patológicas
O conhecimento das alterações patológicas na
cardiopatia chagásica deriva de estudos necroscópicos em
humanos, e de observações em vários modelos experimen-
tais que reproduzem razoavelmente os vários estágios da
doença 43,78-86. Também os resultados da biópsia endo-
miocárdica foram úteis nesse sentido, inclusive para estudo
da forma indeterminada da moléstia 46,87.
Na fase aguda, a patologia se exterioriza, principal-
mente, por dilatação cardíaca global e derrame pericárdico.
A microscopia denota parasitismo intenso de praticamente
todos os sistemas orgânicos. A miocardite é intensa e
difusa, ocorrendo necrose miocitolítica, edema, vasculite e
infiltrado inflamatório, de natureza mono e polimorfonuclear.
Trombose mural pode complicar o processo inflamatório,
que se estende até o endocárdio. Há também envolvimento
do sistema de condução e dos plexos nervosos intramurais
e extracardíacos.
Quando o óbito sobrevem, após a instalação de IC na
fase crônica, observa-se na autópsia dilatação e aumento
conspícuo do peso cardíaco (350 a 800g em geral). A dilata-
ção predomina nas câmaras direitas e os sinais de conges-
tão sistêmica são mais proeminentes do que os de conges-
tão pulmonar 84,51. É possível que este aspecto peculiar seja
explicado por dano precoce e intenso do VD, fato este mui-
tas vezes negligenciado por estudos funcionais da CCC,
mas surpreendido por pesquisas dirigidas 68,69.
Encontra-se trombose mural, em vários estágios de
organização, em cerca de 50% dos pacientes autopsiados,
envolvendo igualmente as câmaras direitas e esquerdas 50.
A lesão mais específica é o aneurisma apical, descrito, em
um estudo, em 52% de 1.078 pacientes autopsiados 88. Esta
lesão não apresenta a típica fibrose que costuma ocorrer em
aneurismas de origem isquêmica e, muito raramente, se rom-
pe 78,88. Não se observa boa correlação entre a prevalência
de aneurisma apical e idade, peso cardíaco. A lesão apical
tem sido encontrada também em pacientes falecidos subita-
mente sem manifestações clínicas pregressas da doença 44.
O estudo histológico mostra a miocardite crônica, com de-
generação e necrose miocitária focal, associada a infiltrados
inflamatórios de tipo mononuclear 82,89. Estas anormalida-
des têm sido tradicionalmente interpretadas como indepen-
dentes de parasitismo direito das fibras miocárdicas, por-
que o T. cruzi é raramente encontrado, na fase crônica, em
estudos microscópicos de humanos e de modelos experi-
mentais de DC 82.
Fibrose focal, coalescente, constitui feição das mais
salientes, no miocárdio e no sistema especializado de con-
dução do estímulo elétrico 90. As alterações eletrocar-
diográficas descritas acima correlacionam-se com o envolvi-
mento inflamatório e de fibrose reparativa do ramo direito e
do fascículo ântero-superior esquerdo do feixe de His 89.
Distúrbios microvasculares descritos em modelos experi-
mentais consistem de rarefação capilar, edema intersticial,
agregados plaquetários e espessamento da membrana basal
vascular. Aspectos semelhantes foram encontrados em mate-
rial de biópsia endomiocárdica. Em pacientes com a forma
indeterminada, tais alterações foram encontradas em 60% dos
casos, mas tipicamente foram menos intensas do que em
chagásicos com cardiopatia clinicamente manifesta 46,87.
Depopulação neuronal intracardíaca e degeneração
dos plexos nervosos ocorre de forma intensa e típica na for-
ma crônica da cardiopatia chagásica 82,91,92. Contudo, não há
correlação entre a intensidade da agressão neuronal e o
grau de dilatação cardíaca ou outros sinais de miocardite na
fase crônica da moléstia 91.
Fisiopatologia e mecanismos de patogênese
As manifestações clínicas e o próprio dano orgânico
da fase aguda são nitidamente associados à multiplicação
parasitária no miocárdio, aparelho digestivo e sistema ner-
voso. A elevada parasitemia também se correlaciona com os
sinais de reação imunológica sistêmica, tais como a linfa-
denopatia, e o aumento de baço e fígado típicos desta fase
da moléstia. Com a remissão da parasitemia e das reações
inflamatórias sistêmicas, acredita-se que, durante a fase
indeterminada se desencadeie processo de miocardite focal
mais incessante, levando à destruição cumulativa de fibras
miocárdicas e paulatina fibrose reparativa 7,78.
Neste período, a miocardite é essencialmente silente,
salvo por episódios esporádicos de arritmia cardíaca e,
possivelmente, até de MS 44,93. A miocardite também leva a
perda progressiva de massa miocárdica que, atingindo-se
certo limiar de destruição, provoca dilatação cardíaca e/ou
disritmiaventricular potencialmente letal 7,78. O suporte
científico para esta concepção fisiopatológica genérica
advém de evidências proporcionadas por pesquisas em
vários modelos experimentais de cardiopatia chagásica, o
que, também, é corroborado por estudos correlativos de
aspectos clínicos e resultados necroscópicos em humanos.
Esses trabalhos observacionais incluíram sempre algumas
dezenas de pacientes nas fases aguda e indeterminada e
várias centenas ou milhares de casos com a forma crônica
da cardiopatia chagásica 7,78.
Arritmia ventricular complexa constitui um dos mais
relevantes aspectos fisiopatológicos da CCC, em vista de
sua potencial implicação na gênese de MS. Acredita-se que
esta manifestação seja mais conspícua em pacientes
chagásicos do que em miocardiopatas de outras etiologias,
embora não se tenha descrição de estudos comparativos.
Previsivelmente, há evidência de que a complexidade e in-
tensidade desses distúrbios de ritmo se correlacionem com
o agravamento da disfunção ventricular 94. Entretanto, po-
dem também ocorrer em pacientes chagásicos com função
ventricular esquerda global dentro de limites de normalida-
de. Há evidência de que o substrato eletrofisiológico bási-
254
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Cardiopatia chagásica
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co para a TVS seja constituído pela presença de macro-
circuitos de reentrada do estímulo elétrico, em regiões
ventriculares posteriores-basais ou póstero-laterais 95.
A despeito dos avanços registrados recentemente na
compreensão da fisiopatologia da cardiopatia chagásica, o
desafio precípuo continua sendo a identificação dos meca-
nismos patogenéticos operantes durante a fase indeter-
minada da moléstia de Chagas. A marcante discrepância
entre as manifestações clínicas e patológicas das fases
aguda e crônica, também requer elucidação a partir de sua
base comum infecciosa.
Fundamentalmente, há quatro classes de mecanismos
implicados na patogênese da cardiopatia chagásica:
Mecanismos neurogênicos - Como já assinalado, há am-
pla evidência necroscópica de intensa depopulação neuronal
nos vários estágios evolutivos da doença 49,79-82. Esses resulta-
dos são reproduzidos por investigações experimentais em
modelos animais de infecção chagásica 49,83-86,96-99. Os aspectos
histopatológicos mais salientes consistem de destruição
neuronal difusa e irregularmente distribuída nos vários tecidos.
Observam-se parasitismo ganglionar direto, mas também
periganglionite e lesões degenerativas das fibras nervosas
e das células de Schwann. Embora mais estudadas ao nível
do sistema parassimpático intramural cardíaco, essas anor-
malidades também envolvem o sistema ganglionar simpáti-
co pára-vertebral 81.
Em correspondência a esses estudos patológicos, ex-
tensa gama de investigações clínicas documentaram, em
humanos, graus intensos de depressão do controle auto-
nômico cardíaco, predominante, mas não exclusivamente
parassimpático 47,69,75-77,96. Isto constitui um dos aspectos
mais característicos, embora não específicos da CCC. Em
estudos comparativos, a denervação parassimpática, en-
contrada na doença reumatismal, na cardiomiopatia dilatada
idiopática, e na endomiocardiofibrose, foi nitidamente de
menor expressão do que na moléstia de Chagas 49.
É oportuno salientar que a depopulação neuronal expli-
ca satisfatoriamente a gênese do megaesôfago e megacólon
chagásicos 100 e, por analogia, tem sido implicada na teoria
neurogênica da CCC: a destruição preferencial do sistema
parassimpático cardíaco, instalando-se de forma intensa e
precoce, levaria a prolongado desequilíbrio autonômico, e
como conseqüência provocaria processo cardiomiopático de
base essencialmente catecolaminogênica 49,79.
Essa postulação tem sido desafiada por várias linhas
de evidência, questionando-se diretamente a possibilidade
de mecanismos neurogênicos constituírem fatores pato-
genéticos fundamentais 7. Assim, a freqüência e intensida-
de do processo de destruição neuronal são extremamente
variáveis ao nível individual e não se correlacionam com
qualquer parâmetro de disfunção miocárdica 77,92,96,101-103.
Essa variabilidade do comprometimento do sistema auto-
nômico cardíaco poderia, em tese, ser explicada por diversidade
neurotrópica entre cepas parasitárias ou por outros fatores,
genéticos ou ambientais 99. Estudos recentes mostram não
haver associação entre a disautonomia parassimpática e distúr-
bios regionais de contração ventricular 69.
Apesar destas objeções, é oportuno considerar-se o
fato de que em todas as investigações mencionadas, a ava-
liação autonômica limitou-se ao controle da freqüência car-
díaca, como marcador de influência parassimpática. Portan-
to, é plausível especular-se que eventuais distúrbios
autonômicos ao nível ventricular possam ocorrer sem pos-
sibilidade de detecção por esses métodos 47.
Investigações mais recentes permitiram aprofun-
damento sobre este aspecto, utilizando-se cintilografia por
impregnação com 123 I-meta-iodo-benzil-guanidina, para ava-
liação direta do sistema simpático ao nível miocárdico 104-106.
Denervação simpática regional foi detectada em elevada
proporção de pacientes, inclusive com a forma inde-
terminada da doença. Tais alterações foram verificadas em
áreas sem anormalidades contráteis e constituem a primeira
evidenciação de distúrbios do sistema simpático em nível
ventricular na CCC.
Em um desses estudos, também se observou elevada taxa
de esvaimento da impregnação miocárdica com 123 I-MIBG em
regiões ventriculares, exibindo mobilidade normal 106. Tal altera-
ção poderia ser devida a aumento precoce da atividade simpá-
tica em nível miocárdico, e interpretada como elemento compa-
tível com os postulados da teoria neurogênica. Entretanto, ex-
plicação alternativa consiste na possibilidade de ocorrência de
competição pelos receptores neurais simpáticos, entre o rádio-
traçador utilizado e substâncias endógenas antagônicas.
Esta última e hipotética possibilidade poderia se coa-
dunar com relatos recentes sobre a existência de anticorpos
circulantes, com capacidade de ligação a receptores tanto
colinérgicos como adrenérgicos em linfócitos e no mio-
cárdio 107-111. Tais anticorpos parecem ser capazes de de-
sencadear efeitos fisiopatológicos, enzímicos, morfo-
lógicos e alterações moleculares potencialmente lesivas
ao miocárdio 109-111. Além disso, depósito desses anti-
corpos em estruturas de receptores neurotransmissores
poderia causar sua dessensibilização e causar denervação
progressiva. Mecanismos como esses, se comprovados
em investigações adicionais, poderiam conciliar alterações
neurogênicas e agressão imunológica, como fatores
fisiopatológicos na CCC.
Em síntese, a teoria neurogênica continua muito discu-
tível. O significado prognóstico de suas implicações não foi
estabelecido, e a atraente hipótese de seu envolvimento na
gênese de mecanismos de MS permanece inteiramente
especulativa 93,112.
Mecanismos inflamatórios ligados ao parasita - Du-
rante várias décadas passadas acreditou-se que, em virtude
do baixo grau de parasitismo miocárdico e da intrigante au-
sência de correlação topográfica entre os focos inflama-
tórios e os locais de assestamento das formas amastigotas
do T. cruzi nas miocélulas, o parasita não representasse fa-
tor patogenético decisivo na fase crônica da cardiopatia 82.
Esta visão enraizava-se na verificação de que a miocardite
linfocitária focal e a necrose miocitolítica podiam ocorrer em
áreas não aparentemente parasitadas, e também, na consta-
tação de que a parasitemia era sempre, quando existente,
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volume 72, (nº 3), 1999
Marin-Neto e cols
Cardiopatia chagásica
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muito escassa, na forma crônica 51,113,114. Entretanto, investi-
gações mais recentes, empregando técnicas imunohisto-
químicas para detecção de anticorpos dirigidos contra
antígenos do T. cruzi, comprovam a existênciade correlação
topográfica entre os focos onde estas alterações são
detectáveis e as próprias reações inflamatórias 113,115. Resul-
tados similares foram obtidos quando se empregou o mé-
todo de PCR para detectar fragmentos genômicos de T.
cruzi 116. Adicionalmente, técnicas de biologia molecular
permitem, agora, detectar antígenos plasmáticos derivados
do T. cruzi em contingentes apreciáveis de pacientes
chagásicos nos quais essa evidenciação era impossível
usando técnicas sorológicas convencionais 117,118. Assim,
torna-se plausível especular que mesmo sendo de baixo ní-
vel, o parasitismo possa representar mecanismo de ativação
antigênica permanente, e constituir fator patogenético es-
sencial de alteração imunológica na fase crônica da moléstia
de Chagas 119-121.
Se o parasitismo estivesse comprovadamente ligado à
patogênese da cardiopatia crônica, haveria relevantes implica-
ções terapêuticas potenciais. Nesse sentido, há apenas escas-
so indício da possibilidade de que o tratamento etiológico pu-
desse influenciar favoravelmente o curso clínico da fase crôni-
ca da doença 122. Assim, um estudo não-randomizado, aberto,
controlado por placebo, incluiu 131 chagásicos tratados com
benzonidazol, que tiveram sua evolução comparada à de ou-
tros 70 pacientes não tratados com essa medicação, em segui-
mento de oito anos em média 123. Relatou-se redução significa-
tiva da incidência de novas alterações eletrocardiográficas e de
deterioração clínica no grupo tratado. Resultados semelhantes
foram relatados recentemente, usando-se itraconazol e
alopurinol 124. Se esses estudos puderem ser ratificados por
outras investigações mais abrangentes, tais resultados refor-
çariam consideravelmente a teoria de que o parasita possa par-
ticipar direta e decisivamente na gênese da agressão mio-
cárdica da fase crônica da DC.
Anormalidades microcirculatórias - Várias classes
de evidência clínica e experimental subsidiam o conceito de
que distúrbios isquêmicos transitórios ocorram em nível
microvascular na CCC.
A primeira classe de evidências relaciona-se com as
características morfológicas da miocardite crônica. A distri-
buição focal e a natureza miocitolítica da necrose observa-
da, bem como a intensa fibrose reparativa são feições tam-
bém observadas em modelos experimentais não-chagásicos
de isquemia/reperfusão miocárdica, e indigitam a ocorrên-
cia de distúrbios isquêmicos miocárdicos esparsos, com
envolvimento coronário em nível microcirculatório 125-127.
Este último aspecto patológico tem sido também verificado
em estudos necroscópicos em humanos 127-129 e em modelos
murinos de CCC 130-134. Em animais de experimentação, des-
creveu-se a presença de trombos oclusivos plaquetários
em vasos coronarianos subepicárdicos e intramurais, com-
patíveis como fatores causais de isquemia provocada por
anormalidades microvasculares e verificada nesses estu-
dos por técnicas histoquímicas específicas 133,134. Além dis-
so, administração de verapamil, antagonista dos canais de
cálcio dotado de potente efeito vasodilatador e, possivel-
mente, também antiplaquetário, mostrou-se capaz de reduzir
a extensão do dano miocárdico e a letalidade em camundon-
gos infectados com T. cruzi 135.
Também em várias investigações clínicas independen-
tes, usando-se diversos marcadores perfusionais (tálio-201, 99m
-sestamibi e microesferas também marcadas com tecnécio-99m)
foram documentados defeitos miocárdicos perfusionais, du-
rante esforço e repouso, em pacientes chagásicos com artérias
coronárias angiograficamente normais 8,47,70,136-142. Esses distúr-
bios perfusionais (fixos, reversíveis ou paradoxais) foram en-
contrados em significante proporção desses pacientes, mes-
mo na completa ausência de outros sinais de dano miocárdico.
Estudo da resposta de fluxo coronariano à administra-
ção de acetil-colina, em pacientes chagásicos, sugeriu a
ocorrência de disfunção endotelial 143. De forma análoga,
outra investigação relatou reatividade coronária subepicár-
dica anormal aos testes da hiperventilação e da ministração
de nitrato. Estes resultados são também compatíveis com a
noção de que em chagásicos crônicos haja anormalidades
funcionais da regulação do fluxo coronário 144. Estudos com
técnicas de análise ultra-estrutural em modelo canino de
cardiopatia chagásica, sugerem que o comprometimento
microcirculatório possa ser secundário à interação lesiva de
células inflamatórias com o endotélio vascular 145. Torna-se
plausível especular que substâncias como a tromboxana-
A2, citocinas, e prostaglandinas, secretadas no infiltrado
inflamatório, afetem de forma incisiva a reatividade vascu-
lar. Esta hipótese, portanto, vincula a isquemia micro-
vascular detectada na cardiopatia chagásica ao processo
inflamatório 126. Em contraposição, os fenômenos isquê-
micos potenciariam os efeitos lesivos da inflamação primá-
ria, em mecanismo de retro-alimentação fisiopatológica.
Também parece razoável admitir-se, como hipótese de
trabalho, que a elucidação dos mecanismos causais da
isquemia experimentada por pacientes chagásicos possa
contribuir para definição da estratégia mais adequada de tra-
tar a precordialgia que apresentam.
Mecanismos de agressão imunológica - Vasto acervo
de relatos de investigações científicas parece apoiar a teoria
que atribui a mecanismos de auto-imunidade o papel-chave
da patogênese da CCC. O conceito de que a miocardite
mononuclear propicie os elementos celulares efetores de
agressão de fibras miocárdicas não parasitadas deriva de
estudos histopatológicos, utilizando microscopia de luz.
Mais recentemente, essa evidência foi corroborada por es-
tudos em modelos de experimentação animal, com métodos
ultra-estruturais, sugerindo a ocorrência de reatividade imu-
ne cruzada entre antígenos do parasita e do miocárdio 145.
Esse mimetismo antigênico relativo ao T. cruzi e ao
miocárdio tem sido descrito para extensa série de anti-
corpos dirigidos contra diversos antígenos do hospedeiro
da infecção chagásica 146-150. Todavia, para demonstrar que
esse efeito biológico pudesse ter relevância clínica, pelo
menos potencial, no sentido de apoiar a teoria da auto-imu-
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nidade, seria necessário identificar a presença de auto-
antígenos específicos, cuja injeção em hospedeiro sensí-
vel, reproduzisse a agressão orgânica. Lesão miocárdica
deveria, ainda, ser produzida por transferência passiva de
linfócitos 151.
Recentemente, esse tipo de evidência em apoio à teo-
ria auto-imune foi obtida pela identificação, no modelo
murino de doença chagásica experimental, de linfócitos
TCD4+ específicos contra miosina 152. Outro indício forte-
mente sugestivo foi a demonstração de que é possível deter
o processo de agressão miocárdica, nesse modelo, induzin-
do-se a depleção desses linfócitos 153. Em adição, lesão
miocárdica em animais não infectados pôde ser induzida por
transferência passiva dos linfócitos TDC4+ obtidos dos
camundongos chagásicos 153.
Finalmente, epítopos específicos, associados com a
resposta imune do hospedeiro, com potencial capacidade
de mediar dano miocárdico, foram identificados 120,154-162. Há
também evidência de que a estimulação permanente de
macrófagos expostos aos antígenos do T. cruzi leva a pro-
dução de citocinas, modulando a resposta imune e, possi-
velmente, causando a relativa depressão imunológica que,
provavelmente, é responsável direta por perpetuar a infec-
ção 121,163,164. Todos esses resultados investigacionais re-
centes se colimam para apoiar a teoria de que a miocardite
linfocitária fibrosante, focalmente identificada na CCC seja
determinada por resposta auto-imune a epítopos próprios
da estrutura protéica miocárdica. Essa intolerância imuno-
lógica parece ocorrer por mimetismo dessas estruturas por
antígenos parasitários.
Em síntese, a visão modernaconfere a mecanismos li-
gados à presença do agente etiológico e a respostas auto-
imunes o papel preponderante na gênese da CCC. Disau-
tonomia cardíaca e isquemia em nível microvascular são,
muito possivelmente, apenas fatores ancilares, atuando
para intensificar e ampliar o alcance deletério daqueles meca-
nismos patogenéticos sobre o miocárdio. Esta visão fisiopa-
togênica global, com as interações de retro-alimentação po-
sitiva postuladas, encontra-se esquematizada na figura 1.
Tratamento da cardiopatia chagásica
Tratamento etiológico - Dois fármacos (nifurtimox e
benzonidazol) são disponíveis para uso clínico, com
efetividade antiparasitária comparável e, também, exibindo
espectro superponível de efeitos colaterais nocivos,
comumente responsáveis pela interrupção do tratamento:
dermatite, polineurite, leucopenia, intolerância gastroin-
testinal 165,166. O relato recente de mais alta incidência de
câncer em pacientes chagásicos submetidos a transplante
cardíaco e requerendo terapia tripanossomicida, também
sugere ser a pesquisa de drogas mais efetivas e melhor tole-
radas altamente recomendada 167. Há resultados recentes de
tratamento da reativação chagásica em pacientes que rece-
Fig. 1 – Mecanismos patogenéticos na cardiopatia chagásica crônica.
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beram transplante cardíaco, com alopurinol e itraconazol,
que são especialmente provocantes mas demandam escru-
tínio e confirmação rigorosos, antes de permitirem conclu-
sões mais abalizadas 124,168.
É virtualmente consensual a opinião de que pacientes
com a forma aguda da infecção chagásica, por qualquer dos
mecanismos identificados de transmissão, devam ser trata-
dos etiologicamente, para controle sintomático, deter o pro-
cesso da miocardite e/ou encefalite, e, presumivelmente,
minimizar o dano orgânico. A eficácia do tratamento no que
concerne a este último aspecto não pôde ainda ser demons-
trada, por carência de estudos controlados, com seguimen-
to apropriado. Após o tratamento nessa fase aguda, há
negativação do xenodiagnóstico em mais de 90%, e os tes-
tes sorológicos são normalizados em cerca de 80% dos pa-
cientes. O alcance prognóstico da conversão sorológica
permanece por ser determinado, também por não se dispor
de estudos adequadamente conduzidos para avaliar tão im-
portante aspecto clínico. Na CCC os potenciais efeitos pro-
tetores da terapêutica antiparasitária não são demons-
tráveis por combinação de razões: em primeiro lugar, os mé-
todos de avaliação da eficácia terapêutica não são absoluta-
mente confiáveis; além disso, somente escassos estudos
muito limitados numericamente e, quanto ao esquema pro-
tocolar não controlado, foram relatados 169-171. Por exemplo,
a negativação sorológica com o tratamento não pode ser
usada como indicador de impacto sobre o curso clínico da
moléstia, porquanto esses dois aspectos são claramente
dissociáveis, e a negatividade da sorologia e da parasitemia
são espontaneamente comuns na evolução natural da fase
crônica. Outro limitante encontrado nesses estudos refere-
se ao viés introduzido por seleção de pacientes com para-
sitemia persistente antes do tratamento 7. Finalmente, con-
forme já discutido, estudos experimentais revelam que, en-
quanto a parasitemia pode ser escassa ou mesmo não
detectável, com os métodos empregados naqueles estudos,
o parasitismo tissular pode ser significativamente mais in-
tenso e relevante 114.
Em contraposição, sorologia persistentemente positi-
va poderia simplesmente refletir a vigência de mecanismos
de memória imune, ou se associar a reatividade cruzada con-
tra antígenos alterados do hospedeiro. Assim, todos os cri-
térios já utilizados para avaliação sorológica dos resultados
de tratamento etiológico na fase crônica da moléstia de Cha-
gas são inadequados, impedindo interpretações definitivas
sobre o significado das taxas bastante reduzidas de nega-
tivação verificadas (4-8%) nos estudos mencionados 169-171.
Em conseqüência dessas limitações, enquanto não se
dispuser de método laboratorial adequado para avaliação, o
único critério aceitável de efetividade de qualquer forma de
tratamento etiológico deverá forçosamente se basear na
prevenção de complicações clínicas da doença.
Portanto, não são atualmente autorizadas quaisquer re-
comendações de tratamento etiológico, como recurso clínico
indiscriminado na fase crônica da moléstia de Chagas. Clara-
mente, seria necessário seguimento prolongado de coortes
extensas de pacientes chagásicos, para detectar eventuais
inflexões na história natural da cardiopatia crônica, que fos-
sem imputáveis ao tratamento tripanossomicida 7.
Tratamento da insuficiência cardíaca congestiva -
Sendo a exteriorização hemodinâmica da IC de etiologia
chagásica superponível em muitos aspectos à da mio-
cardiopatia dilatada, intervenções terapêuticas clássicas -
restrição salina, diuréticos, digital, vasodilatadores como
nitratos e hidralazina - têm sido empregadas liberalmente
para alívio sintomático em cardiopatas chagásicos 7. De
fato, vários trabalhos observacionais, de pequenas dimen-
sões populacionais, não controlados por placebo, relataram
benefício hemodinâmico agudo associado ao uso desses
diversos agentes farmacológicos, e, em menor grau, aumen-
to da capacidade de esforço físico a curto prazo. Todavia,
não há estudos publicados sobre redução de mortalidade
ou mesmo sobre benefício sintomático ou hemodinâmico a
longo prazo, em cardiopatas chagásicos 7.
Estudos preliminares, englobando pequenos grupos
de pacientes tratados com inibidores da enzima de conver-
são da angiotensina (IECA) pareceram evidenciar resulta-
dos promissores em termos de alívio sintomático 172,173. Em-
bora não se disponham de estudos com esses agentes, ou
mesmo, com quaisquer outros, mostrando impacto benéfico
sobre a sobrevivência, na cardiopatia chagásica, é lógico
supor, como hipótese de trabalho, que os efeitos favoráveis
dos IECA possam ser, em pacientes chagásicos, super-
poníveis aos verificados em outras etiologias de IC. Em rea-
lidade, há evidência incipiente de que, pelo menos aguda-
mente, administração desse tipo de agente, produza efeito
neuromodulador benéfico em cardiopatas chagásicos com
essa síndrome 174.
 Conforme já exposto, são precocemente detectáveis,
em alguns pacientes chagásicos com a forma indeterminada
da doença, anomalias regionais contráteis 63,175. Por outro
lado, a discreta dissinergia assim manifesta parece refletir a
extensão do dano miocárdico, mais fielmente do que as alte-
rações no ECG que, classicamente, foram consideradas pre-
cursoras de envolvimento cardíaco mais grave 176. Ademais,
recentemente obteve-se indício de que a dissinergia regio-
nal, ainda que discreta, precocemente detectada, associe-se
a relevante implicação prognóstica desfavorável 177. Por
conseguinte, à luz dessas evidências em conjunto, torna-se
plausível admitir a conveniência de se testar a hipótese de
que, na cardiopatia chagásica, por analogia com o demons-
trado em outras etiologias de agressão miocárdica, a inter-
venção terapêutica precoce possa evitar a instalação de IC
clinicamente manifesta, e alterar a ominosa história natural
da doença.
Abordagens cirúrgicas - Transplante cardíaco -
Como em outras cardiopatias, o transplante cardíaco foi rea-
lizado em pequenos grupos de pacientes chagásicos com
IC refratária. Atualmente, a aplicação do método está restri-
ta por impedimentos de ordem socioeconômica, e pelo po-
tencial de reativação da infecção chagásica que se segue à
depressão do sistema imune. Miocardite aguda, acompa-
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nhada de marcante depressão da função ventricular, ocorreu
em cinco dos nove primeiros pacientes incluídos na mais ex-
tensa série (22 casos) operada em umúnico centro médico 178.
Embora a reagudização seja geralmente bem controlada por
terapêutica antiparasitária, a possibilidade de dano irre-
versível ao coração transplantado não é negligenciável.
Nos últimos 13 pacientes dessa série, tratados com regime de
imuno-modulação com ciclosporina mais apropriado, essa
complicação ocorreu em apenas um caso. Neste subgrupo a
sobrevida após dois anos do transplante foi de 80%, confi-
gurando resultados encorajadores relativamente a outras
séries anteriores. Contudo, deve-se reconhecer que o im-
pacto desta modalidade terapêutica a longo prazo está ain-
da por ser determinada, mediante estudos adequadamente
desenhados, em coortes mais amplas de pacientes 7.
Cardiomioplastia dinâmica - Este procedimento cirúr-
gico paliativo tem sido empregado de forma bastante limita-
da em pequenos grupos de pacientes chagásicos nos quais
foram obtidos resultados iniciais promissores, em termos de
controle sintomático e melhora hemodinâmica aguda 179.
Resenha recente de experiência em centros sul-americanos
com essa técnica cirúrgica, compreendendo total de 112
pacientes, englobava apenas 13 pacientes chagásicos com
IC 180. Após um e cinco anos de seguimento após a inter-
venção, a sobrevivência no subgrupo chagásico foi res-
pectivamente de 40 e 9,5%, valores que, aparentemente, são
muito inferiores aos observados nos demais pacientes des-
sa compilação, portadores de cardiomiopatia dilatada, com
sobrevivência de 86,1% e 49,8% nos respectivos períodos
de seguimento. Não se despistaram possíveis fatores de
mau prognóstico que explicassem o aparente insucesso re-
lativo do procedimento em cardiopatas chagásicos. Isso
demonstra a necessidade de se definir, com base em expe-
riência prospectivamente desenhada e controlada, o papel
eventual desse procedimento, em grupos seletos de pacien-
tes chagásicos refratários, pelo menos como abordagem
temporária, talvez como passo intermediário para adoção
de condutas mais radicais e potencialmente mais efetivas,
como o transplante 7.
Prevenção de complicações tromboembólicas - Existe
apenas escassa informação sistematizada sobre prevenção
de fenômenos tromboembólicos em pacientes chagásicos
apresentando trombos murais ou aneurisma apical 7. Em 65
portadores desta última lesão estudo de seguimento por
período mediando de 19 a 176 meses documentou 17 episó-
dios de embolia em 14 pacientes (24,5%) 181. Esses pacientes
também apresentavam IC congestiva, tendo 11 deles faleci-
dos durante o tempo de observação do estudo. Em oito ca-
sos a causa mortis foi diretamente ligada à IC e em três a
embolia cerebral.
Outro estudo de pequenas dimensões populacionais
focalizou a contribuição específica da cardiopatia chagásica
como causa de embolia em 69 pacientes com acidentes
vasculares cerebrais tratados em região sul-americana
endêmica 182. Entre 13 pacientes com cardiopatia dilatada
não isquêmica, a etiologia chagásica foi comprovada em 9
(13,0%) casos. Isto representou a 3ª causa mais freqüente
de embolia, após fibrilação atrial (29%) e doença valvular
reumática (20,3%)
Entretanto, o risco real de tromboembolismo na cardio-
patia chagásica é desconhecido, pois não foram realizados
estudos dirigidos a obter tal informação. Também não se
dispõem de dados sobre o valor prognóstico da ocorrência
de tromboembolismo na história natural da cardiopatia
chagásica, por inexistência de trabalhos clínicos enfocando
este aspecto 7.
Portanto, as recomendações atuais para anticoa-
gulação em cardiopatas chagásicos seguem os princípios
estabelecidos para outras cardiomiopatias dilatadas. As-
sim, devem receber medicação anticoagulante endovenoso
ou oral os pacientes com disfunção global de VE, aqueles
com fibrilação atrial, antecedentes tromboembólicos, trom-
bose mural em áreas dissinérgicas 183. Estas recomendações
são dificilmente aplicáveis em muitos pacientes chagásicos,
por limitações socioculturais e econômicas 7.
Tratamento de pacientes com precordialgia - Tais pa-
cientes podem constituir subgrupo de difícil manejo clínico
e o tratamento é inteiramente empírico. O sintoma não é de-
vido à angina vasotônica, e também não há evidências de
que possuam aumento do tônus coronário basal, pois não
se demonstrou a vigência de respostas exacerbadas a estí-
mulos vasoconstrictores ou vasodilatação mediada por
mecanismo endotelial 144,184.
Por outro lado, não há apoio para intervenções diri-
gidas ao controle de possíveis mecanismos esofágicos
como potencialmente responsáveis pelo sintoma. Embora
muitos desses pacientes tenham evidência endoscópica
objetiva de esofagite, sua sensibilidade a estímulos quími-
cos e mecânicos está reduzida, de acordo com estudo recen-
te 185. Alguns pacientes obtêm alívio sintomático pelo uso
de nitratos, e bloqueadores beta-adrenérgicos ou dos ca-
nais de cálcio, mas a resposta individual é imprevisível.
Tratamento dos distúrbios de ritmo - O tratamento de
bradiarritmias sintomáticas é similar ao recomendado para
outras cardiomiopatias, geralmente baseado no implante de
marcapasso permanente. Todavia, não há evidências con-
clusivas para respaldar esta ou qualquer outra opção tera-
pêutica na cardiopatia chagásica 7.
Indicações preferenciais para inserção do marcapasso
são a disfunção do nó sinusal e o BAV completo 186. O bene-
fício desta estratégia terapêutica é assumido como poten-
cial com base em evolução clínica aparentemente superior
de grupos assim tratados, comparativamente à história na-
tural de outros pacientes em que esse tratamento não foi
possível 187,188. Outro aspecto relevante neste contexto refe-
re-se à freqüente associação de arritmia ventricular comple-
xa e distúrbios da condução atrioventricular. Embora não
haja também evidência conclusiva para apoiá-la a estratégia
usual em tais casos consiste no implante “profilático” de
marcapasso artificial e concomitante terapêutica anti-
arrítmica farmacológica.
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Em pacientes assintomáticos com ectopia ou TVNS
nenhuma estratégia antiarrítmica parece prover elevação da
taxa de sobrevivência 7. Carece-se de informação adequada
sobre este relevante aspecto clínico, apenas dois ensaios
clínicos de moderada amplitude, randomizados, tendo in-
cluído pacientes chagásicos, para testar os efeitos do trata-
mento com amiodarona 189,190.
O estudo GESICA (Grupo de Estudio de la Sobrevida
en la Insuficiencia Cardiaca en Argentina) 189 concluiu,
após dois anos de seguimento, que doses baixas de
amiodarona produziam redução de mortalidade e de hospi-
talização em pacientes com IC grave, independente da
ocorrência de arritmia ventricular complexa. Desafortunada-
mente, o contingente de pacientes chagásicos foi bastante
inexpressivo (48 entre total de 516 casos), tornando imprati-
cável a análise específica desse subgrupo.
Encontra-se em andamento estudo multicêntrico,
randomizado, controlado, para avaliar o impacto da amioda-
rona na sobrevivência de pacientes (inclusive chagásicos)
com disritmia ventricular não acompanhada de sintomas 190.
Em sua fase piloto, este ensaio incluiu 127 pacientes (24 com
DC) portadores de FE média de VE <35%, e batimentos
ectópicos ventriculares muito freqüentes, ou em salvas, ou
multiformes, sem sintomas concomitantes. Os resultados
preliminares após 12 meses de seguimento mostraram
significante redução da incidência de MS no grupo tratado
com amiodarona (7,0% vs 20,4%). A respeito deste estudo
deve-se frisar que o seguimento foi conseguido em apenas
106 pacientes, por excessiva taxa de abandonos (16%), difi-
cultando a análise dos resultados. Portanto, aguarda-se a
finalização deste estudo, para conclusões sobre o uso de
amiodarona neste grupo selecionado de pacientes.
Não há relatos de estudos prospectivamente conduzi-
dos e controlados sobre o tratamento farmacológico de pa-
cienteschagásicos com TVS mas hemodinamicamente bem
tolerada. A despeito desta limitação, tais pacientes são geral-
mente tratados de forma empírica com fármacos da classe III -
amiodarona 1g/dia por 10-14 dias, e depois manutenção com
200-600mg como doses diária 191 ou sotalol (320mg/dia) após
estudo eletrofisiológico diagnóstico 192. É oportuno salientar
que a efetividade desse tratamento empírico com amio-
darona é bastante influenciada pelo grau de disfunção
ventricular esquerda. Assim, as taxas de mortalidade após
um ano foram de 0 e 40%, respectivamente para pacientes
com classes I-II e III-IV da NYHA; de forma similar, a
recorrência de taquicardia ventricular no mesmo período,
para cada um desses grupos tratados com amiodarona foi
respectivamente de 30 e 100% 42,191.
Quando há risco elevado de MS pela detecção de
taquiarritmias ventriculares sintomáticas, depreende-se,
também empiricamente, que haja benefício potencial asso-
ciado ao implante de um cardioversor/desfibrilador automá-
tico 8,193; esta conduta, obviamente, tem aplicação limitada
por restrições econômicas no momento atual. Pode-se indi-
car aneurismectomia ou ablação criocirúrgica, em casos
selecionados de refratariedade ao tratamento farma-
cológico, quando lesões estruturais são bem definidas
anatômica e eletrofisiologicamente 194. Resultados inci-
pientes com esta estratégia parecem indicar sucesso em até
60% dos casos assim selecionados 194.
Em casos de taquicardia ventricular monomórfica,
indutível, hemodinamicamente bem tolerada e com circuito
de reentrada bem definido, pode-se tentar ablação por
radiofreqüência após a introdução percutânea de cateteres
com ponta dirigível 195-199. Experiência com esse método, uti-
lizando a via endocárdica para ablação, mostrou que 4 (27%)
de 15 pacientes tornavam-se curados da taquicardia
ventricular 195. Em outros 5 (33%) houve modificação do cir-
cuito da taquicardia, e o procedimento não teve êxito nos
demais (40%). Medicações antiarrítmicas continuaram a ser
usadas em 14 (93%) pacientes. Durante seguimento de dois
anos, as taxas de recorrência da arritmia e de mortalidade
foram significativamente diminuídas nos pacientes em que
a taquicardia foi suprimida ou atenuada pelo uso da
radiofreqüência, comparativamente ao grupo em que ocor-
reu insucesso. Todavia, outro estudo de ablação endo-
cárdica com radiofreqüência ou corrente contínua de baixa
energia, executado em 24 pacientes, mostrou que, embora
supressão ou modificação do circuito da taquicardia fosse
alcançado em 19 (79%) dos casos, o êxito clinicamente com-
provado do procedimento era obtido apenas em 4 (17%),
durante seguimento de 26±21 meses 196. Além disso, somen-
te 2 (8%) pacientes puderam ter suspensa toda medicação
antiarrítmica, enquanto houve necessidade de incorpora-
ção de novos princípios farmacológicos de tratamento em
outros 4 (17%) pacientes. Dessa forma, como só pode ser
utilizado em grupos bastante selecionados de pacientes, e
90% deles ainda requerem medicações antiarrítmicas após
ablação por radiofreqüência endocárdica, este procedimen-
to deve ser encarado como forma terapêutica ancilar 197.
Trabalhos mais recentes sugerem que algum progres-
so possa ser obtido com ablação realizada após mapea-
mento eletrofisiológico por novas técnicas de abordagem,
através do sistema venoso coronário 198 ou mediante pun-
ção transtorácica e pericárdica, para identificação de circui-
tos epicárdicos de taquicardia que possam ser cauterizados
pela emissão de radiofreqüência 199. Nesta última pesquisa
encontrou-se alta prevalência desses circuitos epicárdicos
de reentrada, responsáveis pela taquicardia ventricular. De
10 casos sucessivos em que esse mapeamento epicárdico
foi efetuado, conseguiu-se eliminar a taquicardia em todos
os seis pacientes em que a ablação foi tentada por essa mes-
ma via de abordagem 199. Isso contrastou com o insucesso
eletrofisiológico e clínico registrado nos outros quatro pa-
cientes, nos quais, embora o mapeamento fosse feito pela
via epicárdica, a ablação foi tentada pela técnica de aborda-
gem endocárdica.
Estes resultados encorajadores demonstram a clara
necessidade de pesquisa para expandir a experiência inicial
com estes novos métodos, no sentido de se definir seu po-
tencial relativo ao controle da taquicardia ventricular e redu-
ção da mortalidade decorrente em pacientes chagásicos
crônicos.
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Cardiopatia chagásica
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Sumarizando, as estratégias de tratamento farma-
cológico, baseadas em cardiologia intervencionista percu-
tânea, ou mesmo cirúrgicas, para tratamento da disritmia
ventricular na CCC, são todas empíricas, e ainda não funda-
mentadas em experiência extensa, prospectivamente dese-
nhada e controlada 7. Bradiarritmias sintomáticas são usual-
mente tratadas mediante inserção de marcapasso cardíaco
artificial. Taquicardia ventricular hemodinamicamente instá-
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