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SUMÁRIO 1. Introdução ..................................................................... 3 2. História natural e formas da Doença de Chagas .......................................................................... 7 3. Fisiopatologia da cardiopatia chagásica .........10 4. Quadro clínico da Cardiopatia Chagásica ......11 5. Diagnóstico da Cardiopatia Chagásica ...........13 6. Tratamento da cardiopatia chagásica ..............18 7. Prognóstico ................................................................19 Referências bibliográficas .........................................20 3CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 1. INTRODUÇÃO A Doença de Chagas (DC) é uma antropozoonose causada pelo Trypanosoma cruzi (T. cruzi), pro- tozoário flagelado que pode causar doença aguda ou crônica com rea- tivação em função de condições de imunodepressão. Sua transmissão é relacionada aos vetores, ao agente e aos reservató- rios, além de a um conjunto de fato- res socioeconômicos e culturais. A doença de Chagas estende-se do centro-oeste do México até o sul da Argentina e Chile, onde as péssimas condições da habitação favorecem o contato entre o triatomíneo vetor e o homem. A cardiopatia chagásica crônica (CCC) é essencialmente uma miocar- diopatia dilatada em que a inflamação crônica provocada pelo T. cruzi, usu- almente de baixa intensidade, mas incessante, provoca destruição tissu- lar progressiva e fibrose extensa no coração. Epidemiologia A distribuição espacial da doença é limitada primariamente ao continen- te americano em virtude da distri- buição de mais de 140 espécies do inseto vetor (Triatominae, Hemip- tera, Reduviidae), daí ser também denominada “tripanossomíase ameri- cana”. Progressivamente, no entanto, a doença tem alcançado países não endêmicos, mediante o deslocamen- to de pessoas infectadas e por meio de outros mecanismos de transmis- são, como resultado do intenso pro- cesso de migração internacional. A OMS estima em aproximadamen- te 6 a 7 milhões o número de pes- soas infectadas em todo o mundo, a maioria na América Latina. Estimati- vas recentes para 21 países latino- -americanos, com base em dados de 2010, indicavam 5.742.167 pesso- as infectadas por T. cruzi, das quais 3.581.423 (62,4%) eram residentes em nações da Iniciativa dos Países do Cone Sul, destacando-se a Argentina (1.505.235), o Brasil (1.156.821) e o México (876.458), seguidos da Bolívia (607.186). Todavia, estes da- dos divergem de outras estimativas realizadas por diferentes grupos de pesquisa e métodos para definição de infecção por T. cruzi em vários pa- íses, o que dificulta o estabelecimen- to exato da prevalência da doença de Chagas nas Américas. Da centena de espécies de triatomí- neos potencialmente vetores de T. cruzi, apenas alguns têm capacidade de boa adaptação à vivenda humana, com estreito contato com pessoas e mamíferos domésticos, reservatórios comuns da infecção. 4CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA A espécie mais importante na trans- missão no Brasil, o Triatoma infes- tans, encontra-se sob controle após certificação recebida em todo o ter- ritório nacional em junho de 2006. Na década de 1970, o vetor Triato- ma infestans encontrava-se em 711 municípios, distribuídos em 13 esta- dos e a soroprevalência da infecção na população rural brasileira era de 4,2%, para o país como um todo. A partir dessa época, o controle da do- ença passou a ser exercido de forma mais sistematizada em âmbito nacio- nal, sofrendo uma intensificação das ações de controle nos últimos anos, levando a um gradativo rompimento da transmissão vetorial por este vetor em todos os estados, culminando, em junho de 2006, com a certificação da interrupção no último estado, a Bahia. Isso, de forma alguma, representa a erradicação da doença, pois surtos isolados em diferentes estados brasi- leiros e registro de casos agudos es- porádicos continuam a ocorrer. Com o maior controle das formas ve- torial e transfusional de transmissão, a forma oral ganhou relativamente maior importância, como visto nos surtos em 2005 em Santa Catarina e Pará, em 2006 no Ceará e Pará, e em 2007 no Pará e Amazonas, entre ou- tros. Na região amazônica, o núme- ro de casos agudos vem aumentan- do, sendo menos de dez em 1968 e quase cem em 2007. Em grande par- te, isso ocorreu por surtos isolados com transmissão, usualmente pela via oral, ou, menos frequentemente, por vetores isolados não domiciliados, ou ainda por exposição de humanos a vetores na selva. Visto esse aumen- to de casos na região amazônica, um programa específico (AMCHA) foi criado em 2004 para mapeamento e detecção da transmissão da doença. Formas de transmissão Na sua forma clássica, a infecção cha- gásica é adquirida pelo homem por meio de triatomíneos hematófagos (transmissão vetorial), dos quais se co- nhecem até hoje mais de 140 espécies (Figura 1). Estes insetos são popular- mente conhecidos como barbeiros. Na DC, têm importância os triatomíneos que vivem no ambiente intradomici- liar. Em inquérito triatomínico feito pelo Ministério da Saúde do Brasil, 17 es- pécies estavam presentes em domi- cílios. Cinco foram identificadas como responsáveis por transmissão direta da doença a seres humanos: Triatoma infestans, Panstrongylus megistus, Triatoma brasiliensis, Triatoma sór- dida e Triatoma pseudomaculata. Algumas espécies adaptaram-se completamente aos domicílios em determinadas regiões e são altamen- te antropofílicas, como o T. infestans, 5CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA nos países do Cone Sul da América (responsável por 85% dos casos), e o Rhodnius prolixus e Triatoma di- midiata, em muitos países da Améri- ca Central. O indivíduo contamina-se por contato de dejeções do inseto in- fectado com as mucosas ou a pele. Figura 1. Triatomíneo vetor da D. de Chagas SAIBA MAIS! Considerando o mecanismo natural de infecção pelo T. cruzi, os tripomastigotas metacíclicos eliminados nas fezes e urina do vetor (barbeiro), durante ou logo após o repasto sanguíneo, penetram pelo local da picada e interagem com células fagocitárias da pele ou mucosas. Nes- te local, ocorre a transformação dos tripomastigotas em amastigotas, que aí se multiplicam por divisão binária simples. A seguir, ocorre a diferenciação dos amastigotas em tripomasti- gotas, que são liberados da célula hospedeira caindo no interstício. Estes tripomastigotas caem na cor- rente circulatória (Figura 2), atingem outras células de qualquer tecido ou órgão para cumprir novo ciclo celular ou são destruídos por mecanismos imunológicos do hospedeiro. Podem ainda ser ingeridos por triatomíneos, onde cumprirão seu ciclo extracelular. Os triatomíneos vetores se infectam ao ingerir as formas tripomastígotas presentes na corrente circulatória do hospedeiro vertebrado (ser humano, por exemplo) durante o hematofagis- mo. No estômago do inseto eles se transformam em formas arredonda- das e epimastigotas. No intestino mé- dio, os epimastigotas se multiplicam por divisão binária simples, sendo, portanto, responsáveis pela manu- tenção da infecção no vetor. No reto, porção terminal do tubo digestivo, os epimastigotas se diferenciam em tripomastigotas (infectantes para os vertebrados), sendo eliminados nas fezes ou na urina. Esta é a descrição clássica adotada para o ciclo do T. cruzi no invertebrado (Figura 3). Outros estudos revelaram que os tri- pomastigotas sanguíneos ingeridos se transformariam no estômago do vetor em organismos arredondados, denominados esferomastigotas, cir- cundados ou não por flagelo e que 6CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA têm um importante papel no ciclo biológico do vetor. Estes esferomastigotas poderiam se transformar em tripomastigotas me- taciclicos infectantes ou em epimas- tigotas de dois tipos: epimastigotas curtos, capazes de se multiplicar por divisão binária simples e então se transformar novamente em esfero- mastigotas que dariam os tripomasti- gotas metaciclicos, ou epimastigotas longos, que não se multiplicam e nem sediferenciam para tripomastigotas metaciclicos. Figura 2. Tripomastigota do T. cruzi na corrente sanguínea 6. Epimastigotas no intestino dos insetos 1. Inseto pica, tripomastigota nas fezes 2. Tripomastigotas viram amastigotas nas células 3. Amastigotas multiplicam-se 4. Amastigotas viram tripomastigotas, rompem as células e caem na corrente sanguínea 5. São absorvidos pelo mosquito na picada 7. Reprodução binária 8. Tripomastigotas Tr ip om as tig ot as in va de m no va s c él ul as ESTÁGIO NO TRIATOMA (BARBEIRO) ESTÁGIO NO SER HUMANO i d d i Estágio infeccioso Estágio diagnóstico Figura 3. Ciclo biológico do t. Cruzi SAIBA MAIS! Em áreas endêmicas, a transfusão de sangue é a segunda mais importante forma de trans- missão do parasito, sendo que em zonas não endêmicas a via transfusional é o principal meio pelo qual ocorre a infecção humana. Em cada unidade de sangue de chagásico transfundido, estima-se um risco de infecção entre 13 e 25%. 7CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA A terceira via mais importante de transmissão da DC humana é a ver- tical, a qual ocorre sobretudo após o terceiro mês de gestação. Esta via parece depender de fatores ligados ao parasita e ao hospedeiro, devendo este número estar subestimado pela não-realização, na maioria das ma- ternidades, de exame sistemático de placentas, fetos e recém-nascidos fa- lecidos. Para que ocorra a passagem de T. cruzi da mãe ao feto, é necessá- rio haver parasitemia materna (maior na fase aguda) e que o T. cruzi atra- vesse o epitélio corial e vá parasitar o estroma vilositário, atingindo a circu- lação fetal Outras formas de transmissão pa- recem muito menos comuns. São descritos casos de transmissão aci- dental (laboratórios, centros cirúrgi- cos etc.), por transplante de órgãos (rins, coração, medula óssea), por via oral (ingestão de alimentos conta- minados, leite materno), pelo coito e até, talvez, por vetores que não os triatomíneos. Tais mecanismos de transmissão em geral só ocorrem de modo esporádico e têm pouca impor- tância epidemiológica. Exceção deve ser feita às diversas microepidemias de DC aguda, devidas provavelmente à transmissão oral por meio da conta- minação de alimentos (garapa, açaí) e descritas principalmente na região amazônica, onde os casos têm sido diagnosticados, de modo geral, a partir do exame de gota grossa feito para o diagnóstico de malária. 2. HISTÓRIA NATURAL E FORMAS DA DOENÇA DE CHAGAS Após período de incubação que varia de 4 a 10 dias no casos de transmis- são vetorial e de 20 a 40 dias ou mais nos de contaminação por transfusão de sangue, segue-se uma fase agu- da. Esta pode ser sintomática (casos clássicos, detectados sobretudo em crianças de baixa idade) ou, o que é muito mais comum, assintomática (que ocorre em todas as idades). Segundo estudos de campo, os fato- res que determinam o aparecimento das formas sintomáticas ou assinto- máticas estão relacionados com o es- tado imunitário do hospedeiro e com sua idade, sendo mais aparentes e mais graves em indivíduos abaixo de 2 anos de idade. A fase aguda sintomática caracteriza- -se por parasitemia elevada, intenso parasitismo tecidual, manifestações de toxemia, processo inflamatório exuberante e quadro clínico variável. Uma das mais importantes caracterís- ticas da fase aguda é o sinal de porta de entrada oftalmoganglionar, descri- to como sinal de Romaña (Figura 4), que representa a reação do hospedei- ro à penetração dos tripanossomas na mucosa ocular, gerando conjunti- vite aguda, com edema bipalpebral, 8CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA unilateral, indolor, róseo, acompanha- do de linfadenopatia satélite pré-auri- cular, parotídea ou submaxilar. A porta de entrada em outras localiza- ções é conhecida como chagoma de inoculação (Figura 5), e consiste em lesão nodular acompanhada de erite- ma, geralmente com gânglio satélite. Essa forma cursa com febre, adenome- galia cervical ou generalizada, hepato- esplenomegalia e edema subcutâneo. Este pode ser generalizado ou locali- zado em face e membro inferior, sem relação com insuficiência cardíaca, exantema macular, papular, petequial, taquicardia sinusal independente de febre, sinais de miocardite aguda, com ou sem insuficiência cardíaca, associada a mau prognóstico, quan- do presente. Pode ocorrer meningo- encefalite, sobretudo em lactentes e em imunodeprimidos. Figura 4. Sinal de Romaña. Fonte: ICB USP Figura 5. Chagoma de inoculação Fonte: Research Gate Antes da introdução do tratamento específico contra o T. cruzi, óbito ocor- ria em 2 a 10% dos casos agudos, particularmente em crianças. Hoje, a taxa de mortalidade sofreu acentuada redução e praticamente não ocorrem mortes nos casos de DC aguda quan- do convenientemente tratados. Há dúvidas sobre a possiblidade de haver cura espontânea nessa fase da DC. Nos casos não tratados, a fase aguda dura 10 a 60 dias. Com o passar dos dias ou semanas, a sintomatologia regride, o número de parasitos dimi- nui na circulação (tornam-se raros) e a doença evolui para a fase crônica. Nesta, parecem importantes tanto o papel desempenhado pelo para- sito como a resposta imunitária do hospedeiro. Quase sempre, a fase crônica se ins- tala como forma indeterminada (FI), que se caracteriza por comprovação sorológica e/ou parasitológica da in- fecção, ausência de sinais e sintomas da doença e eletrocardiograma con- vencional e radiológico contrastado 9CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA (esôfago e cólon) normais. Trata-se, portanto, de uma definição opera- cional, muito prática, tendo sido ho- mologada por vários comitês de especialistas. A FI é a forma mais frequente de DC humana, acometendo, em áreas endêmicas, 50% dos infectados; tem prognóstico muito bom a médio e longo prazos e, em 30 a 50% dos ca- sos, persiste por toda a vida. A morte é excepcional na FI. A evolução da forma indeterminada para as formas crônicas cardíaca, digestiva ou mista ocorre, em geral, de maneira insidiosa, 10 a 20 anos após a fase aguda, em uma proporção de 2 a 3% de casos ao ano. Na maio- ria das vezes, as formas crônicas as- sumem comportamento benigno e de evolução lenta. Contudo, número sig- nificativo de pacientes graves, espe- cialmente os que desenvolvem insufi- ciência cardíaca e/ou arritmias, evolui para o óbito. Em raros casos, a fase aguda evo- lui diretamente para uma forma su- baguda. Esta acomete geralmente adultos jovens, os quais desenvol- vem grave cardiopatia com insufici- ência cardíaca refratária, sobrevindo a morte na maioria dos casos. Qua- dro semelhante ocorre em indivíduos adultos infectados, na fase crônica, que sofrem imunodepressão, princi- palmente pelo HIV. 10CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 3. FISIOPATOLOGIA DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA A forma cardíaca é a mais importante da DC do ponto de vista clínico, pois o comprometimento do coração pode levar a alterações do ritmo, a fenôme- nos tromboembólicos, a insuficiência cardíaca congestiva ou a morte súbita. O dano cardíaco resulta das alterações fundamentais (inflamação, necrose e fibrose) que o T. cruzi provoca, direta ou indiretamente, no tecido especiali- zado de condução, no miocárdio con- trátil e no sistema nervoso intramural. No grupo chamado pelos clínicos de cardiopatia chagásica crônica assin- tomática ou sem disfunção ventricu- lar estão os pacientes com eletrocar- diograma alterado, função ventricular normal, área cardíaca normal ao exa- me de raios X, exame físico normal e ausência de manifestações clínicas. CLASSIFICAÇÃO FASE CRÔNICA FASE SUBAGUDAAGUDIZAÇÃO DA FASE CRÔNICA FASE AGUDA MaISTA DIGESTIVA FASE INDETERMINADA CARDÍACA SEM DISFUNÇÃO DE VE CARDIOPATIA CHAGÁSICA CRÔNICA COM DISFUNÇÃO MAPA MENTAL – CLASSIFICAÇÃO DA CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 11CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA O frequente comprometimento do nó sinusal, do nó atrioventricular e do feixe de His, por alterações inflamató- rias, degenerativas e fibróticas, pode dar origem a disfunção sinusale a bloqueios variados atrioventriculares e intraventriculares. Por serem estruturas mais individu- alizadas, o ramo direito e o fascículo anterior-superior esquerdo são mais vulneráveis e mais frequentemente afetados. Focos inflamatórios e áreas de fibrose no miocárdio ventricular, especialmente em regiões posterior- -lateral e inferior-basal, podem pro- duzir alterações eletrofisiológicas e favorecer o aparecimento de reentra- da, principal mecanismo eletrofisioló- gico das taquiarritmias ventriculares malignas, que acarretam morte súbi- ta mesmo em pacientes sem insufici- ência cardíaca ou grave disfunção de ventrículo esquerdo (VE). Na forma cardíaca crônica sintomá- tica, pode haver predomínio de ar- ritmias ou de insuficiência cardíaca. Praticamente todos os pacientes com insuficiência cardíaca também apre- sentam alterações no eletrocardio- grama de repouso. Inicialmente, há comprometimento regional, asseme- lhando-se ao que ocorre na cardio- patia por obstrução coronária, mas, paulatinamente, verifica-se dilatação e hipocinesia generalizada, conferin- do o padrão hemodinâmico de car- diomiopatia dilatada à CCC. As arritmias, principalmente extras- sístoles ventriculares, aumentam com a redução da fração de ejeção, sendo esta considerada o principal marca- dor prognóstico de mortalidade. Con- gestão sistêmica é mais comum do que no território pulmonar, estando associada a edema periférico, ascite, hepatomegalia e estase jugular. Desde as fases mais precoces, dis- cinesias ou aneurismas ventriculares predispõem a complicações trombo- embólicas. Em estágios avançados, a dilatação global, a estase venosa e a fibrilação atrial são fatores adicionais que propiciam a formação de trombos e a consequente embolização pulmo- nar e sistêmica, como no sistema ner- voso central. Esse aspecto confere à CCC, além das predominantes carac- terísticas de provocar arritmias malig- nas e insuficiência cardíaca refratária, a de ser precipuamente embolizante. Radiologicamente, a área cardíaca encontra-se geralmente aumentada. Estudos com biópsia endomiocárdica mostram miocardite linfocitária (linfó- citos T) com agressão às miocélulas em cerca de 60% dos pacientes com arritmia e 90% daqueles com insufici- ência cardíaca grave. 4. QUADRO CLÍNICO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA Os sintomas são variados e decorrem de alteração do ritmo, da condução, da presença de insuficiência cardíaca 12CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA (IC), ou de fenômenos tromboembóli- cos, podendo ocorrer isoladamente ou em associação. O quadro clínico varia de formas assintomáticas até mani- festações como palpitações, edema, ortopneia, tonturas, síncopes e pre- cordialgia. O mesmo pode se dizer do exame físico, que pode ser normal ou com alterações variáveis: arritmias, sopro sistólico mitral, hiperfonese P2 ou desdobramento P2, quando ocor- re bloqueio de ramo D, sinais de con- gestão sistêmica (edema, hepatome- galia, estase jugular), ritmo de galope, congestão pulmonar e ascite (mais tardios) e hipotensão. Pode ainda sobrevir tromboembolis- mo associado a áreas discinérgicas na parede ventricular, com trombos mais frequentes em parede apical, inferior e póstero-lateral do VE e no átrio direito, resultando em infarto de órgãos (infarto pulmonar, cerebral, mesentérico etc.). Porém, a sintomatologia predominan- te é realmente de IC, com dispneia progressiva, fadiga, astenia. Sintomas de IC direita, como edema, aumento do volume abdominal e desconforto epigástrico, podem aparecer preco- cemente, mas são mais frequentes em etapas avançadas da doença, acompanhados de sintomas de baixo débito cardíaco, como intolerância ao esforço. FASE AGUDA Dura 6 a 8 semanas CARDÍACA COM DISFUNÇÃO CARDÍACA SEM DISFUNÇÃO FASE INDETERMINADA QUADRO CLÍNICO Febre, taquicardia, esplenomegalia Sinal de Romaña Chagoma de Inoculação Miocardite / Meningite Arritmias e distúrbios de condução Palpitações, tontura, síncope Intolerâcia ao exercíco Morte súbita Insuficiência Cardíaca Arritmias cardíacas Tromboembolismo Sorologia positiva Sem sintomas Sem alterações de exames complementares Pode durar de 30 a 40 anos MAPA MENTAL – QUADRO CLÍNICO DA CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 13CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 5. DIAGNÓSTICO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA A suspeita do diagnóstico da CCC é geralmente feita pela presença de anormalidades no eletrocardiograma de repouso (ECG) sugestivas de com- prometimento cardíaco, em indivíduos sintomáticos ou não. O diagnóstico é firmado por critérios epidemiológicos, sorológicos e evidência de compro- metimento cardíaco por meio de alte- ração do traçado do ECG de repouso, além da exclusão de cardiopatias de outras etiologias. Eletrocardiograma As alterações eletrocardiográficas constituem, frequentemente, o pri- meiro indicador do surgimento da CCC. Inicialmente, as alterações são caracterizadas por retardos transitó- rios ou fixos da condução atrioven- tricular, da condução no ramo direito, alterações da repolarização ventricu- lar e ectopias ventriculares. Na evo- lução, principalmente quando surgem os distúrbios de contratilidade, global ou regional, as alterações no ECG se tornam marcantes e têm implicações prognósticas relevantes. Na CCC, o bloqueio completo do ramo direito, associado ao hemiblo- queio anterior esquerdo, constitui a alteração mais frequente (> 50% dos pacientes). O acometimento do ramo esquerdo ou do fascículo posterior esquerdo é raro. Os bloqueios atrio- ventriculares (BAV) de graus variá- veis são comumente descritos em diversos estudos. Os BAV mais avan- çados são decorrentes de lesões ex- tensas do nó AV e sistema de His e podem ser a primeira manifestação da doença. SE LIGA! Muitos autores se referem aos fascículos do ramo esquerdo como “divi- sões”, de modo que não é incomum en- contrarmos denominações do tipo: divi- são anterossuperior do ramo esquerdo; divisão posteroinferior do ramo esquer- do. Por conta disso, os hemibloqueios são também chamados de bloqueios fasciculares ou, até mesmo, bloqueios divisionais, termos sinônimos da mesma alteração. Disfunção do nó sinusal pode ocasio- nar episódios de bloqueio sino-atrial, com bradicardia ou taquicardia atrial ectópica. Flutter e fibrilação atrial são tardios e costumam ocorrer após a instalação de grave disfunção ventri- cular, como em outras cardiopatias. Extrassístoles ventriculares polimórfi- cas são comuns na presença de dis- função ventricular. Arritmias ventricu- lares complexas, como a taquicardia ventricular não sustentada (TVNS), ou sustentada (TVS), podem existir mesmo em pacientes sem IC, porém, usualmente, ocorrem em casos mais avançados e sua coexistência é indi- cativa de pior prognóstico. 14CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA Radiografia torácica Nas fases avançadas, cardiomega- lia global muito acentuada em ge- ral contrasta com graus discretos ou ausência de congestão pulmo- nar (Figura 7). Cabe ressaltar que, devido ao frequente e acentuado SAIBA MAIS! A alteração eletrocardiográfica clássica da CCC é o bloqueio do ramo direito (BRD) em asso- ciação ao bloqueio divisional anterossuperior esquerdo (BDAS). O BRD apresenta no ECG como condição fundamental para o seu diagnóstico os complexos QRS alargados (com duração ≥ 120 ms, ou seja, ≥ que três “quadradinhos”). Além disso, ob- serva-se: ondas S empastadas em D1, aVL, V5 e V6; ondas qR em aVR com R empastada; padrões rSR’ ou rsR’ em V1 com R’ espessado; onda T assimétrica em oposição ao retardo final do complexo QRS. A principal característica do BDAS é o desvio do eixo elétrico do QRS para esqueda, para além de -45°. Pode-se também observar: padrão rS em D2, D3 e aVF com S3 maior que S2; QRS com duração < 120 ms; padrão qR em aVL com R empastado. Em situações de bloqueio bifascicular, com acometimento simultâneo do ramo direito e do fascículo anterior do ramo esquerdo, observa-se uma combinação destes critérios diagnósti- cos (Figura 6) Figura 6. Bloqueiode ramo direito + bloqueio divisional anterossuperior esquerdo no eletrocardiograma comprometimento do ventrículo di- reito (VD) e insuficiência tricúspide, o aumento das cavidades direitas pode se destacar no RX de tórax. Conges- tão venosa sistêmica, derrame pleural e pericárdico frequentemente acom- panham os sinais de cardiomegalia. 15CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA Figura 7. Radiografia torácica revelando cardiomegalia e congestão Ecocardiografia O exame ecocardiográfico (ECO) per- mite avaliar o desempenho contrátil regional e global do VE, o comprome- timento do VD, a presença de aneu- rismas apical ou submitral, trombos cavitários e alterações da função dias- tólica. Em grandes séries de pacien- tes, mesmo na fase indeterminada da doença, o ECO pode demonstrar al- terações de contratilidade segmentar em parede inferior ou apical do VE em 10 a 15% dos casos e o aneurisma apical pode ser detectado em 40 a 60% dos pacientes com CCC. O aspecto clássico do ECO na CCC avançada é o de grande dilatação das cavidades atriais e ventriculares, com hipocinesia difusa, biventricular, aspecto este não tão chamativo em miocardiopatias isquêmicas ou de outras etiologias (Figura 8). Também se observa insuficiência das válvulas atrioventriculares, secundária à dila- tação dos anéis valvares. Apesar do predomínio do déficit contrátil difuso, aneurismas ventriculares detectados com ECO em 47 a 67% são carac- terísticos na CCC e se associam a maior risco tromboembólico (em posi- ção apical) e a arritmias ventriculares malignas (em parede inferior basal ou posterior-lateral). Figura 8. ECO revelando grande dilatação das câmaras cardíacas A chamada lesão apical do VE ou aneurisma da ponta parece ser patog- nomônica da miocardiopatia chagási- ca, constituída por adelgaçamento do miocárdio nesta região por destruição da musculatura, e preenchido muitas vezes por trombo. A prevalência de aneurisma apical em pacientes cha- gásicos com AVC foi estimada em 37% em estudo realizado em Brasí- lia, podendo os acidentes vasculares isquêmicos na doença de Chagas se- rem associados a aneurisma apical, insuficiência cardíaca e/ou arritmias. Assim, a cardiomiopatia chagási- ca deve ser incluída no diagnóstico 16CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA diferencial das etiologias de acidente vascular cerebral. Testes sorológicos Dada a baixa parasitemia na fase crônica da doença, os testes parasi- tológicos não são utilizados e testes sorológicos baseados na detecção de anticorpos contra o T. cruzi devem ser rotineiramente empregados para o estabelecimento da etiologia da cardiopatia. O diagnóstico sorológico da infec- ção pelo T. cruzi é confirmado (ou excluído) pelo emprego de pelo me- nos dois testes sorológicos de princí- pios diferentes, que devem compro- var a existência de anticorpos anti-T. cruzi. A quantificação da concentra- ção de anticorpos é desejável. Os testes sorológicos mais emprega- dos e de maior utilidade são os con- vencionais: ensaio imunoenzimático (ELISA), imunofluorescência indireta (IFI) e hemaglutinação indireta (HAI). Quando realizados os três testes, é possível obter concordância entre eles em mais de 98% dos soros. 17CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA ELETROCARDIOGRAMA BRD ECOCARDIOGRAMA RADIOGRAFIA DE TÓRAXTESTE SOROLÓGICO DIAGNÓSTICO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA EXTRASSÍSTOLES VENTRICULARES TVNS TVSBDAS CARDIOMEGALIA CONGESTÃO DILATAÇÃO DE CÂMARAS ANEURISMA APICAL TROMBOS INTRACAVITÁRIOS BAV DICINESIAS MAPA MENTAL – DIAGNÓSTICO DA CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 18CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA 6. TRATAMENTO DA CARDIOPATIA CHAGÁSICA A principal droga parasiticida que dispomos é o benznidazol (nitroimi- dazólico). A dose recomendada é de 10 mg/kg/dia em crianças ou quadros agudos e 5 mg/kg/dia em crônicos, por 60 dias de tratamento, sendo a dose diária dividida em duas ou três vezes. A dose máxima diária reco- mendada é de 300 mg. Para adultos com peso acima de 60 kg, deve ser calculada a dose total esperada, es- tendendo-se o tempo de tratamento para além dos 60 dias, até completar a dose total necessária. Assim, pa- ciente de 65 kg receberá 300 mg por dia, durante 65 dias; o de 70 kg, essa dose diária por 70 dias; e por 80 dias em paciente com 80 kg. Acima desse peso, mantém-se a dose de 300 mg e o período máximo de 80 dias para os pacientes. Não há evidências para o tratamento parasitológico para o paciente adulto com DC na fase crônica. As indica- ções consensuais para o uso da dro- ga parasiticida são DC na fase aguda; DC na sua fase crônica em crianças (benznidazol 7,5 mg/kg/dia por 60 dias); contaminação acidental (benz- nidazol na dose de 7-10 mg/kg, man- tido por no mínimo dez dias, ou por no mínimo de 30 dias, em situações de alta carga parasitária); e reativação da DC (agudização de paciente crô- nico), que pode ocorrer em pacientes imunossuprimidos farmacologica- mente ou em coinfectados pelo HIV (tratamento específico por período de 60-80 dias). O tratamento medicamentoso espe- cífico da cardiopatia chagásica deve seguir as diretrizes para o tratamen- to da IC, quando há fração de ejeção reduzida, com o uso de inibidores da enzima conversora da angiotensina, espironolactona, betabloqueador e diuréticos. O tratamento cirúrgico é indicado para pacientes com IC con- gestiva refratária, para implante de aparelhos de estimulação ventricu- lar multissítio, transplante cardíaco e terapia celular – células tronco (ainda em perspectiva). Indivíduos com disfunção ventricu- lar global, fibrilação atrial, história de tromboembolismo prévio e regiões acinéticas ou discinéticas, com evi- dência ao ECO de trombo mural, têm indicação de anticoagulação. Em cir- cunstâncias especiais, a aneurismec- tomia e a embolectomia podem ser consideradas. Em situações em que se observa a presença de arritmias ventriculares, o clínico deve distinguir as formas sim- ples, como as extra-sístoles isoladas e monomorfas, que não necessitam de tratamento específico, das com- plexas, que incluem as polimorfas, em pares, e períodos de taquicardia ven- tricular não-sustentada. Devem ser abordados distintamente pacientes 19CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA com taquicardia ventricular sustenta- da (TVS) e os recuperados de morte súbita. Além do tratamento medica- mentoso antiarrítmico, considerar em casos específicos o controle da arrit- mia por ablação do foco arrítmico ou implante de cardiodesfibrilador. Nos casos de arritmias supraven- triculares, a fibrilação atrial (FA) é a arritmia mais frequente, geralmente crônica, associada à cardiomegalia. A anticoagulação está indicada na FA crônica associada à cardiomegalia e insuficiência cardíaca, ou com episó- dios embólicos prévios. 7. PROGNÓSTICO O Escore de Rassi é uma das melho- res formas de se predizer o prognós- tico de um paciente com DC a longo prazo. Ele avalia 6 características para dizer o risco de mortalidade em 5 e 10 anos (Tabela 1). FATOR DE RISCO PONTOS NYHA classe III ou IV 5 Cardiomegalia (radiografia de tórax) 5 Anormalidade de motilidade global ou seg- mental (ecocardiograma 2D) 3 TV não sustentada (Holter 24h) 3 Baixa voltagem de QRS 2 Sexo masculino 2 Total de pontos Mortalidade total Risco 5 anos 10 anos 0-6 2% 10% Baixo 7-11 18% 44% Intermediário 12-20 63% 84% Alto Tabela 1. Escore de Rassi Para ajudar na memorização dos cri- térios do Escore de Rassi, podemos usar o mnemônico CHAGAS, elabo- rado pelo Cardiopapers: Classe funcional III ou IV Hipocontratilidade no ECO Amplitude reduzida do QRS Grande coração na radiografia Arritmia no Holter 24h (TVNS) Sexo masculino 20CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS I Diretriz Latino Americana para o Diagnóstico e Tratamento da Cardiopatia Chagásica. Arq Bras Cardiol 2011; 97(2 supl.3): 1-48. II Consenso Brasileiro em Doença de Chagas, 2015. Epidemiol. Serv. Saúde, 7 Brasília, 25(núm. esp.): 7-86, 2016. Brasileiro-Filho G et al. Bogliolo Patologia. 8.ed. - Rio de Janeiro:Guanabara Koogan, 2011. Neves DP et al. Parasitologia Humana. 11 ed - São Paulo: Atheneu, 2004. Martins MA et al. HC-FMUSP Clínica Médica Volume 7. 1 ed, Manole 2009. 21CARDIOMIOPATIA CHAGÁSICA
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