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Sociedades do antigo Oriente Próximo

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Apartirde fins dos anos 50, uma polêmica
internacionalse travouem torno do conceito de
modo de produção asiático. Não somente
procurou-serenovara visão de determinadas
sociedades- muitasdelasnão-asiáticas-,
como tambémcriticou-sea noção de que, em
princípio,todas as sociedadesdevessem
atravessaras mesmasetapasem seu
desenvolvimentohistórico.
Estelivro abordaessa polêmica,tomando-a
como pano de fundo paraa análisedas
sociedadesdo antigo OrientePróximo, através
de dois exemplos:Egitoe Baixa Mesopotâmia.
Ciro FlamarionS. Cardosoé professorda
UniversidadeFederalFluminense.Publicou,
entreoutros títulos, O Egitoantigo, O trabalho
compulsório na Antiguidade, A cidade-Estado
antiga e O trabalho na América Latina
colonial(naSériePrincípios).
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Palácios,templosealdeias:
o "mododeprodução
asiático"
A forma como abordaremos,nestelivro, o estudo
dassociedadesdo antigoOrientePróximo- atravésdos
exemplosegípcioe mesopotâmico- vincula-sedireta-
menteà noçãode modode produçãoasiático.Começare-
mos,então,por umaexposiçãosumária:dosantecedentes
do surgimentodestepolêmicoconceito;da suaelaboração
na obra de Marx; e do seu complexodestinoposterior.
Em seguida,trataremosde expora versãoespecíficado
mencionadoconceito,quenosserviráde basepara inter-
rogaros exemplosescolhidos.
Antecedentesdo conceito de "modo de
produçãoasiático"
Do séculoXVI aoXVIII, os escritoreseuropeusque,
por algumarazão,se referiamao Oriente- à Ásia-,
faziam-nono contextodo pensamentoacercado social
comoexistiaemsuaépoca,isto é, manifestandointeresse
prioritário,ou mesmoexclusivo,pelosaspectospolíticos.
A idéiadequea políticanãopassade umapartedo todo
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social,do qual só aparentementeé o princípiocondutor,
nãocomeçouasedesenvolverantesdoséculoXIX. Assim,
na fase anterior,noçõescomo o "despotismooriental"
apareciamcomoobjetosperfeitamenteautônomose legí-
timosde análise.Inicialmente,os materiaisusadosprovi-
nhamda Bíblia e de escritoresclássicosantigos- por
exemplo,as opiniõesmanifestadaspelosgregosacercado
ImpérioPersa-, bemcomode informaçõesnão muito
precisassobreos turcosotomanose o ImpérioMoscovita.
A partirdoséculoXVII, porém,multiplicaram-seaspubli-
caçõesde escritosde viajantes,mercadores,navegantese
diplomatasque se dirigiamao Oriente (ImpérioTurco,
Pérsia,tndia, China etc.) embuscade ganhomercantil,
de vantagenscomerciaispara si próprios ou para os
paísesqueos enviavam.Tais escritosforamlidos e utili-
zados,naEuropa,por pensadores(filósofos,historiadores,
economistaspolíticos)interessadosprincipalmenteemcon-
trastaros dadosqueconheciamou acreditavamconhecer
a respeitoda "Ásia" ou do "Oriente"- entãoquase
semprevisto comouma única totalidadehomogênea-
com sua interpretaçãodo que ocorria na Europa, em
polêmicasacercado absolutismo,do livre comércio,dos
direitosnaturaisdoshomens,e deoutrostemas.Foi unica-
menteno séculoXIX queassociedadesasiáticaspassaram
a serencaradasemsuaheterogeneidadee multiplicidade,
e vistascomoobjetode estudoemsi mesmas,emfunção
não apenasdasmudançasocorridasna maneirade abor-
dar o social,mas tambémde uma penetraçãocrescente
e em profundidadedos interesseseuropeusnessassocie-
dadesorientais.
No séculoXVI, a Europa vivia a emergênciadas
nações-Estadosmodernas,das monarquiasabsolutistas.
Questõescomoa necessidadede exércitose burocracias
permanentes,de sistemasnacionalmenteintegradosde
r
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finanças,impostose leis, estavamna ordem do dia.
Pensadoresse debruçavamsobretais problemáticas,ten-
tando entendê-Iase dar-Ihesrespostaspositivase prag-
máticas,algunsdosquaisforampioneirosna apresentação
do Estadoorientalcomoantíteseda monarquiaeuropéia.
MachiaveIli,porexemplo,acreditavaqueno ImpérioTurco
havia um único senhor,sendotodosos outroshomens
seusservidores;a razãodistoseriaque,ao contráriodo
queocorriana Europa,entreos otomanosinexistiriauma
nobrezahereditária,idéia algumtempodepoisretomada
por FrancisBacon.Ele opunha,então,o governoeuropeu,
exercidopor um monarcacercadode conselheiros,ao
despotismooriental;contrastavaos numerososEstados
europeus,emquehaviacondiçõesquefavoreciama criati-
vidadedoshabitantes,aosimensosimpériosorientais,ca-
racterizadospor umapopulaçãoservil.Bodin,por suavez,
sobforteinfluênciadeAristóteles,comparoua "monarquia
real" européia- emqueos súditosobedeciamàs leis
do rei e às leis naturais,sendo-Ihesreconhecidoo direito
à liberdadenaturale à propriedade- coma "monarquia
senhorial"do Oriente,estailustradapelosEstadosturco
e moscovita.Em tais Estadoso rei, senhordos bens e
daspessoaspor direitodeconquista,governavaseussúdi-
tos como um chefede família romanogovernavaseus
escravos.
Em 1650, ThomasHobbes endossoualgumasdas
idéiasde Bodin, ao tratardo que,por influênciagrega,
chamoude "reinodespótico".
No séculoXVII, comerciantese embaixadoresque
haviamconhecidoa Pérsiae a lndia especularamsobre
as origense basesdo "poder despótico":elementosde
seus escritosforam amplamenteusados,sobretudona
França,nas acaloradaspolêmicasacercado absolutismo
monárquico.Em seuscontatoscomo Oriente,os europeus
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notaram,em primeirolugar,o contrasteentrea imensa
riquezadascortese a pobrezaabjetadamaioriada popu-
lação,confirmando,portanto,umavisãocomoa de Ma-
chiavellie Baconacercada ausênciade mediaçõessociais
entrea cortee o povo. Quasetodosafirmaramque o
déspotaerao únicoproprietáriodo solo.O maisfamoso
dos viajantes,Bernier,acreditavaser estapropriedadea
fontedo poderdespótico- tesequeseriaadotadaposte-
riormentepelosfisiocratas,por Adam Smithe por Marx
-, enquantooutros,pelocontrário,achavamqueera do
poder absolutoque o governantederivavaseusdireitos
sobreas pessoase os bens.Berniernotoutambémque
os artíficesorientais- artesãosde alta qualificação-
dependiam,para viver, da redistribuiçãodas riquezas
concentradasatravésde tributosfeita pelos soberanos,
para os quaistrabalhavam.
No séculoXVIII, além de uma vogageneralizada,
na Europa,dascoisase doscostumesturcose persas-
comoos viamos europeus,numaevidentereinterpretação
-, a China fez sua apariçãono universointelectualdo
Ocidente,alimentandoa oposiçãoentre"sinófilos"e "sinó-
fobos": Voltaireservepara ilustrara primeiraposiçãoe
Montesquieu,a segunda.
Montesquieu,em 1748,considerouo "despotismo"
como sendouma qas formasfundamentaisde governo,
exemplificando-o,porém, não apenascom sociedades
orientais,mas igualmentecom personagensdo Império
Romanoe com a Inglaterrade HenriqueVIII. Seu con-
trasteentre"monarquia"e "despotismo"baseava-sena
noçãode que, sob esteúltimoregime,inexistequalquer
instânciaentreo déspotae o povo: todosos súditossão
"nada" diantedo governantetodo-poderoso.Uma socie-
dadedespóticacarecede leis políticasfundamentaise de
comércio;nos casosextremos,o déspotamonopolizaa
propriedadedaterra.
Voltaire,quevia a China comoo paísdos reis filó-
sofos,protótipodo "despotismoesclarecido",por ele pre-
conizado,criticouMontesquieu,no que foi imitadopor
algunsfisiocratas.Quesnay,porexemplo,encaravaa China
comoum "despotismolegal",emoposiçãoao "despotismo
arbitrário".Emboranemtodosos fisiocratasfossem"sinó-
filos", credita-sea elesa formulaçãodo primeiromodelo
econômicosistemáticoaplicadoao "despotismooriental";
istoporqueforamtambémos primeirosqueperceberama
economiacomouma totalidadecoerente,feita de partes
interdependentesou solidárias.
Numaposiçãorelativamenteisoladanaépoca,o orien-
talista francêsAnquetil-Duperron,em obras publicadas
entre1778e 1791,opôs-seà idéiade queo governoda
índia fossedespóticoe ignorasseas leis ou o direitode
propriedade,e tambémà afirmação- feitaem 1783por
A. Dalrymple- dequea terraali fossepossuídacoletiva-
mentepelasaldeias.
Ainda no final do séculoXVIII, Adam Smith,em
A riquezadasnações(1776), afirmouquena índia e na
China a agricultura,e não a manufatura,era altamente
consideradae favorecida.A riqueza(ouroe prata)estava
nas mãosde uns poucosmagnatas,que não a investiam
nempermitiamqueoutroso fizessem.OEstado- pro-
prietáriodetodoo solo- interessava-seempromovera
agricultura,manteros caminhose os canaisde irrigação.
Já no iníciodo séculoXIX, o filósofoalemãoHegel_queleraosfilósofosfrancesesdo séculoXVIII e Adam
Smith- procedeu a um contraste entre Oriente e Oci-
dente.A Europaconheceraum progressivodesenrolarda
autoconsciência,enquantono Orientese derao desenvol-
vimentode umaconsciênciamoralexternaao indivíduo,
ou seja,abstrata.Por tal razão,na China a históriase
reduziaa umameracrônica,enquantona índia ela sim-
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plesmentenão existia.A política,na formade invasões
ou revoltaspalacianas,eraindiferenteparaos camponeses,
emsuasaldeiasimutáveis.
A imutabilidadedasaldeiascomobaseda estagnação
da 1ndiapré-britânicafoi salientadapor John StuartMill,
em 1848:nelassecombinavamo artesanatoe a agricul-
tura,e, emborao Estadofosseo proprietáriodas terras,
os camponesesdetinhamseuusufrutomedianteo paga-
mentode rendasfixadaspelocostume.Outro economista
político,cujasidéiasteriamgrandeinfluênciasobreMarx,
foi Richard Jones: em 1831caracterizaraa "rendaem
formadetributo"- típica,paraele,da1ndiae de outras
sociedadesasiáticas- entreas modalidadespossíveisda
renda - desenvolvendo,nesteponto, certasidéias de
Adam Smith -, e ligara-aà estagnaçãooriental,pelo
fato de impedira acumulaçãoindividuale preservaro
despotismo.
A partirdemeadosdo séculoXIX, multiplicaram-se
os estudosde sociedadesorientais,não maisa partirdos
governantese, sim,dasunidadesaldeãse suasinstituições.
Tais estudosforaminfluenciadospor duasgrandescorren-
tesde pensamento.Uma delasconsistiana crençade ser
o sânscritoa língua-mãedasgrandeslínguasda Europa,
o quelevavaa crernumaespéciede"unidadeinstitucional
indo-européia",exemplificadanos estudosem que, entre
1861 e 1875,Henry Maine comparouas comunidades
aldeãsda 1ndiaàsdoseslavos,germanose celtas.A outra
foi a'longapolêmica- aindaatual- acercade serem
ou nãoas sociedadesaldeãsprimitivascaracterizadaspela
propriedadecoletivasobreo solo,reconhecendo-seàsfamí-
liasindividuaisunicamenteumdireitodeusufruto.1
1 A respeitodosantecedentesdo conceitode "modode produção
asiático", ver BAILEY, Anne M. & LLOBERA,Josep R., eds. The
Asiatic mode 01production,p. 13-23.V. "Bibliografia comentada".
--'
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Da elaboraçãodo conceitoao seu abandono
Na obra de Marx o "modo de produçãoasiático"
aparece,na imensamaioria dos escritos - como ocorre,
aliás,comtodosos modosdeproduçãopré-capitalistas-,
num contextobemdefinido:em relaçãomaisou menos
diretacom a análisedo capitalismoe com a crítica da
economiapolíticaque hoje chamamos"clássica".Nestas
condições,não se podeesperarencontrarnos escritosdo
fundadordo marxismoumateoriaexplícitae acabadaa
respeitodassociedades"asiáticas".Mesmoassim,embora
baseadasnas idéias que vinham se desenvolvendona
Europadurantecercadetrêsséculosa respeitodo Orien-
te, as suas concepçõesacercado "modo de produção
asiático"foram suficientementeinteressantespara terem
duradourainfluência.
Na décadade 1850,comocorrespondentedo jornal
New York Daily Tribune,emLondres,Marx redigiuuma
sériedeartigossobrea 1ndiae a China,ao cobrirdebates
no Parlamentobritânicoa respeitodetemascomoa reno-
vaçãodosprivilégiosda Companhiadas1ndiasOrientais,
asrebeliõesTaiping,a revoltadoscipaiosetc.Suacorres-
pondênciacomEngels,na mesmaépoca,preparoualguns
dosdesenvolvimentospresentesnaquelesartigos.
Em cartaa Engels,em 1853,Marx citalongosextra-
tosdo livro Voyagescontenantia descriptiondesétatsdu
GrandMogoi, de Bernier(1670), chegandoà conclusão
de queo viajantedo séculoXVII tiverarazãoao ver, na
inexistênciadapropriedadeprivadadaterra- naTurquia,
Pérsia,1ndia-, abasedetodososfenômenosdoOriente,
inclusivea ausênciade história de que falara Hegel.
Engelssugeriu-lhe,em resposta,que a origemda inexis-
tênciade propriedadeprivadaresidirianascondiçõescli-
máticasde semi-aridez,fazendocomquea irrigaçãoarti-
,
12
ficial,organizadasejapelascomunidades,sejapeloEstado,
fossecondiçãoprimordialparaque a agriculturapudesse
ser praticada.Estase outrasidéiasexpostasna cartade
Engelsforamretomadaspor Marx, com algumasmodifi-
cações,em seuartigode 25 de junho de 1853,a partir
do papeldo governono quediz respeitoàs obraspúblicas
de irrigação.Na índia, a ausênciade propriedadeprivada
da terra e o papeldo Estadonas obraspúblicas,bem
comoo caráterautárquicodasaldeias- cadauma das
quais,um pequenomundoemsi -, cujasterraspodiam
ser cultivadasem lotes familiares,permanecendoporém
comunsas pastagens,explicariama estagnação,o caráter
estacionárioda sociedade.Essascomunidadesconheciam,
semdúvida,as distinçõesde castae a escravidão;mas,
na medidaemquecombinavamo artesanatoe a agricul-
tura,suaauto-suficiênciabloqueavao desenvolvimentodo
indivíduo e serviade base ao despotismooriental.A
única revoluçãoautênticana históriada Ásia se devia
ao impactodo capitalismo.Num artigode 8 de agosto
de 1853,Marx tratoudo modopelo qual os britânicos,
rompendoa autarquiaaldeãna índia - pelaintrodução
de tecidosbaratosde algodãoe pelaconstruçãode estra-
dasdeferro- e absorvendo-aemsuacivilização,estavam
lançandoas basesdo progressode umaefetivatransfor-
maçãosocial.
Entre 1857e 1859,Marx redigiuumextensomanus-
crito para pôr em ordemsuas pesquisasem economia,
comotambéma elaboraçãodo seumétodoespecíficode
análise.Tal manuscrito- os Grundrisse(Fundamentos
dacríticadaeconomiapolítica)- sóseriapublicadopela
primeiravez em 1939-41,tendomaior difusãosomente
no fim da décadade 1950.
Numa passagemdos Grundrisse- "Formasquepre-
cedema produçãocapitalista"-, Marx abordao processo
~
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daseparaçãodo trabalhadoremrelaçãoàscondiçõesobje-
tivasda produçãoe reproduçãode suavida,o quesigni-
ficou,historicamente,tantoa dissoluçãoda pequenapro-
priedadequantoa dapropriedadecoletiva,baseadana co-
munidadeoriental.De fato,no texto,a "formaasiática"de
propriedadecomumda terraaparececomoumaentrevá-
rias modalidadespossíveis- justamentea maisresistenteà
mudança,devidoà união entreagriculturae artesanato
nascomunidadesautárquicas,e devidoa que,no interior
destas,o indivíduonão pudesseconverter-seemproprie-
tário,tendoexclusivamentea posseda terra.Assim,mes-
mo o surgimentoda escravidãoou da servidãoe da
riquezamonetáriapoucopôdeafetaras resistentescomu-
nidades"asiáticas".
Marx imaginaumaevoluçãoque,passandopelopas-
toreionômade,levassea tribo à sedentarizaçãoemdeter-
minadoterritório,mantendosua comunidadede sangue,
línguae costumes.Na variedade"asiática"decomunidade,
o produtorindividualvêna organizaçãotribal- formada
"naturalmente"- um supostonaturalou divinodo pro-
cessode trabalho,não produzidopor este.O indivíduo
só podeapropriar-sedascondiçõesobjetivasde suavida
na qualidadede membroda comunidade:a apropriação
real dessascondiçõesatravésdo trabalhosó se podedar
sob aquelesupostoqueaparececomonatural,ou sobre-
natural.Por cimadascomunidadeslocaisestáumaunidade
superiorou englobante,encarnada,em última análise,
numasó pessoa- o déspota-, quese apresentacomo
a únicaproprietáriado solo; as comunidadeslocaissão,
simplesmente,possessorashereditárias.Destemodo,a uni-
dadesuperiormediatizaa relaçãoentreo indivíduoe as
condiçõesdetrabalhopor intermédiodecadacomunidade
particular,quedelaparecerecebero direitode usosobre
os recursosnaturais.Em conseqüência,umapartedotraba-
...
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lho excedentede cadacomunidadelocal destina-seà uni-
dadeenglobante,ou "comunidadesuperior",na formade
tributoe de trabalhocomumpara exaltaçãoda unidade,
prestadoao déspotarealou ao ser imaginárioqueencar-
na a unidadetribal: a divindade.
Vê-seque,na análisedeMarx, na fundaçãomaterial
do "despotismooriental",por trásdasaparências- poder
despótico,ausênciade propriedade- se perfila a base
realconstituídapelapropriedadecomunal,emquesecom-
binam agriculturae artesanato,nas comunidadesautár-
quicasque contêmem seu interior todas as condições
para sua reproduçãoe para a produçãode excedentes.A realizaçãodo trabalhopodedar-setantopelasfamílias,
em lotesindividuais,quantopelo cultivoem comumdo
solo.Dentrodecadacomunidade,a unidadedestapode-se
encarnar,sejanum chefeindividual,seja num conselho
de chefesde famílias.
As obraspúblicas,na práticalevadasa cabo pelas
comunidades,aparecemcomorealizaçãodaunidadeenglo-
bante do regimedespóticoao qual cada indivíduo,de
cadacomunidade,parecepertencer.O excedenteacumu-
lado pela "comunidadesuperior"servepara o comércio
exterior,as obraspúblicase a remuneraçãode artesãos
especializados,a serviçoda corte.Inexisteo intercâmbio
mercantilno interiordecadacomunidade,podendohaver,
no entanto,trocasentreas comunidades.
Em 1859,no prefácioà sua Contribuiçãoà crítica
daeconomiapolítica,Marx afirmouque,demaneirageral,
os modosde produçãoasiático,antigo,feudale burguês
modernopodemserencaradoscomoépocasquemarcam
sucessivosprogressosno desenvolvimentoeconômicoda
sociedade.No livro, chamoua atençãosobreo fato de
que,naÁsia,a tesaurizaçãodariquezaemmetaispreciosos
tinha pequenopapelno mecanismototal de produção;
- -I
,..-
15
emcontrastecomo capitalismo,a imobilizaçãoda riqueza
em tesourosaindaapareciacomouma finalidadeem si.
Em O capital - obra da qual somenteo primeiro
tomo foi publicadocom Marx aindaem vida (1867),
surgindoos outrosdoispostumamente,emfunçãode for-
midávelesforçodeEngelsna organizaçãodo texto(1885,
1894) -, diversaspassagensesparsastêma ver com o
"modo de produçãoasiático"ou com sociedadesespecí-
ficaspor ele conformadas(índia, Peru pré-colombiano),
tendosemprecomopontode referênciao contrastecom
o modode produçãocapitalista.Tratandodo destinodo
excedentenas sociedades"asiáticas",diz Marx que ele
se destina,emparte,à trocaentreas aldeiase, emparte,
à rendaapropriadapeloEstado,coma qualestepagaos
artesãospelo seuserviçoe realizao comérciode longo
curso.SeguindoumaopiniãodeAdamSmithe deRichard
Jones,ele afirmaque,nosEstadosda Ásia, dá-sea coin-
cidência.entrerendae tributo.Por outro lado,nassocie-
dades"asiáticas",comoemtodasaquelasemqueo pro-
dutor diretocontrolaos meiosde produção,a extorsão
do trabalhoexcedentesó podeocorrermedianteo recurso
à coaçãoextra-econômica,ou seja,pela utilizaçãoda re-
pressãomilitar,dosmecanismosjudiciais,da ideologiaetc.
O papel de Engelsna elaboraçãodo conceitode
"modo de produçãoasiático"foi bem menordo que o
de Marx. No Anti-Dühring (1878), Engelsreafirmoua
necessidadede organizaçãodas obras de irrigaçãono
Oriente como elementoque explica o surgimentodos
Estadosdespóticos.Ele via no despotismoorientala mais
primitivaformadeEstado,porbasear-senamaiselementar
dasformasde renda:a rendaemtrabalho.O livro men-
cionavatambémqueas comunidadesaldeãsda índia ha-
viamevoluídoda propriedadecomunaltribal ao parcela-
mentoda terrae ao surgimentode diferençasde riqueza
"1
16 17
entreos indivíduos,devidoà distribuiçãodesigualdo pro-
dutodastrocasintercomunitárias.
Em suaobra A origemda família,da propriedade
privadae do Estado (1884), Engelsdescartoua análise
da "históriaantigados povoscivilizadosda Ásia". Isto
foi interpretadopor algunscomosignificandoo seuaban-
donodo conceitode"modode produçãoasiático",o que
não pareceprocedente.No Anti-Dühringele sugeriraa
existênciade dois caminhoshistóricosparao surgimento
do Estado:o queconduzao despotismooriental,no qual
se mantêmemexistênciaas comunidadesaldeãs,e o que
passapeladissoluçãodascomunidadestribaise pelaevo-
luçãodas forçasprodutivas,levandoao desenvolvimento
do escravismo.Tudo indicaque,no novo livro, decidira
limitar-seao segundocaminho,paraeleo maiscompleto
por daracessoàssociedadesdeclassesnasquaissedesen-
volvema propriedadeprivadae a produçãomercantil.
No séculoXIX, a arqueologianão revelara,ainda, a
existênciadecivilizaçõespróximaspor suascaracterísticas
das sociedadesorientaisna Grécia continentale insular
proto-histórica;assima Engels pareciaque, na Grécia,
passara-seda organizaçãotribalà sociedadeclássica,num
processoque não conheceraqualquermodalidadesocial
de tipo "asiático".2
Da mortede Marx, em 1883,até 1929,o conceito
de "modo de produçãoasiático"apareceucom bastante
freqüência,e semcontestação,naobradediversosautores
marxistas(P. Lafargue,H. Cunow, R. Luxemburg,G.
Plekhanovetc.) e nos debatesda SegundaInternacional.
Na Rússia,asintervençõesa respeitotiverammuitasvezes,
comopanode fundo,a discussãodos marxistascom os
chamados"populistas",queidealizavama comunaagrária
russa,oumir,acreditandopoderelaserabasedatransição
ao socialismo,enquantoos marxistassublinhavamque,
porumlado,historicamente,ascomunidadesruraishaviam
servido de base ao despotismo- inclusive na Rússia -
e, por outro,encontravam-seem francadissolução.Ple-
khanovtinha,dasorigensdo"mododeproduçãoasiático",
uma concepçãoapoiadanum determinismogeográficoe
técnológicobastanteestreito.
Nos anosquese seguiramà Revoluçãode 1917,as
discussõesacercado "modode produçãoasiático"passa-
ram a estarcrescentementedominadaspor preocupações
políticasligadasa qual deveriaser a posiçãosocialista
corretadaTerceiraInternacionaldiantedasconseqüências
do colonialismoeuropeue da determinaçãodasprincipais
forçasrevolucionáriaspresentesnas sociedadesorientais.
No fim da décadade 1920,a situaçãoda China concen-
travaquasetodaa atenção.EnquantoVarga e Riazanov
acreditavamver na sociedadechinesaa articulaçãode
dois modos de produção - o asiáticoe o capitalista-,
outroslíderestinhamopiniõesdiferentes,e achavamque
a idéia de "estagnação",que em vários textosde Marx
se vinculavaà noçãode "modo de produçãoasiático",
poderialevarà conclusãoda impossibilidadeda revolução
socialistano Oriente. Simpósiosrealizadosem Tbilisi
(1930) e emLeningrado(1931) concluírampelainexis-
tênciade um "modo de produçãoasiático"específico,
havendoapenasuma"varianteasiática"do escravismoou
do feudalismo.Estruturava-se,já então,a visãounilinear
da evoluçãoda humanidadeque Stalin consagrariaem
1938.Defensoresdo "modode produçãoasiático",como
Riazanove Madiar,desapareceramna repressãodosanos
1930,e o conceitofoi quaseuniversalmenteabandonado
por váriasdécadas:3
2Os textosde Marx e Enge1sque interessamaospontosde que
tratamosforamreunidosem!.1ARX,ENGELS,LENIN.Surlessociétés
précapitalistes.Préf.M. Godelier.V. "Bibliografiacomentada".
3Ver SoFRI, Gianni. 11 modo di produzioneasiatico.Torino,
Einaudi,1969.capo2.
--- ----- ---- ,
18
Reabre-se a discussão
,I
1/
II
1I
Wittfogel,ex-membrodo PartidoComunistaAlemão
que,mudando-separaos EstadosUnidos,ali ensinarahis-
tóriada Chinae foraum delatorquandodasperseguições
da era de McCarthy,publicou,em 1957,Orientaldes-
potism4, livro no qual expôssua teoriaa respeitodas
"sociedadeshidráulicas",cujasmáximasrepresentantesno
mundocontemporâneoseriama UniãoSoviéticae a China
socialista,as grandesinimigasdo Ocidente.
Wittfogelmesclaumaconcepçãoecologistae tecnicis-
ta, semelhanteà dePlekhanov,ao difusionismoe a outras
influências.Afirmaqueascondiçõesemquesurgea opor-
tunidade- nãoanecessidade- paraquesedesenvolvam
padrõesdespóticosdegovernoe sociedade,por ele identi-
ficadoscoma "sociedadehidráulica",dependemdecertos
requisitos:1. A reaçãodo grupohumanodiantede uma
paisagemdeficitáriaem água.2. Tal grupotemde estar
acimado nível de umaestritaeconomiade subsistência.
3. O grupodeveestardistanteda influênciade centros
importantesda agriculturade chuva.4. O níveldo grupo
precisaser inferiorao de umaculturaindustrialbaseada
na propriedadeprivada.
Cumprindo-setodos essesrequisitos,o surgimento
deumasociedadehidráulicatorna-sepossível,emboranão
necessário;a escolhaentreadotarou não tal forma de
organizaçãopermaneceemaberto,semprehavendoalter-
nativas.O controle,armazenageme usodegrandesmassas
de águaatravésde obrashidráulicasexigemum trabalho
maciço,que tem de ser coordenado,disciplinadoe diri-
gido,o queimpõea subordinaçãoà autoridadereguladora
de um Estadoforte e eficaz;esteacabapor esmagara
liberdadedogrupoquelhe estásubmetido.
4WITIFOGEL,Karl A. Despotismooriental.Trad.F. Presedo.Ma-
drid, Guadarrama,1966.
--
,......--
19
Para Wittfogel,a economiahidráulicaprimeiramente
surgiunasregiõesáridas,difundindo-sedepoispelassemi-
-áridase úmidas,semprena dependênciada suaaceitação
por partedosgruposhumanosaosquaissetenhacolocado
a opção.Ele acha que é possívela adoçãoda forma
hidráulicade sociedadee de Estado,mesmoem regiões
ondenão existaou sejapoucoimportantea agricultura
hidráulica:é a "sociedadehidráulicamarginal".No caso
de seremadotadassó parcialmenteas característicasdo
"despotismooriental",teríamosuma"sociedadehidráulica
submarginal".Assim, a necessidadede obrashidráulicas
seriacondiçãonecessáriaparao surgimentoda sociedade
hidráulicaemcaráterpioneiro,semser,noentanto,impres-
cindívelparaa difusãodetal formadeorganizaçãosocial.
Por fim,dizo autorque,umavezesgotadasaspossi-
bilidadesde desenvolvimentoe de mudançascriadoras
contidasnomodeloda"sociedadehidráulica",estatenderia
à repetição estereotipada- epigonismo- ou mesmoà
decadência.O seuciclo completoseria:formação,cresci-
mento,maturidade,estagnação,epigonismoe retrocesso
institucional.
As idéias de Wittfogeltiverammuitos seguidores.
Outrossim,umadesuasposturasbásicas,a "hipótesecausal
hidráulica"- isto é, a idéia de que a necessidadede
controlesobreos grandestrabalhosexigidospela manu-
tençãode um sistemacomplexode irrigaçãofoi o fator
centralna geraçãodo Estado"despótico"-, era já bem
antiga,tendo sido defendidapor historiadorescomo J.
Baillet, J. Pirenne,A. Moret, J. Vercouttere H. W. F.
Saggs.Tal hipóteseé falsa,o que foi evidenciado,sem
dúvida,por inúmeraspesquisasbemapoiadasna arqueolo-
giae emfontesescritas.É irônicoqueumadessaspesqui-
sastenhasido realizadapor um dos maisincondicionais
seguidoresdeWittfogel,A. Palerm,quecomeçousuainves-
,
I
I
20
I
II
tigaçãoarqueológicae etno-históricapensandoprovar a
"hipótesecausalhidráulica"no casodo Méxicopré-colom-
biano,masdemonstrou,de fato,o contrário:queo con-
trole dos sistemasde irrigaçãocompetiaàs comunidades
locais,e quesó muitotardiamenteo Estadodesenvolveu
umapolíticadegrandesobraspúblicasdetipohidráulico.~
Entre os marxistas,o livro deWittfogel- quepro-
vocougrandeindignação- constituiuapenasum entre
muitosfatoresquederamimpulsoà retomadado interesse
pelo conceitode "modo de produçãoasiático".Outros
fatoresforam:a "desestalinização",iniciadapeloXX Con-
gressodo PartidoComunistada União Soviética,queno
campodo materialismohistóricodesencadeouum ataque
à noçãodo unilinearismoevolutivodassociedadeshuma-
nas;o progressodos movimentosde libertaçãonacional,
sobretudoa partir da décadade 1950,com a admissão
sucessiva,às NaçõesUnidas,de numerosasnaçõesafro-
-asiáticas,cujos problemassocioeconômicosespecíficos
exigiamtambémrespostasde tipo histórico;a amplacir-
culaçãodosGrundrisse,textodeMarx praticamentedesco-
nhecidoatéa mesmadécada,bemcomo a republicação
de seusartigossobrea índia e de escritosde Plekhanov,
Varga e outrosautoresacercadassociedades"asiáticas".
Nos paísessocialistas,na França,na Itália,no Japão
e emoutraspartesdomundo,inclusivenaAméricaLatina
- se bemquemodestamente,a não serno casodo
México-, os anos60 e 70 viramproliferarumabiblio-
grafianumerosae variadasobreo "modode produção
asiático",emmeioa ativatrocade idéias- poder-se-ia
"I
I
111/
1;Ver, sobretudo,ADAMS,Robert M. Early civilizations,subsistence,
and environment.In: STRUEVER,S., ed. Prehistoricagricul/Ure.New
York, The Natural History Press, 1971. p. 591-614; PALERM,
Angel & WOLF, Eric. Agricultura y civilización en Mesoamérica.
México, Secretariade Educación Pública, 1972.p. 128-48.
~
21
mesmodizer,no contextode um vivo debatee de agudas
divergências.
Entre os temasem torno dos quaisse desencadeou
a discussãoacercado "modo de produçãoasiático"-
quemuitospassarama chamarde"tributário","despótico-
-tributário","despótico-aldeão"etc., por ser obviamente
inadequadoo adjetivoasiáticoaplicadoa um tipo de
sociedadeque os pesquisadoresjulgavamencontrarna
históriade regiõessituadasem todosos continentes
estavamas seguintesindagações:Qual a suaorganização
interna,sua origem,suas contradições,seu desenvolvi-
mento?Tratar-se-iade umaformadetransiçãodassocie-
dadescomunitáriastribaisàs sociedadesde classesplena-
mentedesenvolvidas,ou de um tipo específicoe bem
definidode sociedadede classes?Seria uma formação
marginalrestritasomenteacertassociedades,ou universal?
As respostasdadasa estase outrasperguntasforam
heterogêneassegundoautorese tendências,empartepor-
quenosprópriostextosa quetodosrecorriam,comodiz
Melotti,
A ênfase de Marx se desloca, nas diversas passagens, de
um a outro dos (. . .) aspectos. Ora afirma que o elemento
fundamentaldo sistema oriental é a ausência da proprie-
dade privada, ora atribui esta mesma ausência aos fatores
particulares de caráter geográfico e climático (.. .). Ora
explica o papel eminentedo Estado por estes fatores ecoló-
gicos, que impunhama necessidade de grandes trabalhos
hidráulicos, ora, pelo contrário.pela dispersão e pelo isola-
mento das aldeias. Em certas passagens,atribui este isola-
mento à economia auto-suficiente.garantidapela combina-
ção de agricultura e artesanato doméstico. Em outras, pa-
rece adotar contrariamentea idéia de que seja a estrutura
simples destas aldeias, e portanto a limitada divisão do
trabalho, o que explica a estagnaçãodo sistema oriental.
Alhures, sublinha fatores diversos, como a civilização dema-
..
.-;
II
22
siadorudimentar.o baixoníveldas forçasprodutivasou a
particularestruturade c/asses,quealiás faz decorrer,por
suavez,dáinsuficiênciadadivisãodotrabalho.6
o quesignifica,comojá foi mencionado,queMarx
não chegoua elaborarumateoriasistemáticae acabada
do "modo de produçãoasiático".
Emboraalgunsautores(K. A. Antónova,P. Ander-
son,B. HindesseP. Q. Hirst,G. Komoróczy)concluíssem
pela inexistênciade tal modode produçãocomo forma
específicade sociedade,outros(F. Tokei, Godelier,Me-
lotti, J. Suret-Canale,J. Chesneaux,R. Bartraetc.) che-
garamà conclusãocontráriae tambémsalientarama im-
portânciadesseconceitoparabasearumavisãomultilinear
do desenvolvimentodassociedadeshumanas,emoposição
à perspectivaunilinearconsagradapor Stalin.Ainda mais
interessanteé a posiçãode Goblot,quese opõetantoao
unilinearismoquantoao multilinearismo,já quedefendea
opiniãode quea evoluçãodassociedadesnãoé linear:o
desenvolvimentosocial,caracterizadopor contatose in-
fluências,deslocamentos,"novoscomeços",nãoé contínuo
emcadaunidade"etnogeográfica"- quepodemesmoco-
nhecer estagnaçõese involuções-, por mais que a conti-
nuidadetemporale lógica daquelaevoluçãopossa ser
recuperadaquando integramosos diferentesprocessos
evolutivosnumaunidadesuperior.Por isso,diz M. Rebé-
riouxqueo historiadordeveabandonara busca(absurda)
da continuidadegeográficado desenvolvimentohistóricoe
aprender"a vero contínuono descontínuo".7
6MELOITI,Umberto.Marx e il terzomondo.Milano, li Saggia-
tore, 1972.p. 92.
7GoBLOT,Jean-Jacques.L'histoiredes "civilisations"et Ia con-
ceptionmarxistede I'évolutionsociale.In: PELLETIER,A. & _.
Matérialismehistoriqueet histoiredes civilisations.Paris, Ed.
Sociales,1969.p. 57-197.
,.......-
23
Emborasejaimpossívelseguirmosaqui todaa traje-
tória do conceitode "modo de produçãoasiático"desde
que suadiscussãofoi retomada,poucoantesde 1960,é
mister,além de remetero leitor aos textosprincipais
geradosemtal discussão,8 recordarque,sebemque até
meadosda décadade 1960 ainda fossemcomunsos
escritospuramenteexegéticose teóricosa respeito,desde
entãotem-sedesenvolvidoa perspectivade que,semdes-
curardateoria,é essencialprocederao seuconfrontocom
o materialempíricodisponível,infinitamentemaisrico do
queno séculopassado.Afinal, foramMarx e Engelsque
frisaram,referindo-seà "síntesedosresultadosmaisgerais
que é possívelabstrairdo estudodo desenvolvimentohistórico":
Taisabstrações,tomadasem si mesmas,separadasda
históriareal, não têmqualquervalor.9
"Modo de produçãodoméstico"e "modo de
produção palalino"
As tentativasde aplicaçãodo conceitode "modode
produçãoasiático"disseramrespeitoa grandenúmerode
sociedadese a cortescronológicostambémvariados:as
civilizaçõesdo antigoOrientePróximo;algumasdascivi-
lizaçõesdaproto-históriamediterrânea(cretense,micênica
e, commenosverossimilhança,a etrusca);lndia, Sudeste
Asiático e China pré-coloniais;algumasdas culturasda
África negrapré-colonial;as altas culturasda América
pré-colombiana.Casosmuito controversos,e com graus
de probabilidademuitomaisbaixos,sãoo ImpérioBizan-
8 A coletâneamaisatualizadaé a já citadana nota1, organizada
por Baileye LIobera.
9MARX,Karl & ENGELS,Friedrich.La ideologíaalemana.Mon-
tevideo,PueblosUnidos, 1968.p. 25.
,
~
24
'..
tino, o mundo muçulmano - insistiu-semaisno caso
turco-, a Rússiatzaristae o Japão.
Aqui nos interessao antigoOrientePróximo,visto
atravésde doisexemplos:o Egito faraônicoe os Estados
da Baixa Mesopotâmia.Por tal razão, apoiar-nos-emos
na interpretaçãoda evoluçãosocialpróximo-orientalela-
borada,sob inspiraçãodas discussõesacercado "modo
de produçãoasiático",por doisautoresitalianos,especia-
listasnahistóriadessaregião:M. Liveranie C. Zaccagnini.
Por voltade 7000a.C. já existiam,na Ásia Ociden-
tal, aldeiassedentárias,resultantesdo processoque o
arqueólogoaustralianoGordon Childe propôsfossecha-
mado "revoluçãoneolítica";esta forma de organização
se generalizouaos poucosno OrientePróximo.Alguns
séculosantesde 3000a.C.,na BaixaMesopotâmia,e por
volta dessadata,no Egito, nova transformação_ que
Childe chamava"revoluçãourbana"- se traduziuno
surgimentodecidades,do Estado,e deumadiferenciação
social profunda;ou, maisem geral,do que se conven-
cionou denominar"civilização".
Liverani,ao interpretara situaçãoposteriorà "revo-
lução urbana",propõeum duplo quadrode referência:
o "mododeproduçãodoméstico",ou "aldeão",e o "modo
deproduçãopalatino".O primeiroseriaumaestruturação
social cuja origemremontaà "revoluçãoneolítica";são
característicassuasa economiade subsistência,a ausência
de divisãoe especializaçãodo trabalho- dando-se,em
cadaaldeia,a uniãoda agriculturae do artesanato_, a
ausênciade umadiferenciaçãoem classessociais,a pro-
priedadecomunitáriasobrea terra.O "mododeprodução
palatino", por suavez,resultariada "revoluçãourbana",
quedesembocarano surgimentode complexospalaciaise
templárioscomocentrosde nova organizaçãosocial.A
economiapassaraa basear-sena concentração,transfor-
ti
I
~
I
111
I1
~
-
25
maçãoe redistribuiçãodosexcedentesextraídospor tem-
plos e paláciosdosprodutoresdiretos- emsuamaioria
aindamembrosde comunidadesaldeãs-, mediantecoa-
ção fiscal,configurandotributosin naturae "corvéias",
ou trabalhosforçadospor tempolimitado,paraatividades
civis (trabálhosdiversos)e militares;isto manifestava
divisãoe especializaçãodo trabalho,com o surgimento
de especialistasde tempointegral(artesãos,sacerdotese
burocratasdependentesdostemplose palácios),umadife-
renciaçãofortementehierárquicadasociedade,umsistema
já complexode propriedadequeincluía,entreoutrasfor-
mas, as propriedadesdos paláciose dos templos.As
comunidadesaldeãse, em regiõesmarginais,tambémas
comunidadestribais,tomadasemsi mesmas,eramo resí-
duo de um modode produçãocujasraízesmergulhavam
no passadopré-histórico;masconstituíam,ao mesmotem-
po, a basesobrea qualse desenvolverao novomodode
produção;estesó pôdesurgire se expandirexplorando
o modode produçãomaisantigo,que foi subordinado,
adaptadoe utilizadode acordocom os novosinteresses,
massemperdadetodasassuascaracterísticaspróprias.10
Para Zaccagnini,a articulaçãoentreestruturaspala-
tinas hegemônicase estruturasaldeãssubordinadas-
masaindareconhecíveise com certonível de autonomia
local - é que constituio "modo de produçãoasiático",
ou "tributário",tal comoexistiuno antigoOrientePróxi-
mo. Ele crê tambémque, nos grandesvales fluviais
irrigadose urbanizados(Egito, Baixa Mesopotâmia),a
fortecentralizaçãopalatinalevou,já no lU milênioa.C.,
a um redimensionamentotão profundodas comunidades
aldeãs,queelasperderama maiorpartede suaautonomia
10LIVERANI,Mario. La strutturapolitica.In: MOSCATI,Sabatino,
ed.L'alha de/laciviltà,v. I, p. 277-414.V. "Bibliografiacomen-
tada".Id. 11mododi produzione,ibid., v. 2, p. 3-126.
26
e importânciaeconômica- talveztenhamosaí umaapre-
ciaçãoexagerada,comoveremos.Nas regiõesmenosnu-
clearesdo antigoOrientePróximo (Palestina,Síria,Asia
Menor, partesda Assíria), pelo contrário,o sistemade
comunidadesde aldeiateriasobrevividocomforça,man-
tendoreconhecívelseucarátercomunitáriotradicionalaté
pelomenos1200a.C.,aproximadamente.11
Como foi possívela transiçãode aldeiasindiferen-
ciadasà situaçãodedesigualdadee domínioqueseconfi-
guravajá claramentedesdeo lU milênio a.C.? Obvia-
mente,o ponto de partida tem de ser um início de
diferenciaçãofuncionalno seiodasprópriascomunidades
aldeãs,tantodevidoa fatoresinternosquantopor impactos
externos(comérciointercomunitárioou de longo curso,
guerra,influênciasdiversas).Tal diferenciação,ao ocorrer,
se cristalizano planodo prestígio,do ganhoe do poder
decisório:certos"notáveis"saídosdas famíliasmais'im-
portantespassama manipularde fato,por suainfluência
e formasmateriaisde pressão,as decisõesdo "conselho
deanciãos"da aldeia.A origemprimeirada diferenciação
pôdedecorrerdo fato de quecertasfamílias,maisnume-
rosasque outras,concentraramo controlede maislotes
de terracomunitáriae maiscabeçasde gadodo que as
demais;ou dequeasfamíliasestabelecidashámaistempo
na aldeiativessemprivilégiosnegadosàs mais recentes;
ou ainda do resultadoda distribuiçãodesigualde bens
provenientesdo comérciointercomunitárioou de longo
curso.Sejacomofor, quemalcançasseposiçõesvantajosas
tentariagaranti-Iasparaseusfilhos. Com o tempo,esta-
belecia-seumadiferençaentreos quetrabalhame os que
dirigemo trabalhoalheio;entreos quedecideme os que
executam;entre os que realizamtrabalhos"comuns"
11'1
11ZACCAGNINI,Carlo. Modo úi produzioneasiaticoe Vicino Oriente
antico. Dialoghi di Archeologia. V. "Bibliografia comentada".
,......-
--I
27
(agrícolas)e "especializados"(de transformação,troca,
administração).
Quando as mudançasdesembocamplenamentena
urbanizaçãoe na organizaçãoestatal,trêssetoressociais
básicossão perceptíveis:1. A imensamaioriada popu-
lação dedica-seàs atividadesagropecuárias,consumindo
diretamentepartedo queproduze entregandoo restoao
poder central;tal populaçãonão participadas decisões
comuns.2. Um grupomuito minoritáriose ocupacom
atividadesartesanais,de troca,de administração,religio-
sas;é mantidopelaredistribuiçãodosexcedentesextraídos
dasaldeias,e não participadasdecisõescomuns.3. Um
grupoínfimoorganizao trabalhodascomunidades,pelas
quais é sustentado,e decidepor todos; estepoder de
decisãotendea personalizar-se,a ter comoexpoenteuma
só pessoa.
A ampliaçãodo corpo social,que passaa englobar
numerosascomunidadesaldeãs,maisos núcleosurbanos,
levaa umacoesãocadavezmaisartificiale menosauto-
mática;se tal coesãona aldeiadecorrede relaçõesde
parentescoe vizinhançae de decisõestomadaspor repre-
sentantesdas famíliasnas confederaçõestribais amplas
e, maisainda,numEstado,recorre-seà sançãodivinado
podere da ordemsocial.O governantesupremopassaa
situar-senumplanodiferentedo que caracterizao resto
dasociedade:asacralidadefacilitaa aceitaçãodasdecisões
pelamaiorianãoconsultada.A contrapartedosexcedentes
recebidosdascomunidadesé de tipo administrativo,mas
sobretudoideológico:o rei, ou governante,é o garantidor
da justiça- ordemcósmicaaplicadaa casosparticulares
- e da fertilidadeda terrae dos rebanhos,utilizando-se,
para tal, de meiossobrenaturais.
O palácioe o templosãoimpensáveissema aldeia,
masesta,ao inserir-seno interiordeum sistemapalatino,
,
28
sofre transformações:jánão é a aldeia autônomado
Neolítico;assim,osdoisníveisbásicosda integraçãosocial
são interdependentes.No entanto,as relaçõesentreeles
sãodeiniciativaexclusivado nívelsuperior,manifestando-
-se na taxação,no recrutamentomilitar, na repressão.
Existe uma tensão,um hiato de interessese mesmode
compreensãoentreambososníveis,quea ideologiaoficial
tentaocultar,difundindoa imagemde umasociedadeho-
mogêneaem que todos- do maispobrecamponêsao
maisexaltadofuncionário- são "servos"do monarca,
que, por direito divino,é o senhorde suasvidas e o
dispensadorda abundância.
2
A BaixaMesopotâmia
Introdução
I
I
A Mesopotâmia- vale fluvial do Eufratese do
Tigre - pode ser divididaem duas partes,respectiva-
mentea noroestee a sudestedo ponto em que os dois
riosmaisseaproximamumdo outro:aAlta Mesopotâmia,
maismontanhosa,e a BaixaMesopotâmia,imediatamente
ao nortedo golfoPérsico,regiãoextremamenteplana.
Enquantoo povoamentodaAlta Mesopotâmiadeu-se
desdetempospré-históricosmuitoantigos,a BaixaMeso-
potâmia- potencialmentefértil,maspoucoadequadaà
agriculturaprimitivade chuva- não pareceter sido
ocupadaemcaráterpermanenteantesdo V milênioa.C.,
durantea fasede Ubaid, talvezentreaproximadamente
5000e 3500a.C.- basicamenteneolíticaou,maisexata-
mente,calcolítica,pois objetosde cobrejá aparecemem
pequenonúmeroapartirde4500a.c. A fasearqueológica
seguinte,a de Uruk (aproximadamente3500-3100a.c.),
viu os primórdiosda urbanizaçãoe da escrita,inovações
queseconsolidaramno PeríodoInicial do Bronze(3100-
-2100a.C.), iniciadocoma fasede Jemdet-Nasr(aproxi-
j
I
ilt. -- ,
30
II
I
madamente3100-2900a.C.), consideradacomoa época
da verdadeirarevoluçãourbana.
O espaçode que dispomosnestelivro não permite
uma apresentação,mesmosumária,das etapaspor que
desdeentãopassouahistóriadaBaixaMesopotâmia.(Ver
o quadro1.) Pelamesmarazão,nãoserápossívelfazermos
justiçacabalàsheterogeneidadesregionais,por muitotem-
po típicasde uma civilizaçãocuja unidadesociopolítica
básicafoi, primeiro,a cidade-Estado.A gravitaçãodas
numerosascidades-Estadosda Baixa Mesopotâmianão
deixou de se fazer sentirmesmoquando,a partir de
2371a.C., aproximadamente,tentativasde unificaçãoim-
perialsesucederam,cadavezmaisconsistentes.1
Do pontode vistaetnolingüístico,o povoamentoda
BaixaMesopotâmia,no períodohistórico,estevemarcado
por doisgruposiniciais:os sumérios,quesejulgavaterem
migradopor mar para a região,mas arqueologicamente
se vinculavamao sudoestedo Irã (o Elam, ou Susiana),
e falavamumalínguaaglutinante;e os acádios,quefala-
vam umalínguade flexãodo gruposemita,e provavel-
mentevieramdo oeste.O elementosumériopredominava
ao sul (paísde Sumer,ou Suméria)da BaixaMesopotâ-
mia, e o acádio,ao norte (país de Akkad, ou Acádia).
A verdade,porém,é que,quandocomeçamosa ter mais
informações,emmeadosdo lU milênioa.c., essesgrupos
estavamjá bastantemesclados.No milênio seguinte,a
fusãosecompletou;predominaram,desdeentão,aslínguas
semitas:o acadiano,o babilôniodelederivadoe, por fim,
o aramaico.Com o tempo,o mapa etnolingüísticose
complicoudevidoa sucessivasmigrações- queàsvezes
desembocavameminvasõesviolentas- denômadessemi-
1 Já no iníciodo I milênioa.C. o imensoImpérioAssírio ainda
era governado através da extensão das instituições típicas das
cidades-Estados.(GARELLI, Paul. L'assyriologie.Paris, PressesUni-
versitairesde France, 1964.p. 75.)
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tasvindosdo oesteatravésdo desertodaSíria (amorreus,
ou amorritas,arameus,caldeus) e de montanhesesdo
leste (gútios,elamUas,cassitas;estesúltimos,provavel-
mentedirigidospor um reduzidogrupode língua indo-
-européia)ou do norte (os assirios,que representavam
um velho povo da Alta Mesopotâmia,posteriormente
semitizado).
As forças produtivas
II
II
Os grandesriosda Mesopotâmiatêmumacheiamais
irregulardo quea do Nilo emsuacronologiae incidência.
As águassobem,em princípio,entremarçoe maio, e
baixamentrejunhoe setembro.A enchentesecaracteriza
por suagrandeviolência:o Eufratese o Tigre,ao desce-
rem velozmente,durantea cheiade zonasmontanhosas,
a uma regiãoabsolutamenteplana, depositamenormes
quantidadesde aluviões - limo misturado com cal - e,
emboraa correntese façamaislentana planície,como
é natural,aindaé suficienteparacausarmuitadestruição.
Ora, quandoas águassobem,as plantaçõesjá foram
semeadashá váriosmeses;a inundaçãopoderia,em tais
condições,destruiros camposcultivadose pôr a perder
todo o trabalho.Isto torna imperativoum sistemade
diquese barreirasde proteção,e ao mesmotempoé pre-
cisoacumularáguae cavarcanaisqueirriguemos campos
duranteos mesesde seca;em suma,é necessárioum
sistemacompletode proteçãoe de regadio, de caracte-
rísticasperenes.
Dos rios, o Tigre,maisviolentoe cujo leito é baixo
demaisem relaçãoàs margens,é menosútil paraa irri-
gação,enquantoo Eufratessempretevemais possibili-
dadesde aproveitamento,já que corre acimado nível
da planície.Os doisjá mudaramde leitováriasvezes.O
-"
~
33
Eufrates,alémdisto,semprecorreupor maisde um leito
ao mesmotempo:no lU milênioa.C., o principaldos
trêscanaisnaturaisdesterio erao quepassavapelacidade
acadianade Kish; o da cidadede Babilôniase tornouo
maisimportanteno final do milênioseguinte.A mudança
decursodosriossignificavaigualmenteumatransformação
gradualdos assentamentose dasconcentraçõesdemográ-
ficas.Por outro lado, a planícienão constituiumazona
integralmentefértil.No casoda Suméria,por exemplo,as
cidades-Estadosconstituíamdois gruposprincipais,sepa-
radospelodesertodeEdin: a oeste,ascidadesdeNippur,
Shuruppak,Uruk, Ur e Eridu; a leste,alémdo deserto,
as de Abad, Zabalam,Umma,Bad-Tibira e Lagash.O
terrenocultivávelformava,alémdo mais,manchasmais
ou menosseparadasentresi.
As condiçõesecológicasexplicamque a agricultura
de irrigação,ao impor trabalhos consideráveis- embora
não necessariamentetranscendama esferalocal, como
veremos-, tornaimpossívelumaorganizaçãoindividua-
lista da agricultura.As obrasde proteçãoe de irrigação
exigiam,paraseremconstruídas,limpase conservadas,um
esforçocoletivo;e o seu uso devia ser regulamentado
e disciplinadopelalei. A dependênciaparacomos diques
e instalaçõesde irrigaçãoera tão grandeque há casos
historicamentecomprovadosde reversãoà vida nômade,
devidoà sua destruiçãolocal.
No casodo Eufrates,o trabalhoem si de cortara
margemnão apresentadificuldadesespeciais,e com o
sistemade diquesde proteção,tanques,canaisprincipais
e regos,a cheia fertilizao solo com seusaluviões,e
pode-seter águaabundanteduranteo ano todo. O pro-
blemamaiorconsisteemsera regiãoabsolutamenteplana,
o quedificultao escoamentodo excessode água,quese
imobilizaem charcose tendea impregnara terrade sal
e gesso.Tal problema,assinaladojá em fontesdo lU
,
/ ;
"
~ 111
I
34
milênioa.c., não foi solucionadona Antiguidade;a dre-
nageminsuficientecausou,freqüentemente,o abandono
de amplassuperfíciesde terra, que anteshaviamsido
férteis.
Os canais,cortadosnas margensaltas,eramrefor-
çadospeloacúmulodealuvião,ao qualàsvezessesoma-
vamesteirasde junco.Muitoscursosnaturais,correspon-
dentesaos braçosdos rios principaise aos tributários
destes,foramregularizadose canalizados,mesmoporque
tambémserviamparaa navegação.O sistemade regadio
acompanhavatradicionalmenteo cursodo sistemafluvial
natural,e foi mudandopara acompanharseusfreqüentes
deslocamentos.
O enormeesforçogastoera compensadopor um
rendimentomuito considerável.Sem que aceitemrendi-
mentosde 200 e até300 grãoscolhidosparacadagrão
semeado,de que fala Heródoto(I, 193), os autoresde
hoje, baseando-seno testemunhomenosespetaculardos
própriosdocumentosmesopotâmicos,admitemvariações
de8 a 103grãoscolhidosparacadagrãosemeado,caindo
depoisde 2000 a.c. para a médiade 30 por um. Seja
comofor, trata-sede rendimentosimportantes,além de
que, com freqüência,era possívelobter duas colheitas
anuais.Isto sem dúvidaexplicaa grandeconcentração
demográficae a forteurbanizaçãodaBaixaMesopotâmia,
emboraas estimativastentadasvariem muito. Para o
final do lU milênioa.c. e início do seguinte,L. WooIley
calculou,paraa cidadedeUr, umapopulaçãode360000
habitantes.Outrosautoresacham,com maiorverossimi-
lhança,que a populaçãodascidadessumériasvariavade
10000 a 50000 habitantes,aproximadamente,e que Ur
- a maiordelas- poderiater uns 200000 habitantes.
Tais cálculossãofrágeis,mashá dadosindiretosqueper-
mitemcomprovaro caráterde"formigueirohumano"que
3S
apresentavamna Antiguidadeos 30000km2 de terras
cultiváveisda BaixaMesopotâmia.
Em que medidapode-seaceitar,para a regiãoem
estudo,uma "hipótesecausalhidráulica",como a que
foi discutidano primeirocapítulo?Bem antesdos textos
maisconhecidosde Wittfogele seusseguidores,tal hipó-
teseerajá muitopopularna primeirametadedesteséculo,
comopodemoscomprovaremobrascomoas do arqueó-
logoaustralianoChildee do historiadorfrancêsA. Morel.
Mais recentemente,Saggsafirmava,emtom peremptório,
que
a reuniãode comunidadesno sul. formandocidades,foi
quasecertamenteditadapelosrios:paracontrolá-Iase uti-
lizá-Iasemformaefetivaprecisava-sedacooperaçãonuma
escalamaiordo quea quepequenasaldeiasisoladase
primitivaspoderiamprover.2
No entanto,a tendênciadominantetem sido, cada
vezmais,a quepredominea opiniãoquevê na "hipótese
causalhidráulica"umasimplificaçãoabusivadeprocessos
multicausaise complexos.Entre os que assimpensam,a
opiniãode R. M. Adamsé umadasquetêmmaiorpeso,
já que ele é um dos poucosarqueólogosquelevarama
caboescavaçõesrelativasaossistemasmesopotâmicosde
irrigação.Ele mostrouqueos padrõesbásicosde assenta-
mentoseguiamde perto os cursos dos principaisrios,
caracterizando-sepor sistemaslocaisde irrigaçãoempe-
quenaescala,desdeaproximadamente4000a.C.Talsitua-
çãocontinuoua predominarmaistarde,apesardasconsi-1
deráveisobrashidráulicaslevadasa cabopelosgovernantes
a partir de meadosdo lU milênioa.c., obrasque,seja
como for, só foram iniciadasmuito posteriormenteà
2SAGGS,H. W. F. The grearnessrharwasBabylon.New York,
The New AmericanLibrary, 1968.p. 41.
1
II
11;
I1
II
36
urbanizaçãoe ao surgimentoda civilização,o que des-
mentea "hipótesecausalhidráulica".3
Comoexplicar,então,o desenvolvimentodascidades-
-Estadossumérias?Emboraestesejaum temamalconhe-
cido - porquenão o iluminamos textosdecifráveis,já
que, quando começam,o processode urbanizaçãojá
terminou-, é provávelque a explicaçãotenhade ser
multicausale complexa,incluindofatorescomoa própria
irrigação- ligadaà multiplicaçãodosexcedentesagríco-
las e ao crescimentodemográfico,semos quaisascidades
nãopoderiamtersurgido-, masemconjuntocomoutros:
religiosos,políticos,militares,populacionaisetc.
Os milêniosIV e111a.C.viramconstituir-seo sistema
tecnológicobásicoda Mesopotâmiada ~pocado Bronze
e, no conjunto,dão a impressãode um dinamismomaior
das forçasprodutivasdo que,por exemplo,o que se vê
no Egito da mesmaépoca.O arado de madeirameso-
potâmico,acopladoa um dispositivopor ondeentravam
os grãos,permitiaarar e semearao mesmotempo.A
transiçãodo cobreao bronzese fez muitomais rapida-
mentedo que no Egito, já no períodoprotodinástico,e
embora o metal fosse caro - já que os minérios tinham
de ser integralmenteimportados-, seu uso para fins
produtivosdifundiu-semaisdo que no Egito na ~poca
do Bronze.O instrumentoparaelevaçãode águabaseado
no princípiodo contrapeso,conhecidopelosegípciosde
hoje comoshaduf,aparecerepresentadona Mesopotâmia
por voltade 2000a.C. e, no Egito, sóunsseiscentosanos
maistarde.
Mas convémnão exagerar:o instrumentalagrícola
era,no conjunto,bastanterudimentar.O metalsó substi-
3Ver o artigodeAdamsincluídona nota5 do primeirocapítulo,
o qual abordanão somenteo casoda BaixaMesopotâmia,mas
tambémo doEgitoe osdo Perue Meso-Américapré-colombianos.
,.....-
37
tuiu de todo a madeirae a pedraao difundir-seo ferro,
a partirde.fins do 11milênioa.C. Enxadas,picaretase
machadoseram de cobre e depoisde bronze.Mas o
aradofoi, durantemuitosséculos,feitode madeira,bem
como a foice - na qual se inseriam pedras cortantesde
sílex- e o trenóusadoparasepararo grãodapalha-
pranchasob a qual se fixavampedraspontudas.Como
os instrumentosde bronze não permitiamtosquiaras
ovelhas,antes da Idade do Ferro a lã tinha de ser
arrancada.
Um documentode aproximadamente1700a.C., que
os especialistaschamaramde "almanaquedo lavrador",
descreveos trabalhosagrícolas,quecomeçavamlogo de-
poisdaschuvaradasdeoutubro-novembro.Tal textomen-
ciona a necessidadede controlara alturada águaantes
de começara preparara terra. Previamenteao uso do
arado,o terrenoera trabalhadocom picaretas,parator-
ná-lo fofo; se necessário,os torrõeseramquebradoscom
um malho.O arado,puxadopor bois, abriasulcossepa-
rados por aproximadamenteum metro, para evitar o
esgotamentodo solo. Cem litros de sementesbastavam
para semear 20 000 m2 - contra 5 000 m2 atualmente.
Depoisda semeadura,os sulcoseramlimpos;as sementes
deviamserprotegidascontrainsetose pássaros,e regadas
em quatroocasiões.A colheita- de abril a junho ou
julho - era realizada pela sega com a foice; as espigas
eramcortadascurtas,e os caulesdo cereal,queimados.
~ interessantenotarque,segundoo "almanaquedo lavra-
dor", as diferentesoperaçõesdo ciclo agrárioacompa-
nhavam-sederezasa diversasdivindades.
Tanto na agriculturaquantono artesanato,a produ-
tividadedo trabalhopareceter sido baixa, o que era
compensadomedianteo usomaciçodetrabalhadores.Três
mulheresdeviamtrabalharoito dias, por exemplo,para
fiar e tecerum pano de 3,5 X 4 m. A divisãotécnica
1
I
38
do trabalhoartesanale agrícolatevepouco desenvolvi-
mento,predominandoa cooperaçãosimples,onde todos
os trabalhadoresrealizamas mesmasoperações.
Na economiada Baixa Mesopotâmia,as fomes e
crisesde subsistênciaeramfreqüentes,causadaspelairre-gularidadeda cheia,comotambémpelaguerra,que des-
truía as instalaçõesde irrigaçãoou as colheitas.Uma
dessascrisesacompanhoua quedado Império de Ur,
em 2004a.c. Outro períodode criseseconômicasrelati-
vamentebemconhecidasocorreunascidadesdeEshnunna,
Ur e Larsa, poucoantesda expansãoimperialde Ham-
murapi,no séculoXVIII a.C.; masnão se deu entãoa
mesmacoisaemMari e Babilônia.A economiacontinuava
não-unificadae os transporteseram lentos.Quando a
guerraou a incidênciade calamidadesnaturaisafetavam
o equilíbrioinstávelinerentea forçasprodutivas- ape-
sarde tudoinsuficientesou precárias-, numasociedade
marcadapor extremasdesigualdades,o resultadoera o
endividamentoe o aumentodo sofrimentodosagricultores
maispobrese do povoemgeral.
Descrição das principais atividades
econômicas
A agriculturaintensivaeraa baseda vidaeconômica
edaurbanização.Os textossumériosanterioresaoImpério
deAkkad permitemconhecercomalgumdetalheas ativi-
dadesagrícolasdesdemeadosdo 111milênioa.c. O cereal
maiscultivadoeraa cevada,usadacomoalimentohumano
e do gado,e comomatéria-primaparafabricaçãode cer-
veja. Diversostipos de trigo eram tambémplantados,
alémdo sésamo(gergelim),do qual se extraíao azeite
para alimentaçãoe iluminação.Os textos mencionam
igualmentelegumes,raízes,pomaresde árvoresfrutíferas,
,.....-
3!J
e mesmoárvoresplantadaspara obtençãode madeira,
muito escassana região. O cultivo da tamareira - da
qual seaproveitavamos frutos,fibrase madeiraordinária
- exigiao uso da polinizaçãoartificial.
Desdeo Neolítico,a agriculturase associavaà pe-
cuária: criavam-seovinos, caprinos,suínos,bovinos e
muares.O gadobovinoera usadocomo animalde tiro
para o aradoe paraos carros- estestambémpodiam
ser puxadospor asnos;o cavalosó se difundiuno 11
milênio a.c. -, além de fornecercarne,um alimento
de luxo, e leite.A lã das ovelhasera a matéria-prima
básicapara a produçãotêxtil,emboratambémse conhe-
cesseo linho e, bemmaistarde,o algodão.O asnoera
o meio de transporteterrestremais importante.Sabe-se
queos rebanhoserammuitonumerososdesdeo 111milê-
nio a.C., e queàs vezeseramimportadosanimaisde boa
raçapara aprimoramentodasespéciescriadas.
Há provadocumentalda importânciapersistenteda
pesca(no golfo Pérsico,nos pântanoscosteiros,rios e
canais),queempregavaumpequenobarcofeitodemolhos
de junco trançado,anzole rede.A caça,atividadecom-
plementar,erabemmenosvital.
Praticava-sea coletaem terraspantanosas,especial-
menteparaobtençãodo junco,que,alémde serusadoem
cestas,barcos,cordase cabosde ferramentas,constituía
o materialdeconstrução,porexcelência,decabanasrurais.
A argilaera tambémmatéria-primaessencial,usadana
fabricaçãode cerâmica,tijolos.
Existiam numerosasespecializaçõesartesanais.Os
textos e algum material iconográfico - muito menos rico
do queo egípcio- permitem-nosconhecera produção
de cerveja,vasilhas(de argila,sobretudo,mas também
de pedra,madeirae vidro), tijolos - secosao solou
cozidosno forno -, queerama basede todasas cons-
..
40
'I
truções,objetosde metal,têxteis,objetosde couro (san-
dálias,roupa,equipamentomilitar,odres,sacos,guarnições
de carros,certasembarcações),artigosde madeiraetc.
Os textosda lU DinastiadeUr, por exemplo,mencionam
escultores,ourives,cortadoresdepedra,carpinteiros,forja-
doresdemetais,curtidores,alfaiates,calafates.Haviagran-
des oficinaspertencentesaos templose palácios;assim,
no final do lU milênioa.c., emtrêslocalidadespróximas
à cidadede Lagashtrabalhavam6 400 artesãostêxteis
em oficinasestatais.Mas tambémexistiamoficinasfami-
liares,e nas cidadesos artesãosse agrupavamem ruas
especiais.O desenvolvimentoda produçãoera dificultado
pelaescassezdecombustíveis,matérias-primas,metalpara
as ferramentas,cujo abastecimentodependiaquasetotal-
menteda importação.Mesmo assim,certasunidadesde
produçãoempregavammuitamão-de-obra,especialmente
os moinhose as manufaturastêxteis.
O comérciolocale o entreascidadesdaBaixaMeso-
potâmia,utilizandoa navegaçãonos rios e canaispara
o transporte,implicavampoucosriscos,masa concorrência
era grande.Muito mais importantefoi o comérciode
longocurso.Já aproximadamenteem4000a.C.,a obsidia-
na e o sílex eramimportadosdo leste,e o asfalto,do
cursomédiodo Eufrates.Na fasede Jemdet-Nasr,alguns
textosjá mencionamum "chefedos agentescomerciais"
entreos funcionáriosdascidades-Estados.b quea Baixa
Mesopotâmiasó contacompoucamadeira,de má quali-
dade,faltando-lhedetodopedrae metais.Até as grandes
mósdepedradosmoinhostinhamde serincomodamente
importadas.Assim,excedentesagrícolase produtosmanu-
faturados(especialmentetêxteisde lã) foramdesdecedo
mobilizadosparaseremtrocadosno exteriorpor matérias-
-primas (madeira,cobre,estanho,pedrasduras) e por
artigosde luxo (ouro, prata,lápis-Iazúli,tecidosestran-
geirosetc.).
II :1
.,.....-
41
A principalrota terrestrepara o norte e o oeste,
percorridapor caravanasdeasnos,ganhavaa Ásia Menor
atravésda Assíria, que ficava na parte leste da Alta
Mesopotâmia.Por mar, havia contatosfreqüentescom
Dilmun - atual Bahrein -, com outros pontos da Arábia
e, indiretamente,coma índia. Os comerciantesmesopotâ-
micosmantinhamumaredede agentese correspondentes
ao longodas rotascomerciais.Apesarde riscosconside-
ráveis,desdequedeixoude ser monopólioexclusivodos
paláciose templos,o comérciode longocursopassoua
permitirconsiderávelacumulaçãoprivadade riquezas-
mesmoporquese associavaà compradeterrase escravos
e ao empréstimoa juros.A economiaeraprotomonetária:
nãohouvemoedacunhadaantesdo domíniopersa,masa
cevadae os metais(pratae cobre,sobretudo)funciona-
vamcomopadrãode valore unidadede contanastran-
sações.No comércioexterioro pagamentopodiaserfeito
com lingotesde metal.
Em certasocasiõesfalhavao abastecimentodematé-
rias-primasimportadas,afetandoas atividadesde trans-
formação.Na épocado apogeudo ImpériodeAkkad, por
exemplo (século XXIV a.C.), houve uma reversão
passageirado bronzeao cobre,aparentementeporquefal-
tou o estanho.
Propriedadee relações de produção:
interpretaçãodas estruturaseconômico-
-sociais
Escreveucertavezo arqueólogoPetrie:
A idéia de propriedadenão é absolutamenteuma abstração
simples; é de fato tão complexa em suas variadas natu-
rezas que se trata de uma generalizaçãoque não podemos
esperar encontrarem uma sociedadearcaica.Existem várias
1
42
11
I
I'
modalidadesde propriedade,tão diferentesentre si que,
paraa maneiraconcretade perceber,nadatêmemcomum.
Existeo lote de terratribal.ocupadounicamenteem usu-
frutoe usadosó comoummeiode trabalho.Existea arma
ganhaao inimigo,ou o saquede assentamentos.que é
o prêmioda bravura.Existe a porçãode manteigafeita
pela dona-de-casa.e que será consumida.Existeo chifre
esculpido,queserveparabeber,produtode umartesanato
individual.guardadocomoherançade familia.Estas dife-
rentes modalidadesde coisas não são percebidascomo
similaresemsuaorigem,nanaturezada possesobreelas.
ou em sua finalidade.Generalizá-Iastodascomoproprie-
dadenão é, absolutamente,algo óbvio.4
Embora Petrienão estivessepensando,aqui, numa
sociedadecomoa da Mesopotâmiae, sim, numacultura
como a dos celtasda fase pré-romana,esta passagem
serveparaalertar-nossobreumpontoimportante:quando
empregamoso termopropriedade,muitasvezeslhe asso-
ciamos,automáticae implicitamente,umanoçãounificada
e absolutadepropriedade,típicadatradiçãoocidentalque
remontaao Direito Romano.Ora, tal noção,não sendo
adequadanempertinenteao se tratardo antigoOriente
Próximo, pode conduzira becossem saída e a falsas
percepções.
Nas terraspertencentesaos templossumériosdo lU
milênioa.C., por exemplo,haviaextensõesconsideráveis
cuja rendaera revertidaao rei e a membrosda família
real. Seriam,por tal razão,"propriedade"do rei e de
seusfamiliares?Um sumérionão veria assimas coisas,
nemsentirianecessidadede fazer tal pergunta.Mas, se
a rendadessasterras,sistematicamente,não ia para os
templos,que significadizerque tais terraspertenciama
4PETRIE,William M. F. Some sourcesDf human history. London,
Society for Promoting Christian Knowledge, 1922.p. 105-6.
~
43
eles?Outrossim,o rei e a famíliarealdispunhamtambém
de terraspróprias:umapartedo rendimentodelasderi-
vado podia,no entanto,destinar-sea financiardespesas
dos templos,como ocorria no períododa lU Dinastia
de Ur.
Vejamosoutro exemplo:
Na antigaBaixa Mesopotâmiahaviasereshumanos
quechamamosdeescravos,poispertenciama pessoasque
podiamvendê-Ios,legá-Ios ou alugá-Ios,bemcomocasti-
gá-Iosfisicamente,marcá-Ioscom signosde propriedade
e fazê-Iostrabalhar.Com algumasexceções- soba lU
Dinastiade Ur, por exemplo,os prisioneirosde guerra
escravizados(namra) careciamde status jurídico -, tais
escravos,porém,podiamcasar-secom pessoaslivres,ter
bens,intentaraçõesemjustiça;e pagavamimpostos.De
certaformaeram"propriedade"deseusdonos,mascerta-
mentenão no mesmosentidoe extensãoemqueo eram
os escravosno mundogreco-romanoclássico.
Poderíamosdar outrosexemplos,masé importante
quefiqueregistradaapenasa seguinteadvertência:o uso
de termoscomunsnãogarante,ao setratardesociedades
tão diferentesda nossa,queo seusignificadopermaneça
necessariamenteo mesmo.
o 11I milênio a.C.
O pólo "palatino" da sociedadehistóricada Baixa
Mesopotâmia,ou seja, uma classedominantemais ou
menosconfundidacom o aparelhode Estado,já havia
surgidoclaramentena passagemdo IV parao lU milênio
a.C. - fase de Jemdet-Nasr; então aparecem, nos
documentos,funcionárioscomoo chefeda cidade-Estado,
queeratambémsumosacerdote(en), o chefedosagentes
comerciais,a grandesacerdotisa,e outros.A partir de
meadosdo lU milêniocomeçamosa perceberoutrosele-
44
I~
I
III
mentosda organizaçãoestatal:o sistemade tributosin
natura e "corvéias"- trabalhosforçados,por tempo
limitado,paraobraspúblicas,serviçosparao grupodiri-
gente e serviço militar - imposto à população, e desta-
camentosmilitaresrecrutadosentre os dependentesdo
templo,o quepermitiaa existênciadeumnúcleodeforça
policiale militarindependenteda milíciacamponesacon-
vocadaem épocade guerra.
Nas cidades-Estadosda BaixaMesopotâmia,no pólo
dominanteestatal,o setordos templospor muitotempo
predominousobreo dopalácio,aparentementemaistardio,
masamboseramligadosentresi; a tendênciaao longo
do lU milênioa.C.foi à ascensãodos"chefes"(en,ensi),
queem certoscasosassumiramo título de "rei" (lugal)
e,por fim,no períododeAkkad,declararam-sedecaráter
divino,emdetrimentodostemplos:o aparelhomilitarsob
comandoreal se ampliou,independentementedasmilícias
dos templos,e as terrasreais tomaram-segradualmente
maisextensasdo que as dos santuários.
Até 1950, aproximadamente,foi popular entre os
especialistasa teseda "economia-templo",ou "cidade-
-templo", suméria:os templos,acreditava-se,possuíam
toda a terra cultivada.Foi Diakonoff que demonstrou
ser falsa tal opinião.Os templostalvezocupassem,em
meadosdo lU milênioa.c., a metadedo solo arável;o
restodividia-seem terrasdo palácioe terrascomunais
- de famílias extensase de comunidadesaldeãs.A pes-
quisaposteriorobrigaa acrescentarum quartoelemento:
apropriedadeprivadaincipiente,queapareceemdocumen-
taçãopublicadapor D. O. Edzard e pode tambémser
deduzidado fato, iluminadopelo próprioDiakonoff,de
se daremvendasde terracomunala indivíduosquenem
semprerepresentavamo Estado.
Devemos,então,imaginaro funcionamentodaecono-
miabaixo-mesopotâmicaapartirdeduasestruturasbásicas,
,...--
-
45
que correspondemao queLiverani chamade "modo de
produçãopalatino" e "modode produçãodoméstico",ou
"aldeão": 1. Os complexoseconômicosorganizadosem
cadacidade-Estadoà voltados templose do palácioreal,
alémde concentraremos resultadosdos impostose cor-
véiasquea maioriada populaçãodevia- redistribuídos
aos dependentesem forma de rações -, controlavam
terrasprópriasdotadasde sistemasde irrigação.2. Por
outrolado,ascomunidadesfamiliares,oualdeãs,possuindo
a terracoletivamente,utilizavamo esforçocomunalpara
organizarema irrigação,para a ajuda mútua,para se
defenderemdos efeitosda usura - em anos de más
colheitasera precisopedir grãosemprestados,que nem
semprepodiampagar-, paraa prestaçãode corvéiase
o pagamentodos impostos.Tanto a nível de cadaaldeia
quantodaprópriacidade,existiaum"conselhodeanciãos"
e uma "assembléia"comoórgãosadministrativose para
dirimirdisputas,de claraderivaçãocomunale tribal.5
Ao lado dasduasestruturaspolaresda sociedade,a pro-
priedadeprivadaapareciacomoalgoaindapoucoimpor-
tante;pode mesmoter desaparecidomomentaneamente
duranteo períodoestatizanteda lU DinastiadeUr, como
pretendemalgunsautores.
Ignoramoso detalheda organizaçãoeconômicado
complexopalacial,quesegundoparecese baseouna dos
templos.A organizaçãodestesnosé conhecidasobretudo
por um exemplo,o do santuárioda deusaBaba - o
segundoemimportânciada cidadede Lagash,que tinha
uma vintena de templos -, possuidor de 4 465 hectares
de terra,nos quaistrabalhavam1200 indivíduos,sob a
. supervisãode um sacerdoteadministrador,um intendente,
um inspetore grandenúmerode capatazese escribas.As
5JACOBSEN,Thorkild. Primitive democracyin ancientMesopotamia.
Journal 01 Near Eastern Studies,Chicago, 2, 1943.p. 159-72.
J
111
46
suasterrasse dividiamem três blocos principais:uma
quartaparte era cultivadadiretamentepara o templo,
atravésde algumamão-de-obraescrava,mas sobretudo
do trabalhode dependentesjuridicamentelivres;o resto
dividia-seem "terrasde labor", dadasem arrendamento
por 1/7 ou 1/8 da colheita,e "camposde subsistência",
emquepequenasparcelaseramdistribuídasaosagriculto-
res,artesãos,guardas,pescadores,escribas,serviçaisetc.,
que tambémrecebiamrações.
Os templosdevemser imaginadoscomo enormes
complexos,com terras,reservasde pesca,rebanhos,ofi-
cinasartesanaise umaparticipaçãodiretae talvezpredo-
minanteno comérciode longocursoe nos empréstimos
usuráriosde pratae cereal.Os trabalhadoresdependentes
parecemter tidoorigensvariadas:refugiadosestrangeiros
transformadosem "clientes"dos templos,membrosde
famíliase comunidadesarruinadaspela usura.Quantoà
escravidão,predominantementefemininanestaépoca,era
importantena tecelagem,nosmoinhos,no serviçodomés-
tico,maisdo quena agricultura.
No períodofortementeestatizanteda lU Dinastia
deUr, os lavradoresdependentes(gurush),agorana sua
imensamaioriainstaladosemterrasestatais,já não rece-
biamlotesde subsistênciae, sim, somenterações:traba-
lhavamemtempointegralparao Estado,e suasrações,
ao queparece,erampequenasdemaisparaquepudessem
constituirfamília.Estesistemafoi abandonadono milênio
seguinte.6 Tambéma produçãoartesanaltornou-se,na
época,estatalna sua maioria,e os artesãoserammuito
vigiados.
Comoa escritaerausadasobretudona administração
dos templose palácios,as comunidadesaldeãssão mal
6GELB, I. J. The ancientMesopotamianration system.Journal of
Near Easlern Sludies, Chicago, 24, 1965.p. 230-43.
.J
~
.....
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conhecidas.Tais comunidadessomenteaparecememalgu-
ma documentação,sobretudoem contratosde vendade
porçõesdeterracomunalemqueos vendedoressãovários
- representandogruposde parentese recebendoporções
desiguaisdo pagamentoem cobre e de "presentes"in
natura--, e o compradorum só: o rei, um comerciante
agiota,um funcionário.Interpreta-se,portanto,estetipo
de contratocomosignificandoa vendade terracomuni-
tária, sob coação política - o rei acadiano Manishtusu,
por exemplo,comprou,"à força", grandeextensãode
terrenode comunidades,para distribuí-Iaem usufrutoa
dependentesseus - ou como resultado da usura.
Os comerciantes(damgar)eramfuncionáriosa ser-
viço do palácioe dos templos,dos quais recebiamos
produtospara seremtrocadosno exterior.No entanto,
tambémfaziamnegóciospor contaprópria; certosfun-
cionáriosaparecem,igualmente,comprandoterrase reali-
zando empreendimentospróprios, às vezes financiados
por empréstimosdos templos,mesmono períodoestati-
zantede fins do lU milênioa.C.
o 11milênio a.C.
Os historiadoresestãode acordoem percebertrêstiposdepropriedadesobrea terrana primeirametadedo
U milênioa.c.: 1.As extensasterrasreais.2. Os domínios
dostemplos,muitomenosimportantesdo queno período
sumero-acadiano.3. As propriedadesprivadas,geralmente
pequenas,masnumerosas;segundoalguns,predominantes
emtermosde áreatotal,afirmaçãodifícil de serprovada.
Um quartosetoré objetode divergências:Diakonoffcrê
que as comunidadesse mantivessemcomo proprietárias
de terrascoletivasaindanesteperíodo,enquantoKomo-
róczy achaque elascontinuavamsendoórgãosadminis-
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trativose judiciais,mashaviamperdidotodaa importância
econômicanasáreasmaisdinâmicas,conservando-sepor
algumtempoa propriedadecomunalsobrecertasterras,
unicamenteemregiõesmaisatrasadas,periféricas.7
Há muitosindíciosde um desenvolvimentoda pro-
priedadee das atividadesprivadasnestaépoca,e não
somenteno setorrural.Os tamkaru(mercadores)forma-
vam,emBabilônia,umacorporaçãosubordinadaao Esta-
do, e faziamnegóciosa mandodo governo.Mas também
negociavamemproveitopróprio,aproveitando-sedaampla
redede agentesquemantinhamdentroe fora da Meso-
potâmia;praticavam,ainda,o empréstimoa juros,forma-
vam sociedadesmercantis,compravamterrase escravos.
Um dossinaisde quetais atividadestinhamimportância
considerávelé o desenvolvimentodo direitoprivado,que
se expressana atividadelegislativados reis, em especial
de Hammurapi(1792-1750a.c.), fundadordo Império
Paleobabilônico.Outro sinal é a freqüênciacom que, a
prazos irregulares e sem aviso prévio - para não inter-
romperas atividadesde crédito-, os reisdecretavamo
misharum("justiça"), editoque anulavaas dívidase a
escravidãopor dívidas,o queeraumaformade proteger
a pequenapropriedadeprivadada terra, a qual devia,
portanto,desempenharum papel importante.
Nas terrasreaisencontramostrêssetores:1. A parte
administradadiretamentepelo palácio, trabalhadapor
lavradoresdependentese pessoasquecumpriama "corvéia
real".2.Lotesarrendados,ouconfiadosa colonos- aos
quaiso rei adiantavaos animaisde tiro -, contrauma
7DIAKONOFF,I. M. Main featuresof theeconomyin themonarchies
of ancientWesternAsia. In: CONFÉRENCEINTERNATlONALED'Hls-
TOIREEcoNOMIQUE.V. "Bibliografia comentada";KOMORÓCZY,G.
Landed property in ancient Mesopotamiaand the theory of the
so-calledAsiatic mode of plOduction.Oikumene. V. "Bibliografia
comentada".
--- -
T
I 49
rendain natura.3. Porções(ilku) concedidasemusufruto
a soldadose funcionáriosem trocade serviço;eramina-
lienáveismastransmissíveispor herança.Emboraa escra-
vidãocontinuasseexistindo,alimentadapela guerra,pelo
tráfico,por condenaçõesjudiciáriase pelonão-pagamento
de dívidas- nesteúltimo casofoi limitada,por Ham-
murapi,a umaduraçãodetrêsanos-, os escravoseram
raramenteempregadosno trabalhoagrícola,mas com
maiorfreqüência,nasoficinasartesanaise no serviçodo-
méstico.A mão-de-obraagrícolacompreendialavradores
dependentes(ishshakku)e tambémassalariadosalugados
por dia, em especialparaa colheita,tantonasterrasdo
rei quantonasde particulares.
A sociedadedividia-seem três categoriasjurídicas:
awilum, o homemlivre que gozavada plenitudedos
direitos;mushkenum,o homemlivrede statusinferior-
talvezumacategoriadedependentesdo palácio,e por este
tuteladose protegidos;wardum,o escravo.Os direitos,
deverese privilégiosdessesgruposvariavamde acordo
com a suacategoria.Emboraas mençõesaos mushkenu
tenhamcomeçadoaindano lU milênioa.c., sua origem
não é clara, e a documentaçãodisponívelnão permite
quese dê razãoemformadecisivaa algumadasnume-
rosasteoriasexistentesa respeito.
O períodopaleobabilônicoviu semdúvidaumdesen-
volvimentodastransaçõesmercantise creditícias,mesmo
na ausênciade moedacunhada,e um incrementoda
divisãosocial do trabalho.Alguns achamque isto teria
abaladoas estruturascomunitáriasdas aldeias,mas tal
::oisaé duvidosa.Há indícios,outrossim,de umagrande
heterogeneidaderegional na Baixa Mesopotâmia,que
exemplificaremos.Uma pesquisabaseadaem 1600 do-
cumentos,quepermitiramconheceras atividadesdecerca
de 20000 pessoas,mostrou,na cidadede Sippar,entre
1894e 1595a.C., a existênciade muitasfamíliasricas
,
rr
II~I
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I
I
f
semconexõescomostemplose o governoreal,dedicadas
à agriculturae ao comércioexterior,sendoqueos ganhos
comerciaiseraminvestidosnacompradeterrasena impor-
taçãode escravos.Mesmoo rei de Babilôniavendeuter-
renosrurais a pessoasde Sippar,que eram,em parte,
arrendados.Eshnunnaapresentavacaracterísticassimila-
resàs deSippar,e Ur - centroda importaçãodo cobre
- estava,pelo contrário,sob estreitocontroleestatale
mostravamenorpujançada iniciativaprivada.
O períodoseguinte- a segundametadedo 11milê-
nio a.c., ou períodocassitada Babilônia- é malconhe-
cido. Ao chegaremà Mesopotâmia,imigraçõesde povos
aindatribais (os cassitas,os arameuse, já no início do
I milênio a.c., os caldeus) revitalizaramas estruturas
comunitárias.Por outrolado,a interrupçãodoseditosdo
tipomisharumsignificouo abandonoda proteçãoaospe-
quenosproprietáriosendividados,disto resultandoa con-
centraçãoda propriedadedo solo.Os santuáriosviram-se
novamentecom a atribuiçãode muitasterras,mas sob
estreitocontrolereal. Os reis cassitasdoaramextensos
apanágiosa seusparentes,a chefesmilitarese a funcio-
nários do palácio,isentando-osde corvéiase impostos,
comosabemospormonumentosinscritosdepedra(kudur-
ru). A diferenciaçãosociojurídicaentre os awilu e os
mushkenucontinuouemvigor,prolongando-seatéo milê-
nio seguinte.
,
o I milênio a.C.
A BaixaMesopotâmia- sob domínioàs vezesso-
mentenominalde Babilônia- estava,na primeiraparte
do I milênioa.c., inicialmentesob a influênciaindireta
dosassíriose, depois,sobseugoverno.Babilônia,Sippar,
Nippur,Uruk faziamparte,porém,de um grupode cida-
des privilegiadas, centros agrícolas e manufatureiros -
---
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no casode Babilônia,"cidadesanta"-, emcujasestru-
turasinternasos dominadoresdo nortepoucointervieram.
Os assíriosfavoreceramos temploscom muitasdoações,
mantendo-os,porém,sobcontroleestatal.As comunidades
aldeãsforam reformuladas: as famílias camponesas- em
muitasregiõesdo impériovindasdeoutrasplagas,segundo
o sistemaassíriode deportaçõesde populaçõesinteiras
- deviam entregarcertas taxas in natura ao governador
provincial,enquantoa aldeia,embloco,deviaoutrastaxas
ao rei. Esta reorganizaçãorural assíriaafetoupoucasre-
giõesna Baixa Mesopotâmia,onde muitasdas cidades
gozavamdeprivilégiosfiscaise conservavamsuaspróprias
leis e instituições,incluindoas assembléiase conselhos
de anciãos(aldeãese urbanos),de tradiçãomuitasvezes
milenar.Emboraasnumerosasguerrasdo períodotenham
intensificadoa escravidão,estacontinuouconstituindoum
aspectosecundáriodasrelaçõesde produção.
Ao domínioassíriosucedeu-seo Império Neobabi-
lônico (626-539a.C.). Nestafase- a últimada história
independentede Babilônia-, os templostiveramoutra
vezumpapelfundamentalnaeconomia.Um únicotemplo
(o Eanna,de Uruk) possuía,em meadosdo séculoVI
a.c., 20650 hectaresde terra conhecidos,que eram,
comose sabe,só umapartede um conjuntoaindamais
vasto.No entanto,o dízimoreal atingiatodasas terras,
inclusiveas dos templos,e a ingerênciado Estado na
economiadossantuáriosfoi causadeforteoposiçãosacer-
dotalao rei Nabonido.As propriedadesdo palácio,menos
conhecidas,eramtambémimportantes.
Os domíniosdostemploseramemgrandeproporção
arrendadosa pequenosparceiros,que entregavamparte
da colheita(erreshu),ou a pessoasde posses(os arren-
datáriosikkaru), que arrendavamgrandesextensõesde
terrapor períodoslongos,paraexplorá-Iasmediantetra-
balhadores(sabé); estespodiamser livres ou escravos,
,
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os quaisse alugavamcoletivamente:formavam"tropas"
errantesem buscade trabalho.As terrasadministradas
pelo própriotemploeramcultivadaspor agricultoresde-
pendentes,que, tal como os pastorese os artesãosdo
santuário,recebiamalimentos,roupase prata em troca
de trabalho.A rendade certasterrasera dadaem pre-
bendaa trabalhadoresgraduadose dignitáriosdo templo,
correspondendoa

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