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VIVENCIAR, ESCREVER E ELABORAR A CLÍNICA: 
SOBRE UMA FUNÇÃO DA ESCRITA CIENTÍFICA�
EXPERIENCING, WRITING AND WORKING THROUGH THE CLINIC: 
ABOUT ONE FUNCTION OF THE SCIENTIFIC WRITING
Ana Cláudia Santos Meira�
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de apresentar uma das funções exercidas no psiquismo de seu autor, pela escrita de trabalhos teóricos e do relato de casos de pacientes. Tal função é a de elaboração das angústias despertadas na prática clínica. Quando a vivência com o paciente torna-se penosa, pesada e não encontra possibilidade de assimilação somente pelo “pensar” esta experiência, a escrita surge como um recurso disponível e do qual se pode lançar mão, para lograr um domínio sobre aquilo que mobilizou, a ponto de elaborar o conteúdo psíquico que foi desacomodado.
Palavras-chave: escrita científica, produção escrita, elaboração psíquica, vivência clínica
Abstract
This paper aims at presenting one of the functions present in the author’s psychism by the writing of theoretical papers and the report of patients’ cases. Such a function is of working through of the anguishes awakened in the clinical practice. When the experience with the patient becomes painful, hard and doesn’t find possibility of assimilation just by “thinking” of this experience, the writing emerges as an available resource which one can grasp, in order to control what has been mobilized. By the writing process of this experience, the psychic content that has been displaced can now be positively elaborated. 
Keywords: scientific writing, written production, psychic working through, clinical experience
Introdução
A escrita é atividade corrente do fazer psicanalítico, especialmente para quem se insere em Cursos de Formação ou no meio acadêmico. Faz-se presente pela necessidade de relato dos casos clínicos para supervisão, para apresentação, e na realização de trabalhos científicos. Muitas vezes, são escritos obrigatórios, com um objetivo curricular, mas cumprem uma função psíquica para além disto.
O escrever pode ser utilizado como forma privilegiada de elaboração de dolorosos conteúdos mentais do analista vivenciados na clínica e até então não processados. Pela escrita, uma angústia solta, inominada, pode converter-se em pensamento e, assim, ganhar expressão no papel (1; 2; 3; 4; 5; 6; 7; 8; 9). Estes elementos são representados e ressignificados, de forma a que possamos a eles fazer frente, dando conta de certo quantum de vivência que, talvez, de outra forma, não alcançaria uma representação mais elaborada.
Vivenciar a Clínica
Na vivência diária da clínica, o processo psicanalítico levado a cabo com o paciente deflagra também em nós, terapeutas, a experiência de sentimentos intensos. Assim, da mesma forma como um processo interno se põe em marcha dentro do paciente, um movimento faz agitar nosso mundo interno. Com pacientes psiquicamente mais regressivos, os sentimentos contratransferenciais têm expressão em uma vivência de desorganização do pensamento, em uma sensação de caos interno, e em reações fortemente sentidas. Não menos importante, contudo, é a vivência com pacientes que, ainda que com um nível de funcionamento neurótico, em alguns momentos, como que nos roubam – através de maciça identificação projetiva – a capacidade de fazermos cargo do que sentimos.
Muitas vezes, somos assaltados por uma vivência de completa confusão interna, pelo qual as ideias soltas, a respeito do paciente e daquilo que se passa com ele, não fazem sentido algum. Não sabemos o que dizer, como intervir, que rumo dar à sessão. Da mesma forma, os sentimentos sofrem este movimento. Sentimos amor ou ódio em uma intensidade tal que nós mesmos nos desconhecemos. Passamos por vivências das mais penosas, e a desorganização psíquica se instala. É o que acontece na sessão quando a fala do paciente nos parece, por vezes – por muitas vezes – absolutamente privada de significado. A desorganização do paciente nos invade e toma conta temporariamente de nossa capacidade de pensar (10). Enquanto inundados pela vivência por demais violenta de alguma emoção ou evento, o pensamento parece não dar conta: pensamos de forma tão caótica quanto a própria vivência e, incapazes de dar uma ordem, até mesmo o pensamento nos angustia. 
Como analistas, aparelhados com uma capacidade de metabolizar a angústia, normalmente temos êxito em organizar o que se passa internamente; em certos momentos, contudo, nossa tentativa é inútil e temos que nos distanciar do paciente e do ambiente analítico para readquirirmos a clareza de pensamento e a direção de nossa compreensão e atividade. É neste lugar de distanciamento, que se apresenta a escrita.
Escrever a Clínica
Quando escrevemos, produzimos um elemento concreto para fora de nós, o próprio texto. Assim, nos afastamos das vivências caóticas e, então, podemos compreender. Tomada esta distância – entre o sentido e o escrito – um processo já aconteceu: o que era vivência pura, crua, passou para outro registro mental, mais elaborado. 
Pereira Leite (2) identifica neste distanciar-se uma das forças motivadoras da escrita. Escrever é “introduzir uma distância que possibilite a apropriação dos efeitos de supervisão, de elaboração conceitual e de análise que se mobilizaram em sintonia com a tarefa da tradução. É ‘refazer-me’ (...), convalescer, retomar o fio de minha própria escrita e tecer, ainda que somente alguns fragmentos, ouvindo a mim mesma” (p. 28). 
A linguagem é essencial para que as ideias adquiram organização, clareza e precisão dentro da mente e, fora, na folha de papel. É um dos processos pelos quais a experiência emocional é nomeada e ganha um significado para aquele que pode elaborá-la a partir de então. Na linguagem, a escrita ocupa um lugar destacado por diversos autores como recurso à possibilidade de pensar, e como um eficiente organizador do aparelho mental (1; 3; 4).
Neste ordenamento, o ato de escrever evidentemente possibilita a criação de um sentido nas experiências emocionais que têm sua origem no inconsciente, e estavam dispersas na confusão da mente do analista-autor (2; 11; 7; 8; 12). O fato de se colocar no papel uma ideia que habitava até então apenas nossa mente já supõe um trabalho mental, na medida em que, pela palavra, ganha um formato e uma organização que permitem seja nomeada e assimilada positivamente. 
Berlinck (13) traça um paralelo entre a ação da atividade psicanalítica e aquilo que será posto em ação na atividade da escrita. Através de ambas as atividades, podemos transpor para a palavra – verbal e escrita – o que foi traumático e excedeu a capacidade do ego de dar conta no psiquismo. Na análise, o paciente pode fazer frente às experiências não-elaboradas; pela escrita, o analista tem um espaço para elaborar.
Este autor caracteriza o processo psicanalítico como um movimento libertador, no sentido de que visa a rememoração do recalcado e provoca um deslocamento da energia sexual empenhada no recalque para o âmbito da representação e, mais precisamente, para a capacidade criativa. Assim, é possível pôr em palavras com liberdade o conteúdo mais próximo do trauma. Da mesma forma, o escrever faz parte da formação do psicanalista. Para Berlinck (13), em nível de igualdade com o estudo, a escrita faz parte da atividade psicanalítica na medida em que ambos "exercitam a liberdade e revelam a repetição que decorre das neuroses de transferência" (p. 14). 
A escrita funciona como deflagradora de insights e, neste sentido, cumpre – a partir da organização das ideias – uma função auto-analítica para o analista que escreve, de forma que impasses teóricos ou restos contratransferenciais despertados pelo paciente podem ser examinados, pensados e, quem sabe, elaborados (12; 1; 3; 4).
Cruz (9) sugere que a escrita intenta elaborar e atenuar o enfrentamento com a morte como realidade inapelável, conseguida através tanto de um texto artístico como de um trabalho psicanalítico. Ele se baseia nos postuladosde Bion, para explicar que, através da criação de um conto, uma poesia, um trabalho psicanalítico, podemos efetuar a transformação de conteúdos mentais impensáveis em produções que possam conter e dar significado simbólico ao vivido simplesmente.
É a concepção que encontramos em diversos autores que apontam para a escrita como forma de elaborar vivências como a depressão, a angústia (7), uma ferida, uma perda ou um trabalho de luto (14) ou a culpa (5), sentimentos que põem em marcha a criação, em uma tentativa de assimilação dos conflitos psíquicos do autor.
No exercício da clínica, quantos já não passaram pela experiência de, simplesmente ao relatar uma sessão difícil, dar-se conta de uma série de aspectos para com o paciente? Sozinhos – nós e o papel – já se estabelece a possibilidade de organização mental. O que era confuso na sessão ou aquilo que nem desconfiávamos ter se passado, no relato ganha uma forma. O inconsciente e o pré-consciente têm direito à expressão. Prova de que o escrever cumpre bem a função de organizar os conteúdos mentais caóticos do analista.
Elaborar a Clínica
A escrita surge como este organizador de ideias e sentimentos, transformando-os em pensamentos com sentido e clareza, de modo que podem, então, ser examinados e pensados. É o estágio final de um processo de construção que é mental. Muitas ideias só tomam forma, são descobertas e pensadas, quando podem ser postas em palavra – falada ou escrita. Neste espaço entre o que tais ideias são de fato e o que representam, há a possibilidade de reflexão sobre o conteúdo agora expresso na folha. Não é nisto que se baseia o processo psicanalítico?
A letra escrita é produto de um processo de elaboração mental, ao mesmo tempo em que é um instrumento de tal percurso. É um recurso, pois normalmente não acontece de termos uma ideia clara e transpormos para o papel: é mais comum termos uma ideia, e o papel lhe conceder a clareza necessária, dando aos poucos a forma final. Somente feito isso, podemos olhar, ver, perceber, nos darmos conta do que se passava. E neste domínio – da letra – assimilar.
Menezes (1) confirma esta função, ao traçar um paralelo entre a escrita e a supervisão, como se a primeira fosse um prolongamento ou um substituto da segunda. A escrita pode ter a mesma função, qual seja, a de nos dar coragem em nossos pensamentos, em nossas teorizações, nossas hipóteses, e de reforçar e reavivar as possibilidades de funcionamento da escuta. Ele afirma: “através da escrita, o ‘insensato’ pode se transformar, na transferência ao ‘outro’ exigente da ‘simbolização’ pela escrita, em conceituações partilháveis” (p. 41).
	Da passividade de sofrermos a confusão mental – o transbordamento de afetos intensos, e os fantasmas transferenciais e contratransferenciais que nos atormentam internamente – na escrita ganhamos atividade. Já desde um outro lugar, olhamos a situação de fora, como um terceiro personagem que pode observar com maior sucesso as tramas que se formam. 
Há uma ordem de vivências com certa facilidade assimilada, mas falo aqui do que toma sentido especialmente na escrita, pois o pensar ou o falar não dão conta. Em alguns momentos da prática clínica, mesmo compartilhando com o grupo de colegas ou na supervisão, o que se passa entre analista e paciente não deixa de inquietar, e é o que movimenta para a escrita, tempos depois. Isso significa que falar não foi suficiente? Depois de escrever, esta vivência terá sido nomeada?
Lamanno-Adamo (6) descreve de forma ímpar a função da escrita como meio de elaboração:
Escrevemos sobre o que vivemos na intimidade com nossos analisandos, escrevo porque, se dói muito escrever, não escrever dói também mais. Por uma incapacidade de entender a vivência clínica, caso não utilizemos o processo da escrita. Para reproduzir o irreproduzível. Para sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Porque amamos e odiamos nossos analisandos. Porque amamos e odiamos ser analistas. Pela solidão. Pela dor da perda. Para aliviar o monstro que só nós vemos (p. 134).
	A solidão de nossa prática nos apresenta a escrita ocupando o lugar de um outro vivo. Não é o que fazíamos na adolescência com nosso querido diário? O escrever para si evidencia-se facilmente nestes escritos particulares, que cumprem a função de receber simplesmente o desabafo que roga por uma escuta continente. Escrever é um ato solitário, e isso nos permite a coragem de mostrar, já que, em um texto a ser guardado, podemos colocar absolutamente tudo, sem os pudores que o contato com o outro nos impõe. A elaboração é processo silencioso, interno, individual; e, por isso, podemos prescindir da presença do outro. 
Podemos ter a impressão de que escrever é um falar, em uma certa medida, conosco, mas esta é uma visão parcial, pois, paradoxalmente, escrever não é um ato solitário. O papel ocupa o lugar do outro, não obstante seja um ouvinte surdo, pensam alguns. Eles afirmam que, na escrita, perdemos a possibilidade do encontro que pode ser gerador de mudança, pois a fala do outro tem uma ação sobre nós. Então, escrever se diferenciaria do falar neste sentido: se, ao falar, alcançamos quem nos concede sua escuta, ao escrever, nos lançamos por sobre uma superfície que não responde. O papel recebe, passivamente, quaisquer impressões que queiramos. Mas isso limita o que se estabelece na escrita? Qual o alcance do ato de escrita? Quanto mudamos ao simplesmente escrever? Qual o efeito disto?
Há quem diga que o efeito é o mesmo de uma catarse. Todavia, fica claro que a escrita não tem somente esta natureza catártica, que nos permite descarregar emoções, pois dialogamos com as próprias dúvidas até que, no encontro com o papel que mostra plasticamente o que pensamos, o diálogo passa a ser com este outro, um interlocutor imaginário. O papel nos serve, então, de ouvinte como um analista atento e receptivo que permite a associação. Tratamo-lo como se alguém fosse; alguém extremamente paciente, continente de bons sentimentos, dos mais nobres aos mais condenáveis, o que a palavra oral não nos permitiria. A folha terá um rosto, resultado de nossa projeção, e assumir uma qualidade mais amorosa ou mais persecutória; refletirá como um espelho nosso mundo interno e, mais, exercerá uma ação sobre nós ou uma reação à ação de nossa escrita; nos porá a pensar, exigir correções e obrigar-nos a reescritas. Naturalmente que não é o papel, mas o significado com que lhe investimos e para o qual se presta incondicionalmente. 
Para além disto, o escrever ainda tem a função de nos proporcionar uma elaboração das vivências emocionais que nos impactam, através da criação de uma vasta rede simbólica em torno de tais vivências. 
Ao falar, mesmo colocando palavra no que era coisa, ainda não logramos o distanciamento afetivo que permite ver a situação desde fora, de modo que seguimos nos vendo misturados com o que mobiliza. Aqui, a escrita marca sua diferença: ao imprimir no papel a palavra falada, a ideia pensada, o sentimento sofrido, algo fora de nós se criou. A fala é mais rápida, então, parece ter um aspecto catártico mais marcado que a escrita. A escrita exige uma introspecção até certo ponto dispensável na fala, no sentido de que, muitas vezes, não pensamos antes de falar; depois sim. Na escrita, pensamos antes e durante... 
Esta diferença fica clara na citação de Mattos (15) que, através do registro escrito de um caso, observa uma nova elaboração na compreensão do caso ao vivo: 
A cada retomada da escrita, recortes de observação no trabalho com o paciente foram se fazendo mais nítidos, hipóteses foram sendo mais bem formuladas e tentativas de experimentar formas novas de comunicação com o analisando foram não só se desenvolvendo, pois tudo isso é mesmo próprio do trabalho clínico, mas ganhando relevo através dessa atenção e desse registro mais acurado (15, p. 360).
Berry (4) descreve extensamente o processo de elaboração de sentimentos pela escrita. Seu depoimento faz parte da experiênciapessoal como psicanalista, vivenciada em certo momento delicado da análise de uma paciente. Em decorrência da sensação de perda do contato afetivo com esta paciente, Berry (4) sentiu-se perdendo também a confiança narcísica em sua capacidade analítica, o que lhe deflagrou tanto a necessidade como o prazer de escrever. Ela relata:
Ao mesmo tempo, [escrever] era sair do meu isolamento, da solidão particular a esta análise: recolocar-me em comunicação com a minha paciente. Por isso, nesta situação persecutória, de prejuízo narcísico, eu tinha de reencontrar em mim uma moção positiva, uma confiança no pensamento que me vinha: confiança que eu só podia encontrar pondo em ato pela escrita um diálogo benevolente com colegas. Apenas assim, por sua intermediação, eu podia lutar contra a perseguição interna provocada por minha situação contratransferencial. O escrito tornava-se o símbolo do amigo que lia (4, p. 45).
Neste relato, a possibilidade de o ato da escrita ter uma função elaborativa fica evidente. Para ela, o escrever corresponde à inversão narcísica da impotência contratransferencial. Sua produção escrita, diferente dos sentimentos que lhe invadem na relação com a paciente, é investida positivamente por ela, como material possível de reflexão, descoberta e elaboração. E este material psíquico, então elaborado, pode voltar para a paciente, no sentido de que a analista se posta novamente na relação analítica. Investindo narcisicamente seu escrito, pôde reinvestir a paciente, de forma que os sentimentos contratransferenciais de rejeição e indiferença deram lugar a um interesse renovado. Segundo as palavras de Berry (4): “eu começava a ouvi-la, a esperar dela alguma coisa, eu me sentia alerta, em busca. Sem o trabalho da escrita, eu teria ficado fechada, sufocada, paralisada” (p. 45).
O que se passa, no entanto, é que, da mesma forma que nos podemos servir da escrita para a função descrita, podemos fugir dela exatamente por nos colocar de frente com a consciência de vivências violentas. Freud (16) compreende que fugimos do que nos causa desprazer, e o relato de conteúdos mentais inconscientes nos causa muito desprazer, pois – antes de um processo completo de elaboração – somos obrigados a vivenciar, a pensar, a sentir tudo aquilo que, em outros momentos, podemos negar. 
É o relato de Berry (4) que nos dá ideia da necessidade de passarmos por isso, e do ganho implicado. Para ela, foi somente no momento em que veio a ideia de escrever sobre o caso da paciente já referida que ela tomou consciência de seus sentimentos na análise, de como se encontrava mortificada pela paciente. A escrita abriu-lhe uma nova via de acesso, um espaço de reencontro consigo mesma, e lhe permitiu o desprendimento em relação à situação transferencial de uma proximidade por demais intensa. No relato escrito do caso, a emoção sentida ao escutar a paciente encontrava, além de uma via de descarga, a possibilidade de reviver as imagens que se ligaram em palavras e em frases. Ao colocar suas próprias palavras onde estavam as de sua paciente, seu relato articulou-se de outro jeito e surgiram outros sentidos, outros modos de expressão...
Da passagem da representação-coisa para a representação-palavra – conceitos de Freud (16) – marca-se a presença da linguagem como significador daquilo que busca ser expressado. O que era do registro mais primitivo ganha acesso à palavra. Imagens se ligam a palavras e a frases, e tomam para si um sentido. 
Ahumada (3) apóia-se nestes conceitos freudianos para explicar que a linguagem, como condição primária de toda experiência humana, implica a capacidade de articular um espaço mental com pelo menos dois níveis, ambos dotados de realidade: um nível processual em que ocorrem fatos, e um nível de observação e de inferência, capaz de mapear tais fatos psíquicos, pré-requisito esse para o surgimento da elaboração. 
É o processo a que Pereira Leite (2) se refere, quando explica que escrever é traduzir de um registro para o outro, de modo a transformar ideias e afetos em palavras que, uma vez lançadas, depositadas, escrituradas, serão capturadas na leitura do outro.
Kon Rosenfeld (17) descreve este mesmo movimento de representação através da metáfora: “outros transportes podem ocorrer se a metaforização psíquica se der: do indizível para o pensável, do amorfo para o figurável, do concreto para o simbólico (...), do corpo para o psíquico (...), do unívoco e chapado para o polissêmico e ressonante, do petrificado para a circulação, da clausura para a liberdade” (p. 145). 
Assim, fica claro que a escrita é muito mais complexa que um traço, um registro gráfico que pode ser lido. Kadota (12) julga que esta seria uma concepção redutora da letra sobre papel. Então, pensa a escrita como criadora de um sentido que é emprestado a uma gravura ou a uma superfície que pretendemos seja transmissível ao infinito: “ao ‘criar sentido’, o salto qualitativo já se marcou como diferença” (p. 45).
Explico: do percurso entre o pensamento e a folha de papel, o que estava em um registro inconsciente, o reprimido, tomou forma e significado. Desta maneira, quando escrevemos um texto de qualidade, não estamos tão somente repetindo teorias ou fazendo perlaborações sobre determinado tema. Representamos na palavra o recalcado, que ganha expressão neste momento. Algo de nós se revela com a escrita e nos delata naquilo até então mantido sob repressão.
A citação de Dalla Zen (11) complementa esta concepção. Ela diz que, na escrita, o autor “manifesta sua experiência de mundo, por meio da palavra, articulando na sua produção estratégias do dizer (...). Neste sentido, é que o texto torna-se fonte reveladora de significados expressos, implícita ou explicitamente, pela rede de vozes que o constitui” (p. 170). Por isso, uma produção textual não é apenas uma sequência de frases desconexas jogadas na mesma folha de papel, mas uma unidade de sentido, através da qual muitos significados se constituem e se expressam.
Muitas vezes, é somente quando escrevemos que o conteúdo mental toma forma. É o que Menezes (1) confirma, ao descrever como a ideia pode ser capturada em uma formulação escrita, de modo que revele uma potencialidade e uma potência inesperadas e desconhecidas; assim, se nos apresenta o novo, em desdobramentos que ignorávamos.
É com esta possibilidade de elaboração que a escrita nos presenteia. Então, o que era dor, agora é produção. E quem sofria, agora cria.
Referências 
Menezes, LC. Da escuta ao trabalho da escrita. Jornal de Psicanálise, Dez. 1994; 27 (52): 37-44.
Pereira Leite, EB. No tear das palavras. Pulsional, Ago. 1995; 76: 26-28.
Ahumada, JL. A função da escritura e os escritos psicanalíticos. Rev Psiq RS, Jan./Abr. 1996; 18 (1): 23-33.
Berry, N. A experiência de escrever. Pulsional, Ago. 1996; 88: 40-51.
Bornholdt, IM. Franz Kafka – ensaio sobre sua criação literária. Revista de Psicanálise, Dez. 1996; 3 (3): 367-387.
Lamanno-Adamo. VL. O material clínico e o ato criador: à guisa da compreensão de um pintor. Jornal de Psicanálise, 1998; 31 (57): 129-136.
Mezan, R. Escrever a clínica. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.
Cruz, JG. Psicanálise, sonho e criatividade. Revista de Psicanálise, Dez. 1999; 6 (3): 523-533.
​​​​_____. Comentário sobre o trabalho “O Sexto Sentido: uma visão psicanalítica da morte sob o prisma do espectador”, realizado na IX Jornada do ESIPP, Porto Alegre, 2000.
BION, Wilfred. A atenção e interpretação. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Dalla Zen, MI. O espaço de produção textual como mote para o acesso às representações infantis. In: CECCIM, RB; CARVALHO, PR. A. Criança hospitalizada: atenção integral como escuta à vida. Porto Alegre: Editora da Universidade; 1997. p. 170-175.
Kadota, NP. A escritura inquieta: linguagem, criação, intertextualidade. São Paulo: Estação Liberdade; 1999. p. 45-62.
Berlinck, MT. Carta a um jovem psicanalista. Pulsional, Ago. 1994; 64: 7-16.
Green, A. O desligamento. In: _____. O desligamento.Rio de Janeiro: Imago; 1994. p. 11-35. 
Mattos, LT. Um exercício de escrita psicanalítica. Jornal de Psicanálise, Nov. 1999; 32 (58/59): 359-372.
Freud, S. Lo inconciente (1915). In: Obras completas de Sigmund Freud. 4. ed. Madrid: Biblioteca Nueva; 1981. v. II, p. 2061-2082.
Kon Rosenfeld, H. Palavra pescando não-palavra. São Paulo: Casa do Psicólogo; 1998.
� Publicado na Revista Brasileira de Psicoterapia – Centro de Estudos Luis Guedes – Porto Alegre, v. 5, n. 2, 2003
� Psicóloga, Psicoterapeuta (ESIPP), Psicanalista (CEPdePA), Docente do Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica do ESIPP, do IPSI e do GAEPSI, Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), Doutora em Psicologia (PUCRS), Coordenadora da Oficina de Escrita Científica.
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