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“POR QUE ESCREVO?”
SOBRE AS MOTIVAÇÕES PARA A ESCRITA LITERÁRIA�
Ana Cláudia Santos Meira�
I. Introdução
Então, por que escrevo? Esta é a pergunta que José Domingos de Brito (1999) indiretamente faz em seu livro com o mesmo título, e que é respondida através de uma vasta coleta que o autor realizou de entrevistas com escritores nacionais e internacionais. Tomei emprestadas dele as respostas de 103 escritores, e analisei, através do método de Análise de Conteúdo�, os motivos atribuídos por eles para esta atividade tão controvertida em nosso meio. Digo controvertida porque o que observo é que, no meio científico e acadêmico, há certo desconforto com a escrita científica. A relação é, no mínimo, ambivalente, mas perpassa diversas reações: desde um leve desagrado, uma contrariedade sutil, até um profundo atrito firmado com o ato de escrever. 
Procuro começar a responder, com este trabalho, à pergunta-título do livro que me serviu como material de coleta de dados. Compreendendo quais as motivações para a escrita literária, creio poder aproximar-me da compreensão das motivações que engendram o exercício sistemático da escrita nas diversas áreas do conhecimento. Apresentarei, ao longo do texto, a análise das categorias surgidas, retratando, através de exemplos dados, o significado que a escrita tem para cada escritor pesquisado. 
II. Desenvolvimento
Freud ([1907; 1908] 1976) sempre se declarou fiel admirador da habilidade dos escritores em fazer-nos emocionar com suas criações, despertando sentimentos normalmente adormecidos, distantes de nossa consciência. Considera-os os mais profundos observadores do psiquismo, muito adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente humana. Por isso – julga ele – a curiosidade em conhecê-los, para compreender de onde retiram o material necessário para sua produção artística.
Freud ([1908]1976) nota, contudo, que, ao ser questionado, o escritor não logra dar-nos uma explicação satisfatória sobre os mistérios que o cercam. Porque, talvez, nem ele mesmo saiba. 
Em seu livro, Brito (1999) compila esta série de entrevistas que intentam responder à mesma questão. Busco em Freud – ganhador do Prêmio Goethe de Literatura, em 1930 – e em aportes contemporâneos, a base teórica para compreender o conteúdo trazido pelos diversos escritores que se dispuseram a pensar nas motivações conscientes e inconscientes pelas quais escrevem.
Vamos, então, ao exame minucioso das categorias que mais se destacaram, em termos de unidades de registro emergentes das entrevistas:
“Por uma motivação narcisista”
As motivações individuais para o exercício da escrita destacam-se de forma marcante, com relação às motivações coletivas, sociais ou culturais que pudessem ter surgido na análise das categorias das entrevistas.
Dentre os aspectos individuais, a questão do narcisismo ficou evidente. Os escritores parecem considerar-se superiores, diferenciados dos demais seres humanos, medíocres, exatamente como supunha Freud. Corajosamente, eles assumem motivos dos mais egoístas pelos quais escrevem, como, por exemplo: “[escrevo] pela ideia de que o escritor e um ser especial que consegue mais do que os outros, como uma coisa meio mágica”. É importante, no entanto, lançarmos um olhar mais aprofundado sobre esta questão.
O escritor deseja ser amado, reconhecido, e lança mão da produção escrita para alcançar seu anseio. Um dos escritores relata: “O impulso de todo artista e se fazer ver. ‘Eu existo, olha pra mim, escuta o que eu quero dizer: tenho uma coisa pra te contar’”. 
Este aspecto e ressaltado por Britton (1994), que pontua a exibição narcísica como um dos motivadores para a publicação de escritos. Para ele, o autor deseja que sua versão de determinado objeto seja única, porque isso Ihe daria a posse dele – só ele conheceria a verdade do objeto. Assim, dá forma à fantasia inconsciente de ser o representante especial de certo poder superior, que lhe garante um diferencial de outros profissionais.
No emprego mais intenso de mecanismos onipotentes, o escritor quer triunfar. Como referem alguns dos entrevistados cujas respostas foram analisadas: "[escrevo] para figurar no Larousse", "[escrevo] para ter fama, glória, dinheiro, amor, essas comezinhas da vida" ou "[escrevo] para comer alguma mulher ou ganhar muito dinheiro". 
Através das possibilidades que o escrever proporciona, ele pode ter a sensação de independência perante a realidade. O escritor pode recriar – ainda que ilusoriamente – a ideia de onipotência sobre a realidade adversa, a finitude da vida e de nossa existência, e as limitações que o mundo concreto nos impõe. 
O velho dito popular, sobre “ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro” fala do desejo narcísico de perpetuar-se. Através de elementos que ficam, podemos ter a ilusão de mantermos nossa existência material. Dificilmente podemos aceitar a morte e a finitude. Com que resistência nos deparamos com a fragilidade do ser humano, com a fugacidade da vida, com a imposição do fim pela morte? 
“Os livros são escritos para durar além de seu tempo. Eles são candidatos a uma forma de imortalidade”. O escritor deixa, então, um produto que é seu e que é duradouro. Se bem escrito, será amplamente divulgado e lido. Mas também não importa. Mesmo que não escreva um best-seller, tem a sensação de seu nome impresso em páginas, em papel, material de permanência.
A escrita permite que os sentimentos, os conflitos e as narrativas expostos na criação do escritor sejam expandidos e compartilhados, deixando suas marcas por sucessivas gerações. Isso está claro na verbalização: “[escrevo] pelo desejo interior de dar um testemunho do meu tempo, da minha gente e, principalmente, de mim mesmo: eu existi, eu sou, eu pensei, eu senti, e eu queria que você soubesse”. Responde, pois – o escritor e a escrita – ao anseio humano de imortalidade, que o protege da angústia de saber-se finito e limitado (Barone, 1997; Guedes Cruz, 1999).
Neste sentido, Freud ([1908]1976) compara a escrita com o brinquedo da criança que, ao brincar, se comporta como um escritor criativo, na medida em que ambos criam seu mundo próprio, reajustando os elementos deste mundo com a nova forma que lhes agrada. O escritor burla, desta forma, a exigência das inúmeras renúncias que se há de fazer. 
Assim o descreve um dos escritores: “a literatura é o laboratório do possível: um lugar onde pode se experimentar, fazer a mistura do velho com o novo”.
Diversos autores confirmam esta abordagem da escrita como o que se poderia chamar de criação do novo. A produção criativa do artista intenta encontrar outros arranjos, diferentes soluções estilísticas e, desta forma, triunfar sobre certas realidades muitas vezes adversas (Perestrello, 1992; Fonseca, 1993; Frayze-Pereira, 1996; Schuler, 1996; Kon Rosenfeld, 1998; Guedes Cruz, 1999; Albuquerque, 2001).
Na escrita, também a ilusão narcisica de realizar o irrealizável – de criar algo impossível de ser criado – ganha forma. Podemos comparar o escritor ao “sonhador em plena luz do dia”, e suas criações com os devaneios, como propõe Freud ([1908]1976). Assim, outro escritor responde: “[escrevo] para sonhar com outros, para melhorar nosso destino e viver outras vidas que não posso viver”.
Para Schuler (1996), a imaginação emerge em competição com o mundo natural, por sua condição de liberdade em relação aos limites do observado, do mundo concreto. “Incidindo sobre o que se tem como realidade, a imaginação transfigura, incorpora o vivido em outra ordem, liberta as personagens dos entraves” (p. 32). Assim, o personagem do conto, da poesia ou do romance de um escritor, ganha direito à existência como se pretende que ela seja: ele pode ser louco, assassino, ou perverso. E isto é absolutamente inofensivo, porquanto nas folhas de papel ou nas páginas de um livro, não causa dano algum.
Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor a lembrança de determinada experiência anterior, geralmentede sua infância, da qual se origina então o desejo que encontra realização na obra criativa. Neste sentido, cada obra é autobiográfica, pois revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga (Freud, [1908]1976).
“Por um amor intenso pela escrita”
A relação de amor dos escritores com a escrita também tem forte expressão através de diversas categorias organizadas. A questão da paixão fala de como o ato de escrever é vivido pelo escritor como fonte ímpar de gratificação. 
Os escritores falam de forma absoluta sobre a vivência quase visceral com o ato de escrever: “para mim, a escrita é como o ato de amor, que amplia, sublima a vida, dá-lhe uma tensão luminosa e me coloca no diapasão dessa vibração interior, desse desejo que sinto no fundo de mim”. Pela qualidade da verbalização, fica evidente que precisam da escrita para viver, e falam sobre isto com a força das palavras. As verbalizações mostram que o escrever não é exatamente escolha, ou simplesmente profissão, mas uma necessidade. Segundo eles, escrevem porque simplesmente “não podem parar”.
As verbalizações em que os escritores associam diretamente a escrita com a vida falam da magnitude deste fazer: “é ela que, revestindo minha forma, a definindo, criando e dominando, é meu sexo, meu peso, minha obra e a dos outros, este espaço onde se concentra toda minha experiência”. Sendo tão fortemente investida, a escrita passa a ter existência dentro do escritor, existência esta que equivale a suas funções vitais. A escrita ocupa um lugar dentro de sua economia psíquica e, então, ele não pode mais prescindir dela. Por isso, é urgente que escreva! 
"Para compreender"
Diversos autores se ocuparam do exame da escrita como preciosa forma de compreendermos nossas vidas e a nós mesmos (Calkins, 1989; Alencar, 1998). Esta necessidade de compreender conceitos abstratos com que nos deparamos em nossa existência aparece igualmente como aspecto significativo, na análise das categorias, em verbalizações como “[escrevo] para compreender as forças naturais e sociais que dão forma a minha vida, portanto, à vida humana”. 
A escrita parece inserir-se neste ponto, como instrumento de apreensão das realidades externa e interna. Do mundo real, concreto e objetivo, o escritor busca captar aquilo que de estranho acontece. Os motivos da natureza são completamente desconhecidos, conquanto aconteçam sem a mínima ação do homem. A verbalização “É a única forma pela qual eu compreendo profundamente a realidade” fala disto. Da sensação de alheamento, então, surge a necessidade de aproximação, e é através do escrever a realidade, que ela se firma. 
Da realidade interna, somos mais alijados ainda! “[Escrevo] porque é um meio íntimo de estabelecer um diálogo com nosso ser mais secreto e mais desconhecido”: é assim que um dos escritores descreve sua vivência. E talvez aí os escritores se diferenciem. Eles parecem ter maior trânsito por seu mundo interno. Eles dirigem a atenção para o inconsciente de suas próprias mentes, auscultando suas possíveis manifestações, e expressando-as através da arte, em vez de suprimi-las por uma crítica consciente (Freud, [1907]1976).
O que é posto em palavras pelos escritores esta na ordem do indescritível. Por serem, no entanto, dotados de uma habilidade singular com as palavras, os escritores logram que se imprima em letras, palavras, frases e dizeres, o que seria quase indizível. Então, um deles diz: “[escrevo] pela perplexidade diante do mistério: quando você se defronta com certas cenas, certas emoções inexplicáveis, a escrita surge como uma resposta possível”.
Freud ([1925]1976) descreve a folha de papel como uma parte materializada de seu aparelho mnêmico, que é invisível dentro de si. O escritor transforma em material elaborado algo que, no psiquismo, se mantém em estado de desorganização. O que é da ordem do abstrato, pela escrita toma forma e, então, se pode lidar com o que nos é estranho. Inscrito na folha de papel, pode ser melhor processado. 
A linguagem é essencial para que as ideias adquiram organização, clareza e precisão dentro da mente e, fora, na folha de papel. É um dos processos pelos quais a experiência emocional é nomeada e ganha um significado para aquele que a elabora (Ahumada, 1996; Berry, 1996; Andrade, 1997; Alencar, 1998; Loureiro, 1999).
Berry (1996) compara a vivência emocional com o balbucio infantil, e a escrita com uma compreensão possível, sob a forma de elaboração simbólica mais abstrata. 
“[Escrevo] para dar ao mundo não-escrito uma oportunidade de expressar-se através de nós”. Concepção semelhante sobre a escrita é apresentada por Andrade (1997), que aponta que a literatura pode revestir vivências puramente afetivas – experiências visuais e sonoras pré-verbais – de aspectos também ideativos, ao resgatá-las para a consciência e conceder-lhes expressão verbal.
Desta forma, temos acesso a determinados conteúdos mentais alojados em níveis muito profundos do psiquismo, vivências primitivas de uma época em que ainda não adquirimos a capacidade de simbolizar, pela palavra, elementos que se mantêm em registro anterior. Penso que é a isso que Guedes Cruz (1999) se refere, quando escreve que as manifestações artísticas dão forma a algo que sem elas seria “uma vivência emocional irrecuperável” (p. 526).
Albuquerque (1998; 2001) fala de um aspecto que me parece paradoxal com relação à escrita. Segundo ela, a obra literária fala de uma realidade que se constrói no movimento de escritura, e este mesmo texto se constitui, de outra ótica, em elemento provocador de novo processo de criação, como em um processo circular. Neste sentido, se diferencia do saber científico, que pressupõe critérios definidos e objetivos para o exame, inclusive de questões abstratas, como a experiência humana. 
Um dos escritores relata: “escrever e fazer passar a existência objetiva o descobrimento que empreendi por meio da linguagem”. A escrita traz a ideia de algo preexistente que as palavras traduzem, veiculam, ou descrevem. Albuquerque (1998) descreve da seguinte forma: “existiria a coisa, e a palavra que a nomeia” (p. 35). 
Para ela, a literatura é o campo no qual se afirma a “conjunção entre dizível e indizível, limite e transgressão, o que obedece às leis do entendimento e o que escapa a essa ordem, um campo em que o sentido não se estabiliza, mas se encontra em fluxo de criação recorrente” (Albuquerque, 2001, p. 54). Assim, a literatura se configura como espaço privilegiado no qual a dimensão da experiência humana encontra lugar para se inscrever em palavras. 
Kon Rosenfeld (1998) descreve detalhadamente o trabalho mental que se produz no psiquismo, a partir da escrita, pela qual o escritor pode construir algo que, pela primeira vez, ganha existência e é dito. Para ela, o trabalho é o de “inscrever, permitir que a experiência seja registrada, e isso só pode ser feito através de uma nomeação especial. Não qualquer nomeação, mas a nomeação que a metáfora realiza, nomeação que não mata a experiência vivida com um nome, mas que dá existência a ela, a faz viver. A experiência nomeada pode despertar, ver o dia, pode ser falada, vivida, parida – e inscrita”.
Frayze-Pereira (1996) traz a comparação da escrita com um trabalho de tapeçaria, no qual se entrelaçam diferentes fios, linhas e contas, e que vão formando um desenho na medida em que são tramados. Processo semelhante se passa com a escrita: letras formam palavras; palavras soltas são unidas em frases, que, então, tomam um sentido; e estas formam o texto, a obra completa produzida. “Os autores costuram um percurso que vai do sensível à interpretação e desta à ficção, sempre pressupondo a experiência paciente da espera pelo advento do sentido” (p. 128). 
Para Loureiro (1999), na produção escrita, o ato de colocar uma vivência em palavras inaugura, configura e instaura algo. Cita: “A metáfora diz o indizível, nomeia e, ao fazê-lo, funda e dá existência a algo que até então existia apenas como possibilidade” (p. 381), e istoé mais do que dizer que, no texto, o escritor reproduz ou retrata uma realidade já existente.
Os escritos estão submetidos à necessidade de criar prazer intelectual e estético, dentre outros efeitos emocionais. Por essa razão, eles não podem reproduzir a essência da realidade tal como é, mas devem isolar partes da mesma, suprimir associações perturbadoras, reduzir o todo e completar o que falta. Esses são os privilégios do que Freud ([1910]1976) convencionou chamar “licença poética”. 
Quando um escritor literário apresenta-nos sua obra, sentimos grande prazer, uma verdadeira satisfação que usufruímos ao entrar em contato com a obra literária, e que procede da libertação de tensões em nossas mentes. Ele nos suborna com o prazer estético da obra, que nos oferece na apresentação de suas fantasias ou devaneios. A irrealidade de seu mundo imaginativo tem consequências importantes para a técnica de sua arte, na medida em que ele pode transformar vivências que, no real, nos causariam desprazer, dor e sofrimento. Ao serem convertidas em produção literária, podem tornar-se fonte de prazer para os ouvintes e leitores (Freud, [1908]1976).
Este aspecto da escrita como a transformação no belo, segue sendo examinado por diversos autores contemporâneos. Neste sentido, quando o escritor produz sua obra, ele transforma um conteúdo mental – temas e vivências difíceis, caóticos ou geradores de sofrimento – em elementos criativos no plano da realidade, obras da literatura com beleza, muitas vezes, ímpar (Calkins, 1989).
“Para elaborar”
O escritor vale-se de uma sensibilidade singular, que lhe permite perceber os impulsos ocultos nas mentes de outras pessoas, e da coragem para deixar que o seu próprio inconsciente se mostre (Freud, [1910]1976), para dar conta de sentimentos de cunho depressivo marcadamente presentes nas verbalizações dos escritores pesquisados. Pelas habilidades especiais de que parecem dispor, eles são mestres em transformar penosos sentimentos de dor, tristeza e solidão, em produto mental e em produção criativa possível de ser apreciada por seus leitores.
Os escritores cujas entrevistas foram analisadas deixam bem marcada a função da escrita como recurso para elaboração de sentimentos de cunho depressivo. Respostas como: “escrevo porque tenho medo”; “porque me sinto sozinho”; “para superar a neblina que esta em meu coração e em minha cabeça”; “eu escrevo para não morrer de tristeza neste país desgraçado”, falam da intensidade da vivência dolorosa de solidão, de vazio, de tristeza e de dor por que passam os que escrevem. Escrevem justamente por isso!
O escrever é utilizado, então, como forma de elaboração de dolorosos conteúdos mentais até então não processados, na medida em que uma angústia solta, inominável, pode converter-se em pensamento e, assim, ganhar expressão (Meneghini, 1977; Ahumada, 1996; Berry, 1996; Bornholdt, 1996; Martins, 1996). Então, o que era dor, agora é arte. E quem sofria, agora cria.
A força motivadora do fantasiar são os desejos insatisfeitos. Toda fantasia é a tentativa de realização de um desejo (desejos ambiciosos ou desejos sexuais), uma correção da realidade insatisfatória. Neste sentido, Freud ([1908]1976) supunha que a pessoa feliz nunca fantasia, somente a insatisfeita. Devemos corrigir esta acepção, dizendo que a pessoa plenamente realizada e satisfeita – se isso fosse possível – não fantasia; ha que se ter certo grau de inquietação para que se produza em nível mental uma obra de arte literária. 
“[Escrevo] pela vontade de registrar os medos e os fantasmas para assassiná-los ou, ao menos, pregar-lhes um belo susto!”. Da passividade de sofrer pelos fantasmas que o atormentam internamente, o escritor ganha atividade no movimento de converter-se em quem assusta e, criativamente, “prega uma peça”, já desde um outro lugar. 
Freud ([1908]1976) chama de devaneios a este fantasiar, que são produtos da imaginação. Neles não experimentamos nem alucinamos algo, mas imaginamos alguma coisa, então, sabemos que estamos tendo uma fantasia; não vemos, mas pensamos. São cenas em que as necessidades individuais de ambição e poder da pessoa, ou seus desejos eróticos, encontram satisfação. São a matéria-prima da produção poética, pois o escritor criativo usa seus devaneios com determinadas remodelações, disfarces e omissões, para construir as situações que introduz em seus contos, novelas ou peças. O herói dos devaneios é sempre a própria pessoa, seja diretamente, seja por uma óbvia identificação com alguma outra pessoa. 
Meneghini (1977) reforça este postulado, na medida em que explica que o poeta consegue como que infundir vida aos mortos que residem em seu psiquismo, revivendo, desta forma, a dor por suas perdas, frustrações ou fracassos. Ele recria, através do escrito, o mundo interno sentido como perdido e, por este processo, sente-se como tendo renascido também. 
	Analisando a obra literária de Kafka, Bornholdt (1996) pondera que a culpa parece ser o maior motor de suas criações, que, para ela, surgem de tentativas de elaboração dos conflitos psíquicos do escritor.
Berry (1996) dá um depoimento que retrata este mesmo aspecto. Faz parte da experiência pessoal como psicanalista, vivenciada em certo momento delicado da análise de uma paciente. Em decorrência da sensação de perda do contato afetivo com esta paciente, Berry sentiu-se perdendo também a confiança narcísica em sua capacidade analítica, o que lhe detonou tanto a necessidade como o prazer de escrever. Ela relata:
“Ao mesmo tempo, [escrever] era sair do meu isolamento, da solidão particular a esta análise: recolocar-me em comunicação com a minha paciente. Por isso, nesta situação persecutória, de prejuízo narcísico, eu tinha de reencontrar em mim uma moção positiva, uma confiança no pensamento que me vinha: confiança que eu só podia encontrar pondo em ato pela escrita um diálogo benevolente com colegas. Apenas assim, por sua intermediação, eu podia lutar contra a perseguição interna provocada por minha situação contratransferencial. O escrito tornava-se o símbolo do amigo que lia" (Berry, 1996, p. 45).
Neste relato, a possibilidade de o ato da escrita ter uma função elaborativa fica evidente. Para ela, o escrever corresponde à inversão narcísica da impotência contratransferencial. Sua produção escrita, diferente dos sentimentos que lhe invadem na relação com sua paciente, é investido positivamente por ela, como material possível de reflexão, elaboração e descoberta. E este material psíquico, então elaborado, pode voltar para a paciente, no sentido de que a analista se posta novamente dentro da relação analítica. Segundo as palavras de Berry (1996): “eu começava a ouvi-la, a esperar dela alguma coisa, eu me sentia alerta, em busca. Sem o trabalho da escrita, eu teria ficado fechada, sufocada, paralisada” (p. 45).
Se isso é possível para analistas e terapeutas, quão não é para os escritores, que mantém com o escrever uma relação ainda mais especial, conquanto seja sua atividade laborativa, ao mesmo tempo.
III. Comentários finais
	Observo, através da análise das principais categorias emergentes das respostas desta série de escritores, que uma multiplicidade de motivações engendram a escrita. Cada escritor tem certamente, suas razões particulares, bem como uma relação singular com a criação literária. Mas pude chegar a alguns pontos de interseção, apresentados neste trabalho.
	O escrever está para além de uma atividade simples e pura exercida por profissionais que a ela passam a se dedicar. Está investida de significados que são da ordem do psicológico e que, por isso, lhe conferem qualidade específica e peculiar. Tão peculiar quanto o significado da escrita para cada escritor, são as funções que a escrita exerce em seu psiquismo, funções que perpassam, como fica marcado nas verbalizações, desde o exercício narcísico até a elaboração de pesados conteúdos mentais, como sentimentos, angústias e conflitos. 
	Através da escrita, elementos mentais são representadose ressignificados, de forma a que o escritor possa a eles fazer frente, dando conta de certo quantum de vivência que, talvez, de outra forma, ficaria solto, desligado de uma representação mais elaborada daquele que a escreve.
	A nós, nos presenteiam. Com sua obra literária, o livro, a poesia, o conto, dão a nós, leitores, a mesma possibilidade da qual usufruem: a possibilidade de projetarmos uma série de desejos, expectativas e frustrações nos personagens do escrito, e encontrar neles uma via de satisfação e elaboração. Nossa gratidão, pois, a estes que põem em palavras nossos mais íntimos anseios: os escritores.
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� Trabalho publicado na Revista Psico – Faculdade de Psicologia da PUCRS, v. 33, n. 1, p. 193-205, jan/jun. 2002.
� Psicóloga, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (ESIPP), Professora convidada do Curso de Formação em Psicoterapia Psicanalítica do ESIPP e do GAEPSI, Coordenadora da Oficina de Escrita Científica, Mestre em Psicologia Clínica (PUCRS), Doutora em Psicologia (PUCRS), Psicanalista (CEP de PARA).
� Analise de Conteúdo é um método de análise de dados de pesquisas qualitativas. A abordagem que utilizo para a categorizarão e interpretação das entrevistas dos escritores e a proposta por Bardin (1977).
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