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LEITURAS ESPACIAIS: O SENTIDO SEMIÓTICO DO EDIFÍCIO DA BIBLIOTECA Célia Regina Simonetti Barbalho* RESUMO: Analisa, semioticamente, os edifícios da biblioteca enquanto elemento que se coloca sob o olhar do usuário para ser contemplado e como instrumento de sedução ou rejeição para uso do espaço de leitura. Palavras-Chave: semiótica da biblioteca; edifícios de bibliotecas; arquitetura de bibliotecas. Para persuadir o olhar do usuário de modo a obter sua adesão e, conseqüentemente, sua disposição em utilizá-la, a biblioteca se enuncia, inclusive, pelo modo como ocupa o espaço se manifestando através da localização estratégica de seu edifício, da sua arquitetura exterior que busca transmitir ao público a importância das atividades que ocorrem em seu seio, bem como através da concepção, desenho e funcionalidade da arquitetura de seu interior, sua ambientação e sua sinalização. As leituras espaciais dirigem-se à análise do objeto-textual produzido pelo sujeito-biblioteca que instala no seu discurso espacial os actantes e as coordenadas de espaço e tempo. Contudo, a enunciação não é apenas o lugar do sujeito, mas o lugar de um eu em relação com um outro, ambos localizados num contexto referencial, como afirma Lúcia Teixeira1. Logo, o sujeito que enuncia – a biblioteca –, ao mesmo tempo em que se projeta no discurso, instala aquele a quem enuncia – o usuário –, e constitui, como ainda esclarece a autora, duas instâncias de * Docente do curso de Biblioteconomia da Universidade do Amazonas. Mestre em Biblioteconomia pela PUCCAMP. Doutoranda em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. 1 TEIXEIRA, Lúcia. As cores do discurso. p. 92. poder entre as quais circulam não só uma fala, mas também um contexto em que se definem papéis e uma estratégia argumentativa que marca a finalidade do discurso, de modo que a enunciação enunciada pela biblioteca se constitui de um conjunto de marcas identificáveis que objetivam sua apreensão pelo usuário, remetendo-o à instância da enunciação. Analisar, portanto, o olhar do enunciador é mais do que encontrar as marcas espalhadas; é mapear as redes de relações formais e os efeitos de sentido decorrentes, é elencar suas estratégias de persuasão, ou seja, é na “cena enunciativa”, entender os valores investidos no discurso – preâmbulo de como a biblioteca deseja ser legível, apropriada, descoberta pelo seu usuário. Essa realidade discursiva realizada concretamente pelo sujeito-biblioteca deve ser decomposta para que, ao ser posteriormente reunida, revele os efeitos de sentido manipulados pelo enunciador bem como os que são manipuláveis pelas situações que ele simula dominar. Em se tratando de conjunto arquitetural, a decomposição poderá se dar através da análise do espaço externo e externo, sendo objetivo desse paper introduzir a uma discussão em torno dos efeitos de sentido que os edifícios de bibliotecas produzem e que, de certo modo, influenciam o olhar do usuário. Análises espaciais: a semiotização Antes de proceder qualquer análise, faz-se necessário entender que, ao enunciar-se pelo espaço, a biblioteca o faz através de uma das duas acepções que a semiótica possui sobre ele. A primeira, espaço lingüístico, é determinada pelo momento da enunciação através de marcas instaladas no enunciado, ou seja, é o espaço dos actantes. A segunda, o tópico, é ao mesmo tempo “lugar que se fala e dentro do qual se fala”2, isto é, o espaço pluridimensional onde os corpos estão dispostos. Com efeito, o espaço lingüístico se distingue do tópico pela existência, no primeiro, de demonstrativos e advérbios que desvelam a cena enunciativa situando a presença do actante no discurso enquanto que o outro está relacionado com o sentido de uso do espaço produzido e/ou consumido pelo homem, descrevendo-o e interpretando-o. O espaço tópico, para revelar seu sentido, é constituído de uma prática social revestida de um projeto cujos resultados indicam a existência de um fazer. De fato, a) O espaço construído, não necessariamente edificado, é lugar do homem, feito pelo homem, para o homem. Nele estão contidas suas inseguranças/seguranças mais elementares e, portanto, sua disposição torna-se portadora de sentido, de significados; b) A distribuição espacial, sua circulação, sua continuidade ou contrates, sua modernidade ou monumentalidade, são manifestações de uma intenção, de uma provocação, que mostram o modo de ser e de agir de uma sociedade; e As análises sobre as articulações de sentido do espaço, em ambos os casos, possibilitam a compreensão de como ele está estruturado, como os homens organizam sua sociedade e como a concepção e uso que o homem faz do espaço sofrem mudanças tendo em vista que um destinador-produtor o constrói para que um destinatário-leitor interaja com o seu objeto-mensagem, o que resulta na sua produção enquanto artefato. O espaço pode ser considerado como um texto que produz significações e caracteriza-se como objeto de comunicação, uma vez que é portador de uma infinidade de 2 GREIMAS, A. J. Por uma semiótica topológica. In: Semiótica e ciências sociais. p. 117. significações que proporciona seu uso e inter-relaciona o destinador e o destinatário. Tendo em vista que o espaço-artefato é fruto de um projeto, uma proposta, uma intenção, Greimas3 identifica como princípios imanentes de sua produção os elementos estético, político e racional que, implícitos em toda obra, devem ser ponto de partida para qualquer leitura que venha a ser feita sobre ele. Isto permitirá o exame do sentido da manifestação textual através da análise de seus princípios geradores que comportam o significante espacial e o sentido profundo do texto. De fato, a manifestação ocorrida no espaço, vista pela sua globalidade, permite leituras que só podem ser concebidas a partir da desarticulação do todo em suas partes construtivas, o que possibilita que os valores em jogo sejam tratados, como propõem Greimas, pelos três sistemas – estético, político e racional –, que possibilitam a análise de conceitos como belo e feio, bom e mau, útil e inútil. A análise estética, que articula o sentido de “feio” e “bonito”, é uma categoria abstrata que irá se valer da harmonia, da composição, do equilíbrio e do ritmo para mostrar o sentido. A análise política articula a relação do espaço com o projeto de sociedade pretendido e revela a dinâmica social da ocupação do ambiente. A análise racional atenta para compreensão da função. Uma vez apreendido o estatuto que mediatiza a construção do espaço pelas categorias gremasianas, outras combinações necessitam ser elencadas para darem conta das estratégias utilizadas pelo produtor do texto-espaço, como destaca o próprio autor ao considerar que a significação se constrói sobre a diferença, mas se erige sobre a identidade de um determinado ambiente4. Coelho Neto5, em sua obra A 3 Idem p. 115-141. 4 Cf. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. p. 32-39. 5 COELHO NETO, J. Teixeira. A construção de sentido na arquitetura. p. 6-74. construção de sentido na arquitetura, elenca eixos organizadores de sentido do espaço que permite a decomposição descritiva de modo a desarticular o todo em partes o que permite o descortinamento das relações organizadoras do espaço que são: interior vs exterior; privado vs comum; construído vs não construído; artificial vs natural; amplo vs restrito; vertical vs horizontal e geométrico vs não geométrico. Ao se estabeler uma relação de contrariedade entre os dois termos permite-se a identificação e descrição dos traços doato da enunciação no produto enunciado. De certo modo, os elementos propostos por Greimas complementam-se através dos eixos de Coelho Neto e, quando associados, permitem a ampla interpretação do sentido do texto– espaço, contribuindo sobremaneira para o entendimento dos valores e competências gerados pelo enunciado espacial e reconstituem as marcas da enunciação. Dessa forma, a análise da organização lógica do enunciado espacial da biblioteca permitirá leituras integralizadoras conferindo significado àquilo que o usuário vê. Ao contemplar as manifestações do espaço fixo, externo e interno, este capítulo se deterá, em seguida, na decomposição do objeto de estudo, para entender, a partir do que propõe Greimas e Coelho Neto, as estratégias de persuasão que a biblioteca se utiliza para se fazer ver. São estes elementos – arquitetura interna e externa, ambientação e sinalização –, que se colocam no espaço fixo da biblioteca, determinando a circulação em seu espaço móvel, influenciando e manipulando o deslocamento do usuário, sua mobilização corporal e revelando como a dinâmica do espaço afeta a utilização de seu ambiente que se dá através do olhar interpretativo daqueles que a freqüentam, tendo em vista que “a análise que prevalecia então era, precisamente, recusar os dispositivos simbólicos atrelados aos do saber. As entradas majestosas, as nobres escadarias, plataformas ruidosas, a hierarquia espacial – a sala de estudo com exposições, a sala de empréstimo no térreo –, os patamares a transpor, as circulações: todos esses elementos, considerados como obstáculos de acesso, fizeram o objeto de uma coordenação geral e inspiraram, o sentido oposto, outros dispositivos suscetíveis para facilitar o acesso aos lugares. A vitrina para a rua, o “legível” ou melhor visível da organização interna, a separação dos armários, a livre circulação no interior dos locais. Essas disposições foram promovidas pelos bibliotecários, na idéia, sem dúvida ingênua, que a separação espacial devia permitir sobrepor as separações sociais“.6 Com efeito, o espaço-biblioteca deixa pistas que marcam sua intencionalidade de informar, comover e fazer agir o usuário que seleciona, organiza e dota as mensagens de sentido através da movimentação de seu corpo no ambiente e seus trajetos são resultados da interação que ele assume ao deslocar-se no espaço demarcado pelas geografias do serviço público de informação. O espaço exterior A arquitetura, ao demarcar as fronteiras e limites do homem no espaço construído, opera de forma globalizante na relação espaço- tempo do fruidor e age ativamente sobre a sua mobilidade corporal. De fato, o movimento humano dentro de um determinado espaço é resultado da percepção visual, auditiva, olfativa e tátil que, em conjunto, estabelecem a consciência espacial e definem o deslocamento do corpo a partir, inclusive, da interpretação de características bi e tridimensionais como extensão, tamanho, forma, profundidade, largura, distância, entre outros. Pode-se afirmar então que o movimento humano é um ato de comunicação instalado através de seus deslocamentos e efetivado pelos seus trajetos no ambiente delimitado pela obra arquitetônica. O processo de construção de uma obra resulta de uma política arquitetural que apresenta argumentos repletos de efeitos de sentido que serão desencadeadores de interpretações para uso do espaço. 6 BERTRAND, Anne-Marie. La bibliothèque dans l’espace et dans le temp. Em: BERTRAND, Anne-Marie, KUPIEC, Anne (org.). Ouvrages et volumes: architecture et bibliothèques. p. 136. Uma produção arquitetônica não é ingênua, pelo contrário, ela se articula para colocar-se, de certo modo, no dia a dia daquele que ela abriga e que convive com suas formas interativa e subjetivamente. Como qualquer texto, a arquitetura se manifesta pela localização no tecido urbano, pela materialidade através da cor, textura, transparência, opacidade, geometricidade e pela dinâmica que sintoniza o que, de fato, ela deseja comunicar. O prédio do Museu de Arte de São Paulo – MASP, na avenida Paulista em São Paulo, por exemplo, é um argumento contra a verticalidade dos demais edifícios e marca, pela contestação de suas formas, sua presença no espaço urbano. Ao diferenciar-se dos demais, inclusive pela cor vermelha que usa, chama a atenção para o que abriga em seu interior: a arte – expressão particular, individualizada, modo de ver o mundo a partir do que é percebido por cada autor e que é manifestado através de suas obras. Logo, o material empregado na construção, o projeto do edifício, o estilo adotado, as cores e formas que compõem o conjunto arquitetônico, a localização no meio são elementos constitutivos do plano de expressão e de conteúdo que manifestam o sentido do texto. Este, por sua vez, possui uma complexidade de interpretação que não se esgota no que é visível ao olhar físico, mas se revela também pelos sentimentos e sensações que provoca no seu observador-fruidor muito bem explorado, por exemplo, pelos parques de diversão através da atração Casa do Terror ou Trem Fantasma, sempre evocando através do negro da parede, da pouca iluminação, da textura empregada, ou de outras estratégias, impressões de medo, pavor, terror. Efetuar estudos sobre o significado do espaço construído para bibliotecas, implica primeiramente observar que ela só pode ser apreendida se relacionada a um lugar diferente, ou seja, ela está colocada para ser assumida como espaço de informação e de conhecimento, independente das variáveis que possa apresentar – pública, especializada, escolar, universitária, nacional etc. –, de modo a mostrar-se como significante que, ao ser articulado com o seu significado, estabelece uma relação de uso que lhe é próprio. De certo modo, analisar o espaço-biblioteca é entender os sentidos despertados no usuário e colocá-lo como um lugar de enunciação cuja intencionalidade das marcas intertextuais que produz são orientações construídas para o uso do ambiente. De fato, uma biblioteca não é uma casa, um palácio, um templo, um teatro. Através de vários elementos que evoca e nela se confrontam, ela se pronuncia como um lugar de conhecimento, de conservação, de pesquisa propício para auxiliar na mudança de estados de ignorância, como aponta Daniel Payot7, ao afirmar que “são lugares de articulação de inteligência e de sensibilidade: uma biblioteca é portanto um espaço duplamente articulado, uma ligação de componentes que são as mesmos dos esquemas, a proposição de uma aliança de elementos em que cada um constitui, por ele mesmo, uma combinação de verdade, de espaço de universalidade e de localidade, de sentido-significação e de sentido-sensibilidade”. O sentido dos edifícios O edifício da biblioteca está investido de valores que são simbolicamente construídos por duas dimensões que lhe dão um sentido amplo. A primeira é a de contribuir para o desenvolvimento do cidadão – valor de base –, e a segunda é a de proteção aos bens culturais que estão sob sua guarda facilitando, pela freqüência a seu espaço, a acessibilidade ao conhecimento – valor de uso. Assim vistos, os prédios não são indiferentes, neutros, eles se inserem no cotidiano, influenciam o universo urbano, a imagem da cidade e, conseqüentemente, a própria imagem da biblioteca e seu 7 PAYOT, Daniel. La bibliothèque comme espace architectural: digression théorique. Em: BERTRAND, Anne- Marie, KUPIEC, Anne (org.). Ouvrages et volumes: architecture et bibliothèques. p. 12. interior tanto pode invocar um sentido de disposição, de acessibilidade, como de escolha, de exposição, de clausura. Novamente DanielPayot8, ao reforçar tal argumentação, afirma que “Na medida que a arquitetura, a mesma da biblioteca, fala uma linguagem que pode parecer diferente: ela nos ensina a compreensão do espaço que dirige sua concepção, sobre a física que determina seu pagamento simbólico, na qual sua construção, principalmente, se referiu. Nela, também, a questão do sentido está presente mas segundo outros procedimentos: distribuição espacial, circulações, continuidade ou contrastes com o tecido urbano, monumentalidade ou modéstia, facilitação do uso ou manifestação de uma intenção suntuosa”. O edifício da biblioteca é uma manifestação de linguagem para contemplação dos transeuntes. Sob o olhar do usuário, essa imagem comunica sua função, seus significados plásticos e icônicos, afirmando sua presença no contexto onde se insere, provocando ou não os passantes e despertando, no público, sentidos que variam de acordo com a aparência geral do objeto. Como exemplifica Anne-Marie Bertrand ao recorrer aos edifícios franceses: “O Centro Beaubourg, batizado de refinaria ou “Notre Dame des Tuyaux” – Nossa Senhora dos Tubos – vocabulário enriquecido grandemente pelas referencias técnicas; o Instituto Nacional de Informação Técnica – ESIEE, como a fábrica, como um vaso especial; as comparações com animais como o antigo prédio do mundo, rua Filgueiére, um guarda chuvas; as náuticas – o Instituto do Mundo Árabe como a proa de um navio; a coleção de suportes tais como histórias em quadrinhos, discos, filmes, CD-ROM’s, documentos etc., de Evreux como um navio da Idade Média ao cais, como diz Paul Chemetov) ou guerreiras (a Vilette como uma fortaleza urbana).” 9 Valci Augostinho10, na dissertação sobre aclimatação ambiental dos prédios de bibliotecas centrais universitárias, também destaca que o exterior reflete o que lhe vai dentro, exigindo que as especificações arquitetônicas estimulem as pessoas a entrarem nos prédios. 8 Idem. p. 11. 9 BERTRAND, Anne-Marie. La bibliothèque dans l’espace et dans le temp. Em: BERTRAND, Anne-Marie, KUPIEC, Anne (org.). Op. cit. p. 139. 10 AUGUSTINHO, Valci. Aclimatação ambiental dos prédios de bibliotecas centrais universitárias. p. 09. A construção do edifício através dos tempos O arquiteto Horácio Mayano Navarro11, na obra Elementos de la teoria de la arquitectura, afirma que: “arquitetônicamente falando, a biblioteca é um problema moderno. Pela descrição as bibliotecas da Antigüidade e os exemplos das bibliotecas existentes do Renascimento, vê-se claramente que as grandes coleções de livros eram conservadas simplesmente em habitações ou galerias abastecidas de estantes, armários ou mesas. Entre estas bibliotecas, a mais famosa na História da Arquitetura é a Biblioteca Laureziana de Firenze construída por Miguel Angelo para Laurenzo de Médicis. (…) É verdade que para bibliotecas reduzidas nos espaços de uma sala, o sistema clássico de estanteria fixadas às paredes dificilmente será modificado; entretanto, é completamente inadequado quando se trata de espaços de uso público.” Alain Pélissier e Jean-François Pouss12, arquitetos franceses, que discordam das colocações de Horácio Narravo, afirmam que independente do tamanho e quantidade de espaço disponível, as salas para bibliotecas foram construídas historicamente considerando a qualidade e o fluxo de uso, bem como sua contingência funcional que em Éfesos possuía um formato quadrangular e na Laureziana, dos Médicis de Florença, Itália, um formato retangular, sendo estas integrantes do que os autores denominam de primeira geração da arquitetura de bibliotecas. Caracterizam por serem compostas de salas contínuas, como a Biblioteca do Vaticano, em Roma, ou por um amplo salão onde dispõem, junto à parede, estantes para armazenar o acervo, normalmente tabletes de argila ou rolos de papiro, deixando livre para circulação o espaço central de modo a permitir uma boa distribuição de luz, inclusive pela quase ausência de mobília. Os autores denominam esta primeira técnica construtiva de bibliotecas de box para livros ou cofres de livros pela semelhança com caixotes, pela simplicidade que destaca uma pobreza tanto funcional como estética e não concentra seus serviços e, finalmente, por estar 11 NAVARRO, Horácio Moyano. Elementos de la teoria de la arquitectura. p. 186. fechada em espessas paredes, silenciosa criando uma atmosfera reservada semelhante a um espaço privado, para manter o conhecimento trancado dentro de seus muros de modo a não querer ser vista como já ressaltado anteriormente13. Destaca-se, assim, que esta forma arquitetônica privilegia a guarda e não o acesso ao conhecimento. Boullée14 (1785) inaugura, ainda segundo os autores, a segunda geração das edificações de bibliotecas, apresentando em seus projetos o exercício à consagração de dar forma a um relicário, a um conservatório das experiências expressadas pelo homem, transportando seus usuários a um lugar sublime, mas mantendo em destaque o espaço do acervo. O estilo boulleano se caracteriza por apresentar um formato alongado como um largo corredor que mantém intermináveis estantes onde o usuário deve buscar a obra. Segundo Michel Melot, na obra Nouvelles Alexandrias, Boullée criou um estabelecimento cultural do gênero basílica ao deixar aparente as obras para que os usuários pudessem admirá-las e serem por elas seduzidos, o qual tronava irresistível o contato visual mas mantinha os leitores fisicamente distantes do acervo separados por uma mureta que os intimidava, pela grandiosidade projetada pelo estilo que valorizava a metáfora da biblioteca como memória do mundo destacando o sentido de preservação e conservação – valor de uso. A iluminação pela luz natural também era fator condicionante da leitura haja visto que os usuários concentravam-se no espaço iluminado e há uma ausência de claridade 12 PÉLISSIER, Alain, POUSS, Jean-François. De la nature du plan. Techiniques & Arquitecture. p. 102-105. 13 Para melhor entender os regimes de visibilidade da biblioteca na Antigüidade e na Idade Média ver, no Capítulo 1 deste trabalho, o item Moinhos de Contemplações. 14 Etienne – Louis Boullée (1728-1799), arquiteto francês autor da obra Architecture, essai sur l’art e do projeto arquitetônico da Biblioteca Real da França. Seus projetos se caracterizavam pelo apego a monumentalidade por pressupor que a emoção que a obra arquitetônica deve transmitir é tão importante quanto a racionalidade da forma que, para ele, deveria ser simples e geométrica. Maiores informações tanto sobre o arquiteto como sobre suas obras, consultar o site www.greatbuilding.com/architects/Louis_Boullée.html. ao fundo, problemas que, possivelmente, não foram solucionados pelo estilo boulleano. Labrouste15, em 1840, cria o projeto da biblioteca de Sainte Geneviève, em Paris, dando destaque não mais à guarda de livros – valor de uso –, mas, ao estabelecer ambientes destinados à leitura, transpõe o paradigma do acervo para ressaltar o de utilização e acesso ao conhecimento – valor de base. Dessa forma vê-se relacionado na distribuição do espaço interno da biblioteca, as funções básicas do serviço a ser prestado ao usuário que são esses: a) O depósito para acervo, indicador do processo de conservação e guarda; b) As salas de leitura diretamente relacionadas ao uso, cujo objetivo final é o de disponibilizar o conhecimento; c) O ambiente do fichário ou catálogo, como espaço para decifração dos códigos de acesso ao acervo; d) O balcão de atendimentocomo instrumento de interação entre o acervo e o usuário, que permite ser efetuada a interrelação entre o sujeito-biblioteca e os seus actantes funcionais; e) As salas de trabalho dos bibliotecários, onde se processa o desvelamento do conteúdo da obra e é criado elementos de interação entre acervo e acesso/usuário; f) Espaços de sociabilização que deverão permitir o convívio entre os usuários e a cultura representada, por exemplo, em exposições dos mais variados tipos; e 15 Pierre François Henri Labrouste (1801-1875), arquiteto francês que acreditava que a arquitetura deveria refletir a sociedade e por isto criou o estilo chamado de racionalismo romântico cuja distribuição funcional do espaço é o maior destaque. Sua obra foi influenciada pelos aspectos tecnicistas da sociedade industrial. Acreditava ser a arquitetura um formulário de comunicação onde deveria ser transcrito as fases orgânicas de uso da edificação e, com isso, expressar coerentemente, as reais necessidades da sociedade. É autor do projeto da Biblioteca nacional da França, na rua Richelieu, onde está presente a influencia que sofreu de Boullée. Seu estilo influenciou a construção de diversas bibliotecas americanas, sendo a Biblioteca Pública de Boston a que melhor o retratou. Para maiores esclarecimentos sobre sua obra, consultar o site www.greatbuilding.com/architects/ Henri_Labroust.html. g) Ambientes destinados a banheiros, por exemplo, que refletem a preocupação com o conforto do usuário. Os programas de competência e perfórmance que são estabelecidos no texto enunciado pela biblioteca, seguem uma lógica que considera o usuário, em termos semióticos, um enunciatário, instalado nessa construção. O enunciador, nesse caso, organiza seu discurso através de papéis e ações para que, ao serem seguidas essas marcas, ele encontre o modo de usar o espaço. Construído para abrigar um acervo que venha a ser utilizado pelo homem, os edifícios da última geração também manipulam seus usuários, pela forma como se apresentam ou como se organizam expressando um conteúdo, uma harmonia, uma composição e um equilíbrio que deverão estar em conjunção com o todo que ele representa. Nesse sentido, o arquiteto inglês Faulkner-Brown em publicação da Federação Internacional de Associações de Bibliotecários – FID, recomenda que os edifícios obedeçam dez exigências para melhor efetivar seu uso e criar uma ambiência capaz de responder aos anseios dos que a procuram que são: ser compacta, adaptável, acessível, extensiva, variada, organizada para impor uma confrontação máxima do leitor e do livro, confortável, com ambiência regular para uma boa conservação dos documentos, segura, econômica e conservada. A biblioteca é então apresentada como um código que deve ser dominado pelo usuário pois seu uso não é intuitivo, mas apreendido. Ao dominar o código, ele passa a ter reais condições de uso e de captação dos mais variados significados produzidos, pelas combinatórias dos constituintes do código, uma vez que o domínio das regras é que possibilita a plena liberdade de uso. A forma do texto arquitetônico referenda sua função e desencadeia no usuário relações significantes com o objeto que a biblioteca representa; cabe a ele então, atender a uma série de expectativas criadas pelo e para o uso, que se institucionaliza com as normas e com a forma como determina sua identidade no amplo contexto urbano. A localização do conjunto arquitetônico da biblioteca no espaço urbano é resultado de um projeto político permeado de efeitos de sentido para aqueles que a usam. Quando central é manipulada pelos atributos de prestígio e poder que ela exerce principalmente se estiver próxima a Prefeitura, ao Tribunal de Justiça, a Assembléia Legislativa, por exemplo, edificações que simbolizam o poder constituído e legítimo de uma cidade, e quanto a construção se dá em espaço periférico como bairros afastados, é manipulada pelo sentido de democratização dos bens culturais, revestido de uma ideologia libertadora das massas que se instalam na periferia das cidades, como descreve Maria Cecília Diniz Nogeira16, na sua dissertação sobre a biblioteca pública de Santa Luzia, Minas Gerais, citada anteriormente: “… quanto a localização geográfica, a biblioteca está situada num dos pontos privilegiados da “parte alta” da cidade, que, por sua vez, é o centro econômico-político do município. Fica fora da periferia, zona de concentração da classe trabalhadora…” Fachadas: convite ou intimidação? As fachadas se colocam, de certo modo, como uma fronteira que separa o interior do exterior, manifestando valores que, implícitos na obra arquitetônica, criam efeitos de curiosidade, de familiaridade, de intimidação, de legitimidade, de abertura, de confronto, de nostalgia, de rejeição, de profanação ou ainda de inteira aceitação. Com efeito, Anne- Marie Bertrand, discutindo sobre os dispositivos utilizados para criar 16 NOGUEIRA, Maria Cecília Diniz. Biblioteca pública: contradição do seu papel. p. 66-68. efeitos de familiaridade, por exemplo, afirma que estes se constituem de três tipos que são: “a familiaridade com o lugar, a familiaridade com a instituição, a familiaridade com a coleção. Familiaridade com o lugar: a claridade, as portas vitificadas, a organização dos serviços num único volume, os suportes de separação, tudo isso participa da vontade de fazer do lugar- biblioteca uma oferta diretamente compreensível, onde nada não está escondido. Familiaridade com a instituição: as ferramentas pedagógicas se multiplicam para desmistificar o estabelecimento e reassegurar o uso (...) mas também os clássicos “guias do leitor”, até as publicações acompanhando a construção e precedendo o posto de serviço dum novo prédio, como a coleção de jornal de Poitiers, na Mediatexte de Limoges. Familiaridade, enfim, com a coleção: os tradicionais esforços colocados de modo valorizado e no espaço (mesas das novidades, estantes temáticas) pode-se acrescentar as passarelas dispositivas destinadas a suscitar a curiosidade e encoraja a leitura, como o caso de Borges com os “caminhos de travessia”, que acolhem, na entrada da seção de adultos, os jovens que acabaram de deixar a seção da juventude, ou de Bobigny, com as deslocações sempre renovadas das coleções… ”17 De fato, fachadas como as da biblioteca de Orléans, e de Jean- Pierre Melville, ambas em Paris, ou ainda como as da biblioteca pública do Condado de Monroe Bloomington, Indiana, nos Estados Unidos, criam efeitos de curiosidade, de invasão concreta do espaço exterior, de palco para que o espetáculo da leitura pública seja assistido pelos passantes e provocam ou tentam provocar um convite à sua entrada, oferecendo-se, permitindo que a exposição de suas atividades desperte o desejo de consumo dos produtos por elas oferecidos, já que quer ser vista, como descreve Chistine Orloff sobre as de Melville: “O trunfo maior da coleção de Melville é de ser uma vasta vitrina, aberta no mesmo nível da cidade. A fachada não é mais um obstáculo que separa o mundo da biblioteca da rua, mas uma simples pele (camada) que autoriza a osmose entre os dois espaços. A biblioteca deixa de ser um santuário, um lugar fechado. As fronteiras entre exterior e interior se atenuam, poder-se-ia quase qualificá-la de biblioteca extrovertida. O transeunte é posto em situação de espião. A fachada, mostrando a extensão da biblioteca e as atividades que se desenvolvem, é um apelo, um convite para o transeunte entrar. Ela revela a intimidade dos lugares, os objetos se aliam às mesas de leitura e dos raios de sol, a atmosfera estudiosa … “18 Já a fachada das bibliotecas instaladas em edifícios históricos, como a daBiblioteca Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil, criam efeitos 17 BERTRAND, Anne-Marie. La génie du lieu. Em: BERTRAND, Anne-Marie, KUPIEC, Anne (org.). Ouvrages et volumes: architecture et bibliothèques. p. 180-181. 18 ORLOFF, Christine. La médiathèque Jean-Pierre Melville. Bulletin des Bibliothèque de France, n.5, v. 41, p. 22. de preservação, de isolamento, de intimidação, de reserva de uso de seus espaços, vedando qualquer visibilidade do interior. O passante e a biblioteca estão isolados pela imponente fachada que instala um sentido de privação, de algo que está sobre todos já que uma imensa escadaria de mármore a separa do nível da rua, elevando-a, um sentimento de nostalgia, de profanação por se tratar de um lugar histórico, enriquecido pelo prestígio da antigüidade, de um santuário cultural onde a própria fachada revela traços e datas do passado, rememorizando a identidade da coletividade e apresentando dois tipos de efeitos na intervenção urbana. Um desses é o de respeito, gerado pelo espírito de conservação do lugar, de seu valor enquanto identidade cultural e um outro, mais ativo, é aquele dado pelo importante papel do prédio na localidade da qual ele é participante e acumulador da cultura local. Os efeitos negativos provocados pela fachada só cessarão quando o espaço for apropriado pelo passante que necessita romper com a barreira física provocada pela fachada para penetrar no universo interior daquilo que, a princípio, não quer ser visto. Fachadas como a da biblioteca Shiou Junior College em Hitachi, no Japão, que pouco ou nada mostram do interior, funcionam como um recurso divisor do espaço, sendo completamente isoladas, preservando seu interior, querendo não ser vista pelo passante, manifestando-se como um lugar reservado, exigindo que o usuário tome a iniciativa de abrir a porta e entrar, tal como nos mostra Ana Claudia de Oliveira19, ao analisar os estabelecimentos comerciais. As bibliotecas chamadas por Michel Melot de as Novas Alexandrias, como referência à grande biblioteca egípcia da Antigüidade, usam as suas fachadas como uma enunciação para o grande espetáculo que ocorre em seu interior. Não querem não ser 19 OLIVEIRA, Ana Claudia de. Vitrinas. p. 86-121. vistas, já que são monumentos que se colocam no espaço urbano como uma provocação, uma ruptura, um descontinuismo, da ordem urbana, como um convite ao encontro com a cultura. As fachadas não representam uma fronteira uma vez que, tanto como no novo edifício da Biblioteca Nacional da França, em Paris, como no da Britsh Library, em Londres, uma praça pública se coloca como intermediadora entre o espaço da rua e o acesso à biblioteca, incitando o diálogo através da disposição de bancos postos à contemplação do suntuoso monumento, como afirma Dominique Perrauet ao definir o seu projeto para a da França como “… une place pour Paris. Une bibliothèque pour la France. Avec ses tours d’angle comme quatre livres ouverts se faisant face et qui délimitent un lieu symbolique. (…) L’esplanade, grande comme la place de la Condorde, est conçue comme une place publique accessible sur trois côtés par des emmarchements”20. Dessa forma, através do dispositivo que instala no conjunto arquitetônico, a praça – espaço público disposto para o descanso, o relaxamento e o lazer do transeunte –, a biblioteca coloca-se como algo que quer ser vista, admirada, contemplada pelo olhar de seu usuário. Os regimes de presença da biblioteca no espaço urbano a dispõe para contemplação do transeunte e a coloca como um convite para a entrada no seu fascinante mundo real e imaginário ou como uma muralha posta para a defesa do patrimônio que guarda. O sentido de abertura ou fechamento se prolonga para o interior na medida em que o transeunte, ao aceitar o convite e entrar, depara com zonas funcionais, organizadas de modo a permitirem ou não sua interação como espaço. 20 BLASSELLE, Bruno, MELET-SANSON, Jacqueline. La bibliothèque nationale de France. p. 99 e 108. Conclusão O sentido atribuído pela construção arquitetônica da biblioteca influencia o fazer do usuário e, consequentemente, o seu uso. Estudá-lo sobretudo a partir da lente da semiótica, permite perceber que ele não é uma simples construção posta para cumprir sua função, mas um elemento que, ao desencadear inúmeros efeitos de sentido pode se colocar como um instrumento a serviço da propagação do conhecimento e do saber. Bibliografia AUGOSTINHO, Valci. Aclimatação ambiental dos prédios das bibliotecas centrais universitárias: especificações de construção seguidas após reformas. Brasília: UNB, 1987. 255p. (Dissertação, Mestrado em Biblioteconomia). BERTRAND, Anne-Marie, KUPIEC, Anne (orgs.). Ovrages et volumes: architecture et bibliothèques. Paris: Electre – Ed. du Circle de la Librairie, 1997. 212 p. BLASSELLE, Bruno, MELET-SANSON, Jacqueline. La bibliothèque nationale de France: mémorie de l’avenir. Paris: Gallimard, 1990. 176p. COELHO NETTO, José Teixeira. A construção do sentido na arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1979. 117p. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo. 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