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54 SANT’ANNA, Paulo A. As imagens no contexto clínico de abordagem junguiana: uma interlocução entre teoria e prática. 2001. 350 f. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. p. 54- 61. Disponível em: < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-03022004-145412/pt-br.php>. Acesso em: 28 out. 2018. 2.2.3 Amplificação: o método junguiano de interpretação Segundo Von Franz (1990), a interpretação psicológica do material arquetípico serve de ponte entre consciente e inconsciente, razão pela qual, seja para o processo psicoterápico, seja para o simples enriquecimento da consciência, é necessário interpretar os sonhos e outros conteúdos simbólicos. No entanto toda interpretação é parcial e momentânea, nunca definitiva e consiste na tradução das imagens para uma linguagem psicológica, o que, segundo alguns autores, resultaria em substituir um mito por outro. Corre-se o risco de reescrever o material simbólico “junguianamente” dando origem a uma nova mitologia, o que, segundo Von Franz, não é um problema, desde que seja assumido conscientemente como um grau de compreensão possível para um determinado estágio de consciência transitório num dado momento histórico. Interpretação psicológica é o nosso modo de contar histórias, pois ainda necessitamos delas e ainda aspiramos à renovação que advém da compreensão de imagens arquetípicas. Nós sabemos muito bem que a interpretação é o nosso mito. Nós explicamos X por Y, porque Y corresponde melhor ao nosso espírito atual (Von Franz, 1990, p.55). Essas afirmações levantam questões que precisam ser mais bem discutidas. Até que ponto a linguagem psicológica é necessária para o processo psicoterápico ou de autoconhecimento? Nomear as experiências a partir do léxico psicológico tem realmente alguma eficácia terapêutica? Que uso faz o paciente do discurso psicológico e como isso interfere no seu processo de desenvolvimento psíquico? A interpretação como tradução não seria mais um instrumento para o terapeuta do que um recurso eficaz para o paciente? A tradução da linguagem do inconsciente para a linguagem conceitual do consciente não corresponderia à sobreposição de um sobre o outro, em vez de desenvolver uma zona intermediária – função transcendente – entre os mesmos? Não estaria a imagem imbuída de uma consciência própria que 55 precisa ser apreendida como tal em vez de decodificada? Uma vez que se apresenta de forma metafórica, a imagem é um campo aberto para reflexão e não deve ser esvaziada se não morta pela conceituação, que lhe subtrai o poder mediador para transformá-la numa mera representação. O caráter paradoxal da imagem precisa ser mantido, ele é a base para o estabelecimento de uma atitude consciente mais flexível e criativa do sujeito. A expectativa inicial da psicanálise em despontencializar o inconsciente mediante uma dissecação meticulosa e prolongada já se mostrou perigosa, bem como a dissecação interpretativa que pode representar um empobrecimento da consciência. A psicologia analítica recomenda que é preciso aprender a conviver com as manifestações do inconsciente e não esvaziá-las. No contexto clínico, a imagem e as questões em torno dela suscitam inevitavelmente questões em torno da interpretação. Já é tradicional que interpretar é criar a possibilidade de traduzir, relacionar ou transpor as imagens ou sintomas psíquicos para uma linguagem psicológica. Na obra de Jung, entretanto, há uma insistente necessidade de diferenciar o método de interpretação do método psicanalítico. Segundo Freud, o método caracteriza-se por uma visão analítico-redutiva, que, a partir da decomposição dos sonhos ou fantasias nos componentes de reminiscências e nos processos instintivos que lhe constituem a base, busca estabelecer uma causalidade das imagens simbólicas com fatos ou pessoas da vida do sujeito. O método junguiano, por sua vez, que ele denominou “método construtivo”, tem um caráter sintético-hermenêutico e consiste em enfatizar o sentido prospectivo ou finalista da imagem. Nele, há dois aspectos a considerar: primeiro, a análise nascida da decomposição deve ser seguida de uma síntese, e, segundo, se um material psíquico for simplesmente decomposto, na prática parecerá desprovido de sentido, ao passo que revelará uma riqueza de significados, se for confirmado e ampliado por todos os meios conscientes. Os valores das imagens ou símbolos do inconsciente coletivo só aparecem quando submetidos a um tratamento sintético. Como a análise decompõe o material simbólico da fantasia em seus componentes, o processo sintético integra-o numa expressão conjunta e coerente (Jung, 1980, p.73, @ 122). O método construtivo, por sua vez, ao tratar do símbolo deixa de perguntar o 56 “porquê” e passa a se preocupar com o “para quê” da imagem. (...) o método construtivo de interpretação não se preocupa com as fontes ou elementos originais que estão na base do produto inconsciente, mas procura exprimir o produto simbólico de forma geral e compreensível. As associações livres a propósito do produto inconsciente são consideradas mais no sentido de sua orientação finalista e não tanto sob o aspecto de sua procedência. São vistas sob o ângulo do fazer ou do deixar fazer futuros; é cuidadosamente levada em conta sua relação com o estado atual da consciência, pois, segundo a concepção compensatória do inconsciente, a atividade do inconsciente tem um significado sobretudo de equilíbrio ou de complementação para a situação consciente. Como se trata de orientação prévia, a verdadeira relação com o objeto entra bem menos em questão do que o procedimento redutivo que se ocupa com relações objetais realmente acontecidas. Trata-se mais da atitude subjetiva em que o objeto significa apenas um indício das tendências do sujeito. A intenção do método construtivo é, pois, estabelecer um sentido do produto inconsciente em vista da atitude futura do sujeito.” (Jung, 1991, p.403, @783). O método construtivo baseia-se na apreciação das imagens, não mais do ponto de vista semiótico, como sinal dos processos instintivos elementares, mas do ponto de vista simbólico. Levando em consideração que o símbolo é a melhor formulação possível de uma determinada situação, experiência ou conteúdo psíquico, “a imagem e a significação são idênticas, e à medida que a primeira assume contornos definidos, a segunda se torna mais clara. A forma assim adquirida, a rigor não precisa de interpretação, pois ela própria descreve seu sentido” (Jung, 1986, p.141, @402). O sentido de um símbolo só pode ser reconhecido do contexto psíquico em que se manifestou. Não há sentidos predeterminados que possibilitem uma tradução segura e unívoca da imagem simbólica. O significado individual do símbolo emerge da relação dialética entre paciente e terapeuta, no modus faciendi analítico. A “ parte individual é única, imprescindível e não interpretável. O terapeuta deve renunciar neste caso a todos os pressupostos e técnicas e limitar-se a um processo puramente dialético, isto é, evitar todos os métodos” (Jung, 1981,p.5,@6). O estabelecimento de 57 um diálogo com as imagens favorece a ativação de cadeias associativas que podem levar aos seus respectivos possíveis significados. A atividade interpretativa deixa de ser baseada na busca de um significado psicológico para enfatizar o estabelecimento das várias conexões possíveis entre as imagens. Não busca atribuir um valor ou conceito psicológico à imagem, mas conduzir a imagem para as várias manifestações psíquicas. Jung diz que a imagemnão “representa” , mas “apresenta” algo, é uma realidade em si mesma. Por isso não necessita de uma tradução ou interpretação, mas de uma clarificação e amplificação que a façam cumprir sua função dinâmica: dar forma a conteúdos que penetram na esfera psíquica. Enquanto é mantida como imagem, a imagem psíquica é capaz de compreender e sinalizar uma quantidade imensa de percepções que seriam reduzidas, caso ela fosse traduzida ou interpretada. A imagem de uma pessoa que tem uma fantasia, na qual se vê dirigindo um carro em alta velocidade e termina por batê-lo contra um muro, pode sugerir que sua atitude na vida reflete uma situação de risco; que dirige de forma suicida ou ainda que está prestes a enfrentar obstáculos em sua vida. Essas afirmações são interpretações com o intuito de desvendar ou atribuir um sentido para as imagens e para as atitudes do sujeito em questão. Mas como fazer afirmações sobre situações que ainda não se configuraram na consciência? Se, pelo contrário, a imagem fosse explorada de forma a tornar- se mais presente para o sujeito, ela própria serviria de elemento catalisador de uma variedade de situações e acabaria revelando à consciência formas que lhe favoreceriam sentido. No caso comentado acima, poderia ser explorada a imagem do carro: qual a cor e marca dele; quem é seu proprietário; como é andar nesse carro; o caminho percorrido; andar nele em alta velocidade; onde o sujeito já viu um carro como esse; ele está só ou acompanhado; enfim, amplificar a imagem de modo a fixá-la na consciência e a relacioná-la à vida da pessoa. Feito isso, o sujeito poderá perceber essa imagem em várias situações de sua vida, que antes podiam passar despercebidas e que a partir dessa fantasia receberam uma forma que favorece uma relação consciente com elas. Em outras palavras, o sujeito poderá aperceber-se “em um carro em alta velocidade” em seu trabalho, ou no seu casamento, ou na maneira como ele se relaciona consigo mesmo, etc. 58 Em Memórias, Sonhos e Reflexões, Jung (1989) defende a adoção de uma atitude não-interpretativa. Refere-se à necessidade de desenvolver uma nova atitude com seus pacientes, depois do rompimento com Freud, primeiramente evitando despejar teoria em cima deles, para esperar e ver o que lhe diriam por conta própria. Pus-me, então, à escuta do que o acaso trazia. Constatei logo que [os pacientes] relatavam espontaneamente seus sonhos e fantasias; eu apenas formulava algumas perguntas, tais como: “O que pensa disso?” ou: “Como compreende isso? De onde vem esta imagem?” Das respostas e associações apresentadas por eles, as interpretações decorriam naturalmente. Deixando de lado todo ponto de vista teórico, apenas ajudava a compreender por si mesmos suas imagens (p.152). Clinicamente, Jung e seus primeiros seguidores dão ênfase à elucidação dos padrões arquetípicos mediante a amplificação dos dados comparativos ou mediante a imaginação ativa, com o objetivo de identificar o sentido dos materiais psíquicos presentes na consciência. A amplificação consiste no enriquecimento da imagem simbólica originada dos processos associativos. Para amplificar um símbolo, acrescentam-se a ele materiais individuais e coletivos que possibilitarão o estabelecimento de uma ponte entre consciente e inconsciente. No âmbito individual, as amplificações têm origem nas associações que o sujeito faz com as próprias imagens. São conexões que ele estabelece e dizem respeito à sua história e experiência de vida. No âmbito coletivo ou arquetípico, a amplificação é uma forma desenvolvida de analogia na qual o conteúdo ou a história de um mito, um conto de fadas ou uma prática ritualista já conhecidos são usadas para elucidar ou “ampliar” o que não seria mais do que um fragmento clínico – uma única palavra, uma imagem de um sonho ou uma sensação corporal. Se o fragmento clínico desperta no analista ou no paciente o conhecimento que já existe, então pode-se entender o material (Samuels, 1989, p.28). A razão para a amplificação de uma imagem pode ter origem na sensação de contratransferência do analista muitas das quais se manifestam por meio de imagens geralmente arquetípicas. Nesse caso, podem surgir situações 59 históricas, contos, mitos, que, de forma análoga, se relacionam com a situação psíquica do paciente. Kast (1997) afirma que: É importante entender cada aspecto da contratransferência como expressão da relação entre o inconsciente do analisando e o inconsciente do analista, que se comunicam; é essencial compreender que, por vezes, uma pessoa pode estimular em outra a criação de uma imagem que é a expressão precisa de sua situação e que detém em si uma possibilidade de desenvolvimento (p.62). Apesar de ser um valioso instrumento para o analista, a amplificação arquetípica não deve ser utilizada indiscriminadamente, sobretudo no contexto clínico. Não há razão nenhuma para a amplificação assumir a forma de uma alimentação forçada de imagens para o paciente. O terapeuta pode amplificar silenciosamente, a partir de paralelos histórico-culturais que servem como um mapa de orientação para certas situações psíquicas gerais e ajudam o analista a situar-se em relação ao contexto psíquico do paciente, notadamente se ele manifestar-se caótico. Os paralelos arquetípicos apontam possíveis desenvolvimentos para uma situação específica como se afirmassem: para esta situação, o homem em geral tem tais e tais soluções e desenvolvimentos. Mais instrumentado, o analista pode identificar o sentido prospectivo e estabelecer o fio terapêutico. Outro cuidado é não reduzir o símbolo a uma referência arquetípica, confundindo o “mapa” com o fato psíquico em si; cair numa atitude estética que transforma os eventos psíquicos em entidades separadas da experiência subjetiva do sujeito. Indiscriminadamente, tudo passa a ser “simbólico”, “arquetípico” em detrimento da experiência simbólica e/ou arquetípica que é esvaziada uma vez reduzida a um conceito. O perigo da tendência estética consiste na supervalorização do formal ou do valor “artístico” dos produtos da fantasia que afastam a libido do objeto fundamental da função transcendente, desviando-a para os problemas puramente estéticos da formulação artística. O perigo do desejo de entender o sentido do material tratado está em supervalorizar o aspecto do conteúdo que está submetido a uma análise e a uma interpretação intelectual, o que faz com que se perca o caráter 60 essencialmente simbólico do objeto (Jung, 1986, p.17, @176). Em situações nas quais o paciente não consegue estabelecer relações pessoais com as imagens simbólicas, a sobreposição de imagens paralelas de caráter histórico-cultural podem auxiliar a desencadear o processo associativo levando-o a estabelecer as relações necessárias. As imagens paralelas servem de um fio condutor e não de um fim em si mesmas. Elas não são o significado da imagem, mas podem ser as condutoras dos desdobramentos da energia psíquica que vai formulá-lo. De uma imagem psíquica individual, seguida de um ou mais paralelos arquetípicos, o significado retornará incontestavelmente para o sujeito. Em outras palavras, a amplificação arquetípica sobrevive até o momento em que se desencadeia o processo associativo, momento em que o material coletivo apresentado pode e deve ser contextualizado na dimensão específica da situação psíquica individual da qual emergiu. Em relação ao seu significado, Jung estabelece um outro parâmetro para a interpretação do material simbólico. Ele pode estar relacionado a fatos, objetos e pessoas reais ou a componentes psíquicossubjetivos do sujeito. Naquele caso ele vai falar de “interpretação a nível do objeto” e no segundo, de “interpretação ao nível do sujeito”. A interpretação ao nível do objeto é analítica, pois decompõe o conteúdo do sonho em complexos de reminiscências que se referem a situações externas. A interpretação ao nível do sujeito, ao invés, é sintética, pois desliga das circunstâncias externas os complexos de reminiscências em que se baseia e os interpreta como tendências ou partes do sujeito, incorporando-os novamente ao sujeito ( Jung, 1980, p.76, @130). A análise pode caminhar até certo ponto sob uma perspectiva analítica, uma vez que os conflitos estão ligados às experiências de vida do indivíduo que determinam a tonalidade afetiva dos complexos subjacentes a eles. Portanto uma interpretação a nível do objeto é indicada para a oportunidade de identificar e esclarecer os complexos. No entanto, para diminuir o impacto de um complexo sobre a economia psíquica, não basta identificar a causa ou a origem dele. Em princípio, um complexo nasce da polarização do arquétipo que lhe deu origem, cuja tarefa é ativar o movimento compensatório do inconsciente, o qual, por sua vez, procura integrar uma nova perspectiva transformando a situação psíquica anteriormente subjugada pelo complexo. 61 Uma vez tratar-se de fatores ainda potenciais, não é possível abordá-los de modo redutivo ou do ponto de vista do objeto. Nesse caso, é preciso adotar o ponto de vista do sujeito e reconhecer a potencialidade emergente e sua finalidade na dinâmica psíquica.