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CAPÍTULO I COSMOVISÃO Os homens de nosso século são seres arrebentados, dilacerados, que em seu medo de ver sua unidade de significação se estabelecer numa história da qual eles não são mais os únicos senhores, preferem negar que existe uma unidade de sentido. Pierre Trotignon 1.0. CONCEITUAÇÂO É comum em todo ser humamo o desejo de conhecer a realidade, entendendo-se por esta tudo o que existe, desde o universo, os seres, as coisas, até os fenômenos naturais e sociais. Nossa existência se caracteriza por uma busca permanente de significado para a vida e os acontecimentos. Essa vertiginosa aventura à procura de conhecimento é tipicamente humana. Só o homem se define como animal racional, isto é, como ser capaz de formular conceitos abstratos para aquilo que ouve, sente e observa. Disto resulta uma concepção de realidade, ou melhor, uma cosmovisão, integradora de todos os fenômenos que fornece ao homem um sentido de harmonia ao universo. O homem de hoje, como o de outrora, necessita sentir-se seguro diante da vastidão cósmica. E essa segurança advém do sentimento de posse da realidade, já que sabe explicá-la por meio de palavras. Sem uma cosmovisão, a vida perde o seu sentido. Martin Heidegger (1988) certa vez afirmou que a 2 ausência de ordem e, portanto, de cosmos era o que havia de mais intolerável. Isto significa que a condição humana se define essencialmente por uma busca contínua de ordenação das coisas, uma busca de significado para si mesma e para o mundo. A compreensão da realidade situa o ser no mundo, torna-o senhor de si e de tudo que o rodeia, liberta-o da angústia do desconhecido e do inominado. Com efeito, o modo como o ser humano apreende a realidade, a partir do espaço-tempo em que se insere, é o que denominamos cosmovisão. Vale ressaltar, porém, que essa forma de ver o mundo não é uma criação isolada de um indivíduo, mas a soma dos múltiplos aspectos de uma cultura produzidos pela consciência coletiva num determinado contexto sócio-histórico. A cosmovisão é, assim, uma construção coletiva que expressa uma maneira de interpretar a realidade entre outras possíveis. Essa totalidade significativa é apenas um arranjo provisório que se mantém até onde a coletividade se sente segura. Quando, no entanto, este conjunto de crenças e valores, costumes e tradições, mitos e saberes não é mais capaz de assegurar a tranqüilidade espiritual da coletividade, os elementos que compõem a mundividência começam a se desintegrar e, aos poucos, cedem lugar a novas significações. 2.0. O HOMEM: LINGUAGEM, HISTÓRIA, TRABALHO E CULTURA. Do ponto de vista social e cultural, o homem é um ser inacabado, um ser que está no mundo em permanente desafio. Sua efetivação não está de antemão garantida, mas submetida a situações determinadas, carecendo de vencer os obstáculos que a própria natureza e a cultura se lhe impõem a cada instante. Ele está sempre sob o apelo de criar as condições necessárias para efetivar-se no mundo -- espaço de múltiplas relações -- onde, pelo conhecimento e pela ação tenta articular uma configuração de si mesmo. Livre do peso determinante dos instintos, o homem se encontra na contingência de criar um mundo onde possa viver humanamente. Ser ativo, autodeterminado e determinante, ele se desenvolve e se aperfeiçoa através da participação na obra de sua autoconstrução, junto com os outros homens. Em interação constante com o meio, carecendo de desenvolver suas potencilidadedes, ele é muito mais possibilidade do que efetivação, mais liberdade do que predeterminação, mais subjetividade do que objetivação. Ele sabe que é interpelado a decidir-se não só em relação a si mesmo, mas também em relação a seu mundo. É no exercício da 3 liberdade que ele descobre o seu rumo e constrói o seu “destino’’. Liberdade é relação com a natureza e com o mundo dos homens; é decisão livre a respeito da forma, da configuração específica desse encontro com a alteridade (o outro). Emergindo como ser da liberdade, o homem, mais uma vez, se revela como ser de possibilidade, que só se efetiva quando se transforma em projeto e ação. Ao contrário dos animais, que se repetem e não progridem, o homem, a cada geração, não pode ser o que já é. Seu ser social está em constante evolução. Para Nietzsche (1844-1900), o homem é o animal que jamais se define. Sua essência é mutação. Por mais que construa, conheça e projete ações, nunca chega a exaurir a profundidade misteriosa de si mesmo. Em suma, o homem é sempre esse conhecido desconhecido. 2.1. A LINGUAGEM A natureza é muda. Embora pareça estar expressando algo por meio de suas formas, suas paisagens, suas tempestades ruidosas, suas erupções vulcânicas, sua brisa ligeira, a natureza não responde. Os animais reagem de maneira que tem sentido, mas não falam. Só o homem fala. Só entre os homens existe essa alternância de discurso e resposta continuamente compreendidas. A linguagem possibilita ao homem exprimir sua existência no ser, na qual ouve e vê, sente e se emociona, deseja e espera, raciocina e conhece, se alegra e se entristece, sofre e se angustia. O homem possui uma existência expressiva. De acordo com Paul Ricoeur (1978), É na linguagem que o cosmos, o desejo, o imaginário se elevam até a expressão. Sempre é necessária uma palavra para retomar o mundo e convertê-lo em hierofania (p.15). Na esfera do símbolo, o homem articula o sentido do seu ser, o significado de toda a realidade e de seu agir no mundo. O mundo propriamente humano é o mundo do sentido. É precisamente enquanto ser do sentido, lingüisticamente expresso, que o homem se torna capaz de conhecer sua realidade (teoria) e de agir (prática) na feitura de um mundo humano, isto é, de um mundo “sensato”. O específico do sentido é que ele se exprime na linguagem, pela qual 4 aquele que fala tem já a pretensão de validade do seu discurso, mas que, em princípio, está vulnerável a um questionamento crítico. Isto decorre do próprio processo de entendimento mediatizado pela linguagem, onde se busca um consenso racional radicado em razões que podem ser explicitadas através da mediação da argumentação. Falar é criar o mundo do sentido; este mundo, agora, emerge como o mundo onde sujeitos interagem, criando uma série infinita de imagens que revelam a realidade sob múltiplas formas. O pressuposto deste processo é que os sujeitos se constituem como tal na medida em que, precisamente pela ação lingüística, se põem na esfera da constituição do sentido e, assim, se capacitam a conhecer o real e a agir a partir do sentido captado. Isto significa que cada falante é interpelado a reconhecer seu parceiro (interlocutor) como ser que conhece o significado da realidade e age sobre ela como ser de igual dignidade. 2.2. A HISTÓRIA. Como vimos anteriormente, a vida humana é constante processo de auto-elaboração. Isto significa que o homem tem necessidade de se produzir a si mesmo através da mediação da natureza. Com efeito, ele emerge como um “ser carente”, ou seja, como um ser que tem necessidades naturais a serem satisfeitas. Seu fazer-se é, antes de mais nada, a “luta pela vida”, isto é, pela conquista das condições materias que tornem a vida humana possível. Nesta perspectiva, a ação do homem no mundo se vincula à inexorabilidade do processo histórico, à tessiturados acontecimentos que configura o progresso da humanidade como um todo e a evolução ou involução de uma cultura em particular. Temos aqui o fundamento da liberdade humana: a escolha incondicionada entre diferentes possibilidades. A partir dessa escolha assumida conscientemente, o homem se faz sujeito da história. Seus ideais e suas utopias orientam a sua ação e dão significado à própria vida. O indivíduo que não toma consciência do seu existir histórico sofre a angústia de apenas contemplar o desenrolar dos acontecimentos. 5 A história, portanto, pode ser concebida como a ciência da mudança das condições de existência do homem impulsionadas pela sua ação sobre o meio ambiente. Noutras palavras, a história é o relato da ação de nossos antepassados, que nos trouxeram até o ponto de onde prosseguimos incansavelmente. A história constrói a realidade que é a composição de elementos conjunturais e estruturais. O exame da conjuntura revela sempre as aparências, os aspectos parciais, instantâneos, imediatos, momentos da realidade; já o estudo da estrutura mostra as raízes, os fundamentos, a substância da realidade. Em termos históricos, a realidade se apresenta tecida de uns e outros elementos, mas por motivos óbvios, os conjunturais dominam a visão e compreensão da realidade. É preciso ter claro que a realidade é mais que a nossa visão conjuntural -- esta concepção superficial típica do senso comum dos indivíduos. Compreendemos mais e melhor a ação dos homens na história, tanto mais nos conscientizamos de ser sujeitos ativos no processo histórico. Fora de nossa existência na história, não dispomos de nenhum fio de Ariadne capaz de conduzir-nos à autenticidade. Sem história, vemo-nos privados de linguagem que nos permita indiretamente falar das origens de que brotamos e que nos sustentam . 2.3. O TRABALHO Dissemos que o homem é um ser que busca a satisfação de suas necessidades. Isto é mediado pelo trabalho transformador da natureza, no qual o homem imprime seus fins às coisas. O trabalho está, pois, a serviço da satisfação das necessidades humanas, ou seja, está situado em seu projeto de vida. Por intermédio do trabalho, o homem acrescenta um “mundo novo” (cultura) ao mundo natural já existente. O trabalho é, portanto, elemento essencial da relação dialética entre o homem e a natureza, entre o saber e o fazer, entre a teoria e a prática. Nesse sentido, o trabalho é uma atividade tipicamente humana, porque implica a existência de um projeto mental que determina a ação a ser desenvolvida para alcançar o objetivo almejado. O trabalho permite ao homem desenvolver sua criatividade, realizar suas potencialidades, mudar a si mesmo e transformar a natureza em cultura. Numa palavra, o trabalho é o elemento 6 fundamental do processo de autogênese do homem enquanto ser histórico, enquanto agente de transformação da natureza e de produção da cultura. 2.4. A CULTURA Quando nos colocamos diante da palavra cultura, a primeira concepção que nos ocorre é a de que ela significa a manifestação dos costumes de um povo ou o conhecimento adquirido e acumulado por determinada pessoa. Entretanto, se refletirmos sobre estas concepções, logo veremos que são insuficientes para abranger de forma adequada toda a riqueza que este fenômeno engloba. Não passa pelo senso comum que a cultura é, antes de tudo, um conjunto de atos concretos e simbólicos criados pelo homem para conceder um “sentido” ao mundo e a si mesmo. Ainda que esta conceituação seja de âmbito fenomenológico 1 , ela nos parece mais adequada para caracterizar a cultura como um fenômeno especificamente humano. A cultura nasce da experiência de um povo (e não de um indivíduo ou de algumas pessoas isoladamente) e se manifesta na sua cosmovisão, englobando todas as criações da coletividade nos planos materiais (objetos), comportamentais (modos de agir, costumes) e espirituais (instituições, saberes, ideologias, manifestações religiosas e artísticas). São inúmeros os exemplos que podemos extrair do cotidiano para atestarmos a riqueza dos simbolismos que concedemos aos fenômenos: a multiplicidade de formas de confeccionar os alimentos, a variedade da moda nos vestuários, a diversidade de códigos linguísticos, de gestos, de culto ao sagrado etc. Isto significa que o homem é o único ser que não se repete. Só ele produz culura na medida em que cria símbolos para expressar seus sentimentos, atribui valores às coisas e transforma a natureza para atender às necessidades de sobrevivência e bem-estar. Com efeito, a cultura não é um dom gratuito, mas o resultado de um esforço perseverante do homem no afã de conhecer o universo e a si mesmo, 1 Designação daquilo que é apreendido pela consciência a partir dos elementos manifestados pelo objeto, sem se restringir aos dados concretos, mas sim às idéias que fornecem “sentido” para a existência do mesmo. 7 manifestar sua criatividade e transformar o meio em que vive. Isto ocorre porque o homem é livre com respeito às suas ações e seus projetos. O meio o influencia, mas não o determina, o que dá origem a diferentes formas de organização do espaço físico e social. Os povos se diferenciam uns dos outros pela sua cultura . Há tantas culturas, tantas civilizações, quantas forem as sociedades distintas. Enquanto aquilo que é universal, comum a todos os homens, revela sua natureza, tudo o que aparece relacionado à cultura traz a marca da diversidade e da relatividade. Há, por isso, vários sistemas filosóficos, políticos, econômicos, vários modos de organização social, vários estilos de arte, várias religiões, vários códigos de moralidade etc. Ao mesmo tempo que a cultura é produzida pelo homem, ela também produz um certo tipo de pessoas, pois a cultura na qual nascemos nos condiciona e nos imprime marcas que vão caracterizar o nosso modo de ser. Por isso, para convivermos harmoniosamente com pessoas e grupos tão diversos culturalmente, é necessária a prática da tolerância sem a qual torna-se impossível estabelecer o diálogo entre as culturas. A tarefa educativa propõe e favorece esta tolerância em relação ao outro, enquanto portador de valores próprios e diferentes dos nossos. A capacidade de aceitar, respeitar e comungar a diferença constitui o vigor da personalidade humana ou da identidade pessoal. Isto nos obriga a estar constantemente abertos e receptivos para o diferente e o novo e nos incita a desinstalar-se e a arriscar-se. 3.0. A FORMAÇÃO DOS CONHECIMENTOS Durante milênios, a “memória” da humanidade colheu fatos esporádicos dos eclipses do sol e da lua, das grandes inundações, dos terremotos e maremotos, pretendendo descobrir as origens do mundo e da vida, a causa da morte natural, a estrutura e a organização do corpo humano etc. Contudo, até o século VI a. C., aproximadamente, o homem não era capaz de generalizar e sistematizar esses fatos separadamente. A sua inteligência não estava suficientemente desenvolvida para sintetizar as idéias das coisas e dos fenômenos, sendo incapaz de se abstrair das particularidades. A tendência dominante era no sentido de abordar as abstrações como se fossem coisas reais, 8 devido a incapacidade de separar as formas abstratas das concretas. Como exemplo disso, podemos citar o famoso mito de Pandora no qual o mal toma a forma de um objeto concreto: na casa de Epimeteu havia uma caixa que guardava todos os males. A sua mulher, curiosa eintrigada, abriu-a e os males se espalharam pelo mundo inteiro. Foi assim, segundo o relato mítico, que o mal apareceu entre os homens. A percepção do real por meio de imagens concretas, visíveis, é característica de uma determinada fase do desenvolvimento da humanidade. Para generalizar, é preciso saber distinguir o substancial do acidental, o necessário do contingente, a causa do efeito. Esta capacidade não surgiu imediata e espontaneamente; é produto de uma longa trajetória do homem em seu desejo de explicar a realidade, em seu esforço para compreendê-la e assim tornar a vida melhor. No curso dessa trajetória, o homem foi construindo o conhecimento em suas múltiplas formas, como veremos a seguir. 3.1. O MITO O mito foi a primeira forma de conhecimento adquirido pelo homem em seu esforço para compreender e explicar a realidade. Na sua incapacidade de explicar os fenômenos naturais e de formular conceitos abstratos, o homem recorreu a entidades sobrenaturais, em busca de um sentido para o mundo e para os acontecimentos que envolviam sua própria vida. 3.1.1. Origem e características O mito conhece duas fontes de origem, uma interior e outra exterior. Noutras palavras, o homem é dotado de certas matrizes, arquétipos ou representações simbólicas que assimilam conteúdos vindos da realidade exterior e dão origem aos mitos e símbolos históricos. O mito, portanto, emerge de uma atmosfera de simbiose amorosa do homem com seu meio, sem rupturas nem divisões, fundindo-se aquilo que no horizonte da razão aparece como oposto: sujeito (aquele que conhece) x objeto (a realidade a ser conhecida). As categorias do pensamento mítico são a imaginação, a fantasia e a 9 emoção. Seu objeto é a apresentação de um conjunto de ocorrências fantásticas com que se procura dar sentido ao mundo e à vida. Seus personagens são os entes sobrenaturais e os homens elevados à categoria de heróis. Sua linguagem encerra profundo conteúdo existencial, na medida em que traduz os anseios da natureza humana e, por isso mesmo, a revela a seu modo. Sob múltiplas formas, o mito aparece em todas as culturas desde as mais primitivas até as atuais. Ele se relaciona com a questão das origens cósmicas e humanas, a origem das instituições, a busca da felicidade, os êxitos e os fracassos do homem. Como diz Constança Marcondes Cézar, O mito sintetiza, recorrendo a símbolo, conteúdos que se referem às mais profundas aspirações do ser humano: sua sede de absoluto e de transcendência, sua deslumbrada busca de plenitude (In: Morais, 1988, p. 37-38). Mircea Eliade (1972), procurando caracterizar o mito, afirma que "é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares" (p.11). Em seguida diz: A definição que me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser (Eliade, 1972, p. 11). 3.1.2. Função do mito O mito aparece e funciona como mediação simbólica entre o sagrado e 10 o profano, condição necessária à ordem do mundo e às relações entre os seres. Sua função é conferir à natureza uma dimensão humana, ligando o tempo do homem ao tempo da natureza por meio de uma história exemplar. Em sua forma principal, o mito é cosmogônico ou escatológico, tendo o homem como o ponto de interseção entre estado primordial da realidade e sua transformação última, dentro do ciclo permanente nascimento-morte, origem e fim do mundo. O mito não é o elenco de narrativas inventadas e "falsas", como dizia o racionalismo de origem iluminista 2 . Não é algo que se oponha à realidade; ao contrário, ele é a própria realidade, tanto para o membro de uma comunidade primitiva, quanto para o homem de nossa sociedade. Enquanto ligado à experiência religiosa, o mito envolve um tipo de compreensão do real diverso da experiência racional. Impregnado de emoção e simbolismo, o mito contém a reminiscência de uma ordem universal primordial em que se engendrou a tessitura da vida presente, constituindo-a e justificando-a. Assim, trabalho, pobreza, riqueza, violência, existem em razão de atos ancestrais. Por isso, o mito é dado como verdadeiro porque se vê na vida social a confirmação da cosmogonia, passando sempre como história exemplar, um modelo a ser conhecido. A cosmogonia fornece o padrão ideal para os homens cada vez que se realiza qualquer ato, tanto na esfera coletiva quanto na particular. Segundo Malinowski (Myth in primitive psychology, 1926), O mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática (...). Essas histórias constituem para os nativos a expressão de uma realidade primeva [primeira], maior e mais relevante, pela qual são determinados a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade. O conhecimento dessa realidade revela ao homem o sentido dos atos rituais e morais, indicando-lhe o modo como deve executá-los (Citado por Eliade, 1972, p. 23). A realidade apresentada pelo mito de forma simbólica é a realidade transcendental desconhecida que se encontra além da observação e da simples 2 O iluminismo foi um movimento intelectual do século XVIII que estabeleceu a supremacia da razão como fonte de todo o conhecimento, desprezando outras formas de interpretação da realidade. 11 dedução, mas que pode ser reconhecida como existente e operativa. Essa realidade é captada e representada com fatos (e não com abstrações) em forma de história. Esses fatos são o resultado das ações e interações de seres pessoais em escala cósmica, constituindo o modelo e o fundamento dos acontecimentos no mundo dos fenômenos. Não se trata de causalidade como entendem a filosofia e as ciências, mas de uma abordagem da realidade intuitiva, da qual não podemos exigir estrutura lógica. Por conseguinte, o mito não implica em falsidade, mas sim em verdade, na medida em que é apenas uma parte essencial dos modelos de pensamento e de discurso humanos. É, pois, um modo de pensar diferente daquele da racionalidade. É um outro acesso à realidade e, por isso, uma forma própria de totalizar as experiências humanas. O pensamento mítico não trabalha com conceitos. Está mais próximo da realidade concreta tal como ela aparece à nossa percepção. Suas representações são menos abstratas do que aquelas que o conceito produz. 3.1.3. O mito hoje Desde a filosofia grega (século VI a.C.), até a ciência atual, o homem tem usado a razão para afirmar ou negar a existência de algo que transcende a sua percepção sensorial. No desejo de estabelecer relações de causa e efeito entre os fenômenos, o pensamento categorial encarregou-se de negar o valor do mito como forma de acesso à realidade. De posse do logos(razão), o homem arrogou-se ser capaz de explicar o mundo e seus fenômenos a partir de princípios lógicos (filosofia) ou de processos experimentais (ciência). As imagens e as representações míticas passaram a ser concebidas como produtos do misticismo peculiar à “mentalidade primitiva”, ou seja, uma primeira tentativa de estabelecer ordem no caos. Instalou-se o preconceito em relação ao mito. O pensamento verdadeiro não poderia ter outra origem senão ele próprio. No entanto, os esforços realizados por filósofos e cientistas para explicar o universo e “racionalizar” o conhecimento não foram capazes de banir o mito da consciência humana, não só porque a razão é insuficiente para dar conta de toda a realidade, mas também porque o homem traz em si mesmo a capacidade de transcender-se e de expressar sentimentos que o pensamento categorial não tem condições de sintetizar nem tampouco mensurar. O mítico em nós não é apenas uma categoria do nosso passado histórico; é uma categoria do nosso presente psíquico, pois faz parte de nossa 12 arqueologia interior que continua viva e atuante hoje, como atestam os psicanalistas. A realização pessoal e a saúde humana dependem muito do modo como nos relacionamos com esta realidade e como o consciente reage face aos conteúdos do inconsciente, seja acolhendo-os e integrando-os, seja inimizando- se com eles e recalcando-os. É por isso que o mito resiste a toda tentativa de seu banimento. Ele está presente tanto na consciência do homem primitivo quanto na do homem contemporâneo e se manifesta não só sob a forma de magia mas também como ciência, arte, religião, filosofia etc. Ao perceber a impossibilidade de dissociar razão e mito, Mircea Eliade (1972) caracteriza o homem como um ser mitologizante. As festas de aniversário, casamento, formatura, passagem de ano, relembram os ritos de passagem da comunidade primitiva. As liturgias religiosas, as lendas, os contos literários , a procura desenfreada pela literatura de auto-ajuda, o interesse pelas notícias de “discos voadores”, os ídolos do mundo artístico e desportivo, os fanatismos ideológicos, os super-heróis das histórias em quadrinhos, o desejo de possuir objetos “sagrados”e “mágicos”, a consulta aos horóscopos, denotam a sobrevivência dos arquétipos míticos. Ao reconhecer o papel do mito na estruturação do ser-no-mundo, não se quer dizer que todos os mitos são válidos. Há que se admitir que muitos deles são prejudiciais ao homem e, portanto, devem ser rechaçados. Como ensina Gusdorf (1979): O mito propõe todos os valores, puros e impuros. Não é da sua atribuição autorizar tudo que sugere. Nossa época conheceu o horror do desencadeamento dos mitos do poder e da raça quando seu fascínio se exercia sem controle. A sabedoria é um equilíbrio. O mito propõe, mas cabe à consciência dispor. E foi, talvez, porque um racionalismo estreito demais fazia profissão de desprezar os mitos, que estes deixados sem controle, tornaram-se loucos. De modo algum o reonhecimento dos mitos é a rejeição da razão, a recusa da moral. Muito ao contrário, as grandes épocas da civilização definiram sempre sob a forma de um ideal mítico o seu estilo de vida (...). A mitologia oferece, pois, um inventário das possibilidades humanas, uma escrita cifrada que desenvolve todas as intenções implícitas constituídas do ser no mundo. Cada época da cultura 13 recomeça a obra de exprimir as estruturas do homem nas linguagens do tempo, linguagem da arte, linguagem da política e da filosofia. De idade a idade, as formas de expressão se renovam, mas na tapeçaria de Penélope que é a história, a trama permanece. Esta trama nós a encontramos no testemunho dos mitos, nesta unidade de inspiração que os mantêm atuais, mesmo quando parecem desaparecidos. O mito data e não data porque é contemporâneo da humanidade. Permite que o homem tome consciência, no tempo, de sua vocação para além do tempo (p. 308-309). 3.2. A RELIGIÃO Entre as diversas manifestações da cultura, a que mais singulariza o homem no reino animal é, sem dúvida, a religião. Nos mais primitivos registros arqueológicos de todas as culturas, encontram-se referências ao sagrado, seja através da arte rupestre ou por meio dos vestígios de rituais de magia deixados nas aldeias pré-históricas. E não só as culturas primitivas, mas também as atuais têm marcas profundas do sagrado, o que faz da religião um fenômeno co-natural à existência humana. Por isso, podemos afirmar que o homem, além de sapiens, sociales, faber, loquens, ludens, é também religiosus. 3 3. 2. 1. Manifestação do sagrado De um modo geral, reconhece-se como manifestação do sagrado tudo o que o homem faz com o propósito de transcender à ordem natural. Assim, tanto os rituais de magia praticados pelo homem primitivo quanto as formas litúrgicas mais abstratas das religiões atuais são expressões do sagrado que configuram uma outra dimensão existencial humana: a do seu relacionamento com o transcendente. A emergência do sagrado é contemporânea da fase mítica da 3 A antropologia assinala como caracteres que diferenciam o homem dos animais a racionalidade, a sociabilidade, a capacidade técnica, a linguagem articulada, a atividade lúdica e a religiosidade. 14 consciência humana. Muito embora não se possa confundir mito e religião, ambos têm um núcleo comum em suas origens e desenvolvimento: a capacidade humana de criar símbolos, não só para representar as coisas e os seres, mas também para expressar sentimentos e experiências pessoais. Através do símbolo, o homem refaz e rediz a realidade no nível do imaginário. Neste processo, entra em ação a carga arquetípica de nosso inconsciente pessoal e coletivo para exprimir de forma mais densa e abrangente aquilo que outros acessos não conseguem dizer. É neste contexto que emergem das profundezas arqueológicas do inconsciente humano, as evocações e analogias que dão suporte ao discurso religioso, rico de imagens e símbolos. Quem mergulha fundo em realidades cujo significado não deixa o homem indiferente, como o amor, a doença, a morte de um ente querido, a aquisição de um bem fundamental, a realização de um desejo, sabe que o conceito é insuficiente para exprimir o sentimento que brota do interior do ser. Somente através de gestos simbólicos (mito, magia, religião) e de formas criativas de representação (arte) se pode expressar a carga de sentimentos que brotam dessas vivências. No âmbito religioso, as relações do homem com o sagrado são tão significativas que adquirem uma característica de mistério -- algo definitivamente indecifrável. Mesmo assim, o mistério não constitui uma realidade que se opõe ao conhecimento. Paradoxalmente, ele pode ser conhecido, não de modo objetivo, mas subjetivamente. O mistério não é o limite da razão. Por mais que conheçamos uma realidade, jamais se esgota nossa capacidade de conhecê-la mais e melhor. Aquilo a que chamamos realidade apresenta-se incomensuravelmente maior que a nossa razão e a nossa vontade de dominar pelo conhecimento. Não há melhor meio de acesso ao conhecimento do mistério que envolve as relações do homem com o sagrado do que o coração. Com ele podemos dar sentido ao discurso religioso, estabelecer a “lógica” da fé e explicar nossa simpatia por tudo que envolve o sagrado. Albert Einstein, em seu ensaio Como vejo o mundo (1981), escreveu: O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É este sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência.Se alguém não conhece esta sensação ou não pode experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos cegaram. Aureolada de temor é a realidade secreta do mistério que constitui também a religião (p. 12). 15 A capacidade de percepção do mistério é fundamental tanto para o filósofo quanto para o cientista, porque lhes permite ficar sensível àquelas dimensões da realidade impossíveis de serem apreendidas pela razão lógica ou pelas fórmulas científicas que estreitam os limites do nosso conhecer. Freqüentemente, Einstein (1981) repetia: Afirmo com todo o vigor que a religião cósmica é o móvel mais poderoso e mais generoso da pesquisa científica. (...) O espírito científico, fortemente armado com seu método, não existe sem a religiosidade cósmica ( p. 22-23). A ciência e a técnica nos proporcionam grande quantidade de conhecimentos, mas são insuficientes para a exploração de todas as nossas vivências subjetivas. Elas dizem quase nada sobre nós mesmos, deixando-nos com uma sensação de alienação de nossas profundezas espirituais. Isoladas, sem esse complemento espiritual, a ciência e a técnica nos fazem sentir alienados uns dos outros e do mundo. Em decorrência disso, Leonardo Boff (1994) sustenta que: Não podemos absolutizar nosso paradigma moderno científico- experimental e técnico. Este não desnuda todas as dimensões da realidade, apenas aquelas que entram no diálogo experimental com a natureza. Ainda assim, este diálogo nunca termina. Há também outras formas de diálogo, pois as várias culturas e os vários tempos históricos desenvolveram mil formas de conhecimento, seja pelos sonhos, pela intuição, pelos mitos e símbolos, pela reflexão religiosa e filosófica, e outras mais (p. 15). 3.2.2. Função da religião Ao contrário do que se dizia a algum tempo atrás, a religião, longe de alienar o indivíduo, opera da maneira mais radical a sua integração na realidade, e essa é talvez a explicação mais adequada da universalidade antropológico- cultural do fenômeno religioso. Quanto maior é a inserção do homem na realidade, mais ela se torna multifacetada, oferecendo-se à inteligibilidade com múltiplos sentidos. Em outras palavras, se definirmos a realidade como o pólo 16 que faz face às necessidades subjetivas do homem, veremos que a realidade dada ou natural é apenas o suporte da realidade propriamente humana, que é a realidade significada ou cultural. Ora, o sistema das representações religiosas se mostra, desde as origens da cultura, como o horizonte mais amplo e mais profundo de abertura do homem à realidade ou ao universo do sentido. Com efeito, depois do avanço das ciências humanas, particularmente a antropologia, não podemos encarar a religião como uma forma restritiva da compreensão do mundo, mas como um alargamento de nossa inteligibilidade. Quanto à diversidade de símbolos, cosmogonias, ritos, teofanias, aspectos subjetivos e objetivos presentes nas inúmeras religiões, só podem ser compreendidos como expressões de um fenômeno cultural e socialmente complexo que exige de nós compreensão e respeito. É verdade que existem formas de expressão religiosa que amiúdam o homem e o fazem preconceituoso, tímido, mesquinho, bárbaro. . . Mas, em sua essência, não é essa a função da religião. Ela existe para elevar o homem à sua verdadeira dimensão, fazendo-o capaz de transcender-se ao espaço do mundo e do tempo, de libertar-se de tudo que o impede de ser confiante, crítico e criativo. Não importa que no circuito dos interesses humanos se tenha tentado fazer da religião um imenso negócio. Somente os espíritos enfraquecidos se deixam iludir pela retórica do interesse que difunde o medo e impede o homem de conhecer o verdadeiro Deus e de se relacionar profundamente com Ele. 17 3.3. O SENSO COMUM O homem é um ser situado e datado, isto é, um ser marcado pelas circunstâncias geográficas e históricas que se refletem no seu modo de pensar, agir e entender a realidade. Anterior e simultaneamente à nossa existência, estão presentes valores padrões de conduta, costumes, tradições, modos de organização da vida social, de relacionamento do homem com a natureza e com os outros homens, que nos dão uma certa visão de mundo, uma forma peculiar de compreender a realidade. Esses elementos vão chegando até nós de maneira fragmentada, a partir das tradições e das experiências do nosso cotidiano. Aos poucos, formulamos explicações para a vida, para os fenômenos da natureza, para as normas sociais, para as crenças religiosas, para as relações entre marido e mulher, pais e filhos, professores e alunos, chefes e subalternos; enfim, um conjunto de explicações para os acontecimentos de nossa existência. Lentamente, esses elementos explicativos penetram em nossa consciência, em nossa afetividade, em nosso modo de pensar e agir sobre a realidade. Acostumamo-nos, afinal de contas, a todas essas apropriações e, raramente, nos perguntamos se existem outras possibilidades de explicação para tudo que observamos, vivenciamos e participamos. O mundo, os seres, as coisas, nossa forma de pensar e agir, tudo, enfim, se compreende e se organiza a partir desse senso comum da realidade. 3. 3. 1. Origem e características O senso comum nasce exatamente desse processo de “acostumar-se” a uma explicação ou compreensão do real, sem que seja questionada. Mais do que uma interpretação adequada da realidade, o senso comum é uma forma de ver a realidade espontânea, fragmentária, intuitiva, acrítica, subjetiva e assistematicamente. Noutras palavras, o senso comum é uma forma de conhecimento sem o rigor metodológico da ciência e da filosofia. A formação do senso comum tem o seu dinamismo externo e interno. Enquanto nos desenvolvemos, ao longo do tempo, sofremos a interferência de novos elementos que emergem na vida social e crescem junto conosco. Os mais 18 velhos nos transmitem valores e nós os introjetamos e transmitimos às gerações que nos sucedem. Além disso, somos também criadores de novas compreensões da realidade, que podem ter as características do senso comum e as passamos às gerações posteriores. Com efeito, o senso comum se forma tanto pelas tradições da coletividade, quanto pela experiência individual oriunda das sensações. Quem ainda não foi aconselhado a observar as fases da lua antes de cortar os cabelos, de ir à pesca ou de fazer a semeadura? Quantas pessoas acreditam que o número 13 dá azar? Quantos séculos viveu a humanidade acreditando que a terra fosse plana e imóvel? As sensações constituem uma fonte importante dos nossos conhecimentos porque refletem características, qualidades e propriedades das coisas. No entanto, através das sensações, não percebemos diferentes aspectos dos objetos e fenômenos, mas as coisas inteiras. Vemos campos verdes, o céu azul, estrelas resplandecentes e longínquas; ouvimos o ruído produzido pela chuva ou a trovoada; sentimos a frieza do gelo, o calor da lã, o peso do chumbo e a leveza do algodão... As percepções são as impressões sensoriais (imagens) dos objetos que representam a sua forma, grandeza, cor, posição no espaço etc. Mas os órgãos sensoriais, apesar de serem perfeitos, têm as suas limitações e, portanto, não podem revelar-nos todas as propriedades das coisas. Por exemplo, não podemos ver objetos em radiações ultravioleta e infravermelha, nem átomos, nem moléculas, bem como não podemos perceber o ultra-som. Então, perguntamos: qual a causa das limitações, ou melhor, da seletividade dos órgãos sensoriais? Os órgãossensoriais percebem o que é vitalmente importante, o que é imperativamente necessário, para que possamos nos orientar no mundo real. Eles nos dão um conhecimento da realidade imprescindível para a vida e a atividade prática. As sensações são as janelas para espreitar o mundo. Mas será que as nossas impressões sensoriais nos dão sempre um conhecimento exato acerca do mundo e das coisas ou será que nos enganam? O que dissemos sobre a verdade do mito e da religião vale também para o senso comum, na medida em que ambos são formas espontâneas e acríticas de compreensão do mundo, mas que dão uma certa inteligibilidade à vida como um todo. O homem vê, ouve e sente dentro dum determinado diapasão sensorial que, para ele, é suficiente para organizar a realidade, as ações 19 diárias, as relações entre as pessoas. Pertencem ao senso comum um vasto conjunto de concepções a respeito dos mais diferentes aspectos da nossa vida, umas corretas, outras incorretas. O que as caracteriza, é o fato de serem produzidas por conhecimentos fragmentários, superficiais e, por isso, sujeitas a distorções. Como forma de saber, o senso comum é extremamente útil e significativo porque constitui a forma de pensamento genérico de um povo num determinado tempo e lugar. O senso comum não é uma faculdade particular, nem uma espécie de instrumento, nem uma ciência, mas a concordância prática, o acordo espontâneo ou a síntese do que o homem entende, imagina, sente e deseja. É a partir desse “acordo” coletivo que o homem se situa no tempo e no espaço, faz a leitura do mundo, compreende a si mesmo e se relaciona com os outros. Contudo, se a humanidade hoje estivesse limitada somente ao conhecimento do senso comum, o progresso da civilização não teria ultrapassado senão uns poucos inventos técnicos. Presa das aparências e da subjetividade, das crenças e dos preconceitos, o senso comum nos dá apenas uma amostra superficial da realidade a partir da qual são feitas generalizações muitas vezes apressadas e imprecisas. Com efeito, a superação do senso comum é necessária para atingirmos o conhecimento do real. A crítica do senso comum é, pois, um caminho para a obtenção de um conhecimento mais refletido, mais objetivo e, portanto, menos impregnado de deformações produzidas pela nossa subjetividade. 3.3.2. O bom senso O senso comum é uma entre tantas outras formas de interpretação do mundo e de apropriação da realidade. Por ser um conjunto de concepções fragmentadas, muitas vezes incoerentes, condiciona a aceitação mecânica e passiva de valores não-questionados. Mas não devemos acreditar que todo o saber do senso comum é destituído de valor. Há nele um núcleo racional, sadio, que merece ser preservado, desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente. Deve ser elevado ao bom senso, como visão crítica do mundo, como senso comum depurado. Esta elevação do senso comum ao bom senso tem valor epistemológico (crítico), finalidade ideológica (desmistificação) e até mesmo pedagógica, isto é, de aprendizado e participação junto com a experiência. 20 Enquanto o senso comum é o conhecimento espontâneo, tal como vimos acima, no seu caráter acrítico, difuso, fragmentário, tradicional, o bom senso faz que o transformemos em pensamento organizado, coerente e crítico suficientemente capaz de abstrair as falsas impressões e detectar os conteúdos ideológicos que permeiam as diversas instâncias das relações humanas: a família, a escola, a moral, a religião, a política, os meios de comunicação social etc. Isso posto, podemos concluir afirmando que o senso comum não se opõe à filosofia nem à ciência, mas a elas se antecipa e lhes fornece a base sobre a qual se erigem a reflexão filosófica e a constatação científica. 3.4. A FILOSOFIA A mente humana é, por sua natureza, questionadora. O ser humano nunca está absolutamente satisfeito com o que já sabe. Ele está sempre à procura de algo que ainda não conhece, sobretudo quando o conhecimento que já possui se torna frágil e, muitas vezes, contraditório. Face a essa disposição natural do homem para conhecer mais e melhor, é que surgiu a filosofia como um desejo de preencher as lacunas deixadas pelo mito, pela religião ou pelo senso comum. Durante muito tempo, essas formas de conhecimento foram suficientes para responder à consciência indagadora, mas à medida que as fronteiras da cultura se dilatavam, o ser humano não se deu por satisfeito e recorreu às categorias da razão para encontrar uma nova maneira de explicar a realidade. Ao rejeitar a interferência dos agentes divinos na explicação dos fenômenos naturais e na interpretação do seu próprio comportamento, o homem foi levado a refletir sobre a realidade -- o mundo, sua origem, o movimento, os seres, a vida, os acontecimentos, o comportamento humano etc. Dessa reflexão surgiu a filosofia como esforço para explicar as coisas e suas causas mais remotas. O surgimento da filosofia é assim marcado por uma ruptura com um saber cujas estruturas de representação se tornaram questionáveis e, por isso mesmo, insuficientes para prover ao espírito humano o equilíbrio que ele necessita e deseja. O filósofo francês Georges Gusdorf (1980) caracteriza essa mudança de cosmovisão da seguinte maneira: A reflexão consagra o fim da inocência mítica. Para o 21 futuro, o homem já não pode deixar-se levar pelas evidências estabelecidas. Ele se torna o artesão da verdade, isto é, tanto capaz como culpado do erro. A existência funda-se em desgarramento, em uma separação entre homem e mundo, de si para si e de si para Deus; e todo o esforço da sabedoria e do saber humano terá por ambição remediar isso (p. 151). 3.4.1. O processo de evolução do conhecimento filosófico Na Antigüidade, o saber filosófico correspondia à totalidade do conhecimento racional desenvolvido pelo homem. Abrangia, portanto, os mais diversos tipos de conhecimento que se estendiam pela matemática, astronomia, física, biologia, lógica, ética etc. À filosofia interessava conhecer toda a realidade sem dividi-la em objetos específicos de estudo. Esse significado amplo e universalista do saber filosófico manteve-se, de modo geral, no decorrer da Idade Média. Poucas áreas separaram-se da filosofia, como a teologia, por exemplo, que se desenvolveu enquanto estudo específico a respeito de Deus. Durante a Idade Moderna, entretanto, o vasto campo da filosofia entrou num processo de redução, na medida em que a realidade a ser conhecida passou a ser dividida, fragmentada, despertando estudos especializados. Gradativamente, conquistaram autonomia muitas ciências particulares que se desprenderam do tronco comum do abrangente saber filosófico. Hoje, perguntamos: o que resta de característico para a filosofia que esteja fora do alcance das inúmeras ciências particulares? Na verdade, a filosofia continua tratando da mesma realidade abordada pelas ciências, mas enquanto estas se especializam e observam recortes do real, aquela jamais renuncia a considerar o seu objeto do ponto de vista da totalidade. A visão filosófica é uma visão de conjunto. A realidade que fora fragmentada pelo saber especializado de cada ciência particular é resgatada na sua integridade pela filosofia, a única capaz de fazer uma reflexão crítica e global sobre o saber e a prática do homem. Assim, em todos os setores do conhecimento e da ação, a filosofia 22 deve estar presente como reflexão crítica a respeito dos fundamentos desse conhecimento e desse agir humanos. 3.4.2.Natureza da reflexão filosófica Como dissemos acima, a reflexão filosófica apresenta, como objeto próprio, o mundo a conhecer e a ação a efetuar. Isto supõe um certo recuo, um relativo desligamento no que diz respeito à objetividade das coisas, como elas existem, como funcionam, como podemos modificá-las. Disso se ocupa a ciência. A atitude filosófica emerge de nossa admiração diante da realidade que suscita em nós o desejo de conhecer, mais e melhor, porque as coisas existem. Esta atitude revela a capacidade do espírito humano de poder alçar-se acima das determinações concretas da realidade -- os seres -- e perguntar pelo ser simplesmente. A partir do ser (conceito abrangente) podemos conhecer mais profundamente os seres, as coisas, porque a realidade não se dá a conhecer totalmente nem pelo senso comum, nem pela ciência. A reflexão filosófica é radical na medida em que procura alargar as fronteiras do saber. Ela conscientiza o fato de que, no conhecido, há sempre um desconhecido, que no dito, persiste um não-dito e que no sabido, existe um ignorado. Nosso conhecimento é sempre representativo, modelar e aproximativo 4 . Por isso, a consciência filosófica é permanentemente indagadora. Ela sabe não possuir a verdade, mas a disposição permanente de procurá-la. O trabalho filosófico é essencialmente teórico. Mas isso não significa que a filosofia esteja à margem do mundo e da ação dos homens como se fosse um saber puramente abstrato que possa ser dispensável, sem nenhum prejuízo para o indivíduo e a sociedade. A filosofia autêntica, muito longe de ignorar a realidade, reflete sobre tudo o que acontece tanto no mundo físico quanto no mundo da cultura. O cometimento filosófico visa transformar um acontecimento em experiência para compreendê-lo, extrair sua lição, a fim de chegar a uma visão sistemática e unificada do universo. 4 Dizemos que o conhecimento é representativo, modelar e aproximativo porque ele não é a própria realidade, mas apenas sua representação, ou seja, um modelo aproximado daquilo que os nossos sentidos captam das coisas e dos fenômenos. 23 A filosofia pensa a realidade presente. A presença da realidade estimula o pensamento a fazer filosofia. Por esse desejo de estar junto à realidade, a filosofia elucida, por meio de conceitos e idéias bem arquitetadas, a evidência ou transparência do real que experimentamos. Na experiência do dado imediato, sem visualizá-lo num esquema de medidas, o filósofo lê a realidade, elabora juízos de valor e, assim, dá sentido à experiência vivida. 3.4.3. Filosofar é preciso O homem é um ser de necessidades, não somente do ponto de vista biológico mas também do ponto de vista gnosiológico. Ele quer conhecer a natureza para transformá-la através do seu trabalho, e assim extrair dela os meios necessários à sua sobrevivência. Quer também conhecer a si mesmo para poder construir sua vida e dar sentido à sua própria existência. Por isso, o homem filosofa, isto é, questiona e reflete sobre tudo que o envolve direta e indiretamente. É verdade que qualquer um de nós poderá viver sem refletir de forma radical, profunda, mas se isso acontecer a nível da coletividade, o ser humano corre o risco de involuir, de perder a consciência de si mesmo e do mundo a sua volta. É o que, a nível ideológico, designamos por estado de alienação. Se não questionarmos a realidade, se não refletirmos criticamente sobre os valores que constituem nosso modo de vida e orientam nossas ações, outros, em outro lugar e situação, estarão pensando por nós. Nesse caso, estaremos submissos ao pensar crítico de outros que decidem e orientam o nosso viver. Filosofar é preciso. Como especulação, a filosofia procura captar ou apreender a realidade, buscando as causas primeiras das coisas; como prescrição ou norma de conduta, ela recomenda e prescreve valores e ideais; como crítica ou análise, examina os conceitos, julga as idéias e assinala as incoerências do nosso pensamento. 3.5. A IDEOLOGIA O homem nasce e se desenvolve num meio sócio-cultural, num mundo 24 de símbolos e valores que lhe influenciam fortemente no transcurso de toda a sua vida. Como ser racional, ele não se encontra no mesmo plano das coisas e dos animais: é um ser dotado de inteligência e liberdade que podem ser usadas, tanto para reprimir os desejos,quanto para realizá-los. Como ser social, o homem se faz na trama das relações com os outros homens, influenciando e sendo influenciado, atuando sobre o meio ambiente e produzindo não só o mundo dos bens materiais mas também as artes, os saberes, as tecnologias e até o próprio modo de ser do ser humano. Como animal político, ele se organiza em comunidade na qual as relações de sociabilidade são constituídas por relações de poder, reguladas por princípios de mando e obediência, convencionalmente pactuados. O fato de ser animal político, isto é, de viver numa polis (comunidade organizada), significa que tudo entre os homens deve ser decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência. Quanto mais a sociedade humana evolui, maior é a importância do discurso na ação política dos seus membros. Os mais loquazes são, certamente, os que têm maiores chances de governar o corpo político. Aos poucos, os que produzem idéias separam-se dos que produzem bens materiais, formando um grupo à parte. À medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que as idéias estão, em si e por si mesmas, separadas das coisas materiais. Ao conferir autonomia à consciência e às idéias, julgam que estas não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge assim a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade que elas têm de criar a realidade. 3.5.1. Origem Vários fatores podem ensejar o aparecimento de uma ideologia: impulsos irracionais, condicionados por interesses psicossociais; desejo de um grupo ou de uma classse social de manter um sistema de privilégios numa determinada estrutura sócio-política; processo de reação a uma situação dominante que se torna problemática, não sendo mais possível manter a unanimidade de visão vigente. Seja qual for sua origem, é impossível desvincular a ideologia do contexto sócio-político em que emerge e se propaga. Como pensamento situado 25 e datado, a ideologia é uma tomada de consciência da identidade dos membros de um grupo ou de uma classe social em ascensão, que explicita os seus interesses, valores, representações e aspirações comuns. Tal consciência dinamiza, motiva e compromete os indivíduos através de seus ideais, interesses, atitudes e ações. A ideologia sedimenta-se e consolida-se no momento em que se torna “senso comum”, quando todos pensam da mesma maneira, espontaneamente, sem se dar conta dos interesses particulares ocultos. Ao popularizar-se, tranforma-se num conjunto de idéias, valores e representações aceitas por todos os que se opõem à situação vigente e imaginam uma sociedade alternativa. Uma vez vitoriosa, consolidada e interiorizada na consciência, a ideologia que se apresentava como garantia de realização dos ideais de todos, passa a ser manipulada pelos indivíduos que, através do discurso, têm maior poder de persuasão. Ocultando interesses particulares, camuflando a realidade, distorcendo a verdade, o grupo que assume o controle do poder impõe sua “visão do mundo” aos demais. O que de fato são seus valores, seusinteresses, seu modo de pensar e agir, sua maneira de viver, é apresentado como bom para todos os integrantes da sociedade. Para isso, a classe dominante usa todos os mecanismos de persuasão, para inculcar nas outras seus valores e ideais. Desse modo, a família, as escolas, as universidades, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos e, principalmente, a mídia, vinculam-se de tal modo a determinada classe que acabam gerando e divulgando imagens, escritos, atividades, slogans, provérbios, histórias, propagandas, símbolos, costumes e modismos impregnados dos valores dessa classe. 3.5.2. Características Como teoria das idéias, o fenômeno da ideologia foi estudado por diversos autores: Destutt de Tracy (1754-1836), Augusto Comte (1798-1857), Émile Durkheim (1855-1917), Max Weber (1864-1920), Karl Mannheim (1893- 1947), entre outros. Mas foi Karl Marx (1818-1883) e F. Engels (1820-1895) que deram ao termo a conotação que tem hoje: um sistema de pensamento, uma forma de conceber o mundo em seus aspectos naturais, mas sobretudo o mundo social, as relações entre os homens e sua atividade. Essa “visão do mundo” não 26 pode ser compreendida senão como produto e reflexo de uma sociedade e de uma época e, particularmente, de grupos sociais, extratos e classes. São os interesses, a atividade e o papel histórico desses grupos ou classes sociais que a ideologia expressa, enquanto visão do mundo. Não os expressa, porém, como conhecimento verdadeiro, mas como racionalização, isto é, falsa consciência que deforma e obscurece o real. Assim, “na ideologia os homens e as suas relações aparecem em posição invertida como numa câmara escura.” (Marx e Engels, 1991, p. 37). Como podemos observar, o enfoque marxista atribui à ideologia um sentido negativo, quando a interpreta como instrumento de dominação de uma determinada classe que, no afã de afirmar sua hegemonia, propaga suas idéias e valores às demais classes sociais. A teoria marxista da ideologia representa uma ruptura radical com as concepções até então existentes quanto à natureza e função das idéias, imagens e símbolos na vida social e política. Implica nova atitude, cuja radicalidade se expressa como relativização do pensamento, ou seja, implica na afirmação de que todo pensamento tem raízes em situações e interesses sociais e, por conseguinte, sua unidade e coerência não podem ser compreendidas apenas em termos lógico-formais pela análise imanente de seu significado. Com efeito, as ideologias fixam, em um sistema de representação mental relativamente coerente, não somente uma relação real (as condições de existência), mas também uma relação imaginária (inversão das condições de existência). Em outras palavras, as formas de pensamento, idéias, crenças, valores, imagens e símbolos através dos quais os homens compreendem o mundo e nele se orientam nas suas relações sociais, possuem a coerência e a unidade necessárias a que suas relações se mantenham relativamente estáveis. Nesse sentido, é que Marx e Engels (1987) conceituam a ideologia como uma “opacidade” das relações sociais, vale dizer, como uma consciência dessas relações que é verdadeira na medida em que se acha inserida nas atividades práticas sociais, mas, ao mesmo tempo, necessariamente falsa, já que as sociedades existentes (tanto mais quanto maiores são os seus antagonismos internos) não podem revelar completamente seus mecanismos. Desse modo, o conceito de ideologia implica referência a uma “realidade” que somente de maneira imperfeita, parcial e deformada se deixa 27 reconstruir no pensamento. Eis porque Gramsci (1978) afirma que a ideologia é o cimento da estrutura social, o conjunto de idéias e valores que, ao tornar possíveis e regulares as relações sociais tal como elas se estruturam em determinada sociedade e determinada época, ao mesmo tempo tende a cristalizá- los nessa mesma forma, particularmente pela legitimação do poder político e da organização econômica existentes. 3.5.3. Ideologia e conhecimento A ideologia penetra todos os níveis da estrutura social, dando coesão às múltiplas relações sociais que os indivíduos mantêm entre si. Embora contendo elementos de conhecimento, as ideologias (sentido negativo) são representações deformadas da realidade social. Nesse caso, podemos chamar de ideológico todo pensamento, todo discurso que interpretando o mundo, o representa de maneira falsa, distorcida, cujos componentes sociais ocultam suas raízes, suas origens econômicas, políticas, sociais etc. Essa ocultação passa a ser encarada não em função de sua coerência ou incoerência, mas como essencial à sua condição enquanto produto de interesses e situações sociais. Se as lacunas deixadas pelo discurso ideológico fossem preenchidas, haveria o desmascaramento dos seus disfarces. Por isso, a ideologia é ilusória, não no sentido de ser “falsa”ou “errada”, mas porque mascara ou oculta a maneira pela qual a realidade social foi produzida. Vimos que as ideologias refletem os interesses das classes sociais na medida em que lutam para estabelecer sua hegenomia. A classe cujos fatores históricos e sociais favorecem o domínio sobre as demais, procurará universalizar seu sistema de pensamento em forma de arte, religião, moral, política, filosofia, ciência, tornando-se senso comum da sociedade. Isto acontece não só com os slogans mais comuns, mas também com as formulações mais abstratas e intelectualizadas. O modo pelo qual a classe dominante representa a si mesma e sua relação com os outros homens e com o mundo, tornar-se-á a maneira pela qual todos os membros dessa sociedade irão pensar. Assim, bem- estar, felicidade, ordem, progresso, bem da nação, são apenas slogans que escondem e mascaram a subjugação a que são submetidas as classes dominadas. A universalização das idéias, dos princípios, das regras de reciprocidade, é resultado de uma abstração na medida em que seus produtores - - os teóricos, os ideólogos, os intelectuais -- apresentam-nas como entidades autônomas, como algo separado e independente das condições materiais. Assim, 28 por exemplo, quando se diz que “todos são iguais perante a lei” ou que “o trabalho dignifica o homem”, estamos diante de ideais abstratos, longe de serem efetivados nas condições reais de existência social dos homens. Althusser (1989) refere-se aos “aparelhos ideológicos do Estado” (famílias, igrejas, sindicatos, instituições jurídicas, partidos políticos, imprensa etc) como reprodutores da ideologia da classe dominante. São eles que ...garantem, em grande parte, a reprodução mesma das relações de produção, sob o “escudo” do aparelho repressivo do Estado . É neles que se desenvolve o papel da ideologia dominante, a da classe dominante, que detém o poder do Estado (p. 74). Assim, enquanto exerce o poder de dominação, ou seja, a capacidade garantida pela força de mandar e fazer-se obedecer, o discurso ideológico exerce não o poder, mas uma hegemonia que é a qualidade de liderança intelectual e moral, capaz de gerar bases de consentimento ou de aceitação generalizada em forma de senso comum. Para os setores dominantes da sociedade, interessa que o senso comum impere em todos os segmentos da vida social e cultural, especialmente naqueles que se destinam às grandes massas, como é o caso da educação e dos meios de comunicação social. Tornado senso comum, o discurso ideológico constitui-se no meio eficaz de manipulação das informações, das condutas e dos atos políticos e sociais dos dirigentes e dos setores dominantes da sociedade. Porisso, o discurso ideológico mostra uma realidade invertida, isto é, toma o determinado pelo determinante, o efeito pela causa e assim sucessivamente. Por exemplo, quando as elites dominantes ocupam os meios de comunicação social para falar das formas de combate à violência na sociedade brasileira, não fazem referência ao modelo econômico excludente e concentrador de riquezas, não mostram a necessidade da reforma agrária, da distribuição da renda, da geração de novos empregos, da democratização da educação, da saúde, da moradia etc, mas exigem das autoridades tão somente a ampliação e modernização do aparelho repressivo do Estado. É típico da ideologia dominante querer legitimar o status quo por meio de um discurso homogêneo, mistificador, subliminarmente preconceituoso e coerente em sua aparência. Nas palavras de Marilena Chauí (1987), 29 ...ela [a ideologia] é coerente não apesar das lacunas mas por causa ou graças às lacunas. Ela é coerente como ciência, como moral, como tecnologia, como filosofia, como religião, como pedagogia, como explicação e como ação apenas porque não diz tudo e não pode dizer tudo. Se dissesse tudo, se quebraria por dentro (1987, p. 115). Isto é, daria lugar fatalmente a outra que, na perspectiva do processo dialético de formação das idéias, se apresenta como antítese 5 . Tudo é articulado e apresentado como resultado de uma “ordem natural” ou “ordem lógica” para promover o consenso e justificar as desigualdades sociais, a exploração entre as classes e os privilégios das elites. A visão de mundo, o amor, o sexo, a moda, o progresso, o dinheiro, a família, a religião, a educação, a moral, os preconceitos, a propaganda comercial, o noticiário jornalístico, enfim, tudo está impregnado de conotação ideológica. Por mais que façamos para nos desvencilhar, ela se faz presente em nossa maneira de pensar, sentir, valorizar, fazer, tanto em forma de senso comum quanto na maneira de fazer filosofia, religião, arte ou ciência. De um modo geral, as ideologias são fenômenos vitais de dinamismo envolventes e contagiosos. São dotadas de uma “mística” especial que lhes confere um forte poder de penetração em todas as instâncias de modo muitas vezes irresistível. Seus slogans, seus apelos, suas expressões típicas, seus critérios de avaliação e julgamento, chegam a marcar profundamente, mesmo aqueles que estão longe de aderir voluntariamente a seus princípios doutrinais. Muitas pessoas vivem praticamente dentro dos limites de determinadas ideologias sem se darem conta da alienação de suas consciências. Isto acontece não só no interior das ideologias que legitimam a exploração de classe, mas também daquelas que pretendem mudá-la. A recusa da alienação exige discernimento e consciência crítica. Discernimento para julgar com clareza e sensatez a natureza dos discursos ideológicos (aqueles que mascaram a realidade) e não-ideológicos (aqueles que des-velam o real). Consciência crítica para decodificar as mensagens, selecioná- las, evitando os irracionalismos de perversas conseqüências. Elevadas à categoria de mitos, as ideologias tornam-se perigosas porque são capazes de arrastar 5 As idéias, como de resto todo o conhecimento, são formadas a partir de um processo dialético que consiste na formulação de uma tese (afirmação), de uma antítese (negação parcial ou total da tese) e de uma síntese (negação da negação ou conciliação de alguns aspectos da tese e da antítese). 30 multidões a holocaustos, voluntária ou forçosamente. A consciência crítica possibilita a interação entre o pensar e o agir do sujeito, isto é, entre teoria e prática. É ela que suscita a problematização da realidade e nos torna capazes de entender e participar do processo de construção do conhecimento expresso em suas diversas modalidades. Ter consciência crítica não significa ser destituído de ideologia, visto que todo discurso é ideológico por natureza. Significa uma disposição constante à busca da verdade, uma atitude firme e segura de autocrítica e revisão das idéias e dos valores em que acreditamos. Comumente, é ressaltado o aspecto negativo da ideologia. Mas precisamos entender que ela pode conter também diversos ingredientes positivos. Além da sua função de dar coesão aos grupos sociais, ela poderá ter uma função didático-pedagógica de suscitar a conscientização dos indivíduos quando chamados a produzir um contra-discurso. Nesse caso, a ideologia poderá ser um instrumento de desalienação do homem que, pelo seu poder de negatividade, tornar-se-ia capaz de se dar conta de sua situação e de pôr à lume as contradições dos agentes ideológicos que lhe oprimem. Como bem acentua Lucien Goldmann (1979), o importante não é deixar de ter ideologia, ser neutro (pois isto é impossível) mas sim dar-se conta dos próprios pressupostos ideológicos. Para concluir, dizemos com Vera Werneck (1992): A ideologia não pode ser apenas considerada o pensamento do “outro”. Não seria possível um espaço totalmente não-ideológico. (p.115). O ideal não é a procura de uma pretensa neutralidade, mas a aquisição de uma postura aberta, se não para a verdade, ao menos para a aceitação do outro com vistas a uma sociedade democrática, onde haja lugar para as divergências que não firam os princípios de respeito e reciprocidade. 3.6. A CIÊNCIA E A TÉCNICA O homem viveu muitos milênios cultivando e transmitindo às novas gerações o conhecimento que o mito e o senso comum lhe sugeriam. Após a 31 descoberta da racionalidade, por volta do século VI a. C., passou a acreditar que um conhecimento mais seguro deveria ser avalisado pela razão lógica em sua versão filosófica do saber. Passaram-se muitos séculos para que o espírito humano percebesse a insuficiência das abstrações filosóficas na explicação de toda a realidade. A filosofia havia cumprido o seu papel no processo de alargamento das fronteiras da cultura, mas tornara-se incapaz de dar conta das particularidades que a inteligência agora fazia questão de explicar. Até então, era o filósofo quem se ocupava de explicar a realidade a partir de intuições e analogias sob o rigor do método lógico-dedutivo 6 . Não havia separação entre filosofia e ciência e, por isso, muitos filósofos, como Aristóteles, Arquimedes, S. Alberto Magno foram também eminentes cientistas. No entanto, as transformações que assinalaram a transição da sociedade agrária feudal para a sociedade comercial burguesa em fins da Idade Média propiciaram mudanças profundas na maneira de ver a realidade, no modo de pensar e agir sobre o mundo, na forma do homem se relacionar com a natureza. O alargamento das fronteiras geográficas suscitou também o alargamento das fronteiras do saber. Já não bastava conhecer empírica e abstratamente o mundo, a natureza, os seres, à maneira do senso comum e da filosofia, mas tornou-se imprescindível a demonstração do conhecimento pela via do método indutivo-experimental. 7 É aqui que a ciência se desgarra da filosofia para se ocupar das particularidades que esta não é capaz de desvendar. Concomitante ao progresso da ciência, a partir do século XVII, dá-se também o avanço da técnica e, desde então, uma se torna subsidiária da outra. 3.6.1. O conceito de ciência A palavra ciência deriva do verbo latino scire que significa conhecer, saber. Se quisermos compreendê-la por meio de uma definição, podemos afirmar 6 O método lógico-dedutivo foi criado por Aristóteles (384-322 a.C.) e consagrado pelos filósofos medievais.Sua formulação é o silogismo, que consiste em partir de uma premissa maior (universal) que se tem por verdadeira (por exemplo: Todo homem é mortal), seguida de uma premissa menor (p. ex.: Sócrates é homem), para se obter uma conclusão particular (p. ex.:Logo, Sócrates é mortal). 7 Esse método é o inverso da dedução lógica. Consiste em partir da observação de fenômenos específicos (o ferro, o cobre, o bronze ... são bons condutores de eletricidade) e de uma constatação (o ferro, o cobre, o bronze... são metais), para se chegar à generalização (logo, o metal é bom condutor de eletricidade). 32 que, em sentido amplo, ciência é um conjunto de conhecimentos sistematicamente organizados relativos a um determinado objeto e, em sentido estrito, ciência é um conhecimento objetivo, obtido através de processos experimentais. A primeira acepção refere-se ao domínio sistemático que podemos possuir dos conhecimentos relativos a determinado ramo do saber sem que haja necessidade de apresentar provas objetivas, por meio de processos experimentais ou formais. É o caso, por exemplo, dos conhecimentos concernentes às ciências hermenêuticas (humanas ou sociais), cujas afirmações incidem num grau de subjetividade muito elevado. Ciência assim entendida, não designa apenas um acervo de conhecimentos sobre um objeto, mas uma estrutura mental na qual o sujeito integra ordenadamente esses conhecimentos e a qual lhe confere um poder criador para avançar e dilatar as fronteiras do saber. A segunda acepção, por sua vez, corresponde àquele conhecimento que qualquer estudioso pode chegar pela aplicação dos mesmos métodos de investigação, não implicando contradição nos resultados. Nesse caso, a compreensão do termo ciência nos lembra laboratório, instrumental de pesquisa, trabalho programado e aplicação do método de indução que, partindo da observação e da experiência controlada, chega a formular leis sobre a regularidade dos fenômenos, para as assumir em teorias científicas caracterizadas por um grau mais ou menos elevado de generalização que nos permite predizer, com certa segurança, eventos futuros. Esse rigor metodológico é típico das ciências naturais ou empírico-formais (física, química, biologia, geologia, astronomia) que, auxiliadas pelas ciências formais (matemáticas e lógica), alcançam um elevado índice de objetividade nos seus resultados. Muito mais que as ciências hermenêuticas, as ciências formais e empírico-formais exprimem o ritmo de autonomia da razão no processamento de dados, porque seu objeto é o vasto campo da materialidade, no qual o sujeito (pesquisador) se mantém a uma certa distância dos fenômenos observados. Contudo, em nenhuma delas é possível obter conhecimentos absolutamente objetivos (Japiassu, 1975), já que o homem vive permanentemente na sensação, ou melhor, na experiência sensível da realidade. A sensação não é um ponto de chegada, mas um caminho para as coisas, ou seja, laboratório de onde partem todos os endereços de investigação e pesquisa. 33 3. 6. 2. O método científico A realidade científica é uma realidade construída. Um fato só tem significado quando transposto de maneira que possa oferecer-nos características objetivas mensuráveis. A construção científica exige uma técnica ou um modo de proceder pelo qual o cientista adquire, de maneira segura, certos tipos de conhecimento. É uma sucessão de passos ou operações que vão, desde a observação, até a incorporação do novo conhecimento no patrimônio científico da humanidade. Segundo concepções tradicionais, esses passos ou operações podem ser escalonados da seguinte maneira: a) Observação rigorosa. Observar é aplicar a atenção a um fenômeno, captá-lo tal como se manifesta. Situa-se a observação particularmente na fase inicial da pesquisa, mas perdura durante todo o processo, alternando-se com a experimentaçxão, pois é necessário observar os resultados das manipulações das variáveis após os exprimentos. A observação pode ser natural e espontânea ou dirigida e intencional. E as etapas posteriores da pesquisa ficarão prejudicadas se não partirem da observação correta e adequada ou, tanto quanto possível, completa na enumeração das circunstâncias antecedentes ou variáveis. b) Formulação de hipóteses. Toda inverstigação nasce de algum problema teórico/prático que se observa. Não basta observar. O pesquisador deve ponderar fatos e relacioná-los; deve refletir à procura de uma explicação provável, isto é, deve formular uma hipótese de solução plausível e verificável. A hipótese é o enunciado da solução estabelecida provisoriamente como explicativa de um problema qualquer. Ela representa a opinião do pesquisador à procura de evidências posteriores que a sustentem e comprovem . Sua função é fixar uma diretriz capaz de impor ordem e finalidade a todo o processo da experimentação. c) Submissão das hipóteses a testes críticos – experimentação. As hipóteses devem ser postas à prova, isto é, submetidas a testes de verificação. Isto é feito por meio de experimentos nos quais se reproduzem os fenômenos sob rigoroso controle das variáveis, com o objetivo de identificar os fatores antecedentes responsáveis por determinado evento subseqüente. 34 Na formulação das hipóteses, a reflexão antecipa-se às evidências demonstradas. Na experimentação, falam os fatos e não o gênio do pesquisador. Noutras palavras: na hipótese, as idéias prejulgam os fatos; na experimentação, os fatos é que julgam a adequação ou não das idéias, isto é, das hipóteses. d) Comprovação dos resultados obtidos. Certificar-se de que os resultados obtidos durante a investigação estão corretos é um pré-requisito para a constituição de uma ciência. Isto é feito por meio da investigação das relações causais do fato observado com outros semelhantes ou diferentes. Se for confirmada a regularidade do fenômeno ou evento nas mesmas condições, pode se formular a lei ou teoria e generalizá-la. Este procedimento no encaminhamento da pesquisa, não só permite fazer reajustes e eventuais correções, precisando o grau em que pode, agora, ser confirmado ou não o fenômeno, mas também amplia-o com novas investigações. e) Comunicação dos resultados – passagem da atividade para uma linguagem. A partir do que foi verificado em determinado experimento singular, o pesquisador elabora uma teoria geral sobre o conjunto dos fatos investigados, isto é, formula um conjunto sistemáticos de conceitos que explicam e interpretam as relações de causa e efeito, as relações de dependência e as diferenças entre todos os objetos que constituem o campo investigado. A teoria científica permite que uma multiplicidade de fatos aparentemente diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis e, vice-versa, permite compreender também por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. Contudo, estas etapas não podem ser seguidas à risca por todos os cientistas visto que, dependendo do objetivo da pesquisa, alguns desses procedimentos são inteiramente ineficazes. Para o cientista social, por exemplo, a técnica da entrevista é muito mais valiosa do que para o astrônomo; para o biólogo, a técnica da observação microscópica é eficaz, mas não serve ao psicólogo. Por isso é que o filósofo Karl Popper (1974) e seus discípulos fizeram vigorosas críticas à noção tradicional indutivista do método científico de inspiração baconiana 8 . Segundo Popper, quem observa, observa alguma
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