Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Filosofia Olá, estudante! Muita gente pensa que o filósofo é um intelectual que se ocupa apenas de questões abstratas, e que a Filosofia, por consequência, não passa de um conjunto de teorias sem qualquer relação com a vida prática. Mas a Filosofia, na verdade, nasce da não acomodação do homem no mundo e da tentativa de entender o porquê das coisas. Filosofar é refletir sobre tudo que nos cerca. A filosofia nos tira da zona de conforto, pois questiona o modo de ser das pessoas e das coisas. Ela debate as práticas política, científica, técnica, ética, econômica, cultural e artística. Todos nós, portanto, podemos e devemos exercitar a reflexão filosófica, se quisermos ir além das opiniões simplistas que nos são transmitidas a todo tempo. A Filosofia é uma atividade crítica e questionadora que procura compreender a realidade de forma abrangente, a fim de possibilitar a autonomia do homem, fazendo-o desenvolver sua capacidade de pensar os problemas do cotidiano, sem se deixar levar como massa de manobra. Filosofar é, em última análise, dar ao homem as condições teóricas e práticas imprescindíveis à elaboração de sua própria história. Esperamos, por isso, que nossa Disciplina possa despertar em você o real interesse pelo pensar filosófico. Objetivos Ao final desta disciplina, você deverá ser capaz de: • Identificar as características básicas que tornam o homem um ser de cultura. • Distinguir os elementos da constituição lógica do raciocínio. • Descrever os sistemas clássicos da filosofia e sua relação com o mundo concreto. • E laborar uma reflexão crítica acerca do conhecimento, da ética e das novas tecnologias que se interpenetram e interagem no mundo globalizado. Conteúdo Programático Esta disciplina está organizada de acordo com as seguintes unidades: • Unidade 1 – Unidade 1 – Condição Humana • Unidade 2 – A Propedêutica Filosófica • Unidade 3 – Elaboração do Pensamento Filosófico • Unidade 4 – Filosofia, Ciência e Questões Epistemológicas Autoria Professora Regina Yara Martinelli Doutorado, Mestrado e Graduação (Bacharelado e Licenciatura) em Filosofia (UERJ). Lato sensu em Literatura Brasileira (UERJ). Bacharelado em Comunicação Social – Jornalismo (FACHA). Revisão e atualização Ronaldo da Costa Formiga Doutorado em Comunicação, Cultura e Sistemas de Pensamento (UFRJ). Mestrado em Antropologia (UFRJ). Graduação em Ciências Sociais (PUC/RJ). A condição humana A reflexão sobre a própria existência desperta no homem uma consciência crítica a respeito de si mesmo, do outro e do mundo. Por isso, nesta unidade, vamos apresentar uma síntese da constituição das sociedades humanas, destacando aspectos antropológicos e filosóficos de especial relevância no percurso que segue da pré-história até os dias de hoje. Objetivo Ao final desta unidade, você deverá ser capaz de: • Identificar as características básicas que tornam o homem um ser de cultura. Conteúdo Programático Esta unidade está organizada de acordo com os seguintes temas: • Tema 1 - Natureza e Cultura • Tema 2 - Relações entre técnica e sociedade • Tema 3 - O homem: uma perspectiva filosófica O início do processo de humanização A Antiguidade Clássica e os primeiros pensadores A Época Medieval e o poder da fé A Idade Moderna: o novo conhecimento e as Grandes Navegações A Contemporaneidade Já é possível imaginar nosso limite? Tema 1 Natureza e Cultura Por que se considera que o homem é um ser cultural? Uma das maiores questões que afligem a humanidade é a busca de sua origem, dos princípios fundadores da concepção propriamente humana. Por mais que se investigue, as dúvidas sempre surgem nesse âmbito, e as discussões resvalam em problemas filosóficos, religiosos e científicos. Assim, a questão “O que é o homem?” perpassa a história do conhecimento, da Antiguidade aos dias atuais. E muitos, a sua maneira, procuram desenvolver ideias capazes de justificar a complexidade da existência e dos procedimentos humanos. Além disso, inúmeras diferenças entre os seres vivos podem ser percebidas, especialmente entre homens e animais. Por exemplo, a adaptação do homem ao espaço físico e temporal difere bastante da adequação dos animais à natureza, e nem sempre o comportamento humano pode ser comparado às ações dos animais, até pela previsibilidade comportamental característica das espécies comumente chamadas irracionais. Saiba Mais A sociabilidade como tal não é característica exclusiva do homem, nem seu único privilégio. [...] Mas no caso do homem encontramos não apenas, como entre animais, uma sociedade de ação, mas também uma sociedade de pensamento e sentimento. [...] Como os animais, o homem se submete às regras da sociedade, mas, além disso, participa ativamente da produção e da mudança das formas da vida social. Nos estágios rudimentares da sociedade humana, essa atividade é ainda escassamente perceptível, parecendo reduzida ao mínimo. Mas quanto mais nos adiantamos, tanto mais explícita e significativa se torna esta característica. Este lento desenvolvimento pode ser acompanhado em quase todas as formas da cultura humana. (CASSIRER, 1977, p. 349) Os atos dos animais são instintivos e determinados biologicamente; assim, eles possuem características rígidas, próprias de cada espécie, e não costumam sofrer mudanças significativas, visto que são geneticamente programados para seguir as leis naturais, integrando-se harmonicamente a seu espaço físico. Já o homem, desde os primeiros momentos de vida, transforma e adapta a natureza de acordo com suas necessidades. Saiba Mais Enquanto se opõe à natura (natureza), a cultura possui um duplo sentido antropológico: a) é o conjunto das representações e dos comportamentos adquiridos pelo homem enquanto ser social. [...] b) é o processo dinâmico de socialização pelo qual todos esses fatos de cultura se comunicam e se impõem, em determinada sociedade [...]. Nesse sentido, a cultura praticamente se identifica com o modo de vida de uma população determinada, vale dizer, com todo esse conjunto de regras e comportamentos pelos quais as instituições adquirem um significado para os agentes sociais e através dos quais elas encarnam em condutas mais ou menos codificadas. (JAPIASSÚ & MARCONDES, 1991, p. 63) A espécie humana, não sendo, portanto, biologicamente determinada para agir no mundo, conta com a linguagem simbólica para a produção de cultura, transcendendo, assim, o estado de natureza. Através do símbolo, o homem cria a realidade em vez de apenas adaptar-se a ela. Observamos, então, que somente o homem é capaz de agir e modificar conscientemente a realidade, pois seu contato com o mundo está vinculado à cultura, a qual resulta especificamente das transformações realizadas por sua capacidade de criar e tornar comuns as coisas a seu redor. Por exemplo: cansado, um homem primitivo senta- se em uma pedra; mesmo sem sofrer transformação em sua forma, aquela pedra, ao lhe servir de descanso, adquire um sentido utilitário e passa a ser um objeto cultural. Por outro lado, a expressão “o homem é um ser cultural”, constantemente utilizada, confunde mais do que explica, pois não é raro que se vincule o conceito de cultura à instrução, à formação intelectual, à erudição, privilégios de poucos. Porém, quando tratamos do termo em seu sentido antropológico, vemos que cultura é toda transformação exercida pelo homem sobre a natureza. Verificamos assim que, independentemente do espaço geográfico em que está inserido, todo homem é um ser cultural – o que significa que não existe uma cultura superior e outra inferior, mas culturas diversificadas, e devemos entender que ser diferente não é ser melhor nem pior, é simplesmente ser diferente. Ou seja, a cultura engloba oque pensamos, fazemos e temos enquanto membros de um grupo social. Nesse sentido, o termo cultura é aplicável tanto a uma civilização tecnicamente evoluída [...] quanto às formas de vida social mais rústicas [...]. Todas as sociedades humanas, da pré-história aos dias atuais, possuem uma cultura. E cada cultura tem seus próprios valores e sua própria verdade. Podemos acrescentar, por fim, e numa abordagem mais filosófica, que cultura é a resposta oferecida pelos grupos humanos ao desafio da existência. (COTRIM, 1999, p. 15) Estamos, portanto, combatendo a perspectiva etnocêntrica que afirma que um determinado grupo é o centro do universo. Ao se instalar no mundo, o homem consegue agir e modificar conscientemente a realidade que o cerca, vinculando esses procedimentos ao desenvolvimento de seu psiquismo, a sua capacidade de abstração. A necessidade de viver em contato com seus semelhantes, interagindo com eles, possibilita a criação de símbolos, de palavras, da linguagem, enfim, permite o afastamento do concreto e o “domínio” do tempo (lembrar-se do passado, pensar o presente, projetar o futuro). A linguagem é um sistema simbólico e caracteriza o universo humano por sua capacidade de distanciar-se do “real vivido” e produzir abstrações. Quer dizer, o homem representa, por meio de palavras, ideias e objetos ausentes. Por exemplo, podemos falar de um elefante sem que ele esteja presente, pois todos os membros de um grupo já sabem a que se refere a palavra elefante. A linguagem se manifesta, assim, como fenômeno coletivo, capaz de expressar tudo aquilo que diz respeito à civilização, dando ao homem a possibilidade de expor discursivamente seu pensamento, de ordenar, refletir, divulgar e transmitir os costumes e tradições da sociedade em que vive. A linguagem é, portanto, a capacidade que permite ao homem a comunicação por meio de um código, o qual é reflexo de seu modo de ser e de agir e, consequentemente, de sua própria humanização. Como ser de cultura, o homem cria formas de representação que se disseminam através do tempo e do espaço, levando ao desenvolvimento dinâmico e contínuo de seu modo de “estar no mundo”. Para isso, a plena adaptação ao mundo humano requer o entendimento dos símbolos linguísticos. O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador [emissor], que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado aos outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão da realidade. Esta ação do homem sobre a natureza, modificando o ambiente, seu espaço físico, por interesses próprios, é denominada trabalho, conjunto de atos humanos realizados de modo consciente e intencional. Nesse sentido, o trabalho é considerado de modo positivo, visto que, ao modificar a natureza, o ser humano trabalha e se realiza, e essa atividade implica a satisfação de suas necessidades primeiras: alimentação, moradia, defesa, entre outras. Quando pensamos sobre o papel do trabalho em seu aspecto individual, verificamos que ele permite ao homem expandir suas energias, desenvolver sua criatividade e realizar suas potencialidades. Pelo trabalho, o homem é capaz de moldar a natureza e, ao mesmo tempo, alterar a si próprio. Ou seja, trabalhando, o homem pode modificar o mundo e a si mesmo, produzir cultura e se autoproduzir. Em seu aspecto social, isto é, como esforço conjunto dos membros de uma comunidade, o trabalho tem como objetivo último a manutenção da vida e o desenvolvimento da sociedade. (COTRIM, 1999, p. 28) O animal é movido por instintos enquanto o homem, por não possuir um número de instintos fixos e inatos suficiente para garantir sua sobrevivência, depende da cultura para sobreviver. Os homens, de fato, começaram a produzir cultura quando fizeram, da pedra bruta, facas e pontas de lança para cortar, ferir e matar; quando fabricaram utensílios de uso cotidiano a partir do barro; quando aprenderam a usar como vestimenta as peles dos animais abatidos; quando começaram a plantar, a colher e a armazenar mantimentos; quando, mais tarde, descobriram os métodos necessários à construção de casas sólidas e confortáveis; e assim por diante. Vemos, pois, que existe na concepção do existir humano uma relação profunda e indissociável entre cultura, linguagem e trabalho, já que estes elementos fundamentais moldam a vida do homem desde o nascimento. Ao contrário dos animais, que se adaptam perfeitamente à natureza, nós – não só pela necessidade de sobrevivência, mas também pelo desejo de conforto – somos capazes de transformar o meio em que vivemos, a partir de nosso próprio esforço e ousadia. A modificação da natureza por seu agir leva o homem a desenvolver técnicas e instrumentos, transmitidos e aperfeiçoados de geração em geração, possibilitando, sempre, a instauração de novas tecnologias. Tema 2 Relações entre técnica e sociedade De que modo as transformações da técnica contribuem para o desenvolvimento humano? Assim, a questão “O que é o homem?” perpassa a história do conhecimento, da Antiguidade aos dias atuais. E muitos, a sua maneira, procuram desenvolver ideias capazes de justificar a complexidade da existência e dos procedimentos humanos. No alvorecer da humanidade, o trabalho era coletivo, e todos participavam dos mesmos afazeres; porém, as mudanças resultantes do desenvolvimento das sociedades alteraram esta visão positiva, de participação solidária, desvirtuando sua função inicial. Para as classes dominantes daquele tempo, tudo que se relacionasse com a realidade prática seria indigno de seus interesses, devendo ser executado por aqueles desprovidos de habilidades intelectuais. Assim, enquanto a elite se dedicava a questões mais “nobres” – tais como política, filosofia, ciência –, o fazer técnico (a techné) vinculava-se a classes sociais menos favorecidas. Na Grécia Clássica, por exemplo, os cidadãos participavam ativamente da vida pública, das guerras e das decisões do governo, mas, de modo geral, desconsideravam o trabalho manual ou material dos artesãos, marceneiros e outros. Numa sociedade como a grega, não caberia aos atenienses – aqueles que tinham direito à cidadania – o desenvolvimento de técnicas “braçais”, visto que apenas o trabalho intelectual daria plenitude à vida humana. Esta visão preconceituosa leva o homem a “separar” o pensamento da ação, valorizando a intelectualidade em detrimento do trabalho braçal; isto é, o trabalho intelectual, ou mental, seria superior ao trabalho manual, ou material – como se fosse possível essa distinção entre o pensar e o agir. Contudo, devemos enfatizar que é o processo de aprimoramento das técnicas na criação de ferramentas de trabalho que vai possibilitar a intervenção na natureza, quando o homem sentir a necessidade de modificar o meio ambiente. Assim, em vez de usar as mãos, o ser humano recorre a instrumentos por ele criados e que facilitem sua tarefa de agir sobre o mundo. Estes instrumentos, cada vez mais aperfeiçoados, serão transmitidos de geração em geração, proporcionando a criação de novas fontes de desenvolvimento. Considerando as transformações históricas, podemos observar que, ao fim da época medieval, a relação entre trabalho e técnica há de se modificar, e as mudanças daí decorrentes, como a ascensão da classe burguesa, vão determinar novos rumos para a vida em sociedade. A partir de então, aliada às ciências emergentes, a técnica passa a ser valorizada e incorporada ao progresso. Cabe destacar que a utilização da técnica no início dos tempos modernos (a partir do século XVII), também alterou a concepção de ciência.Entretanto, as grandes transformações ocasionadas pela união da ciência com a técnica passam a assumir contornos dúbios, já que, ao mesmo tempo em que se desenvolve, a ciência, quando mal aplicada, pode provocar sérios danos aos recursos naturais e ao próprio homem, causando um desequilíbrio ecológico, que pode significar o fim da própria civilização. Outro ponto de considerável relevância, além do domínio da natureza (para o bem ou para o mal), é a ascendência que poucos homens passam a exercer sobre muitos. O filósofo Jean-Jacques Rousseau já denunciava, no século XVIII, os problemas resultantes do avanço técnico, o qual, segundo ele, aumentaria a desigualdade entre as classes. Rousseau, apesar de filósofo iluminista, critica a noção de progresso como potencial instrumento de degeneração da natureza humana, mostrando-se preocupado com a vida moral na sociedade. A partir do desenvolvimento e da consolidação das indústrias da Modernidade, a condição de vida dos trabalhadores foi visivelmente alterada. Enquanto os artesãos, por exemplo, antes dominavam todas as etapas de seu trabalho, posteriormente, com o advento das máquinas, este mesmo artesão não tinha como competir com os produtos industrializados, transformando-se, então, em operário da fábrica, sem condições de domínio sobre seu fazer, realizando mecanicamente suas funções, de modo alienado. O processo de alienação afeta milhões de trabalhadores nas sociedades capitalistas modernas, onde a produção econômica transformou-se no objetivo do homem, em vez de o homem ser objetivo da produção. Esse processo iniciou-se no século XIX, quando o trabalho na maioria das indústrias começou a tornar-se cada vez mais rotineiro, automatizado e especializado ao ser dividido em múltiplas operações. Visava-se com isso economizar tempo e aumentar a produtividade. [...] tudo transcorre sem que o operário tenha controle sobre o produto final do seu trabalho, nem governo sobre a finalidade do que fabrica. Sempre repetindo as mesmas operações mecânicas, o trabalhador produz bens estranhos à sua pessoa, aos seus desejos e às suas necessidades. (COTRIM, 1999, p. 30) O filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin, é um exemplo clássico da crítica à condição do operário no início da mecanização industrial, com o advento da linha de montagem. Com efeito, o processo de alienação provoca uma ruptura entre o trabalhador e o bem produzido, separando homem e objeto; porque, na maioria das vezes, o operário perde sua autonomia e não tem condições de adquirir aquilo que ele próprio produz. O filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) criticava as condições alienantes em que viviam os operários. Por não poder usufruir daquilo que produzem, estes trabalhadores são “despossuídos” do fruto de seu próprio trabalho. Marx associa a alienação a uma “despossessão”, sustentando a inexistência de acesso do operário ao bem produzido. Em nossos dias, o conceito de alienação aplica-se a vários aspectos da realidade, interferindo tanto na política quanto na vida social, o que leva o homem a perder sua autonomia e a consciência crítica de seu fazer. Podemos também perceber a alienação quando o indivíduo é compelido a adquirir produtos que, muitas vezes, não passam da mera criação de “necessidades” inúteis por parte das grandes corporações que alicerçam o capitalismo. A falta de acesso aos bens produzidos, a precariedade dos serviços públicos e a dificuldade de emprego provocam o surgimento de um número cada vez maior de excluídos, incapazes de aproveitar os benefícios da cidadania. Estes fatores perpetuam as diferenças entre as classes, descambando para o etnocentrismo (a sociedade dominante como modelo único) e para a xenofobia (aversão ao estrangeiro). Não podemos esquecer que essas ações, ou normas sociais, são sustentadas pela ideologia dominante. De fato, a ideologia, como “ciência das ideias”, naturaliza a divisão de classes das sociedades, fazendo com que exista uma aparente harmonia entre os membros do grupo, mascarando, porém as diferenças e as desigualdades sociais. Assim, o indivíduo passa a agir de acordo com as normas estabelecidas e, sem a devida percepção, assimila essas regras passivamente, sem contradizê-las. A ideologia apresenta, então, um mundo idealizado, onde a realidade – mesmo com a divisão entre ricos e pobres – é naturalizada. Entretanto, embora o processo de divisão e de exploração do trabalho possa provocar a alienação do indivíduo, é importante destacarmos que o ser humano é capaz de transpor os obstáculos com os quais se depara, por força de sua inata capacidade de pensar e de agir; e é justamente este vínculo indissociável do pensamento e da ação que possibilita o entendimento e a reflexão sobre a realidade e sobre o próprio conceito de homem. Tema 3 O homem: uma perspectiva filosófica Por que o questionamento filosófico se afasta das narrativas míticas? Dependendo de cada sociedade em seu processo civilizatório, a compreensão sobre a existência do ser humano assume aspectos diversos e algumas vezes contraditórios, já que, além da influência espontânea do grupo, outros fatores, tais como a educação e a herança cultural, interferem na formação dos indivíduos. Nos primórdios da civilização, os seres humanos se inquietavam com tudo o que acontecia a sua volta, e os fenômenos da natureza eram grandes mistérios. O dia, a noite, a chuva, a tempestade, o vento, o frio, a seca, todas estas manifestações naturais causavam um medo além da compreensão humana. Foi por isso que, na tentativa de entender estes fenômenos, os homens acabaram por vinculá-los às divindades. Engendraram, então, histórias fantásticas – as narrativas míticas – a respeito do que lhes causava estranhamento. Na Antiguidade grega, na época arcaica, por exemplo, especialmente quando a sociedade ainda era ágrafa (não se expressava através de sinais gráficos), os homens estabeleceram diversos cultos aos deuses, reverenciando-os sem qualquer questionamento ou crítica, pois os fenômenos da natureza, comandados pela vontade divina, independeriam dos indivíduos do grupo, simples e impotentes mortais. Aos poucos, porém, as explicações míticas sobre a origem do universo, relacionadas à cosmogonia – gênese do cosmos – passam a ser insatisfatórias. Daí o surgimento da cosmologia – descrição racional do cosmos –, pela qual se procura esclarecer o princípio originário (a arché) do universo. Desse modo, diferentemente das narrativas míticas, de aceitação passiva, os primeiros pensadores gregos buscam a compreensão do princípio fundante do universo, por intermédio de investigações cosmológicas. Para eles, tal origem resultaria dos quatro elementos da natureza – água, terra, fogo e ar –, que, juntos ou isolados, teriam dado início à formação do mundo. Determinadas condições históricas, como, por exemplo, as viagens marítimas, a invenção do calendário, a invenção da moeda, o surgimento da vida urbana, a invenção da escrita alfabética, além da invenção da política possibilitaram o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI a.c. Nesse contexto, surgem os pensadores conhecidos como Filósofos da Natureza, ou pré-socráticos. Poucos textos destes pensadores chegaram até nossos dias, mas seus fragmentos (pequenos trechos do que escreveram) servem sempre de motivo para reflexão. Conheça alguns desses fragmentos, clicando no nome de cada pensador. Tales de Mileto Anaxímenes Xenófanes Heráclito Para Tales de Mileto (640-548 a.C.), a água é o elemento primordial de todas as coisas. Anaxímenes (588-524 a.C.) afirma que o princípio de tudo o que existe é o ar. Em Xenófanes (séc. IV a.C.), o elemento originante é a terra. Heráclito (séc. VI-V a.C.) diz que o fogo é o gerador do processo cósmico; para ele tudo está num movimento infinito,em constante devir (ninguém se banha duas vezes no mesmo rio). Pitágoras Parmênides Empédocles Leucipo e Demócrito Pitágoras assegura que o número é a arché que possibilita a harmonia de todas as coisas. Parmênides, ‘antagonista de Heráclito’, dizia que a mudança é ilusão, pois a essência seria imutável. Já em Empédocles, os quatro elementos compõem a formação de tudo. Por fim, Leucipo e Demócrito sustentam que o universo é composto por átomos. Gradativamente, então, a reflexão filosófica se volta, de modo mais específico, para a condição humana, analisando antropologicamente o papel do homem no mundo. Pouco a pouco, como já destacamos no início desta aula, a indagação sobre “O que é o homem?” passa a constituir a base do conhecimento filosófico. Veja o que pensavam os principais filósofos da época, clicando na imagem de cada um deles. Protágoras e Górgias Os pensadores sofistas, tais como Protágoras (séc. V a.C.) e Górgias ( 485-380 a.C.) vinculam o conhecimento à contextualidade, enfatizando o ensino da retórica – instrumento político da época –, das matemáticas e da cultura geral. Estes filósofos ressaltavam, também, a primazia do homem com relação aos saberes. Segundo Protágoras, o homem é a medida de todas as coisas. Sócrates Sócrates (470-399 a.C.) não deixou nada escrito, mas suas ideias, transmitidas por discípulos, apresentam a força e o rigor da reflexão filosófica. O método maiêutico – de construção do saber por meio de perguntas e respostas –, por ele criado, é utilizado contemporaneamente no processo de aprendizagem. Além disso, sua expressão “só sei que nada sei” sintetiza a infinitude do conhecimento e a busca sem fim da filosofia. Platão Platão (428-347 a.C.), discípulo de Sócrates, louva o mestre em várias de suas obras, colocando-o como interlocutor principal em seus famosos Diálogos. Seu pensamento repousa na Teoria das Ideias, ou Teoria das Formas, na qual destaca o dualismo entre o intelecto e o sensível. Para ele, a busca do conhecimento consiste na superação do sensível para alcançar as essências perfeitas e imutáveis. Aristóteles Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, acredita que o processo do conhecimento deveria chegar à essência universal do objeto. Mas, ao contrário de seu mestre, ele não despreza o mundo sensível, da empeiria (experiência), nem tampouco a mutabilidade dos seres. Segundo Aristóteles, é impossível considerar verdadeiramente o ser concreto e individual como fundamento da investigação científica. Dentre as teorias filosóficas clássicas que se destacam em sua forma de buscar a compreensão do que é o homem, a concepção metafísica da natureza humana é uma das mais representativas, pois surgiu na Antiguidade grega – especialmente com Sócrates, Platão e Aristóteles –, atravessou séculos, e até hoje continua válida quando se pensa a natureza humana em seu sentido amplo, igualando todos os homens, sem distinção de classe ou riqueza. A concepção metafísica valoriza, em especial, a essência humana, eterna, única e imutável; não atrelada, portanto, à dinâmica social. O homem, no sentido amplo, é compreendido de modo abrangente, independentemente de suas particularidades, do tempo e do espaço em que se encontra. Para a visão metafísica, não importam as características específicas de cada indivíduo (quanto ao sexo ou idade, por exemplo), pois o que conta é a essência comum a todos eles. Desse modo, a essência é única e idêntica em todos os seres humanos. Podemos também pensar, de modo metafísico, os conceitos. Por exemplo: a ideia de cadeira é abstrata, logo metafísica, pois não estamos nos referindo a um objeto específico, mas a um conceito amplo, que abarca qualquer modelo de cadeira. Mas, ao considerar apenas um modelo abstrato e universal, os problemas concretos do homem em suas relações sociais e históricas não são levados em conta, provocando muitas críticas de pensadores que se dedicaram a conceber a existência humana de modo mais concreto e específico. Dentre os pensadores mais críticos a tal corrente abstrata e universal podemos destacar Friedrich Nietzsche e, posteriormente, Jean-Paul Sartre, que constituem exemplos clássicos de oposição à corrente metafísica. Friedrich Nietzsche (1844-1900) O pensamento de Nietzsche revoluciona os modelos clássicos da filosofia, desde sua exacerbada crítica à metafísica e a Sócrates até a tentativa de “implosão” aos valores vigentes de sua época. Para ele, existiriam dois elementos distintos: o espírito apolíneo (da forma, da ordem da razão) e o espírito dionisíaco (do deus Dioniso, representando a paixão, o delírio, a emoção), os quais deveriam se manifestar igualitariamente, mas que a sociedade procurava sufocar no que tange aos apelos dionisíacos. Outra crítica à metafísica, das mais representativas, é a corrente existencialista, característica da época contemporânea, que desenvolve uma oposição contundente ao modelo único de uma essência abstrata. Um dos principais pensadores do existencialismo é o francês Jean-Paul Sartre, que defende o valor autônomo da consciência e da liberdade humana. De acordo com ele, a liberdade é a característica primordial do ser humano (“nós somos aquilo que fazemos do que fazem de Jean-Paul Sartre (1925-1980) nós”), que, dotado de consciência, é responsável por seu próprio destino e por suas escolhas (“a não escolha também é uma escolha”). Portanto, e seguindo o pensamento de Sartre, o homem é um ser condenado à liberdade, que constrói seu próprio destino e é responsável por ele. Com relação ao que o homem representa e deseja em determinado espaço temporal, muitos são os modelos ideais forjados, mas existem entre eles, como pudemos observar, concepções bem contraditórias. Assim, as duas correntes já mencionadas apresentam possibilidades divergentes de como pensar o homem no mundo. Na elaboração de suas teses, os filósofos que brevemente examinamos buscaram desenvolver seus sistemas e ideias de modo claro e preciso, a fim de que seus argumentos fossem bem compreendidos e não dessem margem a contradições ou dubiedades. Isso porque, em Filosofia, não temos a garantia antecipada própria das ciências exatas e naturais. Ou seja, não se pode dizer que um sistema filosófico é superior a outro, assim como não podemos afirmar que Aristóteles suplantava Platão, ou vice-versa. Por isso, sempre foi e será necessário que as ideias expostas pelos filósofos tenham por base uma organização lógica e coerente que possibilite o pleno entendimento dos raciocínios expostos. Vídeo Para saber mais sobre a análise filosófica a respeito do homem, destacando sua interação com a natureza e as diversas concepções das quais foi objeto no decorrer da história, assista agora ao vídeo: Uma introdução à Antropologia Filosófica. Clique na imagem para visualizar o vídeo. https://player.vimeo.com/video/344183287?badge=0&autopause=0&player_id=0&app_id=58479 Encerramento Por que se considera que o homem é um ser cultural? Porque, ao se instalar na natureza, o ser humano modifica o meio de acordo com suas necessidades e interesses, num processo constante de transformação, cujo resultado é a criação da cultura, pois, diferentemente dos animais, adaptados e integrados ao meio em que vivem, a relação do homem com o mundo é de permanente enfrentamento. De que modo as transformações da técnica contribuem para o desenvolvimento humano? Com o aperfeiçoamento das técnicas, o homem ampliou sua visão de mundo, modificando seu modo de vida. Assim, ao aprimorar seus instrumentos de trabalho, o ser humano aperfeiçoou também suas ações sobre o mundo, o que lhe possibilitou, gradativamente, seu desenvolvimento. Por que o questionamento filosófico se afasta das narrativas míticas? Porque peloquestionamento filosófico o homem deixa de aceitar passivamente as normas predeterminadas e as explicações sobrenaturais que lhes são transmitidas, procurando alcançar um entendimento racional sobre a origem do universo, livre da recorrência ao sagrado. Resumo da Unidade Como vimos, o ser humano se destaca dos animais irracionais devido a sua inata capacidade de adequar o ambiente a suas necessidades, elaborando técnicas cujo resultado é o desenvolvimento ininterrupto da cultura. Em sua ação sobre a natureza, o homem estabelece costumes e valores sociais que lhe permitem diversificar sua visão de mundo, na busca de um entendimento capaz de levá-lo a refletir sobre a realidade que o cerca e sobre si mesmo. Vamos observar que é por meio do pensamento lógico que o ser humano tem condições de elaborar corretamente seu raciocínio. O homem: uma perspectiva filosófica
Compartilhar