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I • W A L T E R S I T I O romance sob acusação i. No lugar do livro sagrado Flamenca, protagonista de u m r o m a n c e provençal d o f i m d o século x i n , 1 depois de ser isolada n u m a t o r r e pe lo m a r i d o c i u m e n t o , só consegue e n c o n t r a r na igre- j a , d u r a n t e a missa, o h o m e m que a deseja; c o m a p r o t e ç ã o d o l i v r o dos Salmos, sussurra-lhe umas poucas pa lavras , que s i g n i f i c a m a c e i t a ç ã o e r e c i p r o c i d a d e d o desejo; p o r é m , t e n d o v o l t a d o à t o r r e , às perguntas ansiosas das damas de c o m - p a n h i a , cai presa d a d ú v i d a q u a n t o a ter fa lado e m v o z m u i t o baixa, e q u a n t o ao a m a n t e não lhe ter o u v i d o as palavras; as d o n z e l a s lhe sugerem e n t ã o que reconst i tua a l i a cena, a f i rr i de que possa constatar se t u d o f u n c i o n o u . F l a m e n c a d i z a suas damas, r i n d o - s e , " p e g u e m o l i v r o de B i a n c o ^ usando o_romance de a m o r n o j u g a r d o ^ Y ^ J I ^ ^ 0 * L i v r o galeotto2 na m a t e r i a l i d a d e das folhas e da e n c a d e r n a ç ã o , v i n t e anos antes que a Francesca de D a n t e , l e n d o " p o r dele i te" os amores de Lance lote e 1 "Flamenca". Roman occitan du xnie siède>org.).-C. Huchet . Paris: U n i o n Generale d'Éditions, 1988 (Série "Bibliothèque médiévale" 10/18). 2 Adjetivo que qualifica objetos que intermediam o encontro amoroso; l ivro de galanteio, [ N . E . B . ] i 6 6 O romance se faz e s p a ç o ' i G u i n e v e r e , foi t e n t a d a a r e p r o d u z i r , no r e a l i s m o da situação c o t i d i a n a , o bei jo dos famosos amantes . d e c i r c u 1 a r ftosjo n g o s a n o s da IftQUÍficâo, tenha sid o J u ^ u n c ^ ^ J ^ j j j ^ ^ A Bíblia t r a d u z i d a nas vár ias l í n g u a s nacionais , n a t u r a l m e n t e , o u os comentár ios feitos a ela e m língua vulgar . O que interessa, a nosso p r o p ó s i t o a q u i , é que os r o m a n c e s ^ e l i v r o s sagrados são p r o i b i d o s c q m as mesmas m o t i v a ç õ e s e para as m e s m a s categorias de pessoas; » ^ O ^ j ^ U ^ ^ d e ^ ^ m n ^ S 3 ^ ^ S ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ D S i p o r q u e , se expostos d i r e t a m e n t e aos l ivros , p o d e r i a m " f a c i l m e n t e i n c o r r e r e m diversos er- ros" c o m o escreve e m 1582 Car io B o r r o m e o . Os j o v é h s i m a t u r o s , pois, os artesãos h u m i l d e s o u , de q u a l q u e r f o r m a , os, não [jwofagio^ b e m c o m o as mulheres de q u a l q u e r classe. Miche le G h i s l i e r i , i n q u i s i d o r "moderado", escreve e m 1557 ao b e m mais r i g o r o s o i n q u i s i d o r de G ê n o v a : " P r o i b i n d o Orlando, Orlandino, Cem novelas e o u t r o s l i v r o s semelhantes p r o v o c a r í a m o s o r iso porque esses l i v r o s n à o ^ ã g j j f l f ^ A l n q u i - s ição, o p t a n d o pela l i n h a d u r a , e m vez disso d e m o n s t r a temer que os " indefesos — O ^^SS£^£ p o s s a m j f l j j ^ ^ p o r isso que o rei da Espanha proíbe na A m é r i c a a exportação de l i v r o s de cava- l a r i a : os índios, semelhantes nisso aos h u m l ^ c ^ J ^ f f l u E f i f l b , p o d e r i a m se fiar das fábulas, e, q u a n d o se vissem i l u d i d o s , p o d e r i a m negar confiançaja q u a l q u e r l i v r o ) . T a m b é m os l i v r o s sagrados, o u , de q u a l q u e r m a n e i r a , os l ivros re l ig iosos , são u m per igo p a r a as " m e n t a l i d a d e s fracas", s o b r e t u d o os que apresentam mais m o t i v o s narrat ivos ; n ã o só e não tanto p o r q u e a l i se p o d e m esconder m á x i m a s herét icas o u ardis d i a b ó l i c o s ( e m u m processo de 1590, e m Veneza, certo A n d r é a 5 relata que, desesperado de amor, c o p i o u de u m a Vita de São Basílio o t e x t o d o p a c t o c o m o d e m ô n i o e o assinou c o m o p r ó p r i o sangue) - não tanto p o r isso, Cf. G. Fragnito, La Bibbia al rogo. Bolonha: I I M u l i n o , 1997; no l ivro de Gig l io la Fragni to (p. 135) encontra-se t a m b é m a citação do cardeal B o r r o m e o (extraída do edito Che non si tengano Bibbie volgari, né libri di contro-versie congli Heretici [ Q u e não se conservem Bíblias e m vulgar, n e m l i v r o s de controvérsias c o m os Hereges]). A carta de M i c h e l e G h i s l i e r i (o f u t u r o papa Pio v ) fo i citada em N . Longo, La letteratura proibita, in Letteratura italiana, d i r i g i d a p o r A . Asor Rosa, v. Le Questioni. T u r i m : E i n a u d i , 1986, p. 9 8 0 . A informação se e n c o n t r a e m A . Prosperi, Tribunali delia coscienza. T u r i m : E i n a u d i , 1 9 8 6 , p. 9 8 0 . Oropnance s o b - a ç i u s a ^ . mas p o r q u e c i j g j x a m _ a r r i e n t ^ ^ O cardeal B é l l a r m i n ò / j u l g a n d o o p r o j e t o de edições dos Fasti Sanctorum de R o s w e y d e e m 1607, acha q u e nás pa ixões romanceadas dos márt ires e nas v idas dos santos h á " m u i t a s coisas tolas, vazias, improváve is" 6 - quase as mesmas palavras c o m que vezes sem c o n t a entre os séculos x v i e x v i n a Igre ja se p r o n u n c i a acerca dos romances de cavalar ia o u , de u m m o d o geral , sobre os romances e as novelas. N o s conventos f e m i n i n o s , proíbe-se a le i tura dos l i v r o s de edif icação e m v u l g a r ; Teresa d'Ávila confessa ter s o f r i d o m u i t o c o m isso, " p o r q u e a le i tura de a lguns m e causava deleite", e n q u a n t o n ã o lhe aparece o Senhor q u e lhe d i z "eu lhe d a r e i u m l i v r o vivo". 7 E m compensação , os l i v r o s de cavalaria f o r a m m u i t o a m i ú d e u m a l i m e n t o e u m m o d e l o s imból ico para os santos "novos": a p a r t i r de Ffancis .q^f^ A s s i ^ p u e c h a m a os seus pequenos frades de "soldados da Távola Redonda",8 até o "castelo i n t e r i o r " cr iado pela m e s m a Teresa d & v i l a para entreter suas freiras, r ico de "fontes, J>elos j a r d i n s , l a b i r i n t o s e o u t r a s coisas encantadoras" E m suma, existe u n i v a l o r e m b l e m á t i c o n q , f a t o ^ a u e ^ j ^ ^ ^bispo deSanta Severina cjuis c e l e b ^ Bíblia e u m exemplar d o Amadis tie Gaula^ O a t a q u e a o s r o n w n c e s , c o m o veremos, se faz mais i n d i s c r i m i n a d o e inflexível t o d a vez que p r e d o m i n a u m a ideologia de g u e r r a , q u a n d o há u m i n i m i g o p a r a se sacudir c o m o a u m espantalho. N o çaso da Inquisição, obviamente, o g r a n d e Index s^p^ois, na g r a n d e m a i o r i a , U quedfojrgygH^ imaginação . A que c o r r e s p o n d e , na vertente d o texto, u m a " l iberdade de p o n t o de vista"; é cur ioso que C é j i n e , n u m a entrevista de 1957, 1 0 para d e m o n s t r a r que a ) 6 P a r a o ju lgamento do cardeal B e l l a r m i n o , cf. S. Boesch Gajano, M L e metamorfos i d e i raccon- to", i n Lo spazio letterario di Roma antica. Roma: Salerno, 1 9 9 0 , v. I I I , p. 217. 7 Para a citação da Vita de Teresa dÃvila e, mais adiante, para a citação do Castello interiore, ver A . M o r i n o , I n t r o d u z i o n e a T. DÀvi la , // castello interiore. Palermo: Sellerio, 1 9 9 9 , respec- t ivamente nas pp. 2 8 e 4 2 . ' 8 Ver a Compilatio assisiensis (cap. c m , 13), i n E. M e n e s t ò e S. B r u f a n i (org . ) , Fontes franciscani. Assis: 1995, v. 1, p. 1643. 9 A informação se e n c o n t r a e m Fragnito, La Bibbia al rogo, op . c i t . , p. 315. 10 Louis-Ferdinand Céline vous parle, transcrição de u m disco gravado e m 22 de o u t u b r o de 1957, i n L.-F. Céline, Romans ti. Paris: G a l l i m a r d , 1974, p. 935. 168 Q rorr.ance se faz ospaços França não t e m mais coragem o bastante para " m u d a r de estilo" cite o exemplo de u m velho cura de C l i c h y que, e m 1870, d e c i d i r a dizer a missa e m francês e foi "cr i t icado severamente pela C o m i s s ã o dos r i t o s " D i f e r e n t e m e n t e d o teatro, os romances pressupõem e m geral u m a fruição fia solidão, u m "face a face" c o m o texto que j n d j n ^ n ^ ^ | | t e ã d ^ ^ iÜf f l t f tSÉÜff l l í gin^rfa" Òí romances , d iz u m i n i m i g o deles e m Berger extravagant, de Sorel, são "piores d o q u e l i v r o s calvinistas, p o r q u e estes pelo menos t r a t a m de u m só deus, ao passo que os romances t r a t a m de muitos" . 1 1 " - " T a l v e z ' n ã o seja p o r acaso que as duas nações e m que a Inquis ição teve êxito e m i m p e d i r u m a l e i t u r a i n d i v i d u a l e n ã o c o n t r o l a d a pelo texto sagrado (a Itália e a Espanha) t e n h a m assistido ao dec l ín io irreversível do romance depois d o final d o século x v i , e que nas nações e m que à l e i t u r a l ivre da Bíblia tenha-se acrescido E-*~a l i m i t a d a mas substancial l i b e r d a d e polít ica (o Licensing Act é de 1 6 9 5 ) , isto é, [nglaterra, t e n h a , e m vez disso, nascido o romance m o d e r n o . AT 2. Um g ê n e r o que renega a si m e s m o Í Entre todos os g ê n e r o s l iterários, o r o m a n c e é o único que t e m necessidade de renegar-se a si m e s m o . O século x v m , aquele e m que o gênero,$ne .consg^fla, está repleto de r o m a n c e s que negam sua natureza: "hoje, o m u n d o se acha t o m a d o de románêes é dê contos de aventura e m ta l grau, que é fllfiClljIBH M l t f f i â J l i H ã l s e r t o m a d a p o r verdadeira", escreve Defoe n o prefácio a Moll Flanders; "esse romance I am . ip» 11 m mm tt * i n ã o é u m romance" , escreve Rousseau n o s e g u n d o prefácio de A nova Heloísa; "mas isso n ã o é_UJTQr ffltPâPflft" assegura D i d e r o t e m Jacques, o fatalista.12 Já n o final d o século X V I I , M a d a m e de La Fayette, escrevendo ao cavalheiro de Lescheraine, falava acerca d a Princesa de Clèves, " n ã o é de f o r m a a l g u m a u m r o m a n c e : s ã o L exatamente , a l g u m a s m e m ó r i a s " : ' 3 e, a i n d a n o final d o século x i x , os veristas se recusam a c h a m a r de romances os seus textos (Louis Desprez, defendendo-se n C . S o r e l , Le berger extravagant P a r i s : 1627 ( r e p r o d u ç ã o anastátlca, G e n e b r a , 1 9 7 2 ) , p. 2 6 . 12 D . D i d e r o t , Jacques le fataliste et son mattre ( 1 7 9 6 ) , e d . S . L e c o i n t r e e J. L e G a l l i o t . P a r i s / G e n e b r a : D r o z , 1976, p. 5 0 [ e d . b r a s . : Jacques, o fatalista, t r a d . Jacó G u i n s b u r g . São P a u l o : P e r s p e c t i v a , 2 0 0 6 ] . 13 A c a r t a , d a t a d a d e 14 d e a b r i l d e 1678, é c i t a d a e m A . P i z z o r u s s o , La poética dei romanzo in Francia {1660-1685). C a l t a n i s s e t t a / R o m a : S a l v a t o r e S c i a s c i a , 1962, p. 101. i O romance sob acusação l no processo c o n t r a Autour dun clocher, declara e m aula: "a palavra r o m a n c e não convém mais aos nossos estudos sociais "Se este fosse u m romance"; "não c o m o o c o r r e nos romances" e t c , tornam-se a tal p o n t o lugares-comuns que alguns romancistas fazem u m a re iv indicação de segundo grau: c o n t r a r i a m e n t e à q u i l o que t o d o s d i z e m , o m e u , e m vez disso, é justamente u m r o m a n c e . "Se t u és a l g u m deles, a q u e m basta d izer que são verda- deiros os acontec imentos para que neles a c r e d i t e m , o u a q u e m não seja admissível gozá-los p o r q u e são falsos, és p o r demais sério, p o r demais crédulo , e n ã o escrevi para t i " , assim G i o v a n n i A m b r o g i o M a r i n i , n o prefácio a Calloandro fedele, de- m o n s t r a o o r g u l h o pela própria i n v e n ç ã o ; c o m mais malícia i l u m i n i s t a , Laclos adverte, "não g a r a n t i m o s a autent ic idade desta coletânea, pois temos fortes razões para crer que se trate apenas de u m r o m a n c e " e acrescenta que as personagens das Relações perigosas m a n i f e s t a m tão maus costumes, que "é imposs íve l s u p o f que t e n h a m v i v i d o e m nosso século". Os paratextos (prefácios , notas, p o s f á c i o s , advertências d o e d i t o r etc.) são usados para desculpar-se, para just i f icar-se . Ogr[ m o t i v o s p e l o a _ ^ c ^ s j ^ envergonha-se de si m e s m o são c o n c r e t a m e n t e d o i s : { y o r o m a n c e p r o v o c a nos mm ' mm i" i , M j wvwaqffiar^ " ************ mgmmammÊmm leitores dev^ romance é conspurcado pelo di lúvio de romancistasJS^SSÍ3iSmJmÍ!iSSSmm^L A s s i m , fluan- d o o Berger extravagant se apresenta c o m o " a n t i r r o m a n c e " e o Ercole tedesco, de Bucholtz, c o m o " r o m a n c e a n t i - A m a d i s " , isso se deve ao p r i m e i r o m o t i v o ; q u a n d o Jacques, o fatalista o u Tristram Shandy p e n s a m e m si mesmos c o m o " a n t i r r o m a n - ces", fazem-no s o b r e t u d o pelo segundo m o t i v o . N a verdade, t e m razão G o t t h a r d Heidegger, u m pastor luterano, a u t o r de u m a invectiva p r o f e r i d a e m 1693 c o n t r a os romances: " u m romance sempre se reduz à sátira venenosa de u m o u t r o " . 1 5 H a y g r i ^ 7 l s felacõ£iS.p£ri^osas serio A nova tieloisa^ q u A princesa de C/éve^sem Astrée,^^^^^^jj^^^^^f^f^ ^S&Sjjf* C o m e c e m o s pe lo segundo m o t i v o : o r o g t j ^ M S Í S Í I ^ ' e onde quer c^ ue t e q h < n ^ ^ D i f u n d i d o de m o d o 14 A lembrança da defesa de Desprez, i n t i t u l a d a "Pour la liberté décrire", figura n o apêndice a L. Desprez e H . Fevre, Autour d'un clocher. Kistemaeckers: 1885 (nova ed. Genebra, 1981, prefácio de H . Mittérand). 15 A invectiva de Heidegger, i n t i t u l a d a Mitoscopia romântica: ovvero Discorso sul cosiddetto romanzo, é c i tada em U. Bavaj, Mythoscopia romântica. Teoria dei romanzo in Germania 1629-1698. Roma: Castelvecchi, 1996, p. 1 0 9 ; na p. 21 d o mesmo l ivro está a citação de Versuch über den Roman (1774) de v o n Blanckenburg. O romance se faz e s p a ç o notáve 1 ^ n o a m u n e g p , e m ^ g o u q u í s j u ^ p o r q u e e r a m i n d i g n o s de^oo^nside^ sqbre bases g é s s i m a N a l i t e r a t u r a chinesa, e n q u a n t o os l ivros de poesia e os ensaios e r a m conservados c o m grande e s c r ú p u l o f i lológico, os romances f o r a m m u t i l a d o s e so freram inserções de toda o r d e m . Os l i teratos, que não obstante os e s c r e v i a m e c o m p r a v a m , ter-se- iam s e n t i d o m e n o s p r e z a d o s q u a n d o lhes reco- nhecessem a paternidade . Aristóteles , na Fpétfçg^tóofoUdot romances; Horácio , ^^Q£SSíj£SàmmSSmm ^sobre^eles; T a s s c ^ ^ Ç j ^ s ] ^ B o Ü e a u ^ O C a f t d ^ d c l e v ^ j ^ t r a n s c o r r e n d o , d i v i r t a . 1 6 A i n d a e m 17^4, v o n B l a n c k e n b u r g , perguntando-se p o r que não teria h a v i d o até aquele m o m e n t o na A l e m a n h a u m a reflexão crítica sobre o romance , responde " p o r q u e se a f c r e d i t ^ gfepflSUfc escritos v o l t a d o s apenas aq^^^tenimejQtQJia^^as" . Sem leis nem regras, sem sequer necessitar daquele p o u c o de técnica necessária para os versos, 6 r o m a n c e s e ^ ^ ^ 2^ ^ S ^TÍVi^ n i m fI ^ I I U I ^ U ^ I U Í J L ) 1 ^ S I R f f i ^ r f i f ^ f ^ ^ f i f 1 < a c o m P O S ^ Ç Ã O de romances, ao contrário, requer apenas papel, pena e t i n t a , e a capacidade m a n u a l i de servir-se deles", assim escreve F i e l d i n g e m Tom jones.17 M u i t o s dos romances '.processados no c o r r e r dosséculos são de jovens desenfreados, que "escrevem a q u i - lo segundo seu c a p r i c h o [ . . . ] não sabem nada, escrevem segundoX) que lhes v e m à J ffihtfl" c o m o lamenta o n ú n c i o apostólico Francesco V i t e l l i , denunciando e m j j j j u - à C ú r i a r o m a n a o Corriero svaligiato, de Ferrante Pa l lav ic ino . 1 8 A acusação, gera]., é j ^ ^ s romances b a i x e m prejuízo da '^jíí^^l^fflSS^: ^^iStiB^^^^^^^^SSíi^m^m^á&SêS^^' "não^se r e i ê ^ j ^ y ^ ^ ^ g g " , escreve Vauvenargues ^ind^em^^J"^^^ 16 A observação de Boi leau está no canto 111 da Affjggfljfryg. [ P a r a s implif icar o aparato de notas, quando a citação de u m clássico é indicada de m o d o inequívoco, por u m n ú m e r o de canto, o u de parágrafo o u de capítulo o u de indicações c o m o "prefácio", "posfácio" e se- melhantes, o autor p r e f e r i u evitar as referências bibliográficas.] 17 H . Fie lding, The History of Tom Jones ( 1749) [êd. i t : Tom Jones, t r a d . D. Pettoello. M i l ã o : F e l t r i n e l l i , 1964, l i v r o i x , cap. 1, p. 3 3 6 ] . 18 A carta do núncio f o i p u b l i c a d a p o r L. Coei , Ferrante a Venezia: nuovi documenti darchivio ( n ) , i n Studi secenteschi, x x v m ( 1 9 8 7 ) , pp. 3 0 6 - 0 7 . 19 L. de Clapiers, marquês de Vauvenargues, Réflexions sur divers sujets, i n CEuvres completes, prefácio e notas de H . B o n n i e r . Paris: Hachette, 1 9 6 8 , p. 256. E m média , os romances c u s t a m menos do que o u t r o s l i v r o s , têm grandes tiragep e, p o r t a n t o , d e p e n d e m d o índice de aceitação d o públ ico . Tasso conta que o pa- dre B e r n a r d o dec idira c o m p o r o Amadis c o m base n u m a única ação, segundo as regras de Aristóteles, mas o c o r r e u que "quando ele c o m e ç o u a ler, os aposentos estavam cheios de g e n t i s - h o m e n s que o u v i a m , mas, ao f i m e ao cabo, t o d o s h a - v i a m desaparecido; disso d e d u z i u que a u n i d a d e da a ç ã o era p o u c o agradável p o r sua natureza".2 0 O fato de "agradar ao v u l g o " é a a c u s a ç ã o que Triss ino d i r i g e ao Orlando furioso,21 e Tasso a d m i t e , escrevendo a S c i p i o n e Gonzaga, haver p r o - c u r a d o na Jerusalém libertada "o aplauso dos h o m e n s medíocres". E m 1 6 4 2 , e r i i G ê n o v a , A n t o n G i u l i o B r i g n o l e Sale seapresta a p u b l i c a r os p r i m e i r o s q u a t r o l i v r o s de sua Storia spagnola, t e m e n d o que "a c o m i c h ã o de tais c o m p o s i ç õ e s " deixe de " p r u r i r " , candidamente i n t e n t a d o a "secundar o curso da torrente , enquanto d u r a r " . 2 2 O r o m a n c e d o século X V I I I inglês ser ia^T^^^rtís^^Jkh^S^áomc^O de públ ico: o próprtoFielding, , g u e é o m a i s c d i t o d o r o m a n c e , admoesta q u e " u m a u t o r dever ia cons iderar-se n ã o c o m o u m se- n h o r que dá u m banquete p a r t i c u l a r o u beneficente, mas c o m o q u e m d i r i g e u m restaurante".2 3 Certamente , não fa l tam defensores d o r o m a n c e (e romancistas) que t e n t a r a m reabilitá-lo a p r o x i m a n d o - o da epopéia e da tragédia, o u que a f i r m a m , c o m o Pierre-Danie l H u e t e m 1670, que u m r o m a n c e " n ã o é j u l g a d o pelo n ú m e r o , mas pela c o m p e t ê n c i a de q u a n t o s o e s t i m a m " . 2 4 É necessár io , p o r é m , chegar a Rousseau para que se o u ç a q u a l q u e r u m dizer que " u m r o m a n c e d ^ e j e £ ^ § j . a d q , o d i a d o , feito e m pedaço^pelas,Jg^g^f^gg^S^gg"'2 N o s . s é g u l g s j ^ ^ x x ^ u m i í 2 0 T. Tasso, Apologia, in Scritti sullarte poética, org . E. M a z z o l i . TXirim: Einaudi , 1977, v. 1, p. 71. 21 " C o m o seu Furioso, que apraz ao vulgo" é u m verso d o l i v r o x x i v da Itália liberata dai Goti, citado e m S. Z a t t i , Vombra dei Tasso. Milão: M o n d a d o r i , 1 9 9 6 , p. 6 3 ; r io l ivro de Z a t t i (p. 6 9 ) é citada também a carta a Scipione Gonzaga, datada de 16 dè j u l h o de 1575. 22 A introdução à Storia spagnola de Br ignole Sale é citada p o r Q. M a r i n i , " R o m a n z i e r i l i g u r i e imprese e d i t o r i a l i nel Seicento", i n R. Gendre (org . ) , Lathè Biósas. Ricordando Ennio S. Bru- nori. Alexandria: E d i z i o n i delFOrso, 1998, p. 2 0 6 . 23 F ie lding, Tom Jones, op. c i t . , l i v r o 1, cap. 1, p. 5. 2 4 P.-D. Huet , Trattato sullbrigine dei romanzi. T u r i m : E i n a u d i , 1977, p. 32. 25 f.-J.Rousseau, La Nouvelle Héloise (1761), segundo prefácio [ed . bras.: A nova Heloísa, t r a d . Fúlvia M . L. M o r e t t o . 2 a . ed. São Paulo/Campinas: Huci tec/Edi tora da U n i c a m p , 2 0 0 6 ] . O romande se faz e s p a ç o , AS autoridades civis e religiosas, condenando o romance, sempre e em toda parte estiveram preocupadas com sua ampla difusão (tanto é verdade que um leitmotiv nas alocuções dos advogados de defesa é que, ao contrário, cada romance custa muito, e é escrito de maneira tâo difícil, que não está ao alcance dos incultos); para proteger os fracos da obscenidade e da sedição, naturalmente, mas também (e nisso tiveram sempre como aliados os pedantes da academia e os críticos da alma bela) para defender a honra da rnltura contra a v i ü g a r i d a d i ^ ^ vicioso fl^ç a pretexto de se;a^guarÍjjSS^m^í^^&mJSíSSSSS!& S iffiujjS nn^ massas mediante uma oferta de c j q a l i ^ A se fazer bem as contas, justamente a vocação que tem de obedecer ao prazer dos leitores é que leva o romance para perto daqueles centros delicados em que o prazer entra em atrito com a realidade; sua y u i g a n d ^ daquela perspicácia antissistemâtica que constitui sua força; costear (e cortejar) o "discurso dos ignorarites^fávòFéceTs^^íntensidades livres" (como as chama Gianni Celati)2 6 do romance, e lhe promove uma forma particular de consciência que consiste, mais do que num generalizante "eu penso", numa "série de 'eu sinto' que é miÍMiftfllHFi 4^^fiBBtíl?Mjr^e" ^ concessão proteiforme e indisciplinada às dobras do presente, o "não ter a honra", impele o romance a territórios pantanosos em que os outros gêneros não penetram. Exemplares são, acerca disso, as vicissitudes da língua; o jesmazelo lingüístico, que desde o início lhe é atribuído, abr&Afc.pqrtas "língua comum", entendida como ade^ e seu modo flfj falaf - do^latim do5 libertos" na "Ceia de Trimaiquião",passando pela grosseria engraçada nas Facezie de Poggio fíracciolini, que foi o humanista descobridor da "Ceia" ("há coisas que não posso dizer de modo mais elegante, porque devo me referir a elas como as disseram as personagens que introduzi nessas conversas"),27 ^té a atenção dos romances epistolares do ^^j^J^^l^^SSSSS^ji dasjmjggr- feições lingüísticas dos r e m e t e n ^ gtq. 'A publicidade ciamorosa e romântica é uma perigosa sugestão aos espíritos fracos ou enfraquecidos. Eu disse o mesmo para as tragédias passionais a dois";28 esse telegrama de Mussolini, de janeiro de 1926, endereçado aos diretores de jornais e não aos romancisVá'^ peso da repressão já se deslocara; o romance 2 6 G. Celat i , Finzioni occidentali. Türim: E i n a u d i , 1975, p. 4 6 ( 2 0 0 1 , nova edição). 27 A passagem se e n c o n t r a no prefácio às Facezie, i n t i t u l a d o " N e aemuli càrpant Facet iarum opus propter e loquent iae tenuitatem". 1 2 8 O telegrama de M u s s o l i n i é citado e m P. Cannis t raro , Lbrganizzazione dei consenso. Bari : Laterza, 1975, p. 2 0 4 . O romance sob acusação 173 não assusta mais porçjue^ Ao mesmo tempo, atribuindo aos fatos" relevantes" o mesmo influxo maléfico que sempre foi censurado nos romances, Mussolini involuntariamente faz o melhor elogio daquele "romance potencial" que todo o tempo se recusa à própria institucionalizaçãocomo gênero, e que obstinadamente tenta reduzir (sem anular) a distância entre o acidente i n - forme da vida e Q^b^t fato ab sol u to d a b e i ^ z. a. Em 1735, père Bougeant distinguia entre "Basse" e "Haute Romancie";29 mas, des- de suas origens, o romance foi marcado por um destino de ^ ^ j j ^ f c ^ f Aquiles Tácio e Heliodoro são já romancUtasJVeflexivps" que jogam ironicamente com os mecanismos triviais do gênero; o mesmo se diga do enorme esnobismo de Petrônio. Por isso, o r o m a n c e ^ profundidade yirando^gdo.a^^q, como uma luva. Nos Discorsi dellarte poética, Tasso teoriza acerca da possibilidade de um nível duplo de escrita, capaz de atrair quer o vulgo quer o<"çntendidos" Poder-se-ia afirmar que até mesmo o realismo nasce no romance em virtude dessa "obsessão de duplicidade": não é a Loucura de Erasmo que diz que sem as ilusões, sua dádiva, "por trás de Minerva se encontra uma porca"?30 Tal será a ex- periência do pobre D o m Quixote, mas já o autor refinado do Lazarilho purgava e parodiava nos infortúnios do pícaro os sonhos de aventura "nobre" A grande voga do Dom Quixote no século x v i n inglês relaciona-se ao fato de que a forma modesta e agressiva do novel se legitima no contraste paródico com os preciosos in-fólio dos romance franceses. Uma vez fixado que o nível trivial do entretenimento é o da ^ g j f f i j f l f e j j | f r ^-^<jp|n^ i fie a t^cgni e j^ mbó l i ç o^ s em <r e cor r e r a o s^ J* t r ri ^ y^ f-fj^ ^^L a uTrrr -A- ^gosição " ç g y j j ^ j r ^ não é senão um caso particular da oposição " v ^ o s s í m i j / i ^ Se uma escritora de romances como Ma- demoiselle de Montpensier foi obrigada a desdobrar o lugar exótico e fabuloso de Paflagônia na mais conhecida Paris ("nada se parecia mais com a place Royale do que a praça onde estava o seu palácio"),31 nas Cartas de Valincour sobre a Princesa de Clèves se faz notar que a recusa "extravagante" de casar Némours transporta a 2 9 G.-Bougeant, Voyage merveilleux âu Prince Fan-Fédérin dans Ia Romancie. Paris: 1735, p. 107. 3 0 Erasmo de R o t t e r d a m , Elogio da loucura,.cap. x x n [ed. bras.: Elogio da loucura, t r a d . M a r i a A r m i n d a Galvão G . Pereira. 3 a . ed. São Paulo: M a r t i n s Fontes, 2 0 0 0 J . 31 A citação da Princesse de Paphlagonie, de Mademoise l le de Montpensier , está em Pizzorusso, La poética dei romanzo in Francia, op. cit . , p. 68. O romance se faz espaço protagonista "ao reino dos Amadis",32 e Charles Gildon critica Defoe, dizendo que, no fundo, o seu Robinson Crusoé "é só um romance".33 O autor, escreve Smollett no prefácio a Roderick Random, "representando cenas familiares de pontos de vista divertidos e incomuns, as investe do atrativo da novidade, ao passo que em todos os particulares se refere à natureza";'mas Rousseau pergunta a si mesmo, em A nova Heloísa, "vale a pena registrar o que alguém pode ver todos os dias em sua casa, ou na casa do seu vizinho?".34 A resposta que o romance ocidental realista se dará a si mesmo será a psicologia, o "caráter surpreendente e insondável do coração" Duplo por natureza, se o trivial é identificado na cansada reDetição de es- tereól i .P.qs^^^ A t ^ m ^ n f f o f t fi?nssel Q U d e B o r g e s - m a s t arabém d^BÜggn e de Morante (sem contar o "renascimento do romance" que foi provocado pelo MMMMIlMMlQMMMi entrecruzamento de tradições fabulatórias extraeuropeias, e o "romance coagido" produzido no Leste Europeu como reação ao otimismo censório e programático). Gênero bastardo e uparvenu\ mas também imperialista, (^MMtt8LfiMfSSyfi!L d^banahd^e, m j ^ J ^ & f i t ^ £g» l^tória^o^se errava, pois, em demasia, o abade Porée, na conferência que fez contra o romance apresentada no Collège Louis-le-Grand em 1736 (e traduzida ao francês para que também as mulheres a pudessem ler): "[os romances] com seu contágio estragam todos os gêneros literários com que mantêm alguma relação".35 om a cabeça nas nuvens No capítulo 4 7 da primeira parte do Dom Quixote, o cônego, depois de ter resumi- do todas as críticas aos romances de cavalaria, acrescenta, no entanto, que neles é possível reconhecer pelo menos um mérito: que eles deixam campo livre em todas 32 J . -B . -H. d u Trousset de V a l i n c o u r , Lettres à Mme la Marquise de ***sur le sujet de la Princesse de Clèves (1678). Paris: Brossard, 1925, p. 213. 33 C. G i l d o n , The Life and Strange Surprizing Adventures ofMr. D. ofLondon. Londres: 1719, cap. I I , 34 N o segundo prefácio a La nouvelle Héloise, op. cit . 35 A c i tação do abade Porée está e m G. May, Le Dilemme du roman au xvuTsiècle. N e w H a v e n / Paris: 1963, p. 39; d o l i v r o de M a y são também as observações sobre encanaiüement d o herói , e sobre a i n c o m p a t i b i l i d a d e entre vraisemblance e bienséance. O romance sob .acu^H^B as direções em que a pena pode correr sem embaraço, de modo que "o próprio tipo, tão livre, dessa escrita permite ao leitor apresentar-se ali como épico, lírico, trágico, cômico". Efeito camaleônico do romance, que, segundo Huet, permite que o leitor não se concentre numa única idéia: "fos romances 1 não dirigem a tal ponto o intelecto», e o d e i ^ a P? e ^ n ^ f e se encarregar deoi^n número maior de idéias diversas";36 justamente porque não obrigam a grandes operações intelectuaisr dão lugar a uma outra faculdade: "não é necessário forçar a mente para compreendê-los, não ocorrem grandes argumentações, a memória não tqm * que trabalhar muito, basta imaginar" Como já dissemos, além das quatro imputações que lhe foram feitas tradicio- nalmente (sedição, blasfêmia, difamação, ob^cfioidade) e além dos procedimen- tos judiciais individuais que dependem das peripécias da tolerância, a verdadeira ^ c u s a ç á o q u e se dirige ao romance é a ^ e } jgg^g|^^SmíiW^ ^>lZy C O m P a r A c u ^ a r acrimônia, Gotthard Heidegger: "Assim como as vespas, quando alguém lilSS rança as a á a i l ^ dç gutras yespg.jg^jggjjfoyjgjS rprriari- ces dilapidam de maneira ignóbil Ojgjjgg p r e c i o s o SISLIÊ^OÇ37 O que èquivafe a dizer: os romances fazem com que se perca tempo porque os próprios romancistas, escrevendo-os, perderam seu tempo. Se este serve para produzir riqueza e para aperfeiçoar-se moralmente, ele deve ser utilizado de modo retilíneo; desde as "ara- bages pulcerrime" [belíssimos desvios] de que fala Dante no De vulgari eloquentia, O romance sempre foi o lugar da digressão, do labirinto^ do andar sem rumo. "E por ser o poema composto de pessoas errantes, ele também é errante, pelo fato de pilhar e introduzir infinitas vezes coisas infinitas", escreve Giovan Battista Pigna dellAriosto em 1 5 5 4 . 3 8 Sa^ be-se como o duplo significado de "errar", o físico e o moral, havia atormentadcp Tasso ao ponto de fazê-lo condenar o próprio poema. Bpssuet, no discurso contlra os "prazeres ilícitos" (citado pelo advogado de defesa no processo relativo a Mac^ame Bovary), não fala de romances nem de romancistas, mas usa a mesma metáfora tassiana: "mister é que todo aquele que se apega ao, sensível erre necessariamente de objeto em objeto [ . . . ] , nesse movimento perpétuo não para de se distrair, atraído pela imagem de uma liberdade erranteV9 Em suma, 3 6 Huet , Trattato sullbriginé dei romanzi, op. cit . , p . 4- 37 Cf. aqui Aparato critico, p. 2 0 1 . 3 8 G. B. Pigna, / romanzi divisi in tre libri. Veneza: 1554» p. 56. 3 9 J.-B. Bossuet, Contre les plaisirs illicites, i n CEuvres philosophiques et morales. Paris: 1843, p . 6 5 ; a citação no discurso de Sénard está e m G. Flaubert , CEuvres. Paris: G a l l i m a r d , 1951» t . 1, p. 6 6 4 - 176 , 0 romance se faz.espaço • q romance oferece a hipótese de um desejo infinito (no mesmo discurso, Bossuet, u m pouco maisadiante, fala de uma "infinidade que se irrita por não poder ser aplacada") que não se dirige positivamente a nenhuma verdade filosófica e reli- giosa, mas detém-se numa flânerie psíquica que é, pois, indolência e "delectatio morosa1. Em 1 7 6 0 , Claude de Marolles, examinando os três caminhos de perdição da alma, escreve a propósito da "ãlma romanesca": "tão reduzida a fragmentos, tombada no pó, perde-se entre as páginas, erra de livro em l ivro" 4 0 Não limitado aos "valores de grupo" como na epopéia, tampouco dilacerado pelas oposições radicais como na tragédia, o leitor de romances se deixa seduzir pelo prazer i n - dolente da variedade e da passividade; a identificação romanesca é, tipicamente, uma identificarão preguiçosa, lânguida, c|ue nos transporta a um outro munclp. Uma jpessoa racional e moderada comò Madame de Sévigné relata a Madame de Grienan. numa carta datada de 12 de julho de 1671 , as próprias reações à leitura de Gleópatra de La Calprenède: cr Estou perplexa ante essas tolices [. . .] considero seu estilo detestável e continuamente, caio presa de uma armadilha (...] sinto-me arrastada como uma menina, me ocupo deles, e se não tivesse Monsieur de ia Rochefoucauld para me consolar, rqg gütofiflüâ.M pelo fato de constatar essa fraqueza ainda em mim.4 1 Eis, aqui o que chamamo*; (jle o primeiro motivo por que o romance se renega a si mesiftflj^elyfaz com qué"se p e r c a i n ^ ^ fexto ' cie referência é, obviamente, Don^Qyjtfjgte, o pioneiro de uma série de romances que vai do Berger extravagant, de Sorel, ao Pharsamon, de Marivaux, depois de The Female Quixote, de Charlotte Lennox, até Madame Bovarv e outros; mas já. vinte anos antes de Dom Quixote, no longo prefácio a sua Conversão de Madalena, Malón de Chaide escrevia "que mais são os monstruosos livros e coletâneas de fábulas e {jp mentiras dos Agiadis, Floriseles e Dom Beliariis, postos nas mãos dos jovens, senão uma faca nas mãos de um louco?". E, mais adiante: "[às moças ocorre u m deseiol de serem servidas e seauzidasrcomo o foram aquelas sobre as quais leram nos seus Fios Sanctorum^ e dali seguem para más e torces fantasias".42 Há que 4 0 A passagem de Claude de Maro l les é citada e m R Q u i g n a r d , Le lecteur. Paris: G a l l i m a r d , 1976, pp. 31-32. 41 M a d a m e de Sévigné, Correspondance 1, org . R. Duchene. Paris: G a l l i m a r d , 1972, p. 2 9 4 . 4 2 Cf. a q u i Aparato critico, p. 199. O romance sob acusação 177 notar duas coisas: o objetivo se desloca para as mulheres leitoras e retoma-se o paralelo sarcástico entre romances de amor e textos religiosos. O romance pflrpce ter upia afinidade particular com as mulheres: porque não f ^ podem ler hyrp^ffl^^^diíy^i P°ffiMP ÜbÜBSflflS eg^certos m q m e n t ^ têm mais tgmpo para passar em casa, jendo; p o r q ^ ^ parece torná-las mais aptas a fantasiar; pqjque fnãq p ^ p ú l t i ^ . do romance se assemelha jS^^ilÊSSiiStíBiíiiStíli ( " S Q U fiihg de uma restauradora de rendas antigas - nos disse Céline conheço muito bem as finezas").43 A "moça que lê romances" torna-se u m tipo cômico já a partir de The Tender Husband [O marido gentil], de Richard Steele, de 1705. Fielding considera o romance de Lennox mais passível de crédito do que a obra de Cervantes, justamente porque tem uma mulher como protagonista.44 Todo o século x v m é o "século das m u - lheres" no rpm^ice. quer cqfno leitoras quer como autorasina crítica à Cecília, de Fann^-Burney, de-1784, Laclos declara que "as mulheres têm vocação particular para escrever esse tipo de obra".45 Mais adiante, Hugo, nas Contemplações, vê a revolução (literária) "no romance, enquanto fala em voz baixa às mulheres";46jda^ | ligação, paradoxal e bastante tenaz, entre predisposição ao romance e estupidez se -0 afasta, muito vigorosamente, George Eliot em 1856, atacando os "tolos romances das senhoras romancistas";47 numajcarta^aq conde Salva^noli de 1832, Stendhal _estjibeÍ꣣Jim^ "Aj^Jiá&^ ^ • de província,^^^^g^^JgffiSBSB ~" JjflÍ2éB£«Í£Sá2 ^ a z e r de - S ü a XLáâ.^ i^ L mmanceiS^opsolamJppc^-ys";4 8 mas Pierre Nicoje, no vigésimo segundo ca- pítulo de De la comédie, já profetizara, de qualquer maneira, o destino de Emma, falando daquelas mulher^^ue^ tendo a q a b e ç a ^ ç h e i a „ d e X Q m ^ ^ J ^ m i l l ^ - portáveis os pequenq^ f^e^^re5 de seu ménaze", e quando voltam para casa com ç^ -*""" a çabe^a ^ 43 Entretien avec Albert Zhinden, d i f u n d i d o pela Radio Lausanne em 25 de j u l h o de 1957; agora e m Céline, Romans, op . c i t . , p. 9 4 5 . 4 4 H . Fielding, "The Covent G a r d e n Journal", 1752, n . 2 4 , c i tado e m I . W i l l i a m s (org . ) , The Cri- ticism ofHenry Fielding. Londres : Barnes & N o b l e , 1970, p. 193. 45 Cr i t i ca a Cecília, de Fanny Burney, publicada no Mercure de France de a b r i l / m a i o de 1 7 8 4 ; agora e m P.-A. Choder los de Laclos, GEuvres complètes, org . M . A l i e m . Paris: G a l l i m a r d , 1951, p. 525. 4 6 O verso é o 218 de " R é ^ b n s e à u n acte dáccusat ion" . 4 7 G . El iot , Silly Novéis by Lady Novelists, i n Selected Criticai Writings, org . R. Ashton . O x f o r d : O x f o r d Universi ty Press, 1 9 9 2 , pp. 2 9 6 - 3 2 1 . 4 8 Stendhal, Correspondance 11, o r g . H . M a r t i n e a u e V. D e l L i t t o . Paris: G a l l i m a r d , 1967, p. 4 8 5 . O romance se faz espaço por se empenharem nos afazeres, nemi sempre estão com espírito para cumulá-las d j j ^ y j i o r u i i c n t o s ridículos". O ataque mais enérgico e furioso de Nicole contra os romancistas (definidos como "envenenadores públicos")49 se encontra nas Lettres sur Vhérésie imaginaire, escritas em 1 6 6 4 - 6 5 para defender as religiosas de Port-Royal das ofensas de Des- marets de Saint-Sorlin. A ocasião típica de crônica foi transformada por Nicole num discurso de acusação rigoroso e psicologicamente muito sutil. Desmarets, autor de teatro e romancista, foi reciclado como exegeta do Apocalipse e do Cân- tico dos cânticos, transferindo ads textos sacros o léxico sexual que empregara nos romances e nas piètes: "amor perfeito, transportes da alma, prazeres "divinos, doces lágrimas, ebriedade espiritual, ferida mortal, langor amoroso, êxtases, arre- batamentos, liquefações". O desdém de Nicole dirige-se a todos aqueles místicos (alumbrados, illuminés, quakers) que confundem o infinito da imaginação privada com o infinito da Graça divina: Esses senhores, que têm imaginação pobre, crêem que as coisas sejam, na verdade, aquilo que eles imaginam deveriam ser; não apenas submetem aos seus caprichos a vontade dos homens, que fazem agir como lhes agrada, mas regulam, segundo a sua fantasia, também a vontade de Deus. Eis aqui o pecado imperdoável: não só e não tanto enf explicar a Escritura "como lhe passa pela mente", mas na soberba. (Nicole a chama "pomposa humildade") de fazer passar por voz d i v i j n a ^ mjSBSmmm^BÍtStíS^Sm^^k U m dos problemas que a Igreja deparou entre os séculos XVI e XVIJI é o da "afetada santidade";50 falsos santos (e sobretudo santas) que se iludiam aq crer, e ao fazer crer, qu^ fal sexualidade e com o demônio. Para impedir isso, a Igreja ínvgntOUjMjg^y^iytjj^ "discernimento dos espíritos", que ensjnava a distinguir ^^^^^^J^g^j^S^^- no, humano ou diàbólico; não admira que no tratado clássico sobre essa matéria, o De discretione spirituum, de Jean Bona ( 1674) , as classes em risco sejam consideradas os jovens, os analfabetos, as mulheres. São muitos os pontos em comum entre a 49 As c i tações foram tiradas da Lettera xi ou Prima visionária de P. Nico le , Lettres sur Vhérésie imaginaire. Liège: 1667. 5 0 Cf . G. Z a r r i , "Vera santità, s i m u l a t a santità: ipotesi e r i scontr i " , i n Finzione e santità tra me- dioevo ed età moderna. Tu r i m : Rosenberg & Sellier, 1991, pp . 9-31. . O romance sob acusaçftj* "doença fantástica" provocada pelo romance e a "desordenada fantasia" dos místicos. O caráter irresistível da inspiração, por exemplo: "muitas vezes sou tomado por certas impressões impensadamente e de improviso" escreve em 1585 Battistina Ver- nazza, envolvida no processo contra Battista Fieschi, acusado de expor "as Escrituras a seu modo";51 mas sobretudo o contágio da identificação: na autobiografia ditada a um confrade, Inácio de Loyola conta que, tendo pedido durante uma convales- cença alguns livros de cavalaria,pòf que era "apaixonado, e não encontrando na*, casa do seu hóspede senão vidas de santos, começou a lê-las,'dizendo ã"si riiésin "São Domingos fez issò; então, eu também devo fazer isso. SãólFrancisco fez iss* então, eu também devo fazer isso",52 e daí começou a sua conversão. Isso é o qu< narra sobre si mesma Teresa d'Áviia na Vida, com a mesma passagem (em imitação constante) dos volumes de cavalaria às vidas dos eremitas e dos mártires: "plane- jávamos andar na terra dos mouros, mendigando por amor a Deus, na esperança de que lá nos decapitassem".53 O remédio encontrado pela Igreja foi um controle cruel dos confessores sobre as "memórias espirituais" escritas nos conventos, com uma exaltação absoluta da disciplina. Mariana Francisca de Los Angeles exprime em 1677 o medo "de ser uma impostora, e de que tudo aquilo que escrevi aqui o inventara e compusera, como quando compunha romances e novelas";54 em 1711-, Gregoria Francisca de Santa Teresa chega a denunciar-se ao tribunal da Inquisição, implorando que as suas "fantasias, ou tolices" fossem queimadas na praça. ^Oscilando entre o divino e o diabólico^ a ima^in nfiSsfP fljttfcJQ Ri?n*° de máxiipo afastamento da terra, e a clausura do convento pode representar o sinal ^dissg^Ar rarefeito, diríamos, e( pouco respirável para o romance. Nos países em que q romance floresce, ao contrárjo, a relação com o absoluto não é tão esmagadora. No penúltimo capítulo de The Fençale Quixote (capítulo que a crítica suspeitou fosse da 51 A carta de Battistina Vernazza a Gasparo Scotto é citada p o r D . Sol farol i C a m i l l o c c i , "La monaca esemplare. Lettere s p i r i t u a l i d i madre Batt ist ina Vernazza ( 1 4 9 7 - 1 5 8 7 ) " i n G . Zar- r i (org . ) , Per lettera. La scrittura epistolare fetnminile tra archivio e tipografia. Roma: Viel la , 1 9 9 9 . P- 252. 52 I . de Loyola , // racconto dei Pellegrino. Autobiografia di Santlgnazio di Loyola, org. R. Calasso. Mi lão : A d e l p h i , 1966, p. 23. 53 A passagem da Vida de Teresa d'Ávila é citada por Ângelo M o r i n o , i n D A v i l a , // castelo inte- riore, op. cit . , p. 22. 54 A citação de Mar iana Francisca de Los Angeles está e m I . P o u t r i n , Le Voile et la plume. M a d r i : Casa de Velásquez, 1995, p. 138; no mesmo l i v r o (p . 193) encontra-se o episódio que d i z respeito a Gregoria Francisca d i Santa Teresa. T 8 O ^ p rorhance se faz ç s p a ç o . „ /mão do doutor Johnson), os romancistas são acusados de "dividir o mundo em tan- tas partes quanto lhes apraz" e de "encorajar os jovens a confiar na sorte", de modo que o restabelecimento da protagonista assume as características de uma educação para a continuidade e a responsabilidade, sob o signo do understanding. f^smoSeüõs com que sonhai) entre os séculos x v i i e x v i i i , são cada vez menos, o santo e o cavaleiro; cada vez mais o herói. romanesco tem umajida, um nome^ c|ue se assemelham aos do leitor.\^identif i^ fácjl B j ^ i O f r é g 1 mais articulada e insidiosa: justamente porque o herói se assemelha a nós, poetem^ movimento a nossa introsoeccão t nos copvida a considerar a. nossa psLqpe como uma terra desconhecida; as transgressões são levadas para a vida comum, não há necessidade de sair de si para violar os tabus: O s romances - escreve Madame de Staél na Germania - fazem mal, nos ensinando aquilo que hí de mãis secreto nos sentimentos [ . . . ] , os antigos nunca teriam aceitado fazer da própria alma um argumento de ficção.55 QJ^querer ser aquilo que não é" e n c o r ^ Ç 9 m p m m - f o P f i i i C a i d ê y i ^ veis cçm a reaUdadq: em Béroer extravagant, um parente do protagonista lança a mal- dição ritual contra os romances, mas a razão é que, seguindo-os, o pretenso pastor descura os interesses do próprio comércio, de mercador de seda na|ug Saint-Denis.) O jovem Robinson, na sua loucura de ir para o mar e de fugir à "condição mediana" de seu pai, certamente tem algo de "quixotesco" (como enfatiza Charles Gildon no seu panfleto): os seus heróis são Raleigh e Drake, "heróis cavaleiros errantes do mar";5 6 mas a inquietação, recordara Locke, é a mola da iniciativa e do progresso econômico; Robinson se cura da "loucura errante" cqnyei^ndo^^^ trahjjlhp. Também a Catherine da Abadia de Northanger é "louca" pelos romances góticos e tende a confundir os romances com a realidade; mas a sua inadaptação não lhe acarreta senão u m vexame com o futuro marido; talvez os extremos sejam apropriados aos países mediterrâneos, glosa ironicamente Austen, não à Inglaterra, em que vigora "uma difusa, senão desigual, mistura do bem e do mal".57 55 M a d a m e de Staêl, De VAllemagne, cap. X X V I I I , "Des romans". 56 A definição, conradiana (de Coração das trevas)., é relembrada p o r Giuseppe Sertol i na sua introdução a W. Defoe, Le avventure di Robinson Crusoe. T h r i m : Einaudi , 1998, p. v i [ed. bras.: Robinson Crusoé, t r a d . Celso M . Paciornik . São Paulo: I l u m i n u r a s , 2 0 0 4 ] . 57 A observação está e m J. A u s t e n , Northanger Abbey (1818), cap. x x v [ed. bras.: A abadia de Northanger, t r a d . I v o Barroso. Rio de Janeiro: Barléu, 1 9 8 2 ] . O romance sob acusação A realidade dejme aámaginacãQ fflmanpsca ^ u n d o tout court, mas a cada vez mais,,exigm^£.xaoÍQxmis.ta ,s.Q.âfi.d.ad£Jmr.g.ufi&a; em vez de se opor à natureza, portanto, a fantasia se enche da energia dos "genuínos impulsos naturais"; "o vosso Edouard será tomado por u m D o m Quixote", diz o interlocutor a Rousseau no segundo prefácio de A nova Heloísa, e acrescenta: "as suas personagens são gente do outro mundo", mas Rousseau responde: "me desagrada este mundo aqui". O livro zaleotto de Werther é Ossian e a aventurada que o conduz é o suicídio. Os'f°frj^ que ensina a insatisfação, e certamente Hegel pensava em Wçrthff guando, a propósito dq^ "romanesco" na Estética, escrevia: Esses novos cavaleiros são em particular alguns j o v e n s que devem i r de e n c o n t r o ao curso do,mundo, o qu<ü s<e realiza^nrii^a^d^^gj^jj^j^, e que j u l g a m u m a d e s g r a ç a que haja família, sociedade civil, Estado, le^profissõe^etc.58 Em vez de oferecer castejqs^encantados e_Áryprç^ de ouro, o ideal romanesco oferece agora a visão nua e desencantada dojadjayj^^ maneira, preferível a uma realidg^e^^ipócyt^,^ mesquinha. . Q.século .ff v y i é..CLSáQuk>~ch.aveq^ra a reabilitação çlq n^q^çe. Mesmo que Austen, no quinto capítulo da Abadia de Northanger, convide os romancistas a unirem-se enquanto "classe oprimida" não há dúvida de que o declínio irreversível da epopéia levou o romance para o primeiro plano; quanto às relações com o teatro, basta comparar os versos da Artpoétique de Boileau (para os romances "demasiado rigor seria descabido/ enqpanto a cena requer uma motivação exata")59 com essa passagem de uma carta d^ Stendhal: "muitas nuanças de sentimento que o autor do Rouge emprestou a Madame de Rénal no teatro não teriam sido entendidas pela maioria dos espectadores"|° Cento e cinqüenta anos, e a hierarquia foi subvertida. Os ataques da primeira metade do século x v i g , à f l^i{aj4lg,fV^,t;QSSirnirl(haniça e aç^ ^MÈtSLáil^BBiXSUiOÊÊÜBflMflflMa(ata q u e s que terminaram na Inglaterra com a plena afirmação do novel e na França com uma real proibição estatal dos romances 58 A passagem está e m G. W. F. Hegel, Estética, parte t i , seção t u , cap. t u , par. 2c. T u r i m : E i - n a u d i , 1976 [ed. bras.: Cursos de estética, t rad . M a r c o Aurélio Werle e Ol iver Tolle. 4 v., São Paulo: Edusp, 2 0 0 1 - 2 0 0 5 ] . 59 N . Boileau, Art poétique, canto m . 6 Q G a r t a a n m n d e S a l v a g n o l i He 2 de novembro de 1832; cf. Stendhal , Correspondance u, op. c i t . , p. 512. O romance se faz espaço em folhetins, em 1737)61 tiveram grande parte na mudança do romance e na sua consolidação como^ênero sério^A realidade secreta substituiu o marayühosOg^ã^ indiscrição tomou o lugar da evasão, No final do século x v m , deve-se assinalar, uma reviravolta i m p q ^ çpqnant;q até^aquefe^ momento, o romance tinha^sidoi.i{i.^gado sobretudo der,mentir, dçsse momento em ^^^^^^^ffàod^j^g^Vg^d^^ por demais cruéig^ . 4. " U m gosto de t inta" Privado de uma regra formal certa que lhe garanta e lhe torne evidente o artifício, o romance é o gênero literário que mais teve de pelejar com a questão da verdade. Por um lado, tem como limites, móveis, o puro gosto da fabulação e de disparar balas, por outro, o registro histórico e a observação científica; Huet, do ponto de vista estruturalista, define com precisão: as histórias são narrações de coisas que podiam acontecer e aconteceram, as fábulas são ficções de coisas que não podiam acontecer, os romances são simulações de coisas que podiam acontecer e nÍQ_acon- t ^ ^ r a ^ consiste, portanto^em induzir o leitor a re^gjjç"^ ^ ^ ^ ^ ^ ç ^ ^ ^ e l ^ S e l ^ ^ ã S S f f S i ã razão imediata e mais superficial pela qual o romance se nega a si mesmo é que quer se fazer passar por uma crônica - "com an aparência d g ^ j ^ ^ ^ Ê S ^ j ^ j ^ ^ ^ ^ f f n * assim diz Tasso nos DiscorsL62 Nisto, o romance é ajudado justamente pela indisciplina e pela aparente superficialidade da sua escrita: "o maior defeito dos romances comuns - explica o abade Desfonr_ taines - é parecer, em demasia, romances f... ] ;^ a ilusão é essencial a tájgjjiYnEp nfilfc -fiação; é uma grande. arie..saben.ey^ Todos os inimigos do romance o acusaram de ser enganador; o romance reagiu ou com garantias periódicas de fidelidade à verdade (a fidelidade à verdade históri- ca no século x v i e no x v i 1; a moda das mémoires, a convocação às "últimas notícias da imprensa" e as técnicas de estenografia no século x v m inglês; a concorrência ao Código Civil , o diagnóstico científico na segunda metade do século x i x etc.) ou com uma reflexão sobre as diferenças entre ficção e mentira. De maneira precoce, 61 Dessa proibição, na obra do chanceler de Aguesseau, fala F. Weü, LTnterdiction du roman et la librairie: 1728-1750. Paris: Aux amateurs de livres, 1986. 62 No terceiro parágrafo do Discurso primeiro. 63 No tomo xxix (1742) das Observations sur les écrits modernes; a citação está em May, Le Dilemme du roman, op. cit., p. 42. Scaliger, em 1557, notava que a necessidade de ficcões é u m testemunho da nátureza infinita da nossa mente, que é grande demais para oqdey «q satisfa*^ w m fl r ? ? | e "ultrapassa os limites comuns da verdade".64 A ficção pode^yflifltf portant-n uma verdade mais profunda do que a verdade banal^não a verdade dos fatosr mas a dos desejo^, "Quanto aos sentimentos e às paixões - escreve Laclos - a história se l imita a ratificar algjum efeito, mas esconde çuidadosamentç as causft^y5 ao my> ^^^^^S^SlÊaí^SSS Considerações sobre o s romances, éo de rpostrar-nos o homem como é ou como parece ser, o do romancista é o de mostrá.- *? hfiÉQpfeBfflySãS v i r a s e n C Q m o p o d e m ftBtitffilÉM^ urgências das paixões!*.66 O século x x deu mais u m passo, chegando a concluir que cçrtas verdades, ao serem reprimidas ou removife^ jtafflgj pççespariamente ( apresentar-se sob o manto da mentira. A verdade em doses maciças faz mal, dizem os defensores do romance. O autor Lde Tombeau des romans, de 1626, acha uma bela metáfora barroca: como o sol é tão brilhante que se pode olhar apenas seu reflexo na água, assim também a WBáàáê4 4 e t a l ^ ^ "in vino veritas"67 Outras metáforas são tiradas do campo da medicina: o romance doura a pílula amarga da verdade, o romancista é como o cirurgião que, devendo cortar os seios de uma princesa, esconde o bisturi em uma esponja (o romancista como "cirurgião da alma humana", sem esponjas mitigadoras, terá muita sorte na época realista e naturalista, quando o romance^eapropriará dos argumentos tradicionais dos seus inimigos para voltá-los contra o romance açucarado e~sentimental). Oscilando entre engano e jcrueldade, entre doença e remédio, o romance encon- tra um compromisso duradouro nas construções razoáveis do "verossímil"; no período de máximo esplekdor, digamos entre Austen e Dóstoiévski, o mundo romanesco se apresenta ccjmo u m mundo.no qual se pode crer, mas^ ao f^esmo. tempo, como a relação completa daquilo em que se pode acreditar - restabelece, em outras palavras, uma imagem tranquiiizadora do mundo, produto de uma classe que cada vez mais reconhece a si mesma e cada vez mais relega o "bizarro" 64 Júlio César Scaligeri, Exoiicarum exercitationum liber xv, De subtilitate, Exercitatio 397, //, Hanoviae, 1620, p. 835, parafraseado em F. Langlois, dit Fancan, Tombeaudes romans oü il est discouru 1) contre les Romans 2) pour les Romans, Paris, 1626. 65 Cf. a crítica a Cecília, em Laclos, CEuvres completes, op. cit, p. 524. 66 D. A. F. de Sade, Considerazioni sui romanzi, in Opere. Milão: Mondadori, 1997, p. 822. 67 Fancan, Tombeau des romans, op. cit., p. 52; na p. 63 estão as metáforas da pílula e do cirurgião. 1&4 . .Oyomonce se faz eS^aço . . . sobréou sob si mesma; mas embora forneça à burguesia o mais convincente dos es- pelhos, a vocação do romance não é a de tranqüilizar: é, de preferência, a de verter o impossível no real, ou de descobrir no real o absoluto, sem nunca encontrar paz. Nem a Metamorfose de Kafka nem Em busca do tempo perdido são "verossímeis"; Swift, no final das Viagens de Gulliver, prediz positivamente uma lei segundo a qual "todo viajante, antes de ter a permissão de publicar os relatos de suas viagens, fosse obrigado a jurar diante do Lorde Chanceler que tudo aquilo que pretende publicar é absolutamente verdadeiro, da melhor maneira possível segundo seu conheci- mento". Não é apenas ironia paradoxal, a misantropia nunca foi tão violenta no livro como quando o mito dos houyhnhnm se restringe à limitada e concretíssima realidade de uma casa inglesa, àquele cheiro de estábulo em que o protagonista se refugia para recuperar-se do cheiro repelente da mulher e dos filhos. Condensar o símbolo nos fragmentos feios da realidade; a história do romance moderno não é senão uma longa descida ao particular, por fome de concretude. Até quando os protagonistas são príncipes e reis, e a história é a grande história públicâ, é difícil tornar crível o que foi inventado; Cervantes de antemão zomba (salvo depois de revalorizá-lo com uma espécie de gosto "camp") de Tirante, o Branco, que narra a conquista árabe da Inglaterra;68 a Bibliothèque Française de Amsterdã, em 1741, ataca as Mémoires pour servir à Vhistoire de Malte, de Prévost, e quem quer que busque utrompern, fazendo passar por históricos acontecimentos fictícios. Uma das razões pelas quais no século x v n o ^ SSSSSMSLSSL^^SBSS é^que, querendo introduzir o leitor na vida de "personagens que todos conhecem^ sendo obrigado a tornar aquelas vidas interessantes, com muita freqüência jnçoççe, no crime-de-difomação. Fala-se apenas de gente comum, de "gente pequena" pois pode-se contar-lhe a vida sem que se possa controlar quanto há de verdadeiro e quanto de falso. Certamente, comojá notava Mademoiselle de Scudéry, nem sem- pre a "vraisemblance" está de acordo com a "bienséance"; as pessoas comuns ten- dem a ser vulgares. No sétimo livro do Tom Jones, Fielding adverte que o décimo capítulo contém "vários argumentos talvez suficientemente naturais mas baixos1. ^yVs "singularidades sociais" que tomaram o lugar do caráter exemplar fazem surgir latências perigosas, do "profundo" e do "exterior"; o interessante-verossímil dará à luz, do final do século x v i n em diante^ a voga da delinqüência e do abjeto - mas já a Pamela de Richardson confessa, na carta 1 0 2 , ter lido poucos romances e que Q c u r i o s o juízo de Cervantes sobre Tirante, o Branco está n o capítulo v i d o vo lume 1 de Dom Quixote. O romance sob a c u s a ç ã o yyW^ esses poucos não lhe agradaram porque "ou davam demasiado no maravilhoso e no improvável, ou inflamavam em demasia as paixões". Quanto mais o romance burguês ocidental amadurece e toma consciência de si, entre os séculos x v t i e x i x , mais o mal se expande. À dara oposição entre herói e vilão, versão laica da luta entre Deus e Sat^nás, sucede uma ramificação mais profunda: cada persipnagem traz em si rnotiyoj, jnçpnfe é ver: dadeiramente boa. A verdade assume a forma do desmascaramentq±MTlÚÍSTXà.ÇàS>. m o r f l l m n t r * o bandido g | | 5 c ^ ^ i857> umrcrítico de M g d ^ c ^ ^ ^ v i d ^ T n ^ belo romance, falso, fantfof,te9 { f a ^ a f i j ^ i c-heW f1? imaginação e de quimeras".69 O j j ^ p a d r t d n mal cad^vez | mais se sublrai^ torna-se^ civilização, ou a ausênciflMjflç P,£us. Analogamente se mfidtôGam^ffstrattek*^^ acusação de que represente o mal. A.esjratégfr denar o mal explicitamente, narrando ,o_finx ^rutal dos_vU ou. fazendo que, se convertessem. A v i r tud^recon^ ravolta sadiana. Os inimigos do romance, naturalmente, não sedeixam enganar e apreendem a hipocrisia que está por trás dessa fórmula: "pouco a pouco, tornam - escreve Gotthard Heidegger - os homens escravos dos vícios, justamente graças à simulação astuta de querer puni-los".70 Toda condenação do vício funciona, é claro, como uma_denegação freudiana e comporta uma cumplicidade emotiva com o próprio vício. A c r ü e l d a ^ ^ " p r l a r f t B t t a P a r t ^ " ar^pendimento não terá o. mesmo brilho, a mesma força evitalidade^ que tiyem^ajgartejda confessa Defoe de modo cândido no prefácio aMollFlqnders. O fascínio pela transgressão é tão mais forte do que a atração pela ordem, que até os romances edificantes, ou as vidas dos santos, entre os séculos x v i e x v n , preferem os grandes santos pecadores, como Madalena, porque isso permite multiplicar os pormenores da vida pecaminosa. Dessa fatal ambivalência ocupou-se a Igreja, como um caso particular da "sollicitatio ad turpia", que entrava nos confessionários por meio dos discursos demasiado minuciosos do 69 A crítica é de A . Claveau e f o i publ icada no Courrier franco-italien, 7 m a i o 1857. 70 Cf. Bavaj, Mythoscopia romântica, op. c i t , p. 127. f O romance se faz e s p a ç o confessor, ou porque o Santo Ofício chegou a condenar, em 1611, um tratado do jesuíta Andréa Nicosia "sobre os toques, os beijos, os abraços e as poiuções".71 Somente Tolstói em idade avançada, que repudiara Anna Kariênina e Guerra epaz, refuta^adiçajmente o ardil da ambivalência: " í im,j jmS nãq ^ c j u e A U g j j mas 8 < l u g PQde": n ã c ; ^ } ^ ^ e é inátiLtomcai^. qi^jia^^contraste^ é ^ e c e s s ^ (Posição em direção contrária, e em oposição à essência da literatura, que ironicamente se vinga: por volta de 1 8 9 0 , a opinião pública ruissa se lançou contirá as narrativas do toiitQtyM^lW^tiLiettoví açusando-o de usar a ^àAC^kV^XúffojÃXCGS^ pretexto pafa mostrar cenas,yoluptaqs^ ' Uma outra estratégia é apostar na dinâmica entre as personagens, distinguin- do acuradamente entre as afirmações de uma personagem e a posição do autor. "É u m celerado que fala" escreve Moiière à margem de Tartufo;73 "é um celerado que narra a história", repete Barbey dAurevilly, defendendo-se no processo con- tra Les Diaboliques;74 "são palavras do herói, mas exprimem o pensamento de Siniavski" insiste, ao contrário, o acusador no processo moscovita de 1 9 6 6 , 7 5 A re- provação irrompe, comumente, quando falta dinamismo e o herói monopoliza o campo: em [odo o livro n^q jiá uma única personagem que "possa fazer-lhe abaixar, a cabeça" diz flobre Rpiqia, com admiração inconsciente, o acusador Pinard;76 o acusador do processo de O amante de Lady Chatterley pergunta a uma das teste- munhas: "vê nesse romance uma única palavra que implique reprovação quanto ao que a protagonista faz?";77 u m artigo do Pravda contra Siniavski e Daniel enfatiza 71 A informação sobre o tratado de Nicosia está em Prosperi , Tribunali delia coscienza, op. cit . , p. 513. 72 \ As duas frases de Tolstói f o r a m t iradas dos seus 2Íát í í i í i respectivamente às datas 11 de j u l h o de 18^4 e 6 de n o v e m b r o de 1892, citadas em L. Tolstói, Che cosa è Varte, org. F. Frassati. M i - lão: Fe 1 1 r i n e u 7 T i 9 7 8 T S s p e c t i va níente nas pp. 88 e 91. 73 A famosa didascália, que provave lmente servia t a m b é m c o m o apontamento para a recitação, é posta p o r Moiière à a l tura dos versos da cena v do ato 1 v, e m que Tartufo fala das maneiras de se "acomodar as coisas" para se chegar ao C é u . 74 O interrogatório de Barbey, o c o r r i d o e m 15 de dezembro de 1874, figura c o m o Annexe i n Y. Leclerc, Crimes écrits. Paris: P l o n , 1991, p. 351. 75 Cf. A . G h i n s b u r g , Libro bianco sul caso Daniel-Siniavski. Mi lão: Jaca Book, 1967; as palavras da acusadora K e d r i n a estão na p. 201. 76 Cf. Aparato crítico, p. 213. 77 Cf. C. H . R o l p h (org . ) , Processo a Lady Chatterley. Mi lão: Longanesi , 1961; a frase do advoga- d o Grif f i th-Jones, d i r i g i d a à tes temunha Stephan H o p k i n s o n , está na p. 123. , ' O romance soba que a eficácia eniOciona^j^y^yflMrôg de uma personagem "deve-se à falta na. obra de uma força que contraste cpni esses s^^tQ^RfQS-'78 '' ~~ Com a progressiva turvação do horizonte romanesco, cada vez menos o romance condena explicitamente os vilões; sempre se limita a "ilustrar" o vicio, entrinçheirando- se atrás da desculpa de que basta a ^isteza^ o desesperoafcm&je livido pug emana do texto, para pôr o leitor em guarda; mas jéit Baudelaire? que nas notas ao seu advogado _ usara um argumento do mesmo tipq. o c n r r f ^ a . d ú v i d a de que não <sra.."s§9" Insistir nisso.79 A tristeza é, de fato,_por,si mesma um pecado, uma forma de acídia õáj fe/ ingratidãp Para com Deus; quem está tão desesperado a P O r l t o c t e matar-se, dissera f Goeze lançando-se contra oWerthef^ que pode chegar facilmente a matar (e Werther encontra no texto um "assassino por amor", pouco antes de atirar em si mesmo). Se Deus é substituído pelo mito cego do "progresso", a tristeza tornarse um crime de lesa-otimismo; a acusação de ^esmo^Ti- zação" é a mais forte entre as dirigidas a Soljenitsin por O pavilhão dos cancerosos^ mas está presente, por exemplo, também no processo pue o Se^ndodmpérip intenta con- tra EuçLè^§^ ^2fMvstères du peuple*1 e naquele que a Terceira República intenta contra Lucien Descaves por Sous-Offs (a acusação dirigida a este último de "cuspir na bandeira" é muito semelhante àquela de "desonrar a mãe" dirigida a Soljenitsin). Aos defensores do romance é fácü responder cjue não é quem soa o alarme,* mas quem ateia o fogo pue é o verdadeiro çulpadoj j j f ^ ^ j g ^ l T i a sociedade filisteia, nomear JB^éj j jú^^ r. Diante de uma sociedade cjue exalta o útil acima como jSjlUSiüt torna-se um valor a se reivindicar (e, em 1835, Gautier faz preci- samente isso nolongo prefácio a Mademoiselle de Maupin, nos anos em que está em voga a "crítica do futuro"). Em face de uma sociedade qup perdeqcçqntato coma_natureza sagrada ddsg^o> escrever as "palavras dç qualraletra^" parece a Lawrence quase uma missão terapêutica. "Qalai - responde Soljenitsin à União dos Escritores - não é umàsaída e corrompe os jovens."82 78 Cf. G h i n s b u r g , Libro bianco, op, c i t . ; o art igo de G h . Petrov, p u b l i c a d o n o Pravda de 15 de fevereiro de 1966, é citado na p. 229. 79 Charles Baüdelaire, "Notes p o u r m o n avocat" i n CEuvres complètes, o r g . C Pichois. Paris: G a l l i m a r d , 1975, p. 195. 80 Cf. Aparato crítico, pp. 204-08. 81 U m relatório dos processos c o n t r a Sue e Descaves encontra-se e m Leclerc, Crimes écrits, op . cit . , respectivamente nas pp. 379 ss e 421 ss. 82 Cf. Eaffaire Soljenitsyne. Paris: L H e r n e , 1995, p. 244. •i88 \ , 0 rócnance se faz^spaço • , ' » » » ' ' ' , "Corruptor" e "moralista" são dois epítetos opostos e còrrelatos, a depender de como são vistos. "O romancista é um moralista", escreve em 1786 Restif de 1a Bretonne;83 os romancistas são uns "moralistas experimentadores", replica Zola;84 "pois alguém descobriu que era uma obra moral" ironiza Hardy no prefácio a Judas, o obscuro; durante o processo contra O amante de Lady Chatterley, u m eclesiástico se declara convencido de que o livro é "um pequeno tratado moral, além de u m romance".85 Todo esse vaivém é condensado e resumido nas vicissitudes de uma única grande metáfora, talvez a mais constante na história dos ataques ao romance: a metáfora do recipiente e do liquido contido nele. Retomando uma imagem de Lucrécio,86 Tasso, na Jerusalém libertada, compara o próprio mister ao de um médico que, devendo fayef ç n m que ur^ fapaz doente bebesse u m remédio amargo, cobre de açúcar as-bordas-do-copo. A nr^ftcipa é a verdade {histórica e ética), o açúcar é a sensualidade, unida ao maravilhoso. A metáfora se acha muito difundida nos prefácios aos romances dq século x v i l , com declinações diversas segixndò às cir- cunstâncias (no prefácio a Roman Bougeois, por exemplo, Furetière escreve que "o prazer que experimentamos ao zombar dos outros é o que nos faz ingerir serena- mente o remédio que nos é tão salutar"; más acrescenta que, para que nos divirta, é necessário que nas personagens possamos reconhecer a gente que vemos todos os dias - o açúcar é, pois, o realismo, não mais o maravilhoso). Tão difundida que, bem rápido, se lhe invertem os valores: aos que denigrem o romance, o açúcar é o appealdeqne, o romance se cobre, o líquido é a indisciplina passional e não é mais u m remédio, mas u m veneno: "tudo serve", escreve Zaccaria na Storia polemica delle proibizioni de* libri ( 1 7 7 7 ) , "para aspergir de suave licor as bordas da vasilha, em que se quer oferecer aos incautos o veneno mortal".8 7 C^ ue o romance seja u m veneno torna-se um lugar-comum, compensadq^pçnagpela forrqidâvel intuição i j j flaubertiana segupdo a p venennjgal que Emma bebe "tem um gosto.de, tinta". Ainda em 1 9 3 4 , o juiz Woolsey, na sentença em que consente ao Ulisses ser publicado nos Estados Unidos, declara o romance de Joyce "uma bebida d^y^ia^ft 83 N . - E . Resti f de la Bretonne, Les Françaises. Neuchâtel/Paris: 1786, v. 11, p. 16. 84 Êmile Zola , Le Roman expérimental Paris: 1881, p. 26 [ed. bras.: O romance experimental, t r a d . í talo C a r o n i e Cé l ia B e r r e t i n i . São Paulo: Perspectiva, 1982]. 85 Çf. R o l p h (org.) , Processo a Lady Chatterley, op. c i t . , p. 103. 86 Lucrécio, De rerum natura, 1, w . 936-50. 87 F. Zaccaria, Storia polemica delle proibizioni de' libri. Roma: 1777, p. 233, O romance sob a c u s a ç ã o forte paraAer.mjnistrada a e acha que "o efeito de Ulisses sobre o leitor, em muitas partes, é sem dúvida um pouco emético, mas nunca apresenta a tendência de ser afrodisíaco".88 U m emético, ou seja, um remédio que faz vomitar, u m veneno que se torna remédio. Segundo Pinard, supor a u ^ ^ Madame Bovary os p o n n e n ò H ^ todos, e o remédio ao alcance de pouquíssimos!'; mas o remédio está, segundo outros, paradoxalmente, no próprio veneno: Heidegger dissera isso pòr sarcas- mo, se quiséssemos salvar o romance, deveríamos supor que, como no epigrama i x de Ausônio, dois venenos combinados formam um antídoto; muitos levam a sério a observação: se o amor j| u m Yençqqe ps romances alertam o amor, então os romances gãQdn^ntldotP. M Uma leitora de Laclos está convencida de que prestaria um verdaBeiro serviço à própria filha dando-lhe de presente As Relações perigosas no dia de seu casamento.90 Os romances são necessários aos povos corruptos, diz Rousseau, que opõe a "doença fantástica" dos próprios heróis à "torrente de máximas venenosas que circulam pela cidade".91 U m dos peritos chamados para testemunhar no processo declara que O amante de Lady Chatterley é "um verdadeiro antídoto aos valores superficiais e frívolos do sexo".92 • • 5. O fim da obscenidade Se se quisesse construir uma tipologia ou uma casuística dos processos intentados contra os romances nas várias épocas e países, inevitavelmente se acabaria por se dispersar em m i l exceções; ^ntre dois romanées aos quais se atribua, num mesmo período, u m grau semelhante de "nocividade", é só o concurso da análise das circunstâncias que definirá bor que um é processado e o outro não, ou por que um é condenado e o outro, ábsolvido. O esquema, além do mais, não daria conta 88 Cf. Aparato crítico, p. 222. 89 Furetière fala, por exemplo, de u m a j o v e m "curada do a m o r " depois de ter l ido o Roman bourgeois; durante o processo i n t e n t a d o contra as edições Pauvert e m 1956, para a edição integral das obras de Sade, Paulhan a f i rma paradoxalmente ter conhec ido u m a senhora que, p o r ter l i d o as obras do marquês , e n t r o u para u m convento. 90 A anedota é narrada pelo própr io Laclos, no prefácio ao romance. 91 N o segundo prefácio de A nova Heloísa, op. cit. 92 Cf. R o l p h (org.) , Processo a Lady Chatterley, op. cit. , p. 158. i ç o O romance se faz e s p a ç o da real pressão social sobre o romance, porque, ao contrário, lá onde a pressão é máxima, a censura é preventiva e os processos não se desenvolvem; é típico o fato de que uma maior "densidade" de processos freqüentemente se siga a momentos de liberalizações (por exemplo, na França, depois da nova lei de 1881, ou na Inglaterra, depois de 1959, ou na Rússia, depois das aberturas kruschevianas no começo dos anos 1 9 6 0 ) . Igualmente impossível de se documentar brevemente é o enorme fe- nômeno da autocensura; muitos romancistas, em diferentes épocas e países, teriam podido repetir de modo bem aproximado aquilo que escreveu Leonardo Sciascia no posfácio a Giorno delia civetta [O dia da coruja]: Não me sinto heróico a ponto de desafiar acusações de ultraje e vüipêndio; não sinto que faria isso deliberadamente. Por isso, quando percebi que a minha imaginação não avaliara devidamente os limites que as leis do Estado e, mais do que as leis, a susceti- bilidade daqueles que as fazem respeitar, a impõem, me pus a eliminar, a eliminar.93 No máximo, é possível particularizar certas constantes e tendências; a principal delas no Ocidente é certamente a passagem de uma sociedade obcecada pelo perigo da heresia a uma sociedade segura do próprio poder de homologação. A . . d i v i s ã o j i o J ü ^ b a ^ u m ^ ^ oscilando entre o entre tem No > séc ulo x v 11, | po r t e r escrito um r o m a n ç e j ^ Q ^ i f L T ^ terminam com algumas abs^ A denún- cia apresentada em 1956 contra Ragazzi di vita [Rapazes da vida] custou muito psicologicamente a P^ççj^oj[gjHg^hfíjitTe contribuiupara orientar-lhe o destino de autor; isso não impede que na sentença o juiz quase se tenha desculpado pelo processo e afirmado que o debate se deu " n u m clima de serena elevação".94 N u m livro de 1 9 6 8 , Charles Rembar proclamava o " f im da obscenidade" e profetizava confiante, "agora, se um escritor é pelo menos u m pouco escritor, ele e o seu livro não têm nada a temer".95 Constante é_o efeito de propaiLanda que u o IÍVTTO -Jj> proibido; é o que reconhece Flaubert a propósito de Madame Bovary; já à época da 93 L Sciascia, // Giorno delia civetta. T u r i m : E i n a u d i , 1991, p. 119 [ed. bras.: O dia da coruja, t r a d . M a r i o F o n d e l l i . Rio de Janeiro: Rocco, 1995]. 94 Cf. aqui Aparato crítico, p. 227. 95 C. Rembar, The End of Obscenity. Londres: B a n t a m , 1969. , r O romance sob < Inguisi^ãp lja-seo.Index para encontrar arroladas a l i ^ fthlilfUflteBBMMffi Diderot sintetiza em nome de todos, em Lettre sur íe commerce de la librairie: "Quantas vezes o livreiro e o escritor, se tivessem ousado, não teriam dito aos magistrados: 'Senhores, uma condenaçáozinha, por favqrT'.9 6 A autoridade se sente cada vez menos "tutora" ou "sentinelàTe também a Igreja insiste cada vez meno$ na "fragi- lidade da natureza humana"; o problema dos "mais fracos", por outro lado, parece ter-se resolvido com a lógica dos consumos diferenciados. ^al|er^ativaMentre ^beleza.-formal comg H6BBMÍC ( n a &ati° studiorum dos jesuítas os clássicos sãq permitidos "pela elegância e pelo caráter apropriado da língua"97) e beleza formal ^ como agravante,{Madame Bovary é considerado tão fflfflflf gftriyoao poi; fflfrflbert ter-nos prodigalizado "todos os artifícios do seu estilo"9 8) tgrajm ^svaziar-se de se^ida^ijaffte de u m y)ggg4oqueju^|j^ níveis diversos e pjSJHB f^cskj^ Bfr" frontaçáo de dignidade formal. / Certamente, houve um^ail£QJlQ-gue se refere à liberdade, eflfliftlíSÍJJJiJ21l avanço na com^^ estabeleceu-se uma distinção, me parece, precisamente com a lei inglesa de 1959, com a proibição de julgar u m livro com base em frases recortadas arbitrariamente e a obrigação de considerá-lo "as a whole" ("como u m todo"). Na mesma direção, vai a obrigação de distinguir entre o "resultado" de u m texto e ajnten^ão do autor. Todavia, é verdade que as garantias nunca foram dadas de uma vez por todas, que as acusações de obscenidade ou de blasfêmia ou de difamação com freqüência são o disfarce para uma condenação política, e que a taxa de tolerância d i m i n u i drasticamente em situações de emergência (inesquecível o grito de lamento de Sholokhov, no X X I I I Congresso do P C U S , pelo "tempo em que se julgava sem a delimitação severa dos ar igos do Código Penal, mas deixando-se guiar pela consciência revolucionária qa justiça").99 ^t*****»*^ Curiosa é a relação oue d e s d e s e m n r e . a . r o m a ç c e Uj^gBSjSMjC^^^ dir-w-jpB4p.biisra d g j g j ^ ^ E graças à alegoria que u m romance "licencioso" como O asno de ouro, de Apuleio, passou indene pela Idade Média; Defoe recorre confusamente à alegoria para defender o 96 D. Diderot , Lettre sur le commerce de la librairie, i n CEuvres complètes. Paris: Le C l u b Français d u Livre, 1976, t . V I U , p. 556. 97 Cf. G. Raffo ( o r g . ) , La "Ratio studiorum". II método degli studi umanistici nei collegi deigesuiti alia fine dei secolo xvi. M i l ã o : San Fedele, 1989, p. 192. 98 Cf. a sustentação o r a l de P i n a r d , i n Flaubert, CEuvres, op. c i t . , p. 621. 99 A frase de S h o l o k h o v é c i tada e m G h i n s b u r g , Libro bianco, op. c i t , p. 81. , 0 ropr/ance se fa* espaço seu Robinson; para defender Lady Chatterley, se se propõe uma leitura alegórica (a paralisia de Clifford como paralisia da sociedade moderna etc); mas os regimes totalitários, quando querem condenar um romance, salientam neles interpretações alegóricas que o autor deve apressar-se em desmentir: diante dos acusadores, que interpretam O pavilhão dos cancerosos como uma alegoria da sociedade soviética (vista exatamente como um "tumor incurável"), Soljenitsin responde que "existem detalhes médicos demais para u m símbolo", e conclui que, "se algum de vocês for hospitalizado, verá se se trata ou não de uma alegoria". Que o fanatismo religioso, ridicularizado nojs_\&t£qjy^^^ alusão à ^Çqflç|(p pfual no Irâ| foi uma das suypeit^ qflg lçvaram1 çm íçrâo. à fatwa 100 de Khomeini contra Salman Rushdie.101 Bastam poucos graus de longitude e de Ílatitude, e novamente, por se haver escrito um romance, é possível arriscar-se a ser condenado à morte. Além ^as razões políticasvcontinger^s fBMULfHIBtBBfc S H k a s e n t e n c a awUi toflit MI £ 5 üa infete 5 Ha m 555^ lendo os mais jnt f i to f lKf i j g | aMHãáuaat g s a ^ a ^ M l K MM8ÍU indlgqacâo pelos insultos à ^ljfjf muçulmana (a cidade <jo profeta chamada ignorância", a« pmfi f .h 1 ^ dlfi BB l^táf 1 flllf ttm V m * ' ™ n P^H* ÉMLBIllBttM H p Maomé e assim poy d | j^|ç) | y g j f adeirn p * ™ ^ J m P - c r d ^ Ç . l l ^ ! ! - r t r a t a d o a gaáavr^evela^^^ Não é tanto o episódio em si dà interpolação diabólica dos versos (episódio não inventado por Rushdie, entre outras coisas, mas presente na história da tradição corânica); de um ponto de vista "filológico", os Versos são menos subversivos do que certos estudos aceitos e discu- tidos nas universidades islâmicas; intolerável é a idéia de que o texto literário seja ^--^[^^^^^j^^f^ff^^ ^ e ^ u e ° P o s s a englobar, fazendo dele matéria narrativa e inserindo-o no fluxo móvel das paixões - submetendo-o de fato às leis romanescas do et-et em vez de àquelas do aut-aut, que garantem ao texto sagrado a própria fixidez e, por isso mesmo, a própria autoridade. "A simples idéia" escreve A m i r Taheri, jornalista iraniano autor de uma biografia de Khomeini, "de usar o profeta Maomé como personagem num romance é insuportável para muitos muçulmanos,"102 100 Expl icação de autoridade e p d i r e i t o islâmico n o i n t u i t o de estabelecer a aplicação da lei d iante da u m a miMtãn S S B M S S S T ' 101 Cf. R. A u b e r t (org .) , Vaffalre Rushdie. Paris: Cerf, 1990. 102 A r t i g o d o Times de 13 dc fevereiro de 1989. r e p r o d u z i d o e m L. Appignanesi e S . M a i t l a n d ( o r g . ) , The Rushdie File. Londres : F o u r t h Estate, 1989, p. 93. : O romance sob a c u s a ç ã o 193 Vargas Llosa, em La verdad de Ias mentiras [A verdade das mentiras], obser- va que as culturas religiosas produzem poesia, teatro, mas raramente grandes romances. O romance é uma arte das sociedades .em que a |fóe$táseesfaçeiaiv do. O romance é jgojjgj^lgJiflBS^SSldBi P i a s felfat u m s r f - ^ j i W 0 e UIT)APfr~ ródia. Quantas vidas dos heróis de romance são, na realidade, das liimitationes Christn O texto sagrado, sobretudo o_nosso..a Bíhlia,_estáystru.t.ui:adQ narratiya- mente; a sua tarefa é a de,dar.s.enüda^Q.muadQ sem ir aféip da.abstração l ó g i c a ^ e matemática, mas usando a concretude das coisas reais.. Porém, o texto sagrado precisa frear a ambivalência e a perpétua germinação da realidade, garantindo-lhe o significado de uma vez por todas. ÇLcomançeT ao contrário, flueima-se no ^ sem W e h a j a , ' ^ ésempre imperfeito e tem um ' constante comglexo de i n f e r i o r i d a d e f ^ Não por ataso, o protagonista do romance de Hardy se chama Judas: é o "negativo* Çriato. um "padre frustrado" que joga no fogo os seus livros de teologia e cujo filho morre de maneira atroz por ter tomado tudo ao pé da letra. 1 0 3 O romance é um desafio ao texto sagrado, verdade que tem a coragem de afrontar as mil faces mutáveis por trás das quais o absoluto continuamente se mascara. "O homem é o maior macaco que julga que deve imitar tudo", amaldiçoava Gotthard Heidegger em 1 6 9 8 ; mas, quinze anos
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