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NEGRITUDE NA POESIA DE DOMINGOS CALDAS BARBOSA final

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A NEGRITUDE NA POESIA DE DOMINGOS CALDAS BARBOSA
 FRAZÃO, Francisco Adelino de Sousa[1: Mestre em Letras (UESPI); especialista em Docência do Ensino Superior (UESPI); graduado em Licenciatura Plena em Educação Artística – Música (UFPI); Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Piauí (IFPI).]
 TORRES, Alfredo Werney Lima [2: Doutorando em Música (UFMG); Mestre em Letras (UESPI); graduado em Licenciatura Plena em Educação Artística – Música (UFPI); Professor do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal do Piauí (IFPI).]
 Orientador: SOUSA, Elio Ferreira de [3: Doutor em Teoria da Literatura (UFPE). Mestre em Letras (UFCE). Especialista em Literatura Brasileira (PUC/PREPES - Belo Horizonte). Graduado em Letras (CEUB). Professor do Mestrado Acadêmico em Letras (UESPI).]
RESUMO: Este artigo tem o objetivo de refletir sobre traços de negritude contidos nas poesias de Domingos Caldas Barbosa (1860-1946), utilizando como base principal de nossa análise a sua obra Viola de Lereno. Para tanto, dialogaremos com os textos e produções teóricas de Roger Bastide (1943), Luiz Silva Cuti (2010), Édouard Glissant (2005), Kabengele Munanga (1988), Frantz Fanon, W. E. B. Du Bois (1903) e Elio Ferreira de Sousa (2005, 2006, 2011). Partimos da premissa de que algumas das poesias de Caldas Barbosa, contidas em Viola de Lereno (1798 e 1826), evidenciam rastros-resíduos característicos da poesia negro-brasileira. Visamos destacar a estética, a temática e a função social da poesia negra dentro da obra de Caldas Barbosa, enfatizando a relação entre a poesia, a canção e a cultura negro-brasileira. Neste sentido, esta investigação buscará traços de memória pessoal e coletiva, do eu lírico negro, inseridos discurso poético de Caldas Barbosa.
Palavras-chave: Domingos Caldas Barbosa; Viola de Lereno; negritude; rastros-resíduos;
ABSTRACT: This article aims to reflect on traces of blackness contained in poetry Domingos Caldas Barbosa (1860-1946), using as the main basis of our analysis of his work Viola de Lereno. Therefore, dialogaremos with texts and theoretical productions of Roger Bastide (1943), Cuti Luiz Silva (2010), Édouard Glissant (2005), Kabengele Munanga (1988), Frantz Fanon, W. E. B. Du Bois (1903) and Elio Ferreira de Sousa (2006). We assume that some of the poems of Caldas Barbosa, contained in Viola de Lereno, show traces of poetry-waste characteristic black-Brazilian. We aim to highlight the aesthetics, subject matter and social function of black poetry in the work of Caldas Barbosa, emphasizing the relationship between poetry, song and black-Brazilian culture. In this sense, this research will seek traces of personal and collective memory, the lyrical black, inserted poetic discourse of Caldas Barbosa.
Key words: Domingos Caldas Barbosa; Viola de Lereno; blackness; traces-waste;
INTRODUÇÃO
Para desenvolvimento deste estudo escolhemos o mulato carioca Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), que foi um poeta e violonista de grande importância no desenvolvimento da nossa música popular. Além disso, segundo Elio Ferreira de Sousa, este poeta árcade foi o primeiro escritor afro-brasileiro a assumir a cor da pele nos seus próprios versos, destacando o africanismo nas suas modinhas e lundus (SOUSA, 2006, p. 17). 
O nome de Domingos Caldas Barbosa é mencionado por muitos pesquisadores, tanto da área musical quanto literária, e sua trajetória sempre esteve vinculada à modinha e ao lundu, gêneros musico-literários que teria praticado acompanhando-se de uma viola. É importante destacar que Caldas Barbosa foi o responsável pela introdução destes dois gêneros de canção nos salões aristocráticos lisboetas de seu tempo (TABORDA, 2006, p. 559). E, Segundo Silvio Romero, o seu maior legado foi ter antecipado os temas e a estética da poesia negra, transmitindo nas suas canções, a cultura, o sentimento e a linguagem das camadas populares do seu tempo (ROMERO, 1980, p. 478 Apud SOUSA, 2006, p. 32). 
Através deste estudo objetivamos encontrar elementos que evidenciem a negritude nas poesias de Caldas Barbosa em alguns dos textos das canções contidas na obra Viola de Lereno, que ele publicou em Lisboa. Sendo assim, para concretização deste trabalho, dialogaremos principalmente com os textos e produções teóricas de Roger Bastide (1943), Luiz Silva Cuti (2010), Édouard Glissant (2005), Kabengele Munanga (1988), Frantz Fanon (2008), W. E. B. Du Bois (1903) e Elio Ferreira de Sousa (2006). 
Partimos da premissa de que algumas das poesias contidas em Viola de Lereno, de Caldas Barbosa, evidenciam rastros-resíduos característicos da poesia negro-brasileira. Visamos destacar a estética, a temática e a função social da poesia negra dentro da obra de Caldas Barbosa, enfatizando a relação entre a poesia, a canção e a cultura negro-brasileira. Neste sentido, esta investigação buscará traços de memória pessoal e coletiva, do eu lírico negro, inseridos discurso poético de Caldas Barbosa.
DOMINGOS CALDAS BARBOSA E A VIOLA DE LERENO
Um dos fatos mais importantes da formação da música popular brasileira se deu quando o mulato carioca Domingos Caldas Barbosa chocou os europeus quando, na segunda metade do século XVIII, apareceu em Lisboa cantando e acompanhando-se à viola com uma maneira direta e desenvolta de se dirigir às mulheres, utilizando certa malícia nos seus versos. Ele transgrediu os valores morais vigentes na sociedade da corte portuguesa, mas apesar disso, essas “canções amorosas de suspiros, de requebros, de namoros refinados, de garridices”, fizeram sucesso imediato em Lisboa (TINHORÃO, s.d., p. 10-11).
Há um consenso entre os biógrafos de Caldas Barbosa no que diz respeito à sua importância – senão como inventor – pelo menos como um divulgador da modinha em Portugal. Convém aqui destacar o pensamento de Mozart de Araújo quando afirma que: “No bojo de sua viola o nosso Caldas Barbosa levou à metrópole portuguesa a primeira manifestação da sensibilidade e do sentimento musical do povo brasileiro — o lundu e a modinha” (ARAÚJO, 1963, p. 46).
Sobre a vida do compositor, Tinhorão assim define:
O poeta e violeiro Caldas Barbosa, nascido na colônia do Brasil por volta de 1740, era filho de pai branco com uma preta de angola, chegada ao Rio de Janeiro já grávida. Reconhecido pelo pai, o mulatinho chegou a estudar no Colégio dos Jesuítas, mas, logo por volta de 1760, estando em idade militar, certas queixas contra seus epigramas e versos satíricos provocaram o seu envio como soldado para a Colônia do Sacramento, no extremo sul do Brasil. Ora, tanto na vida de estudante quanto na militar, ou ainda na boemia a que se entregou durante mais de dez anos, após sua vinda ao Rio de Janeiro, em 1762, todos os contatos de Domingos Caldas Barbosa terão sido com mestiços, negros, pândegos em geral e tocadores de viola, e nunca com mestres de música eruditos [...] (TINHORÃO, s.d., p. 12-13).
Esta vida de boemia fez parte da formação da personalidade de Caldas Barbosa e, de certa forma, influenciou as suas composições que, de tão envolventes, foram elogiadas até nos Manuscritos de Antônio Ribeiro dos Santos (um escritor português doutor em cânones). Ribeiro dos Santos assinalou: “Eu admiro a facilidade da sua veia, a riqueza das suas invenções, a variedade dos motivos que toma para seus cantos, e o pico e a graça dos estribilhos e ritornelos com que os remata” (SANTOS Apud TINHORÃO, s.d., p. 12).
Assim sendo, Caldas Barbosa se configurou como a quebra da regra que, apesar das críticas, foi bem assimilada pela sociedade da corte portuguesa. E de acordo com Tinhorão, ele havia inaugurado um tipo de canção que constituiu a “autêntica música popular da colônia” que encantou a corte portuguesa e influenciou quase todos os compositores eruditos de seu tempo, em especial os italianos (TINHORÃO, s.d., p. 13-15).
Ainda segundo Tinhorão (s.d., p. 16), o próprio Silvio Romero (crítico e historiador da literatura brasileira) ficou surpreso com a sobrevivênciadas canções de Caldas Barbosa. Esta “sobrevivência” ficou evidenciada em sua pesquisa e coleta de canções no nordeste brasileiro para seu livro Cantos Populares do Brasil (1883). E é neste sentido que ele mesmo, Silvio Romero, afirma:
O poeta teve a consagração da popularidade. Não falo dessa que adquiriu em Lisboa, assistindo a festas e improvisando à viola. Refiro-me a uma popularidade mais vasta e mais justa. Quase todas as cantigas de Lereno correm na boca do povo, nas classes plebeias, truncadas ou ampliadas. (ROMERO Apud TINHORÃO, s.d., p. 16).
Silvio Romero ressalta ainda que, apesar de muitas das canções de sua pesquisa terem sido coletadas como anônimas, muitas delas fazem parte do acervo de composições de Caldas Barbosa, inclusive algumas que fazem parte da obra Viola de Lereno (ROMERO Apud TINHORÃO, s.d., p. 16). 
A coletânea de letras das cantigas de Domingos Caldas Barbosa intitulada Viola de Lereno foi organizada em dois volumes (o primeiro foi publicado em 1798 e o segundo em 1826, seis anos após a morte do poeta, cantor e compositor). Esta, se configura como uma seleção de uma série de canções (modinhas e lundus) que são resultado de seus improvisos na sua trajetória artística-literária-musical. No entanto, podemos encontrar várias quadras do poeta dispersas em alguns documentos musicais do século XVIII, tanto devido à propagação da modinha, quanto por causa do seu sucesso como um dos precursores da formação da música popular brasileira (GRECCO, 2006).
Sacramento Blake, Arthur Motta, Ferdinand Wolf e Antonio Candido defendem a ideia de que a obra poética de Domingos Caldas Barbosa, restrita somente à análise da Viola de Lereno é apenas uma manifestação popular de tão pouca representatividade que não deve erigir-se ao posto da literatura brasileira erudita, sendo, dessa forma, classificada como “literatura menor”. Já os folcloristas como Sílvio Romero e Luis da Câmara Cascudo defendem a popularidade e simplicidade dessas quadras como expressão única e pura do folclore nacional (GRECCO, 2006).
Em 1893, Sacramento Blake no Diccionario Bibliographico Brasileiro, comentou uma dura crítica dirigida à Viola de Lereno, defendendo Caldas Barbosa: 
“Que injustiça avaliar-se o mérito de um poeta por cantigas chulas, improvisadas na mais estreita intimidade, entre comensais, no lar, sob o império da rima, na linguagem própria do povo ignorante, ao mesmo tempo em que se desferem as cordas de uma viola!” (BLAKE, 1893, p. 198 Apud TABORDA, 2006, p. 559).
A Viola de Lereno, apesar de sua aparente simplicidade, se configura como um importantíssimo conjunto de letras de canções que arremetem à atuação de Domingos Caldas Barbosa em Portugal. Como características dessa coletânea, podemos destacar: versos em redondilha maior e sob a forma de quadras, que utilizam estribilho ou não; obedece geralmente a forma ABCB quanto ao esquema de rimas; O amor aparece como temática predominante e este é abordado num sentido mais carnal que platônico, evidenciando assim o tom sensual das suas composições; representação do pastor Lereno e suas pastoras, sendo que esse aspecto, além de acentuar o bucolismo da academia árcade, torna claro seu desligamento da poética neoclássica, pois apresenta uma simplicidade formal na estruturação de seus versos; a musicalidade de seus versos incorpora elementos rítmicos brasileiros, sendo introduzidos até mesmo pela sonoridade de expressões extraídas da fala cotidiana dos negros da colônia, tais como: “angu”, “cuia”, “moleque”, “nhanhá”, “pé-de-banco” e “quingombô”, que estão inseridas em suas canções (GRECCO, 2006).
POR UM CONCEITO DE NEGRITUDE
Para Santos & Wielewicki (2005), negritude foi um movimento caribenho que influenciou muitos movimentos negros em vários países do mundo. Este movimento estava calcado em três premissas básicas: 1) a construção de uma identidade negra; 2) a rejeição dos modelos artísticos europeus; 3) a revolta contra o colonialismo europeu. (SANTOS & WIELEWICKI, 2005, p. 293).
Kabengele Munanga (1988) afirma que sem a escravização e a colonização dos povos negros da África, a negritude não existiria. Para ele, o conceito de negritude assume diversas definições nas áreas cultural, biológica, psicológica, política, entre outras. (MUNANGA, 1988, p. 5). Ele considera Du Bois como o pai da negritude quando afirma:
Sem pregar a volta para a África dos negros americanos, defendia os direitos destes enquanto cidadãos da América e exortava os africanos a se libertarem em sua própria terra. Por ter defendido a volta às origens, Du Bois merece também o nome de Pai da Negritude (MUNANGA, 1988, p.36).
Du Bois (1999) reflete que existe uma complexa relação entre a diáspora africana e a nova pátria na qual os negros africanos se estabeleceram. O que nos remete ao seu conceito de dupla consciência: ao mesmo tempo em que os negros da diáspora se estabeleceram em outro país, mantiveram uma ligação involuntária com a sua pátria e com a sua identidade, enquanto se adaptavam ao novo lugar (HARRIS, 1996, p. 12 Apud DIOP, 1999).[4: Diáspora – Palavra de origem grega que significa “dispersão”. Antes, designava “o movimento espontâneo dos judeus pelo mundo, hoje aplica-se também à desagregação que, compulsoriamente, por força do tráfico de escravos, espalhou negros africanos por todos os continentes” (Nei Lopes. Diáspora africana, São Paulo: Selo Negro, 2004, p. 236).]
De acordo com os ideais da negritude, destacamos o papel do autor de As almas da gente negra, William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) que foi um intelectual requintado e um estudioso da sociedade de seu país interessado pelo destino do povo negro. Ele buscou entender e desvendar a experiência dos negros nos Estados Unidos e no mundo desde o início da escravidão no seu país até os tempos modernos rejeitando os ideais separatistas, sendo militante por uma cooperação inter-racial entre negros e brancos. Além disso, foi um precursor pela luta pelos direitos civis das minorias e dos modernos estudos culturais (GOMES Apud DU BOIS, 1999, p. 07-23).
Segundo Munanga, um dos conceitos de negritude está direcionado à atitude do ser étnico negro frente à negação do embranquecimento e a aceitação de sua herança sociocultural. Ou seja, esse retorno às origens ancestrais devolveria ao negro a autoestima, um sentimento de não-inferioridade calcado no sentimento de igualdade entre os homens. Sendo assim, o movimento da negritude desempenhou seu papel emancipador, culminando nas independências africanas, estendendo-se como libertação para todos os negros na diáspora, vítimas do racismo branco, inclusive nas Américas (MUNANGA, 1988, p. 5).
Semelhantemente a Munanga, Elio Ferreira de Sousa (2006) conceitua a palavra negritude como uma atitude consciente do negro frente à sua condição racial, ao preconceito e à discriminação. Mas também direciona o sentido deste conceito à aceitação do seu legado histórico e da identidade cultural dos africanos e afrodescendentes da diáspora. Neste sentido é que Sousa (2006) afirma:
A Negritude recusa a assimilação cega dos valores impostos pelo branco, a dominação política e a espoliação econômica que teve início com o navio negreiro e perdurou até a segunda metade do século XX, com a presença do neocolonialismo europeu na África. [...] O Movimento da Negritude nasceu em Paris por volta de 1934, quando um grupo de intelectuais africanos e caribenhos radicados em Paris se reuniu em torno dos seus ideais. [...] Influenciados pelo Renascimento Negro norte-americano, os intelectuais negros assumem um discurso em defesa dos direitos à igualdade racial, adotando princípios do marxismo reivindicatório e o combate ao neocolonialismo europeu. (SOUSA, 2006, p. 25-26)
Através das palavras de Sousa (2006), entendemos que o conceito de negritude arremete a uma interação de ordem político-social-cultural que reivindica para si a identidade do negro relacionada com a ancestralidade, com suas raízes africanas. Além disso, o discurso do ser étnico negro passa a ser engajado,ou seja, de luta em defesa dos direitos e pela igualdade racial, contra a supremacia do branco. 
Direcionada à literatura, a negritude, enquanto ideologia, exerce influência na produção e na crítica literária funcionando como “instrumento de contestação do sistema dominante e afirmação da identidade negra” (FERREIRA & MENDES, 2011, p. 10).
Nos Estados Unidos, a negritude culminou no Renascimento Negro, um movimento que reuniu os escritores negros norte-americanos em torno de objetivos comuns como: a assunção da cor, da identidade e do Eu negro; o combate ao preconceito racial; a conquista de um espaço no cenário cultural, literário e artístico dos EUA; o resgate da ancestralidade africana através da valorização da cultura, da memória mítica e histórica dos ancestrais negros (SOUSA, 2006, p. 24).
Já no Brasil a negritude é inaugurada pelos movimentos dos “quilombos brasileiros, que representaram o primeiro sinal de revolta contra o dominador branco” (BERND, 1988, p. 21 Apud SOUSA, 2006, p. 26). Como exemplo disso, temos o Quilombo dos Palmares liderado por Zumbi, e afirma que esse ideal libertário migrou para os movimentos posteriores. (SOUSA, 2006, p. 26). E é nesse sentido que Sousa ainda complementa:
Em oposição à visão unilateral desse discurso, os escritores da Diáspora africana e da África passaram a se organizar em torno de movimentos de caráter político, cultural e artístico, com o objetivo de combater o preconceito racial, restaurar a cultura de tradição africana, repensar a condição psico-social do homem negro e sua relação com o branco, recusando os valores e a assimilação negativa que depreciam a imagem do africano e dos seus descendentes em Diáspora. (SOUSA, 2006, p. 29)
Assim, o conceito de negritude, de acordo com Sousa (2006), abriga em seu bojo um sentimento de pertencimento, de identidade que arremete à ancestralidade africana, e que, além disso, abarca a questão da não conformidade da situação de exclusão e/ou racismo mascarado ou manifesto. Entendemos, a partir deste raciocínio, a necessidade do movimento negro instaurado que serviu e serve como uma estratégia de luta para dar vez e voz ao sujeito étnico negro.
LITERATURA AFRODESCENDENTE, AFRO-BRASILEIRA, NEGRO-BRASILEIRA
Ao falarmos sobre a produção literária de um autor negro, encontramos alguns termos que necessitam serem discutidos ou explanados para um melhor entendimento acerca da temática em questão, como por exemplo, o conceito de: afrodescendente, afro-brasileiro e negro-brasileiro. Estes termos apresentam semelhanças e divergências entre as teorias e produções textuais de alguns pesquisadores. Uma das semelhanças principais diz respeito à aceitação do legado sociocultural milenar das identidades étnicas e raciais, o que reflete a ligação do indivíduo à religiosidade e à identidade cultural dos seus antepassados. 
Para Roger Bastide, a religiosidade está visceralmente entrelaçada ao escritor, de tal forma que este não pode se libertar das amarras da ancestralidade. Bastide crê que um romancista, ou um poeta, pode até tentar exorcizar as multidões de ancestrais, pode tentar matar os deuses, derrubá-los de seus pedestais, no entanto, eles ainda continuarão entre nós, eles ainda falarão, ou seja, fica sempre alguma coisa. (BASTIDE, 1943, p. 07).
Édouard Glissant (2005) sugere que a aceitação da ancestralidade funciona como um elo que nos liga a estes resquícios de memória social étnica, a estes rastros/resíduos. O rastro/resíduo é a relação do indivíduo com o seu passado distante do onde/quando/como (lugar/tempo/contexto) viviam os ancestrais, as paisagens, os costumes, os rituais, a musicalidade, enfim, a cultura de um povo fundador, de raiz, de uma cultura atávica. Falando mais precisamente da cultura negra, Glissant diz que “Os africanos, vítimas de tráfico para as Américas, transportaram consigo [...] o rastro/resíduo de seus deuses, de seus costumes, de suas linguagens” (GLISSANT, 2005, p. 83-85).
De acordo com a Bastide, o poeta não pode fugir de suas raízes, pois traz a tona reminiscências de um passado longínquo, acaba por dar à luz os tesouros escondidos do consciente e do subconsciente de si mesmo revelando deuses e demônios ocultos, libertando antepassados recalcados que residem, voluntária ou involuntariamente, em sua memória. O autor negro traz o sangue da África correndo em suas veias e, com esse sangue, florestas ou descampados, a musicalidade, as tradições de magias e danças, a religiosidade, estabelecendo uma forte ligação entre o negro e a mãe África (BASTIDE, 1943, p. 8). 
Neste pensamento há uma previsão de que, numa poesia, a negritude se apresenta na obra escrita, há sempre uma voz coletiva que surge como um grito social que não se pode calar. Roger Bastide ainda reitera:
Por trás de cada linha escrita há sentimentos reprimidos que deixam rastros, há algumas notas das melodias secretas, preces esquecidas de que ficou um murmúrio ligeiro, e sussurro indistinto dos ancestrais que pareciam afastados para sempre, mas que falam do outro lado da porta pesada, maciça, acorrentada... (BASTIDE, 1943, p. 15).
Sendo assim, a afro-descendência nas Américas aparece como um aspecto indissociável das produções dos escritores negros. Bastide argumenta ainda que é indiscutível a relevância, importância e a influência dos negros a partir de suas canções e poesias no contexto norte-americano (BASTIDE, 1943, p. 17). Além disso, ele reforça o pensamento de que no Brasil:
O homem de cor enriqueceu sem dúvida a literatura brasileira, imprimindo-lhe a marca dos seus desejos, de suas aspirações ou de seus sofrimentos, cantando sua alma, suas paixões e seus amores (BASTIDE, 1943, p. 17-18).
Bastide aceita a afro-descendência como a ligação do homem de cor à suas tradições de raízes culturais. No entanto, esta não é uma visão aceita por todos os pesquisadores sobre os conceitos aqui discutidos. Como exemplo, podemos citar Luiz Silva Cuti que, ao diferenciar o conceito de afrodescendente, afro-brasileiro e negro-brasileiro, explica que há diferenças que acabam por definir o papel do indivíduo diante da sua atuação social.
Para Cuti, ao pôr o prefixo afro nas produções literárias de negros brasileiros, projetamos estas produções à origem ou descendência africana. Este termo funciona como um “discreto retorno à África”. É como se só a produção de autores brancos fizessem parte da literatura no Brasil e os autores afrodescendentes, ou afro-brasileiros, fossem um apêndice da literatura africana. Cuti ainda reflete que a literatura africana não tem a função social de combater o racismo no Brasil, além de não ter a necessidade de se assumir como negra. Fora isso, nem todos os povos africanos são negros, o que implica em dizer que o termo afro não define com precisão o ser étnico negro como sujeito (CUTI, 2010, p. 35-38).
Sobre este assunto, Cuti afirma que, o melhor termo para definir as produções de poetas negros brasileiros seria poesia negro-brasileira, pois segundo ele:
Portanto, palavra “negro” nos remete à reinvindicação diante da existência do racismo, ao passo que a expressão “afro-brasileiro” lança-nos, em sua semântica, ao continente africano, com suas mais de 54 nações, dentre as quais nem todas são de maioria de pele escura, nem tampouco estão ligadas à ascendência negro-brasileira (CUTI, 2010, p. 40).
Apesar de que para muitos autores os termos afrodescendente, afro-brasileiro e negro-brasileiro podem ser utilizados como sinônimos, a partir do pensamento de Cuti entendemos que: o termo afrodescendente delimita os negros descendentes da África, independente do país de sua naturalização, sendo uma terminologia global e generalizante; afro-brasileiro é o negro de origem africana nascido no Brasil; e o termo negro-brasileiro (termo que acreditamos ser o mais apropriado para este trabalho, por trazer em si um contexto, uma história que identifica o negro no contexto de sua atuação e trajetória no Brasil) representando o enfrentamento do racismo, do preconceito e da discriminaçãoracial, inseridos ou identificados com o contexto sociocultural brasileiro (CUTI, 2010).
Arremetendo ao âmbito literário, para Sousa (2006), o conceito de literatura negro-brasileira, ou afrodescendente, é relacionado à consciência solidária do quilombo. Nessa visão, não se aceita a identificação das suas produções com a visão do colonizador, do dominador, do que escraviza e impõe seus valores como padrão e modelo. “A África é revisitada e se apresenta como campo simbólico, representando a utopia do negro excluído social e culturalmente da literatura oficial” (SOUSA, 2006, p.52).
Para Bernd (1987, p. 80 Apud SANTOS & WIELEWICKI, 2005, p. 290) há também uma crença em que o termo literatura negra transcende às nacionalidades e às questões da língua. Já o termo afro-brasileiro, arremete à literatura que se empenha em resgatar uma ancestralidade africana.
Santos & Wielewicki (2005) ressaltam alguns critérios utilizados para conceituar uma obra literária como afrodescendente, como: 
o critério étnico (ligação da obra à origem negra ou mestiça do autor); o critério temático (conteúdo literário relacionado aos temas referentes à cultura afro-brasileira); e o que chamaremos de critério de transgressão (o texto como forma de reivindicação e resistência) (SANTOS & WIELEWICKI, 2005, p. 290).
As autoras apontam a dificuldade em estabelecer uma análise da literatura negra brasileira baseando-se no critério étnico, porque o Brasil se configura como um país mestiço. O critério temático é mais abrangente por implicar na revelação de dimensões peculiares dos negros e de seus descendentes no texto, no entanto, deve ser considerado o fato de que os autores negros utilizavam-se dos padrões clássicos europeus e de autores não-negros para escrever sobre assuntos relacionados aos afro-brasileiros como: a escravidão, as histórias dos quilombos, a cultura negra, o preconceito racial (SANTOS & WIELEWICKI, 2005, p. 290). Já o critério de transgressão refere-se à análise de obras literárias que estejam dispostas a desconstruir o cânone literário enquanto instituição branca ou europeia. Este critério propõe o estabelecimento de uma literatura consistentemente afro-brasileira (BERND, 1987, p. 18 Apud SANTOS & WIELEWICKI, 2005, p. 290-291).
A NEGRITUDE NA POESIA DE DOMINGOS CALDAS BARBOSA
	
A importância de Domingos Caldas Barbosa se deve a dois fatores de suma importância, tanto para a literatura, quanto para a música. Pois destacamos o fato de que ele foi o precursor da literatura negra ao mesmo tempo em que é considerado um dos fundadores da nossa Música Popular Brasileira (FERREIRA, 2005, p. 98). 
Assim como Samba Diop relacionou o griot do oeste africano com o cantor de blues afro-americano e com o pastor de igrejas gospel, podemos relacionar a atuação e trajetória artística-musical-literária de Domingos Caldas Barbosa com a tradição deste guardião das memórias africanas. O griot era o responsável pela transmissão da cultura, da religião, da linguagem e dos valores de uma memória social de um povo, e desempenhava seu papel essencialmente através da tradição oral. Sendo assim, comparamos Caldas Barbosa com o griot pelo fato de que ambos trazem à vida uma ancestralidade que se renova na sua tentativa de dialogar com sua origem negra-africana (DIOP, 1999).
Caldas Barbosa foi um personagem histórico que atiçou a curiosidade de muitos pesquisadores, sendo que, alguns dos seus mais importantes biógrafos são: Cônego Januário da Cunha Barbosa, sobrinho do poeta, que publicou sua biografia em 1842 no volume 4 da Revista do I.G.H.B.; Adolpho de Varnhagem, que escreveu em 1850, no Florilégio da literatura brasileira sobre Caldas Barbosa; Joaquim Manuel de Macedo que, no Anno Biographico Brasileiro, traçou o perfil de Caldas Barbosa; (TABORDA, 2006, p. 558).
Varnhagem (1850) relata que Caldas Barbosa era um cantor que possuía uma capacidade de improvisar facilmente versos à viola. Afirma também que tinha uma “alma afetuosa e inofensiva”, que não fazia inimizades ou intrigas. Era tão bem quisto na sua época que “sociedade onde não se achava Caldas com sua viola não se julgava completa” (VARNHAGEM Apud TABORDA, 2006, p. 559). 
Já Joaquim Manuel de Macedo em Anno Biographico Brasileiro, esboçou o perfil de Caldas Barbosa dizendo que “Como tocasse bem viola e cantasse agradavelmente modinhas e lunduns, tornou-se o sócio almejado e aplaudido das melhores companhias” (MACEDO, 1876, p. 377 Apud TABORDA, 2006, p. 559).
É importante rechaçarmos que não temos o interesse de esgotar todas as possibilidades de leitura das obras de Domingos Caldas Barbosa, pois precisaríamos de muito mais tempo, além do que, este trabalho, teria de ser uma publicação muito maior que um simples artigo. Portanto, escolhemos apenas algumas das obras que evidenciam alguns traços da negritude das letras de canções de sua autoria. É neste sentido que, para nossa análise, selecionamos algumas características da poesia negra que estão evidentes em sua obra, e que representaram uma quebra dos padrões aceitos na época de sua trajetória artística em Portugal: 1) a sensualidade e o erotismo de seus versos; 2) Transgressão dos padrões de beleza europeus; 3) o ritmo sincopado de seus lundus; 4) o assumir-se negro; 5) a linguagem tipicamente negro-brasileira; 6) Sensação de emparedamento.
Entretanto, é importante frisarmos que estas seis características podem ser encontradas numa mesma obra sua. Mas, por fins didáticos, e para um melhor entendimento, buscaremos enfatizar a prevalência de uma característica por vez em cada texto, ou trecho, analisado.
Para analisar A Negritude na poesia de Domingos Caldas Barbosa, estabelecemos os seguintes passos: primeiro fizemos a leitura das teorias e discursões acerca dos conceitos basilares para este trabalho (negritude, afro-descendência, afro-brasileiro, negro-brasileiro) e da obra a ser analisada (Viola de Lereno, nos seus dois volumes), produzimos resumos e fichas de citações que julgamos importantes para refletir sobre a negritude presente na mesma; em segundo lugar, levantamos, lemos e fichamos textos acerca de Caldas Barbosa e de sua produção (teses de doutorados, dissertações de mestrados, artigos em diversos periódicos - eletrônicos ou impressos - e livros que tratassem do assunto); o terceiro passo foi preparar a redação do artigo buscando uma clareza de raciocínio, dialogando com os conceitos basilares, demonstrando que as obras poéticas-cancionais (modinhas e lundus) de Caldas Barbosa fazem parte da literatura negro-brasileira, de acordo com as teorias e com os textos de Elio Ferreira de Sousa (2006), Roger Bastide (1943), Luiz Silva Cuti (2010), Édouard Glissant (2005), Kabengele Munanga (1988), Frantz Fanon, W. E. B. Du Bois (1903).
1) A sensualidade e o erotismo de seus versos:
Domingos Caldas Barbosa lançou mão do ritmo musical de origem africana lundu para manifestar seu lirismo poético, uma espécie de erotismo ameno, sensual, comedido ainda pelo decoro formal, no entanto, mais ousado que qualquer poeta do seu tempo. Ele inseria elementos que sugeriam a sexualidade típica do ritmo lundu e de sua famosa umbigada. 
Se comparados as composições de Caldas Barbosa com muitas das composições da atualidade (numa análise diacrônica) creremos que as letras de suas canções são até bem leves em termo de conteúdo, no entanto, para a época em que se insere (numa análise sincrônica), representa uma transgressão dos paradigmas e valores aceitos como o padrão, como por exemplo: os valores morais, culturais, étnicos, estilísticos, musicais. Caldas Barbosa transgrediu as normas composicionais de sua época e, apesar de ter sido muito bem assimilado pela sociedade portuguesa, não escapou das críticas de pessoas que tinham certa influência na opinião da elite portuguesa. 
De acordo com Adriana de Campos Rennó:
Os lundus do poeta luso-brasileiro Domingos Caldas Barbosa (1740-1800), presentes em sua Viola de Lereno (1798), remexem, sensual e atrevidamente, os padrões rígidos da linguagem neoclássica.O ritmo sincopado dessas composições, que Caldas Barbosa extrai da tradição popular afro-brasileira, possui um tom de sugestivo erotismo, embora atenuado por uma relativa obediência do poeta às leis do decoro clássico, ainda dominantes nos meios de circulação portugueses de fins do século XVIII. (RENNÓ, s.d., p. 01).
Na cantiga Lundum em louvor a huma brasileira adoptiva, Caldas Barbosa reconhece o lundu como uma dança melhor que os fandangos e as gigas, que eram ritmos europeus muito requisitados naquela época. Insinua sentir saudades das chulices brasileiras, reconhecendo na musa portuguesa uma brasileira adotiva.
Lundum em louvor a huma brasileira adoptiva - CANTIGAS
Eu vi correndo hoje o Téjo
Vinha soberbo e vaidoso;
Só por ter nas suas margens
O meigo Lundum gostoso.
Que lindas voltas que fez
Estendido pela praia
Queria beijar-lhe os pés.
Se o Lundum bem conhecêra
Quem o havia cá dançar;
De gosto mesmo morrera
Sem poder nunca chegar.
Ai rum rum
Vence fandangos e gigas
A chulice do Lundum. [...] 
(BARBOSA, 1826, vol. 2, num. 02, p. 29-32)
Assim é que Caldas Barbosa exalta sua brasileiridade no texto Lundum em louvor a uma brasileira adotiva, referindo-se a uma portuguesa que é relatada como musa inspiradora de um eu poético que a exalta pelo seu jeitinho brasileiro. O eu lírico parece observar uma moça a lavar roupas nas margens de um rio e relaciona os gestos da musa com os requebros do corpo na dança de um lundu. Chega a chama-la de nhánhá, assim como eram chamadas as brasileiras pelos escravos, e produz uma obra com uma sensualidade recatada, talvez como estratégia para conseguir aceitação perante a sociedade portuguesa. A caracterização do jeitinho brasileiro para eu lírico desta canção era o molejo da moça ao dançar o ritmo de origem africana praticada no Brasil pelos negros e que foram bem aceitas nos salões da corte em Portugal (COSTA, s.d., p. 03-04). 
Em resumo, entendemos que este poema está repleto de coloquialismos afro-luso-brasileiros em sua construção. Além disso, o fato da portuguesa chegar a ser considerada como uma brasileira adotiva é descrita na letra da canção como um valor positivo. E, ainda nesta canção, Caldas Barbosa descreve a sensualidade dos movimentos da dança de um lundu, que insinua através do trecho que diz:
[...] Uns olhos assim voltados
Cabeça inclinada assim.
Os passinhos assim dados
Que vêm entender com mim. [...]
[...] Um lavar em seco a roupa 
Um saltinho cai não cai; 
O coração Brasileiro
A seus pés caindo vai.
(BARBOSA, 1826, vol. 2, num. 02, p. 29-32)
Nestes trechos temos a descrição dos olhos, da inclinação da cabeça, dos passinhos, dos saltinhos, ou seja, Caldas Barbosa faz um destaque ao que indica como sendo a sensualidade da brasileira adotiva. 
Em outra composição sua de título de Lundum observamos a recorrência de termos negro-brasileiros além de certo atrevimento ao se oferecer como escravo (moleque) de sua musa (a Nhanházinha).
LUNDUM
[...] Para ser teu Nhanházinha
Não deixei nada de meu,
Té o próprio coração
Aqui stá que todo he teu.
Se não tens mais quem te sirva
O teu moleque sou eu,
Chegadinho do Brasil
Aqui stá que todo he teu. [...]
(BARBOSA, 1826, Vol. 2, Num. 02, p. 18-20)
O termo moleque assume aqui o sentido de escravo e o termo Nhanházinha adota o sentido de dona, de senhora, de sinhá do escravo. No entanto, voltaremos a discutir sobre os vocábulos utilizados por Caldas Barbosa no decorrer deste artigo. O importante neste tópico é entendermos a sensualidade sugestiva contida em seus versos.
O ritmo dado pelas palavras de sua composição poética e o deslocamento da acentuação das sílabas tônicas destas palavras nas estrofes em relação à acentuação das palavras dos estribilhos reforça a sensualidade sugerida ao amor abrasileirado. Como exemplo, podemos citar a obra Doçura de Amor:
DOÇURA DE AMOR
CUIDEI que o gosto de Amor
Sempre o mesmo gosto fosse, 
Mas um Amor Brasileiro
Eu não sei porque he mais doce. [...]
[...] Quando a gente tem nhanhá
Que lhe seja bem fiel,
He como no Reino dizem
Cahio a sopa no mel. [...] 
(BARBOSA, 1826, Vol. 2, Num. 02, p. 05-07)
Nesta poesia, o eu lírico exalta a doçura do “Amor Brasileiro” quando afirma: “Mas um Amor Brasileiro, Eu não sei porque mais doce.” e “Cahio a sopa no mel”. A ênfase dada ao “Amor Brasileiro” pode ser percebida pela utilização de letras maiúsculas no início destas palavras assim como no trato do autor para com o tema, pois sempre está pondo em destaque a diferença entre as mulheres do reino em relação às brasileiras, que são tidas como mais “doces”. Um discurso semelhante ao desta poesia pode ser encontrado em outra composição de Caldas Barbosa com o título de Para o mesmo estribilho:
Para o mesmo estribilho
O AMOR que he cá do Reino
He huma Amor caprichoso,
O do Brasil todo he doce
He bem bom he bem gostoso. [...]
[...] Hum certo volver dos olhos
Inda um tanto desdenhoso,
No meio disto hum suspiro
He bem bom he bem gostoso. [...]
[...] Chegar aos pés de nhanhã
Ouvir chamar preguiçoso,
Levar um bofetãozinho
He bem bom he bem gostoso.
(BARBOSA, 1826, Vol. 2, Num. 02, p. 07-10)
Reflete que o amor do reino é “caprichoso”, enquanto que o do Brasil é “doce” e “bem gostoso”. O eu lírico enaltece o “Amor Brasileiro” como um amor sem pudor, sem artimanhas, livre de certos preceitos morais, numa sensualidade que não diz com todas as palavras, mas torna implícito o apelo sexual. Ele chega até mesmo a dizer que “Levar um bofetãozinho he bem bom he bem gostoso”.
2) A transgressão dos padrões de beleza europeus:
Na obra Viola de Lereno, de Domingos Caldas Barbosa, percebemos duas vozes distintas que servem para distinguir os estilos utilizados por ele. Uma é a voz encontrada nos lundus que evidencia certa influência das línguas africanas, traços que revelam a sua identificação com a cultura negra. A outra voz pode ser percebida nas cantigas cujo eu lírico é Lereno de Selenuntino. Esta voz está inserida nas canções que foram compostas nos moldes árcades europeus, no entanto, em casos especiais – como Retrato de Lucinda – a valorização da mulher de pele escura marca a transgressão de Caldas Barbosa em frente à exaltação da mulher branca, que era formalmente aceita como padrão de beleza.
Observando o exemplo seguinte:
RETRATO DE LUCINDA
[...] Não tens nas faces
Jasmins e rosa,
Cor mais graciosa
Nas faces tens.
Todas ta invejão,
E há quem ser queira,
Assim trigueira
Como tu és. [...]
(BARBOSA, 1826, p. 09-11, vol. 2 - num. 01)
Esta canção retrata a mulher afrodescendente como o objeto de desejo do eu lírico. O poeta a exalta como detentora de uma beleza que o impressiona, uma beleza que provoca a inveja nas demais moças. Há uma valorização maior da beleza e a graciosidade da mulher negra em relação à mulher branca (COSTA, s.d., p. 04). Notamos ainda que a obra Retrato da minha linda Pastora também rompe com o padrão de estética feminina da época:
Retrato da minha linda Pastora 
[...] Engraçada por morena,
Tem redonda a face bela;
Não há boca como aquela,
Nem melhor, nem mais pequena. [...]
[...] São as mãos também morenas
As que à graça aumento dão;
As validas de Amor são
Podem tanto tão pequenas. [...]
(BARBOSA, 1798, vol. 1, num. 08, p. 24-28)
Percebe-se que Caldas Barbosa não se contentou em representar somente as temáticas e o estilo neoclássico utilizado por seus contemporâneos. Ele utilizou uma nova forma de compor ao trazer para seus textos uma oralidade e uma musicalidade que ressaltou sua origem afro-brasileira. Mesmo nas poesias, em que Caldas Barbosa utiliza características do estilo neoclássico (como os temas: amor e beleza feminina), podemos reconhecer traços que o singularizam no contexto histórico, cultural e social em que viveu. 
3) O ritmo sincopado de seus lundus:
O lundu surgiu no século XVIII como uma forma de dança e seu aparecimento se relaciona intimamente com o processo de colonização do Brasil. O lundu é uma síntese dasculturas europeias (principalmente Portugal e Espanha) e da cultura africana, trazida pelas tradições dos escravos africanos ainda nos primeiros séculos de colonização (LIMA, 2006, p. 100). A sua base coreográfica traz elementos do fandango (dança de origem ibérica), tais como os estalidos dos dedos, a alternância das mãos (ora nos quadris e ora na testa), e o caminhar na ponta dos dedos dos pés (KIEFER, 1977, 34 Apud LIMA, 2010, p. 20). Já o balanço das ancas, o rebolado e a umbigada, são de origem negra (KIEFER, 1977, p. 100 Apud LIMA, 2010, p. 20-21; MUKUNA, 2006). O lundu se desenvolveu no Brasil sem muitos impedimentos de ordem cultural, no entanto, houveram conflitos entre este tipo de canção e a moral católica vigente na época.
De Acordo com a crônica efetuada por Tomás Antonio Gonzaga em suas Cartas Chilenas (2006 - 1786, p. 156 Apud LIMA, 2010, p. 21):
Fingindo a moça, que levanta a saia,
E voando nas pontas dos dedinhos,
Prega no machacaz de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços:
Então o machacaz mechendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outro na ilharga,
Ou dando alguns estalidos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz: “eu pago, eu pago”; e de repente
Sobre a michela atira o salto.
Ó dança venturosa! tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta,
Te honravam cós marotos, e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e Palácios.
Percebemos, neste trecho da Carta 11ª, uma certa injúria por parte de Antonio Gonzaga. Aqui ele descreve a dança com uma carga dramática de requebros, de malemolências e umbigadas, além de sugerir que este tipo de canção era executado com o acompanhamento de violas (instrumento antecessor do violão). O fato que parece mais irritante para Gonzaga é o fato de que o lundu se estabeleceu desde as humildes choupanas até às casas mais honestas e aos palácios.
Sobre a rítmica utilizada por Caldas Barbosa, Rennó afirma que:
Em Caldas Barbosa, a apropriação do ritmo afro-brasileiro do lundu – com sua batida imprevisível, seu ritmo malemolente, que fugia aos padrões regulares das métricas tradicionais, sincopando, contra-ritmando as frases melódico-musicais e o verso redondilho –, atinge uma expressão sensorial muito mais espontânea, sugerindo o que pode ser chamado de erotismo atrevido. [...] compõe versos numa cadência rítmica irregular, repletos de índices reveladores de sua destinação vocal, musical, performática, produzidos que eram para serem letras de músicas. [...] Destinados não à leitura mas ao canto, os poemas da Viola de Lereno encontram na oralidade a sustentação ideal, desvencilhando-se das amarras retóricas próprias do verso neoclássico, ao encaminhar esse pendor oratório para os limites do verso oral e cantável. Nas cantigas da Viola, o influxo da música é tão poderoso que, para notá-lo, não é necessário recorrer às partituras que lhes dão a notação melódica original, já que é possível perceber, na formulação interna de seus versos, os índices esclarecedores de sua estruturação submetida ao andamento da frase melódica que as sustentava. (RENNÓ, s.d., p. 02-05). 
Adriana de Campos Rennó reflete que Caldas Barbosa aplica ritmos melódicos com uma marcação binária, mas também uma estrutura contramétrica - ou sincopada - provocada pelo deslocamento do tempo forte, ou seja, pela inserção de sílabas átonas no tempo das marcações fortes do ritmo binário. Caldas Barbosa buscava vincular as palavras às melodias do lundu que dedilhava na viola compondo, assim, versos numa cadência rítmica irregular. (RENNÓ, s.d., p. 05). 
Percebemos a estrutura sincopada utilizada nos lundus de Caldas Barbosa em oito letras de canções que estão presentes no segundo volume da Viola de Lereno. Seis delas recebem a identificação como lundu e, as outras duas não, mas apresentam características semelhantes como: o uso da linguagem coloquial, a irreverência com ar de improviso, e a sensualidade “como elemento pitoresco da cultura mestiça brasileira” (RENNÓ, s.d., p. 06).
Analisemos um trecho de Lundum em louvor a huma brasileira adoptiva (canção citada anteriormente):
 
Lundum em louvor a huma brasileira adoptiva 
[...] Este Lundum me dá vida
Quando o vejo assim dançar;
Mas temo se continúa
Que Lundum me ha de matar
Ai lembrança
Amor me trouxe o Lundum
Para metter-me na dança.
Nhanhá faz hum pé de banco
Com seus quindins, seus popôs
Tinha lançado os seus laços
Aperta assim mais os nós. [...]
(BARBOSA, 1826, p. 29-32, vol. 2 - num. 02)
Ao marcarmos as sílabas fortes das palavras em negrito, e, julgando que Caldas Barbosa utilizou a acentuação das palavras de acordo com o andamento binário próprio do ritmo quebrado do lundu, observamos que há vários deslocamentos destas sílabas em relação à marcação dos tempos fortes de um compasso binário. Ou seja, ele rompe com a previsibilidade utilizada pelos versos da poesia neoclássica (RENNÓ, s.d., p. 07).
4) O assumir-se negro;
Vemos Domingos Caldas Barbosa como um escritor que, segundo Silvio Romero, “não fazia caso se lhe chamassem de mulato” (ROMERO Apud BASTIDE, 1943, p. 21), até chegando a improvisar diante do padre Sousa Caldas os seguintes versos:
Tu és Caldas, eu sou Caldas;
Tu és rico, e eu sou pobre;
Tu és o Caldas de prata;
Eu sou o Caldas de cobre. 
(BARBOSA Apud ROMERO, 1980, 478).
De acordo com Sousa (2006), uma das marcas relevantes da escrita negra é o fato do autor assumir-se negro, aceitando sua cor, sua cultura, sua história. Tudo isso serve como ponto de partida para reconhecimento da sua identidade. O olhar de “dentro” promovido pelo escritor negro funciona como um ponto de vista da sua própria experiência ou visão de mundo, que se configura ao mesmo tempo como individual e social. Neste sentido, “quando o Eu enunciador se assume como negro; ele estabelece relações sociais que se fundamentam, sobretudo, no sentimento de ‘solidariedade’” (SOUSA, 2006, p. 32). 
Sobre esse assunto, Camargo reflete que caldas Barbosa era: 
Um mulato que volta seu olhar para sua cor e escreve sobre isso. Não é a toa que Manuel Bandeira cita-o como precursor da poesia brasileira. Ele, um mulato, que foi chamado de orangotango por Bocage e de macaco por outros. Foi ridicularizado e humilhado por ter ousado entrar nos palácios, recitando e cantando o lundum, um ritmo de negros. Os intelectuais da época zombavam dele. Ele era satirizado pelos outros escritores. Tudo isso por assumir sua cor e ascendência. (CAMARGO Apud COSTA, s.d., p. 01).
Na assunção do eu poético negro na sua obra, Caldas Barbosa se dirige ao interlocutor branco em postura de lamento, acusação ou crítica (CUTI, 1987, p. 152). A questão é que Caldas Barbosa, um mulato livre, conseguiu penetrar no mundo cultural que era exclusivo dos brancos. Utilizou-se da estratégia de imitar a literatura dos brancos como meio de se inserir naquele meio e de ser aceito mais facilmente. No entanto, discordamos com o pensamento de Bastide quando argumenta que Domingos Caldas Barbosa esqueceu as ancestralidades africanas e que não partiu do folclore negro (BASTIDE, 1943, p. 37). 
Elio Ferreira ainda reflete que:
Desde sua gênese, a poesia negra firmou um pacto com o sujeito negro e transita por uma trajetória libertadora, abrindo caminhos transgressores e contrários aos valores estéticos-ideológicos, consagrados pela literatura aceita como dominante. Na sua escrita de ruptura, o escritor negro exorciza seus demônios interiores, para reconquistar sua autoestima. (FERREIRA, 2005, p. 62).
Sendo assim, se atentarmos para o contexto em que Caldas Barbosa historicamente se insere, tentando compreender as relações e as inquietações que deviam lhe afligir, podemos perceber que a maneira que ele encontrou de ter voz naquele meio foi a de utilizar a forma poética do branco como estratégia sem, contudo, deixar de inserir elementos afro-brasileiros na sua poesia, o que aonosso ver, podem ser considerados como legados da nossa cultura negro-brasileira. E sobre isso Tinhorão reitera:
É muito significativo, aliás, o fato de em todas as sátiras endereçadas a Caldas Barbosa que se conhecem – partidas de Bocage, de Filinto Elysio ou de Agostinho de Macedo – nenhuma referir-se a qualquer possível fraqueza moral do caricaturado, mas sempre a uma condição que só o preconceito étnico europeu via como defeito: a cor da pele, indicadora da ascendência africana do poeta. [...] Realmente, o que parecia em verdade incomodar os poetas portugueses que investiam contra o mulato brasileiro era o sucesso que alcançava nos salões, ao interpretar à viola não apenas cantigas (quadras compostas às vezes de improviso), mas modinhas e lundus que encantavam os ouvintes pela novidade da música (a balançar nas sincopas constantes do acompanhamento), e pela mensagem direta e coloquial das letras (antecipadoras do sentimento apaixonado do eu romântico). (TINHORÃO, 2004, p. 14)
Tinhorão crê que o principal motivo dos ataques à Caldas Barbosa tem fundamentação no preconceito e na inveja. Relembremos, entretanto, que introduzimos todos os conceitos anteriores para analisar a obra de Domingos Caldas Barbosa que era um mestiço, filho de pai branco português (tesoureiro do rei em Angola) com sua escrava negra de nome Antônia (TINHORÃO, 2004). Neste sentido, Bastide reflete que o mestiço representa uma oportunidade de ascensão social, uma tentativa de transpor a linha da cor (BASTIDE, 1943, p. 19). Mas será de Caldas Barbosa negou a sua raça e a sua cor?
David Brookshaw (1983) afirma que: 
provas da falsidade do “alçapão de escape do mulato” são representadas na grande ênfase dada ao louvor das características físicas brancas e à grande dependência de uma estética branca que condiciona os mulatos claros a ignorar conscientemente suas origens raciais ou na realidade negá-las, o que induz os afro-brasileiros em geral a aspirar casar com uma pessoa mais branca a fim de evitar descendentes de pele escura, cabelo carapinha ou nariz negroide (DEGLER Apud BROOKSHAW, 1983, p. 151).
Sobre este tema, Frantz Fanon, na sua obra Pele Negra Máscaras Brancas (2008) reflete que na tentativa de embranquecimento o negro pode: falar como o branco, até mesmo assumir o seu discurso discriminador e racista; ter fantasias, se relacionar e ter filhos com pessoas de pele mais clara; adotar uma postura e um discurso de negação de sua origem (raça e cor), até mesmo acreditando numa inferioridade congênita; aceitar como verdade os estereótipos difundidos e perpetuados pela tradição branca (FANON, 2008).
 No entanto, analisando as poesias de Domingos Caldas Barbosa, contidas nos dois volumes da obra Viola de Lereno, não vemos uma negação da negritude, muito pelo contrário, vemos sim, no discurso de Caldas Barbosa, uma identificação enquanto negro, o que configura uma transgressão à literatura consagrada, uma voz que se insere e insurge num contexto predominantemente branco.
Dentro dessa visão, ressaltamos ainda o pensamento de Cuti quando reflete que:
Quando o escritor negro, pela primeira vez, quis dizer-se negro em seu texto, deve ter pensado muito na repercussão, no que poderia atingi-lo como reação ao seu texto. Dizer-se implica revelar-se e, também, revelar o outro na relação com o que se revela. O branco, como recepção do texto de um negro, historicamente foi hostil. [...] Entretanto, acomodar-se a essa hostilidade pode ser uma estratégia ou uma renúncia. Ou seja, não dizer-se negro para ser mais bem aceito e, assim, sofrer menor restrição social, é um caminho trilhado por muitos negros que escreveram e escrevem (CUTI, 2010, p. 51-52).
Compreendemos que Caldas Barbosa assume corajosamente sua posição como negro exaltando sua origem e recebendo inúmeras críticas por isso. A importância de Caldas Barbosa está implícita na quantidade de trabalhos acadêmicos que temos a seu respeito, e na quantidade de estudiosos interessados na sua obra. Sendo assim, é infundada a acusação de que este importante compositor brasileiro tenha utilizado sua origem mestiça como estratégia para embranquecer. Acreditamos que ele, ao assumir sua origem afro-brasileira, exaltou elementos de ambas as culturas, não menosprezando nenhuma de suas raízes. 
5) a linguagem tipicamente negro-brasileira;
De uma forma bem geral, quanto à questão musical (rítmica) e das palavras de origem afro-brasileiras utilizadas por Caldas Barbosa, Taborda assinala que:
o sabor das palavras utilizadas nos poemas de Caldas - nhonhô, nhanhazinha, infadadinha, mugangueirinha - linguagem tipicamente popular e brasileira, ou como disse Mário de Andrade, verdadeiro “compêndio de brasileirismos vocabulares”, foi ressaltado por uma composição musical (anônima) cuja estrutura, especialmente rítmica, complementava-lhe também brasileiramente o tempero, especialmente no efeito singular resultante da utilização da síncope. (TABORDA, 2006, p. 561).
Entendemos aqui que o vocabulário empregado por Caldas Barbosa refletia ao linguajar utilizado pelos negros-brasileiros, mas não só isso, pois nas suas canções havia uma preocupação extra com a musicalidade destas palavras em relação às suas intenções composicionais rítmicas e melódicas. Ele incorporou tais palavras e obteve sucesso nas suas composições, tanto que as suas canções foram conhecidas tanto em Portugal quanto no Brasil, apesar de que muitas pessoas ignoravam e ignoram a autoria de várias delas.
Neste tópico, podemos enfatizar as cantigas Lundum de cantigas vagas e Lundum:
LUNDUM DE CANTIGAS VAGAS
XARAPIM eu bem estava
Alegre nest’alleluia,
Mas para fazer-me triste
Veio Amor dar-me na cuya. [...]
Meu Xarapim já não posso
Aturar mais tanta arenga,
O meu gênio deo á casca
Mettido nesta moenga. [...] 
(BARBOSA, 1826, vol. 2, num. 01, p. 15-17)
Nesta canção, o eu lírico se dirige a um Xarapim, que vem da língua indígena tupi significando camarada. Neste sentido, Caldas Barbosa utiliza um vocabulário baseado na oralidade, na linguagem cotidiana brasileira, utilizando também as palavras angu (que é o mesmo que mingau), e quingombô (o mesmo que quiabo), alimentos típicos da culinária africana. Além do mais, esta letra aborda como temática o sofrimento amoroso, pois aqui o eu lírico sofre por um amor não correspondido (COSTA, s.d., p. 02).
Como outro exemplo temos O seu moleque sou eu:
O seu moleque sou eu - LUNDUM
Eu tenho huma Nhanházinha
A quem tiro o meu chapéo;
He tão bella tão galante,
Parece coisa do Ceo
Ai Ceo!
Ella he minha Yaya
O seu moleque sou eu. [...] 
(BARBOSA, 1826, Vol. 2, Num. 01, p. 31)
Neste outro lundu, o eu lírico trata sua musa pelo termo Nhanhazinha, originada do termo iaiá, que vem da palavra sinhá. Estas palavras eram utilizadas pelos escravos, o que implica em dizer que o eu poético utilizava este linguajar reconhecendo-se como negro na sua cantiga, ainda mais quando se admite como moleque, que como já dissemos, era um termo que designava os escravos mais jovens. Podemos inferir que o poeta além de assumir a sua cor, se declara como um cativo de sua amada. A letra da canção trata do tema amoroso de forma brincalhona, pois o eu lírico sofre com o desprezo de sua musa.
Em outra poesia, intitulada Ternura Brasileira, observamos a exaltação da pátria como uma das temáticas recorrentes na poesia de Caldas Barbosa:
A ternura Brasileira - CANTIGAS
Não posso negar, não posso,
Não posso por mais que queira, 
Que o meu coração se abrasa
De ternura Brasileira. 
Huma alma singela, e rude
Sempre foi mais verdadeira,
A minha por isso he própria
De ternura Brasileira. [...]
(BARBOSA, 1826, Vol. 2, Num. 03, p. 28-30)
Esta canção revela a uma apropriação do autor de sua inegável identidade. Reconhecendo Caldas Barbosa como um “homem simples, mestiço e tocador de viola” é que entendemos que ele, além de não tentar fugir de sua origem negro-brasileira, tem orgulho de possuir a “ternura Brasileira” (FERREIRA, 2005, p. 96).
E é nestesentido que Elio Ferreira afirma:
Caldas Barbosa recupera a cultura e a língua dos antepassados, reencontrando o fio que o conduz de volta à sua ancestralidade. Os versos sonoros, os metros curtos em redondilha maior, a utilização de anáfora ou repetições de palavras no início dos versos e a seleção vocabular apresentam caracteres próprios da poesia feita para se transformar em letra de música. São estes versos reveladores do “eu-da-enunciação” que se identifica com os sentimentos das camadas populares do país. Mas foi com a maneira simples de comunicar os sentimentos que Caldas Barbosa se consagrou e os seus versos ganharam notoriedade entre o povo (FERREIRA, 2005, p. 94).
O amor, as musas, o jeito de ser brasileiro, tudo isso serviu de matéria para as composições e improvisações de letras das canções que foram inseridas nos dois volumes da obra Viola de Lereno, consecutivamente, estes elementos corroboram para as características negras da produção Caldas Barbosa, e talvez por isso, pelo valor que ele atribui à cultura afro-brasileira, é que seus textos abrigam tantos elementos linguísticos, literários e musicais que se configuram como a quebra dos padrões da poesia europeia da época em que viveu.
6) A sensação de emparedamento
 
A sensação de emparedamento foi evocada pelo poeta simbolista Cruz e Sousa que a conceitua como um sentimento de prisão, de exclusão, de impotência e invisibilidade (SOUSA, 2000, p. 673 Apud CUTI, 2010, p. 69-70). O sentimento de exílio, de prisão interior e de tristeza ocultada está manifesta em várias obras de Caldas Barbosa. Acreditamos que esta explicitação de sentimentos recalcados funcione como uma tentativa de exorcizar seus complexos interiores, de confessar que não se sente bem com este emparedamento social que pode ocorrer por causa do preconceito, da discriminação ou do racismo.
Na modinha A dor do meu coração, observamos o sofrimento do eu lírico na tentativa de dissimular sua tristeza:
A dôr do meu coração – MODA
Disfarço no alegre rosto
Minha interior afflicção;
Porque os outros não conheção
A dor do meu Coração: [...]
[...] Vi hum dia, hum certo dia
Huns signaes de compaixão,
E dei por bem empregada
A dôr do meu Coração:
(BARBOSA, 1798, Vol. 01, Num. 01, p. 16-17).
Ele diz que disfarça no alegre rosto uma aflição interior por não desejar que os outros saibam de sua tristeza. A vida de Caldas Barbosa foi marcada pelo preconceito e discriminação de seus contemporâneos portugueses. Além disso, vivia em dificuldades financeiras constantes, confinado a um país onde era aceito por uns e criticado por outros.
Na poesia Amor sabido vai gualdido percebemos que ele assume uma postura de cautela quanto ao seu romance que deve ser oculto por acreditar que seus passos estão sendo vigiados:
Amor sabido vai gualdido
Cautela, Olhos, cautela,
Calai vossa inclinação;
Para que os mais não percebão
O que tem meu coração:
Cuidado, Olhos cuidado,
Porque o Amor percebido
Começa a ser maltratado
Há gente que nos vigia,
Por ver onde as vistas vão;
E por vós he que adevinhão
O que tem meu coração: [...]
(BARBOSA, 1798, Vol. 01, Num. 03, p. 17-19).
Aqui também há uma preocupação com o fato de o eu lírico não querer que os outros saibam o que tem em seu coração.
Já em Lereno melancólico assinalamos que a sua mortal melanciolia era como que uma companheira inseparável do eu lírico, reforçando a sensação de emparedamento através de seus versos. Um dos trechos mais importantes diz “Lereno alegrou os outros, e nunca teve alegria”, o que nos indica que, apesar de sua atuação como cantor e poeta, apesar de praticar sua arte com uma “boa receptividade”, ainda não havia encontrado a real e completa felicidade, pois, “viveu e morreu nos braços da mortal melancolia”.
	
Lereno melancólico – CANTIGAS
Pastoras não me chameis
Para vossa companhia,
Que onde eu vou comigo levo
A mortal melancolia. [...]
[...] No meu inocente rosto
Quem o notava bem via,
Q’ em triste cor se marcava,
A mortal melancolia. [...]
[...] Lereno alegrou os outros,
E nunca teve alegria;
Viveo, e morreo nos braços
Da mortal melancolia.
(BARBOSA, 1798, Vol. 01, Num. 05, p. 17-22).
É como se Caldas Barbosa estivesse se sentindo como um simples animador de plateia, ou seja, é como se fizesse versos simplórios para, através deles, conseguir seu meio de sustento. Até buscava se esconder da companhia das Pastoras por levar sempre consigo a mortal melancolia. Essa poesia retrata uma revolta interior, é como se não quisesse mais alegrar os outros, no entanto, tendo que fazê-lo mesmo com uma tristeza em seu coração que era ampliada pela obrigação em demonstrar uma alegria exterior.
CONCLUSÃO
O maior legado de Domingos Caldas Barbosa na literatura brasileira se deve ao fato de ter antecipado os temas e a estética da poesia negra, inserindo a cultura, os sentimentos e a linguagem das camadas populares de sua época em suas canções. 
Ao exaltar a mulher afrodescendente e a sua identidade negro-brasileira através da valorização vocabular, da culinária e da dança, o poeta registrou o universo africano como elemento formador e não apenas influenciador da cultura brasileira, numa época em que a colônia brasileira ainda era regida pelas leis escravocratas.
Ainda podem ser feitos muitos estudos sobre Caldas Barbosa, inclusive abordando várias temáticas que envolvem a complexidade deste precursor de nossa literatura negra e de nossa canção. Entretanto, este trabalho pode servir como fomento às futuras pesquisas, servindo como um incentivo à curiosidade dos pesquisadores que se propõem a pesquisar sobre as temáticas aqui abordadas.
Concluímos que Caldas Barbosa é um escritor negro-brasileiro e afrodescendente: pela sensualidade e o erotismo de seus versos, o que está caracterizado principalmente nos seus lundus (tipo de canção que mescla tradições africanas, europeias e brasileiras); pela transgressão dos padrões de beleza europeus, quando exalta a mulher negra e a cultura brasileira, em comparação com a cultura do “Reino”, da corte portuguesa; pelo uso do ritmo sincopado de seus lundus, o que provocava o rebolado, o remelexo e a sexualidade; pelo fato de assumir-se negro em suas composições, mesmo sendo de origem mestiça; pela utilização de uma linguagem tipicamente negro-brasileira, aplicando um vocabulário que se identificava com o linguajar das faixas pobres da sociedade brasileira e com os escravos de sua época; pelo fato de não se sentir pertencente àquele meio, ou seja, por se sentir emparedado, mesmo que fazendo certo sucesso e adquirindo fama e aceitação perante a sociedade lisboeta.
REFERÊNCIAS
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