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Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Livro: Família e Famílias - Práticas sociais e conversações contemporâneas Apresentação Esse livro é um produto acadêmico de diversos enfoques sobre o estudo da família na sociedade contemporânea. Preocupação dos autores: divulgar e transmitir conhecimentos e investigações sociais sobre o tema para ampliar o debate interdisciplinar sobre o assunto, pois a família é histórica, afeta e é afetada pelas mudanças sociais, políticas e econômicas, estando em constantes crises e transformações. A publicação foi dividida em partes: 1- Família, Política Social e Serviço Social: práticas e concepções. 2- Família, Cuidado e Demandas Sociais: perspectivas críticas 3- Família, Trabalho e Direitos Sociais: cenas contemporâneas Prefácio Este livro é expressão dos debates que se vem travando em torno do tema família e das relações que esta estruturou ao longo do tempo com o trabalho e a política social, incluindo-se aí o serviço social. Cabe investigar as fronteiras entre o público e o privado. Assim, é procedente investigar o papel das famílias nas tradições antiga e moderna para buscar os vestígios que modelaram o perfil contemporâneo de família. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br A distinção privado-público não foi imune às contradições que o mundo moderno estruturou nem às mudanças que se operaram nas mentalidades e nos planos social e político. Daí, vem a tona o problema: é possível identificar uma equivalência entre o público e o privado? Se sim, como especificá-la? Se não, quais as alternativas e/ou os obstáculos que a ela se interpõem? Há que se observar que a equivalência entre o público e o privado foi modulada em um momento da história em que o privado se potenciou na direção do público → tendência que ganhou expressão no Brasil no final dos anos 1980, quando a mulher entrou na cena pública sob a mediação do trabalho e produziu um abalo nos alicerces da família patriarcal, insinuando certa igualdade entre os sexos. Tal processo se desenvolveu no bojo do movimento pela democratização do país, quando muitos dos temas até então de cunho privado foram submetidos à luz pública e aí requalificados a partir de uma dialética que configurou uma “relativa autonomia do privado”. No final dos anos 1990, essa dialética foi bloqueada pela mundialização do capital, que submeteu o político ao econômico. Tal fato veio atribuir ao privado funções antes públicas, como a proteção social. Neste processo, a relação família-trabalho também é reconfigurada. Inserida nesta rede complexa de relações, a família é obrigada a ultrapassar as suas funções tradicionais e a redefinir o espaço privado: ela é responsabilizada pelo resultado de programas públicos, sendo implicada na relação custo-benefício; além de ser obrigada a a avalizar as ações fragmentadas de agentes sociais que disputam o campo do social na junção privado-público, com promessas de integração social e melhorias de vida. Pode-se dizer que a família e o espaço privado são atravessados por ações que, segmentadas e contraditórias, absorvem as experiências populares, subtraindo-lhes as iniciativas e definindo, a partir daí, novos modos de intervenção e controle. Nestes registros, a noção do público como lugar do político se esvazia e se dobra a meros agenciamentos técnicos e a novas estratégias de relacionamento com o público. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Parte I Família, Política e Serviço Social: Práticas e Concepções Texto 1: trata das concepções situadas na base do debte sobre as relações familiares e a assistencia social e das exigências colocadas aos assistentes sociais na lida com a família Família e Assistencia Social: Subsídios para o Debate do Trabalho dos Assistentes Sociais Regina Célia Tamaso Mioto O debate contemporâneo sobre a matricialidade sociofamiliar na política social reaviva o debate sobre a família. Este foi secundarizado por muito tempo no Serviço Social ante as novas exigências teórico- metodológicas impostas para a consolidação da profissão nos marcos da teoria social crítica diante da pecha do conservadorismo profissional. Por isso, neste momento, impõem-se demarcar qual é o foco do debate sobre a família que interessa ao Serviço Social e oferecer alguns parâmetros para subsidiar a ação profissional no campo da política social, especialmente da política de assistencia social que tem por diretriz a matricialidade sociofamiliar. É a família que “cobre as insuficiências das políticas públicas, ou seja, longe de ser um “refúgio num mundo sem coração, é atravessada pela questão social (Campos: 2008). Ponto de partida deste trabalho: o reconhecimento da família como espaço complexo, que se constrói e se reconstrói histórica e cotidianamente por meio das relações e negociações que se estabelecem entre seus membros e entre estes e outras esferas da sociedade tais como Estado, trabalho e mercado. Reconhece-se que ela é capaz de produzir subjetividades, além de ser uma unidade de cuidado e de redistribuição interna de recursos, com papel importante na estruturação da sociedade em seus aspectos sociais, políticos e Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br econômicos. Logo, não é apenas uma construção privada, mas também pública. (Mioto, 2008; Campos; 2004). Esse ponto de partida é a base para delimitar o foco de interesse do Serviço Social sobre a temática da família: entendê-la na sua dimensão simbólica, multiplicidade e organização subsidia a compreensão sobre o lugar que lhe é atribuído na configuração da proteção social de uma sociedade, em determinado momento histórico. Como e quais famílias são incorporadas à política social; em que políticas e os quais os impactos que estas políticas têm nas suas vidas. A forma de gerir e distribuir os riscos sociais entre Estado, mercado e família faz diferença nas condições de vida de uma população (Esping- Andersen: 2000). 1- Família e assistencia social: concepções A família, na história da humanidade, sempre foi uma instância importante de proteção social. Especialmente pelo trabalho não pago da mulher, constituiu-se em um dos pilares estruturantes do bem-estar social, em muitos países. Vê-se que, ao longo da história, se construíram diferentes formas de pensar a família no contexto da proteção social. Atualmente na sociedade brasileira, onde estão em disputa diferentes projetos de proteção social, o debate sobre o lugar da família na política social não pode ser descurado, especialmentequando se trata da política de assistencia social. O ponto de partida deste é a identificação das duas tendências ou concepções que subjazem à compreensão da relação família e assistencia social e interferem nas formas de encaminhamento da própria política: uma entende a família e assistencia social como ajuda pública e a outra entende esta relação como direito de cidadania. 1.1 – A assistencia social como ajuda pública A relação entre assistência social e família, entendida como ajuda pública, ancora-se na idéia de que a família é a principal instância de proteção social. A assistência social se estabelece quando a família fracassa na provisão de bem-estar a seus membros. Assim, família e mercado são entendidos como canais naturais de provisão de bem- estar. Somente quando estes falham é que há a intervenção pública temporária, ou seja: o bem-estar dos indivíduos fica condicionado às possibilidades de provisão de sua família. Incide nesta concepção a prevalência do princípio da subsidiariedade, constituinte da Doutrina Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Social da Igreja (não por acaso), que consiste na centralidade que as famílias, comunidades, associações (tidas como instâncias menores), tem na provisão de bem-estar, prevendo a responsabilidade pública e coletiva apenas quando se esgota a capacidade dessas menores instâncias (Off, 1994; Campos, 2004). Ter essa compreensão sobre a divisão de responsabilidades da proteção social, significa conceber a relação entre assistencia social e família mediada pela idéia de falência, medida pela incapacidade em buscar, gerir e otimizar recursos que implica a sua relação com a esfera do Trabalho. Incapacidade também em desenvolver adequadas estratégias de sobrevivencia e convivência, em alterar comportamentos e estilos de vida, além de não se articular em redes de solidariedade. Nesse contexto, se estabelece a premissa que assistencia social deve ocorrer sob a forma de compensação e ter um caráter temporário. Atualmente, como indica Campos ( 2004), a falta de integração em uma sociabilidade familiar ou a imersão em uma sociabilidade tida como “problemática”, são entendidas como fatores de risco e as torna objeto de políticas sociais.Paralelamente, aquelas sociabilidades familiares que mantém a força da solidariedade e conseguem manter sua capacidade de proteção social, são estimuladas à reciprocidade e à autoprodução de serviços vinculados ao mercado. São alimentadas ideologicamente para se defenderem dos valores antifamiliares, confirmando um discurso oficial de valorização das redes familiares. Nessa conjuntura, os apoios informais tem papel preponderante e as redes familiares são amplamente reconhecidas. Essa premissa, porém, obscurece o fato de que pode haver limites para o comportamento adaptativo das pessoas pobres e não considera o diferencial de impacto das crises econômicas sobre os vários membros da família. A incidência cada vez maior da pobreza tem redundado numa decadência das chamadas “redes” ou “capital social” sobre o qual se estrutura parte das estratégias familiares de sobrevivência. Logo, conclui-se que, hoje, seria mais apropriado falar em “pobreza de recursos” das famílias do que em “recursos da pobreza”. (Mioto; Campos. Lima, 2006). Essa concepção foi delineada em meio ao desenvolvimento capitalista e ao liberalismo econômico (sec. XVIII e XIX) quando, com a separação entre casa e empresa, se conformou uma nova forma de família (nuclear burguesa). Então, foi delegada à família a responsabilidade pela reprodução social e também os problemas e os conflitos gerados na esfera da produção. A insuficiência de recursos para a provisão de bem-estar passou a ser tratada como “caso” ou “problema” de família. Essa é a concepção que se revitaliza no bojo do neoliberalismo, com a proposição do pluralismo de bem-estar social (Pereira, 2001; Mioto, 2008). Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Proposição que se realiza num contexto em que se está mais distante da possibilidade de a família ter recursos suficientes para responder às necessidades de seus membros e às expectativas que lhes são colocadas (Martins, 1995; Mioto, 2004), questão crucial na análise da impossibilidade real dessa “revivencia” da família como instância principal de proteção social. 1.2- A assistência social assumida como direito de cidadania Segunda concepção que pauta o debate da relação família e assistencia social no campo dos direitos sociais, da cidadania social. Para Esping-Andersen (2000), isso só ocorre quando o Estado se constitui na principal instância de provisão de bem – estar porque só quando ele se torna elemento ativo no ordenamento das relações sociais é que se torna possível a autonomia dos indivíduos. Assim, a cidadania é atingida quando os direitos sociais, na política e na legalidade, se tornam invioláveis e universais. Isso ocorre quando há a desmercadorização do indivíduo e de sua família em relação ao mercado, ou seja: quando a prestação de serviço é concebida como direito ou quando o indivíduo pode manter-se sem depender do mercado. O autor postula também que a cidadania social não pode estar apenas vinculada ao processo de desmercadorização, mas também a um processo de desfamiliarização, ou seja: da necessidade de haver um abrandamento da responsabilidade familiar em relação à provisão de bem-estar social. Nessa perspectiva, rompe-se com a idéia que a assistencia social só deve ocorrer no caso da falência das famílias e ela passa a ser pensada em termos de socializar os custos enfrentados pela família, sem esperar que sua capacidade se esgote. Nesta direção, Saraceno ( 1996) afirma que a presença do Estado na garantia dos direitos sociais torna possível a autonomia dos indivíduos em relação à autoridade familiar e da família em relação à parentela e à comunidade. No escopo desse alinhamento, vem o debate sobre a pertinência de tomar a família como unidade de referência/sujeito destinatário da política social, considerando alguns fatores: incapacidade de a política social abarcar a diversidade de famílias existentes; a política social, agregada a outras políticas, a uma cultura de especialistas, tende a ter forte impacto no processo de normatização da vida familiar e se constitui vetor importante de controle do Estado sobre a família. Além disso, os estudos feministas tem demonstrado que a política social tende a reforçar desigualdades e hierarquias culturalmente consolidadas, dentre as quais se destacam as de gênero, particularmente no âmbito dos programas de transferência de renda destinados à família (Parela, 2001; Gomes, 2000). Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br A crítica mais contundenteà afirmação da família como referência das políticas públicas, hoje, está associada à regressão da participação do Estado Social na provisão de bem-estar, ou seja: desvia da rota da garantia dos direitos sociais através da políticas públicas universalizantes e entra na rota da focalização das políticas nos segmentos mais pauperizados da população; fortalece o mercado enquanto instância de provisão de bem-estar e aposta na organização da sociedade civil como provedora. Nesta configuração, a família é chamada a reincorporar riscos sociais, retrocedendo assim a cidadania social. Quando se assume a Assistência social como direito de cidadania, considera-se que o acesso dos indivíduos a ela não está prioritariamente vinculado às condições de sua família, mas a sua própria condição. Desvincula-se da idéia de falência da família na provisão de bem-estar. Quando a política é pensada no sentido de “socializar”antecipadamente os custos enfrentados pela família, sem esperar que sua capacidade se esgote (Campos; Mioto, 3002). 2 – A família na política de assistencia social brasileira: disputa entre as diferentes concepções. Essas formas de entender a relação família e proteção social estão presentes tanto no senso comum quanto nos formuladores e executores de política social e alinham-se a projetos societários diferentes. No Brasil, a família segundo Carvalho e Almeida (2003), vem exercendo o papel de amortecedor das crises do país, especialmente após os anos 1990. Apesar do baixo salário e da inconstância dos serviços públicos, ela tem viabilizado a reprodução social por meio da solidariedade e de práticas dos grupos domésticos. Então, a assistencia social está sendo construída na tensão entre as duas concepções apontadas. Essa tensão está presente na Loas e intensificou-se no processo de implantação dos programas de transferência de renda, na concepção do SUAS e nos processos de implementação deste Sistema. Essa tensão pode ser verificada no artigo 2, item V da Loas, que afirma “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou tê-la provida pela sua família ( grifo nosso). Isso é reafirmado no artigo 20, que explica quem é a família e a renda para acesso ao benefício. A tensão também se expressa entre necessidades e mínimos sociais, dizendo que a assistencia social se realiza de forma integrada com as políticas setoriais, visando o enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimoa sociais, ao provimento de condições para atender às contingências sociais e à universalização de direitos. A tensão Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br aumenta quando eles se vinculam às famílias em situação de vulnerabilidade social. Ainda deve ser considerado que o acesso a esse direito vai ocorrer por meio de programas de transferência de renda e não como direito assegurado na Loas. Nesse processo contraditório, avança-se com a formulação, estruturação e implantação do SUAS, em que as tensões se multiplicam entre a afirmação da assistencia social como direito de cidadania e a afirmação da responsabilidade da família na provisão de bem-estar social. 3 - O trabalho dos assistentes sociais: uma questão a ser debatida Partindo da existência de um projeto ético-político no campo de Serviço Social, espera-se que a competência ético-política dos Assistentes Sociais não fique restrita à vontade política e à adesão a valores. E sim se afirme mediante a capacidade dos profissionais em torná-los concretos por meio da apreensão das dimensões ética, política, intelectual e prática. Isso implica no desenvolvimento de ações estratégicas diante das condições objetivas da realidade, a fim de ampliar os limites da cidadania inscrita na sociedade capitalista atual. Implica num constante processo de tencionamento a favor da construção da política de assistencia social como direito de cidadania, buscando responder à orientação do Código de Ética. Diante disso, ressalta-se que, quando se fala em trabalho com família no campo da política social, postula-se a realização de dois movimentos: Primeiro: pensar a política de assistencia social como campo de tensões entre projetos distintos, alinhados a projetos societários diferentes.Embora a referida política tenha encetado um avanço, ela ainda não tem consolidada a inserção da família na perspectiva do direito. Coexistem perspectivas antagônicas de inclusão da família na política de assistencia social e essas se expressam no texto legal, nas diretrizes e nos encaminhamentos da gestão, e se materializam nos contextos institucionais. Logo, a identificação dos projetos em disputa desde o texto da lei até as posturas e atitudes de gestores e profissionais no cotidiano dos programas e serviços é elemento fundamental para a orientação de qualquer trabalho. Para tanto, exige - se conhecimento sobre as concepções postas em disputa e como elas se expressam no cotidiano do trabalho profissional. Isso demanda qualificação profissional nas suas dimensões teórica, ética e técnica para que se permita o diálogo com as diretrizes, normativas e orientações oficiais relativas à política de assistencia social, e possibilite o encaminhamento consciente e responsável das Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br ações profissionais. Em suma, a possibilidade de tencionar a política de assistencia social como direito de cidadania e fazer frente à tendência hegemônica da assistência social como ajuda pública só é possível por meio da percepção de que a política social não se constitui um bloco monolítico. O diálogo entre o profissional e as demandas que lhe são colocadas pelo arcabouço institucional da política só pode ser realizado a partir da formação profissional/projeto profissional. É a formação que vai permitir o distanciamento necessário para identificar as disputas em pauta, particularmente o papel que está sendo atribuído à família na proteção social, e decidir sobre a orientação de suas ações. Se o profissional deixa de estabelecer este diálogo, ele renuncia à própria profissionalidade, pois toda ação profissional implica em consciencia, responsabilidade e autonomia. Essa é a condição para que os assistentes sociais não continuem exercendo apenas o papel de executor terminal de política social. O segundo movimento consiste no redimensionamento do trabalho com famílias com base no pensamento social crítico, pautado em dois aspectos: a interpretação das demandas e o alcance e a direcionalidade das ações profissionais. O primeiro refere-se à interpretação das demandas postas pelas famílias aos assistentes sociais, entendidas como expressões de necessidades humanas básicas não satisfeitas decorrentes da desigualdade social.Essa premissa exige ultrapassar a lógica do tratamento das demandas como “problemas ou casos de família”e não admite que se vincule a satisfação das necessidades sociais à competência ou incompetência individual das famílias. Assim, compreende-se os processos familiares como uma construção singular, arquitetada na família, no entrecruzamento de múltiplas relações que condicionam e definem a dinâmica familiar e a sua “estrutura de proteção”. Articular ações profissionais a partir dessa perspectiva, oposta à lógica da responsabilização da família, implica no rompimento com a tradição ideológica que ainda marca o exercício profissional, pautada na identificação do problema e na busca de solução para eles. Portanto, não em torno das necessidades da família ou do conhecimento sobre qual é a “estrutura de proteção” para atender a tais necessidades em face das expectativas que se tem para a família. O outro aspecto relaciona-se ao alcance e à direcionalidade da ação profissional. Ao postular que as famílias apresentam demandas que extrapolam as suas possibilidades de respostas e cujas soluções se encontram fora delas, a ação profissional não pode direcionar-se apenas a ela enquanto sujeito singular. Entende-se que os problemas de proteção social não estão restritos às famílias, e a solução desses extrapola as suas possibilidades, pois está condicionada ao acesso à renda e ao usufruto de bens e serviços de caráter universal e de qualidade. Tal redimensionamento impõe uma nova lógica ao trabalho Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br com famílias na perspectiva dos Direitos, entendidos como caminhos para a concretização da cidadania por meio e políticas sociais de caráter universal orientadas para o atendimento das necessidades humanas e tendo o Estado como instancia responsável por essa garantia e atenção. Nessa perspectiva, as ações profissionais passam a incidir em diferentes níveis de atenção. Esses níveis seriam: proposição, articulação e avaliação de políticas sociais, organização e articulação de serviços e atendimentos a situações singulares. A atuação nesses níveis de atenção requer o encaminhamento de ações profissionais que se articulam em três processos: processos político- organizativos; processos de gestão e planejamento; e processos socioassistenciais. (Mioto; Nogueira, 2006; Mioto; Lima, 200). Trabalhar com famílias significa recorrer à categoria da totalidade e de integralidade como possibilidade de compreensão do objeto de trabalho. Para o desenvolvimento do trabalho com famílias é necessário conhecimento sobre os sujeitos das ações profissionais que seriam: as famílias, as instituições e os sujeitos organizados ou sociedade civil (conselhos de direitos, movimentos sociais, etc). É necessário clara distinção entre os objetivos das ações , as formas de abordagem dos sujeitos da ação e dos instrumentos técnico- operativo. 4 - A modo de conclusão Essa discussão configura a complexidade e contraditoriedade existentes em torno da questão da família como referência da política de assistencia social. Indica também que, ao tratá-la, estão sendo colocadas em movimento diferentes concepções sobre famílias e suas relações com outras esferas da sociedade, como Estado, Mercado e Trabalho. Dessas diferentes formas de concepções nascem diferentes formas de formular e executar as políticas públicas. Trabalhar com a idéia de matricialidade sociofamiliar não significa atender à lógica da cidadania e do Direito, como está na lei. A centralidade da família abre espaço para incrementar práticas que promovam a sua proteção e participação cidadã ou, ao inverso, que reforcem a lógica do controle do Estado sobre as famílias, por meio da reiteração de práticas de caráter disciplinador, tão presentes na história do Serviço Social e da assistencia social. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Texto 2: Problematiza elementos em torno da centralidade da família e da mulher no âmbito da proteção social. Famílias e Serviço Social – Algumas reflexões para o debate Rita de Cássia Santos Freitas Cenira Duarte Braga Nívea Valença Barros Este texto não traz respostas, pois não é conclusivo Ele foi elaborado a partir das experiências das autoras como professoras em disciplinas que versam sobre a família e redes, crianças e adolescentes, gênero e cultura. Famílias – existe um tema mais familiar? Falar sobre famílias significa pensá-las em suas relações com a sociedade mais ampla onde se inserem e nas formas como estas relações se atualizam na vida diária das pessoas que lhe dão concretude. Não podemos esquecer que a família faz parte de nossa vida privada. Nós, assistentes sociais, temos nossas famílias (e modelos) e trabalhamos com elas – em sua diversidade. Pensar a família na sociedade contemporânea significa considerar que vivemos num mundo globalizado, onde a reestruturação do trabalho e a retração do Estado na área social são realidades com que temos de lidar. As transformações demográficas constituem-se em outro fator para se pensar família hoje. Temos uma família transformada em seus elementos, em suas ocupações, nas formas de relacionamento, que aparecem nas análises “tradicionais” como caracterizando a fragmentação, crise ou um suposto fim das realidades familiares. Encontramos no dia a dia uma multiplicidade de tipos de família. O mundo familiar mostra-se, na realidade “vivida”, com uma variedade de formas, de organização, de crenças, valores e práticas. É localizando a família na complexidade da sociedade moderna, tendo por pressuposto sua pluralidade e a perspectiva de que os sujeitos sociais são sujeitos em transformação, que se inicia este texto. Sem negar a importância do fator econômico, enfatiza-se também a dimensão do simbólico e do cultural como dimensões importantes para se discutir família. Por isso, é fundamental a atenção para a formação histórica brasileira para conhecer essa realidade. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Primeiro é necessário se definir o que se pode entender sobre o termo: família. O que significa? O que caracteriza? São as relações de parentesco, os laços sanguíneos que a definem? Ou a proximidade física, a convivência entre as pessoas? As relações de parentesco são resultado da combinação de três relações básicas: a descendência entre pais e filhos; a consangüinidade entre irmãos; e a afinidade a partir do casamento, sendo a família considerada como grupo social por meio do qual se realizam esses vínculos. Contudo, tem-se convivido com realidades diferenciadas que conformam a constituição do fenômeno família para além das relações de parentesco. Pensar família hoje pressupõe seu entendimento enquanto um fenômeno que abrange as mais diferentes realidades. O indivíduo está envolvido em redes de significado( Geertz, 1997). A vida social é organizada a partir de modelos, de regras culturalmente elaboradas, e é a partir destes que os indivíduos vivem sua vida cotidianamente e se relacionam uns com os outros. Mas estes modelos não são estáticos. Eunice Durhan (1983), ao estudar famílias argumentava que modelos são mutáveis. Por isso mesmo, a existência de inúmeras exceções não significava (como não significa) a contestação da regra. Representava, sim, sua “aplicação maleável”para permitir a solução dos problemas cotidianos. Esse modelo da família que conhecemos tem sua história recente. Conforme P. Ariès (1981), no início do século XVIII é que começou a se desenhar o perfil de família que hoje conhecemos e aprendemos a pensar como universal, sem atentar para a sua construção social. A constituição desta família respondia às necessidades de um dado momento histórico. A importância dada à criança e a constituição de um novo papel da mulher, dando-lhe certo poder, são as molas mestras para a construção desses novos sujeitos. Essa é uma realidade moderna. O surgimento da família moderna é associado à separação entre o mundo privado e público, sendo o privado (a intimidade) da ordem dos sentimentos. As obras de Gilberto Freyre retratam a crescente privatização da vida doméstica, ao estudar a sociedade brasileira. Em Sobrados e Mocambos (2006), assiste-se ao processo de recolhimento da família à casa; a separação entre o mundo público e privado – a rua e a casa. As mudanças na família eram vistas como transformação da família patriarcal extensa e da qual ter-se-ia “saudade”, demonstrando, ainda hoje, a força desse símbolo. Uma das coisas que se tem aprendido é a necessidade de estabelecer diálogos além das fronteiras do serviço social, buscando a articulação com outros saberes. Há a necessidade de se voltar aos estudos sobre a realidade brasileira, sua história e cultura. Nesse sentido, o recurso à Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br demografia, à antropologia e à história é fundamental. Foi a partir deste que se pôde ir conhecendo que, mesmo no período colonial, a casa grande e a senzala não eram as únicas realidades possíveis – como viviam os brancos pobres neste período? E as famílias escravas, como se constituíam? E as relações entre brancos, escravos e índios? O recurso à antropologia é central para o assistente social. A perspectiva de compreender a família como uma realidade em rede e não nuclearizada deve-se estudos antropológicos. Enfatiza-se a importância de não esquecer os sujeitos em suas análises, mas também a necessidade de situar esses sujeitos historicamente. Desnaturalizar algo tão familiar é um salto fundamental para o assistente social, para que ele consiga lidar com realidades diferenciadas com um olhar que busque o conhecimento, não o julgamento e o preconceito – que habita dentro de nós. Afonso e Filgueiras (1995) já apontavam a existência de uma diversidade de arranjos familiares existentes, bem como a centralidade da família na vida das crianças e dos adolescentes. A partir da constatação dessa diversidade é que se pode escapar aos perigos de uma naturalização da família, entendendo-a enquanto um “grupo social cujos movimentos de organização – desorganização – reorganização mantêm estreita relação com o contexto sócio-cultural (Op. Cit., 06). É importante enfatizar essa diversidade de respostas possíveis para se poder escapar de uma leitura dicotomizante e empobrecedora. É fundamental sair da polaridade família estruturada x família desestruturada. É no meio dessa diversidade que se trabalha; é a partir dessas leituras que se vai definir família enquanto um processo de articulação de diferentes trajetórias de vida, onde se entrecruzam as relações de classe, gênero, etnia e geração. Além do lugar da reprodução biológica – é “o lugar onde se entrecruzam as relações sociais fundadas na diferença dos sexos e nas relações de filiação, de aliança e coabitação”(Lefaucheur, 1991, p. 479). A diversidade talvez seja uma das principais características humanas. É essa noção do outro”que constitui a base da vida social. Esta só é possível se se compartilhar um mínimo de valores comuns. A vida em sociedade demanda a construção de normas de convivência, de modelos de agir e pensar, de símbolos onde nos reconheçamos. Esses “modelos”de convivência e relacionamento esbarram na realidade concreta onde as pessoas vivem e sentem ( e para os quais tem de encontrar respostas e criar estratégias cotidianamente). Se hoje o modelo hegemônico é a família nuclear, não se pode negar que o recurso às avós, aos parentes e aos vizinhos continua sendo prática cotidiana, principalmente em nas classes populares - fazendo emergir de novo uma família extensa, Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br ainda que as pessoas não convivam na mesma casa ( Sarti, 2003). E esta é uma realidade não só das classes trabalhadoras. Alguns textos clássicos mostram como as famílias pobres se aglutinam em torno de um eixo central moral onde as mulheres ocupam posição central. É uma realidade que não pode ser vista como “desviante”, mas sim como a construção possível das relações familiares. Dessa forma, é fundamental desnaturalizar essas relações, tentando melhor conhecer esse fenômeno tão familiar e tão diverso. A coletivização no cuidado das crianças vem caracterizar o que Cláudia Fonseca ( 1990 e 2003) chama de “circulação de crianças”- um conceito que se considera central para o estudo das famílias brasileiras. Esse fenômeno pode ser entendido relacionado aos rearranjos conjugais, mas não só. Frente às grandes dificuldades econômicas, a internação dos filhos em escolas particulares ou a sua circulação entre amigos ou parentes aparece como uma alternativa importante em vários segmentos de classe. O fenômeno da circulação de crianças é central para discutirmos a família brasileira, pois faz parte da “cultura familiar”. A circulação de crianças: conceito fundamental para pensar a família brasileira A expressão “circulação de crianças” denomina a transferência e/ou partilha de responsabilidade de uma criança entre um adulto e outro. Interpretar esse fenômeno como abandono é descaracterizar o sentido dessa palavra; não considerando as questões que motivam essa dinâmica e desconsiderando as diferenças de outras realidades sociais. A circulação de crianças aparece como forma de demonstrar que a hegemonia do modelo de família moderno não se exerce da mesma forma em todas as camadas sociais. Este não está ao alcance de todos (material e simbolicamente falando). Cynthia Sarti afirma que nos tempos atuais, evidencia-se o conflito gerado pelo abandono das tradições. Fatos como amor, casamento, família, sexualidade, trabalho, que antes eram vividos a partir de papéis preestabelecidos, passaram a ser concebidos como parte de um projeto em que a individualidade adquire uma importância social cada vez maior(Sarti,2003), e onde nada pode estar previamente assegurado. No entanto, no universo cultural dos pobres, não estão dados os recursos simbólicos para a formulação desse projeto individual que pressupõe condições sociais específicas de educação e valores sociais, muitos dos quais alheios ao seu universo cultural. Ao invés de um projeto individualista moderno, é a tradição que se mantém como uma referência fundamental em suas exigências, já que: Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Pensam seu lugar no mundo a partir de uma lógica de reciprocidade de tipo tradicional em que o que conta decisivamente é a solidariedade dos laços de parentesco e de vizinhança com os quais viabilizam sua existência. Sua busca em serem modernos, ou seja, de usufruírem da possibilidade, dada por nossa época, de conceber e realizar projetos individuais, quando chega a ser formulada, torna-se uma busca frustrada, em que aparece o peso de sua subordinação social. (Sarti, 1995., p. 47) Como afirma a autora, as potencialidades do mundo contemporâneo são amplas, mas é árdua a tarefa de realizá-las. Não se pode pensar o universo simbólico dos pobres a partir de nosso próprio horizonte porque a família, para o pobre, não é a mesma que para a classe média. Família para o pobre é definida, segundo Cynthia Sarti, como aqueles em quem se pode confiar; não havendo status ou poder a ser transmitido. O que vai definir a extensão da família é a rede de obrigações construídas: “são da família aqueles com quem se pode contar, isto quer dizer, aqueles que retribuem ao que se dá, aqueles, portanto, para com quem se tem obrigações” (Sarti, 1994, p. 52). A família se define, assim, em torno de um eixo moral, onde a noção de obrigação sobrepõe-se à de parentesco. Assim, a circulação de crianças deveria ser vista enquanto um aspecto de organização diferenciada e não de “desorganização familiar”: “... a circulação de crianças..., seria apenas uma entre várias normalidades possíveis entre as práticas familiares na sociedade complexa atual” (Fonseca, 2002, p. 56 – grifos nossos). A circulação envolve aspectos econômicos e culturais, sendo um das estratégias de sobrevivencia possíveis às nossas classes trabalhadoras. É dentro dessa experiência que ganham sentido as noções de parentesco e de relações familiares. Essas redes formadas por meio da circulação de crianças entre adultos – parentes ou não- não são harmônicas. Outra característica dessa prática é a formação de redes sociais em função da sobrevivencia a criança que, com isso, contribui para o fortalecimento de outras redes já existentes. Suely Gomes Costa (2002) traz para o debate a noção de “maternidade transferida” para se referir à forma como mulheres se atribuíram mútuas responsabilidades com a delegação de tarefas administrativas de suas casas a outras mulheres. Este é um fenômeno de longa duração histórica e pode ser localizado na circulação de crianças por outras casas, mas, principalmente, dentro das casas onde podemos encontrar a empregada, ou aquela pessoa que “da uma ajudazinha”. Outra realidade comum nas classes populares é como as irmãs mais velhas vão assumindo as atividades “típicas das mulheres” e passam a gerenciar a casa e os cuidados com os irmãos menores – não usufruindo da infância a que teriam direito, ao partilhar essas responsabilidades. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Como reflete Cláudia Fonseca, é fácil transformar crianças carentes em menores abandonados, culpabilizando seus pais. Ao projetar o ideal de uma infância inocente, muitas vezes denunciamos a exploração de crianças pobres. Não se tem o mesmo olhar contra a brutalidade cometida contra seus pais. Barros (2005) nos diz: “estas famílias, na maioria das vezes, estão sendo negligenciadas em termos de políticas públicas e também sofrem com o descaso com que são tratadas e com as injustiças geradas pela desigualdade social” (OP. Cit., p. 217). O assistente social é um dos maiores notificadores da violência contra crianças e adolescentes. Mas, muitas vezes, as famílias acusadas de negligencia são extremamente negligenciadas. Cabe à família prover a proteção para criança e adolescente, diz a Constituição Federal (bem como o ECA). Mas ali diz também que essa é uma tarefa da família, da sociedade e do Estado. A quem denunciar a negligência sofrida por essas famílias? Como “enquadrar” o Estado que pode ser caracterizado como o principal agente perpetrador da violência – ao não possibilitar educação e saúde para as crianças e seus pais, por não oferecer políticas eficazes de transferência de renda, por não prover políticas culturais para essa população, por não garantir um padrão de sobrevivência mínimo e decente para cada cidadão e cidadã deste país? Dessa forma, a família moderna não deveria ser pensada enquanto uma meta a ser alcançada; sua ausência não significa um vácuo cultural; “a circulação de crianças é o exemplo de uma dinâmica alternativa; é indicação de formas familiares em grupos populares que longe de serem uma etapa anterior à família moderna, vem crescendo e se consolidando ao mesmo tempo que ela “( Fonseca, 2002, p. 38 – grifo nosso). Assim, além de desnaturalizar a compreensão das diferentes realidades familiares, enfatiza-se a necessidade de conhecer mais proximamente a realidade das famílias brasileiras. Família hoje: diversidade e continuidades No mundo novo em que vivemos, assistimos a mudança nos padrões de relacionamentos entre homens e mulheres que rebatem nas relações familiares. A posição das mulheres se alterou profundamente, uma vez que estão cada vez mais ocupando os espaços públicos, trabalhando e estudando mais – ainda que isso não tenha trazido transformações nas relações de gênero. Dizer que as mulheres estão mais no mundo público não significa dizer que elas tenham estado ausentes dele algum dia. As mulheres, principalmente as pobres, sempre trabalharam. A idéia recente do trabalho como emancipação é uma realidade mais das camadas médias. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br A legislação sobre a família também mudou: o casamento não é mais o único mecanismo de reconhecimento legal das relações familiares. A Constituição Brasileira prevê como famílias a comunidade formada por qualquer um dos cônjuges e seus descendentes (art. 226). O reconhecimento se dá pela união formada pelo casamento, união estáve entre homem e mulher, incluindo a possibilidade da família monoparental – ainda está ausente o reconhecimento das relações homoafetivas. O ECA também define a família como uma comunidade “formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”. Hoje tem- se uma multiplicidade de tipos de organização familiar: o casal sem filhos, as famíliaschefiadas por mulheres; famílias extensas nas quais irmãos casados dividem a mesma casa; casais separados permanecem debaixo do mesmo teto; famílias formadas a partir de segundas uniões (famílias recombinadas). O reconhecimento de casais compostos por pessoas do mesmo sexo traz outro elemento revolucionador na definição das famílias modernas. Outra realidade que vem conquistando espaço é a discussão da paternidade. Em nossos campos de intervenção se tem aberto espaços para os homens participarem? Ou continuamos a utilizar visões generificadas dos papéis de homens e mulheres na família e não abrimos espaços nas instituições onde trabalhamos para que essa participação se dê de forma plena. A visão da masculinidade e dos homens como invulneráveis ainda percorre as falas de profissionais para os quais é difícil admitir que homens podem precisar de ajuda. Sente-se no dia a dia, e as análises de diversas disciplinas vêm comprovar essas impressões, o modo como a paternidade (e por conseqüência a masculinidade) vem sendo posta em questão e estabelecendo formas diferenciadas de exercício. Cresce o número de famílias em que os homens se afirmam como único chefe, exercendo o papel materno e paterno, entre os pobres, mas também nas camadas médias. O recurso a avós, tias ou amigos se faz necessário, estabelecendo uma rede de apoio mútuo. É impossível pensar a família brasileira sem atentar para a importância do parentesco e da vizinhança na vida das pessoas – uma realidade mais próxima das mulheres (socialmente predispostas a atuar em rede) do que dos homens. Trazer essa dimensão da realidade não quer dizer que não se enxergue a extrema vulnerabilidade das famílias monoparentais femininas expressa na chamada feminização da pobreza. É importante lembrar que a associação famílias monoparentais femininas e pobreza reforça o estigma de que as mulheres são menos capazes para cuidar de suas famílias Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br e de suas vidas sem a existência de um homem. Faller Vitale (2002) relembra que enquanto houver a associação maciça entre monoparentalidade e pobreza “(...) acaba por fortalecer muito mais a adjetivação dessas famílias como vulneráveis ou de risco do que como potencialmente autônomas” (Op.cit.,p.51). Outro dado interessante é a queda da taxa de fecundidade acompanhada de um aumento da expectativa de vida. Caminha junto com a queda da taxa de fecundidade a existência – principalmente nas camadas populares- da gravidez na adolescência. Ser mãe constitui a identidade para muitas mulheres jovens. A gravidez passa a fazer parte de seus cotidianos, podendo ser símbolo de status e de inserção na vida adulta. Nesse sentido, é interessante um comentário em relação ao surgimento dos chamados Estados- providência na Europa. Gisela Bock (1991) aponta como fundamental, na França, as reivindicações e os movimentos das mulheres. No pós-guerra, se assiste ao incremento do welfare state e para Nadine Lefaucheur (1991), este, ao entrar no lar, empurrou a dona de casa para fora dele, devido ao processo de coletivização do trabalho de reprodução. Conforme afirma Lefaucheur, os Estados do bem-estar permitiram às mulheres conhecer certa autonomia em relação aos homens e à instituição conjugal. Ajudou ainda na criação de postos de trabalho, públicos e privados. Onde os Estados-providência foram mais fortes, foi maior a autonomização das mulheres e menor feminização da pobreza. No processo de constituição de proteção social no Brasil, a realidade foi diferente. Enfatiza-se, com Góis (s/d), o fato de que a reprodução dos pobres, durante várias décadas da história brasileira, passou ao largo da intervenção estatal, pois sem a atenção dos mecanismos públicos a população engendrava sua sobrevivencia “no circuito das solidariedades sociais comunitárias e familiares”. Durante o Estado Novo – ao se consolidar uma política social mais interventiva – a família ocupou um papel de destaque. A importância dessas reflexões é mostrar, de um lado, como na construção da proteção social brasileira as solidariedades grupais se tornaram um elemento fundamental para a sobrevivencia das famílias pobres. De outro lado, tem-se o fato de que a família foi e é tomada como elemento de intervenção para as ações estatais. Recentemente, os programas de renda mínima recolocaram a família no centro da discussão sobre proteção social. Estes a tomam como alvo prioritário e como um “parceiro” preferencial para sua implementação. O Programa Bolsa-Família e o PETI ( Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), direcionados para a infância carente, tinha na família o alvo prioritário de suas investidas. O Benefício de Prestação Continuada termina tendo a família como parâmetro para sua operacionalização, uma vez que o Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br recebimento de tal benefício está condicionado à renda de toda a família. Na área da saúde é que a família surge como elemento fundante. Tem-se o PSF (Programa de Saúde da Família) e, em alguns municípios, o PMF (Programa Médico de Família). A família aparece como uma dimensão fundamental para o estabelecimento e a implementação dessas políticas. Essa assistência, mais próxima e preventiva, pode significar uma efetiva melhora nas condições de vida da população atendida e tem gerado demandas entre os profissionais pela humanização no atendimento. Por outro lado, persistem as denúncias de falta de transparência, da continuidade de práticas clientelistas, de mau atendimento, etc. Na verdade, deve-se considerar a dialeticidade da realidade e ver, nesses processos, formas de continuidade e de rupturas com procedimentos e com a construção de novos protocolos de atendimento. O que parece inquestionável é a continuação/consolidação, hoje, da família como instância fundamental na elaboração das políticas sociais. Se as famílias estão sendo chamadas para uma “parceria” com o Estado, é importante pensar que uma parceria pressupõe uma relação de iguais e, nesse sentido, pode-se perguntar: como se dá essa participação da família, com que graus de autonomia? A centralidade da família trouxe como seu correlato a centralidade da figura feminina como interlocutora dessas políticas. Construindo uma conclusão: a centralidade da mulher nas políticas voltadas para a família A família tem um papel fundamental na hora da manutenção de seus membros. A proteção, o cuidar das crianças, dos idosos e doentes sempre se caracterizou como uma das características da família que teve historicamente na mulher um elemento de destaque. Nas políticas sociais dirigidas às famílias ( bem como idosos, crianças e adolescentes, enfermos e doentes mentais), o contato da família com a sociedade e o Estado continua ocorrendo, em grande parte, por meio da figura materna. As políticas sociais dirigidas a esse público tomam como pressuposto a presença de alguém em casapara cuidar daqueles, e esse lugar é “naturalmente” identificado com a mulher. A nossa sociedade não construiu condições para suprir a saída de casa dessas mulheres incorporadas ao mercado de trabalho, não apenas no que se refere à realização de tarefas domésticas, mas também em relação a esse suporte para as políticas sociais. A família que se conhece destinou um papel específico a estas, como mães e guardiãs do lar. Tem-se o movimento feminista negando esses papéis e sua hierarquização. Hoje, a prática ainda está bem diferente do discurso. Ser casada e ter filhos torna-se uma dificuldade, que é resolvida com o apelo para uma rede de solidariedade, formada por Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br parentesco ou vizinhança (normalmente constituída também por mulheres). Contudo, a inclusão simultânea da mulher nas esferas pública e privada, ainda que de modo contraditório, é uma realidade indiscutível. A maioria das políticas, porém, toma a mulher como aquela que está e fica em casa. É ela a responsável por receber os benefícios, é quem “pode” acompanhar crianças e idosos, “pode” ser a responsável por cuidar dos doentes crônicos ou terminais, ou doentes mentais que vão para casa. De que família se está falando? E de que mulheres? Estas têm efetivamente condições (econômicas e psicológicas) de cuidar de seus parentes? Podem abandonar trabalhos e afazeres para cuidar de seus entes queridos? Dessa forma, as políticas vêm continuamente reafirmando os papéis de gênero, contribuindo pouco para a transformação destes. O advento de muitas dessas políticas vai ao encontro de muitos desejos das mulheres, porém esse fato recoloca a responsabilidade por esses cuidados nas mãos das mulheres. Essa responsabilidade reafirma o local da casa como o local da mulher (Suárez; Libardoni, 2007) Concorda-se com Novellino (2005) que as políticas públicas para as mulheres pobres deveriam ser políticas de combate à pobreza que envolva não só renda, mas também acesso a serviços. Entretanto, estas deveriam ser igualmente políticas de gênero comprometidas com a luta pela igualdade de direitos e oportunidades para mulheres e homens. Políticas púbicas de gênero não podem envolver apenas mulheres; os homens devem necessariamente estar presentes. É importante não perder de vista a perspectiva universalista na hora de se pensar políticas públicas. No entanto, há diferenciais de gênero (e classe) que devem ser analisados e considerados quando da projeção e implementação de programas governamentais. O governo brasileiro começou, no final de década de 1990, a construção de uma política social focalizada no combate à pobreza. Ainda não se tem como medir os impactos reais dessas políticas no cotidiano as pessoas. A própria concepção de família nos programas precisa ser revista – esquecendo os limites do domicílio (Fonseca, 2001). A atuação do técnico que atende a essa população precisa estar atenta para o que esta verbaliza: é comum a fala entre assistentes sociais e estagiários sobre a ineficácia do PBF. Ao ouvi-las, pode-se permanecer na certeza de que essas pessoas estão alienadas e se está ali para dizer o certo, mostrando a “verdade”. Mas se pode- se partir do pressuposto de que essas pessoas são também sujeitos que tem saber, interesses e perspectivas que precisam ser respeitadas. Tratar o outro como sujeito respeitando sua alteridade não é tarefa fácil. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br Por outro lado, têm-se relatos de profissionais questionando a estreiteza dos benefícios, mas contraditoriamente esses mesmos profissionais querem dizer aos usuários como devem gastar seu dinheiro. Nós podemos consumir bastante – e não sermos alienados- mas as classes trabalhadoras não podem ter a mesma autonomia... Contudo, as estratégias continuam sendo implementadas como fortalecimento das redes de parentesco e a circulação de crianças. Esse conjunto de questões demanda um esforço de atualização e a construção de uma agenda de investigação dentro do Serviço Social, essencial ao desenvolvimento de uma prática teórico- metodológica e politicamente consistente nesse domínio. Texto 3 Apresenta reflexões acerca da atuação do serviço social no Juizado de Menores do Rio de Janeiro (antigo Distrito Federal) no período de 1938- 1950) O Serviço Social e a atuação junto à Infância, Juventude e Família Pobre no Juizado de Menores do Rio de Janeiro: Reflexão acerca da atuação profissional Sabrina Celestino Introdução No presente trabalho objetiva-se construir uma reflexão acerca da atuação do Serviço Social no então Juizado de Menores do Distrito Federal (Rio de Janeiro). A partir da construção histórica do Serviço Social, entende-se ser possível traçar uma análise acerca da atuação profissional junto à Infância, Juventude e a Família (pobre) e refleti-la, buscando conhecer os valores morais, éticos e políticos que orientavam os profissionais presentes nessa instituição. O campo sociojurídico, em especial o judiciário, se constitui em uma área desafiadora para a prática do assistente social. Tal desafio dá-se devido ao fato de a instituição judiciária ser predominantemente ocupada por profissionais do Direito e, embora o serviço social a integre, há mais de 70 anos, ainda luta por espaço, respeito e reconhecimento perante aqueles cuja tradição já legitimou. A tímida produção bibliográfica nesse campo, sobretudo no que se refere à história do serviço social na instituição, dificulta o conhecimento desta e da atuação profissional, fato que contribui para dificultar o Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br entendimento da definição quanto ao papel do assistente social nesse espaço. No Poder Judiciário como espaço onde os indivíduos se inserem para serem julgados, a atuação do assistente social junto à infância, juventude e a família, no início de sua inserção nesse espaço, esteve dirigida à culpabilização dos indivíduos pobres, e ao ajustamento destes aos padrões socialmente aceitáveis a partir de um ponto de vista conservador. Utilizou-se para realizar este trabalho a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. 1 – Inserção e atuação do serviço social junto à infância, juventude e família pobre no antigo Juizado de Menores São poucos os estudos que tratam da prática do assistente social no judiciário, sobretudo no que se refere ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (Distrito Federal) Resgatar a história de como o serviço social se insere no interior do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro se constitui de extrema importância, pois conhecer a gênese e o desenvolvimento da profissão nesse espaço possibilita a desconstrução da idéia de que esse campo se constitui em área nova para a atuaçãoprofissional. Aproximar dessa história também possibilita aprender sobre a prática profissional no interior do Poder Judiciário, relacionando-a com a gênese do serviço social no cenário nacional e mundial e, assim, apreender seus fundamentos. Tal história permite pensar qual ideologia esteve presente no momento de inserção do assistente social nesse espaço, conferindo aos profissionais funções e identidades que os acompanharam. O serviço social se insere no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, requisitado a lidar com a “problemática” da infância, juventude e da família “desajustadas”. Esse tipo de atuação, que tinha como finalidade o ajustamento dos indivíduos ao meio, parte de uma concepção positivista, que tem como princípio que a sociedade é um todo orgânico em que todos os indivíduos tem funções e devem conviver em harmonia para que a estrutura social funcione. Nesse sentido, a questão social que se apresentava para os “menores” e para suas famílias era entendida como problemas individuais que necessitavam ser tratados de maneira que esses indivíduos pudessem conviver sem se apresentarem como risco para a sociedade como um todo. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br No Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o serviço social se inseriu através do então Juizado de Menores do Distrito Federal. Tal instituição se encontrava responsável tanto por executar quanto por regular as ações de assistencia e punição aos “menores abandonados e delinqüentes”. A ação dessa instituição se encontrava personificada na atuação da autoridade judiciária, cujas funções estavam estabelecidas no artigo 38 do Código de Menores: I - processar e julgar o abandono de menores, nos termos deste regulamento, e os crimes ou contravenções por eles perpetrada; II - inquirir e examinar o estado psíquico, mental e moral dos menores que comparecerem a juízo e, ao mesmo tempo, a situação social, moral e econômica dos pais, tutores e responsáveis por sua guarda. III - ordenar as medidas concernentes ao tratamento, colocação, guarda, vigilancia e educação dos menores abandonados ou delinqüentes; IV - decretar a suspensão ou a perda do pátrio poder ou a destituição da tutela e nomear tutores; V - praticar todos os atos de jurisdição voluntária, tendentes à proteção e assistência aos menores; VI - impor e executar as multas e que se refere este regulamento; VII - fiscalizar os estabelecimentos de preservação e de reforma, e quaisquer outros em que se achem menores sob sua jurisdição, tomando as providencias que lhe parecerem necessárias; VIII - cumprir e fazer cumprir as disposições deste regulamento, aplicando nos casos omissos as disposições de outras leis que forem aplicáveis às causas cíveis e criminais da sua competência; IX - organizar uma estatística anual e um relatório documentado do movimento do juiz, que remeterá ao Ministério da Justiça. (Código de Menores 1923). a)os exames médico-legais dos menores b) orientação e seleção profissional; c) responder às consultas feitas pelos estabelecimentos oficiais de educação ou por estabelecimentos e pessoas particulares, a critério do juiz de menores; d) realizar estudos e pesquisas de caráter científico relacionados com a especialidade; e) lavrar pareceres sobre assuntos médico-pedagógicos referentes à infância; f) organizar anualmente cursos do Serviço Social do Juizado de Menores. (Pinheiro, 1985ª, p. 53). A partir de Silva (2003), pode-se verificar que o Laboratório criado a partir do artigo 131 do Código de Menores e pelo artigo 3 da Lei n: 65, de 13 de junho de 1936, a fim de desenvolver suas funções, passou por duas fases. Na primeira (1935 a 1937) desenvolvia Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br sua atuação voltada para a identificação legal e médico/psicológica dos menores”. O serviço Social se insere no interior do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e no então Juizado de Menores, via Laboratório de Biologia Infantil, instalado neste Juizado. Diante disso, pode-se perceber a direção criminológica que se encontrava presente nesse serviço, que tinha como função principal identificar o perfil dos “ menores abandonados e delinqüentes”a partir de uma prática da Medicina Legal de Identificação. As ações do Laboratório de Biologia Infantil estavam direcionadas a buscar nas ações dos “menores” causas de cunho biológico para que fosse estabelecida uma forma de tratamento que permitisse a reintegração destes na sociedade. Essa busca por uma “patologia social” não estabelecia conexões entre as ações dos “menores” e a estrutura social. Essas ações representavam uma “doença”individual que deveria ser tratada de maneira que permitisse a formação deste como um adulto de bem que não trouxesse riscos para a harmonia social. Verifica-se que a intervenção desenvolvida apenas numa metodologia diagnóstica, que visava o estudo de cunho biológico, não dava conta de “constatar”as causas dos “crimes dos menores delinqüentes”, sendo assim, como afirma Silva (2003); A principal intenção dos idealizadores do laboratório era promover a profilaxia criminal, por meio da identificação das crianças que apresentariam propensão à delinqüência. No entanto, a partir dos resultados dos primeiros exames feitos, médicos e magistrados tiveram que repensar a própria questão da delinqüência infantil. Nesse novo contexto, passaram a se realizar com maior freqüência no LBI cursos e seminários que tinham como tema a assistencia social. Assim, o ambiente familiar e o meio social em que se encontravam grande parte dos menores internados nos ISS ganharam importância nas pesquisas desenvolvidas no laboratório (Op. Cit.) É na segunda fase do Laboratório de Biologia Infantil (1938 -1939) que o Serviço Social irá ser percebido como uma profissão necessária para o funcionamento institucional. A referida instituição passa a realizar a investigação médico/psicológica e a ser responsável pelo encaminhamento profissional dos “menores”. Interligadas às ações desenvolvidas pelo então Juizado de Menores do Distrito Federal e do Laboratório de Biologia Infantil, estavam as instituições responsáveis por receber os menores internados pelo Juizado. Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br 2 – A contribuição do Juizado de Menores para a formação dos primeiros quadros profissionais A instituição judiciária do Distrito Federal (Rio de Janeiro) se configurou como uma das que contribuiu para a formação dos primeiros quadros profissionais. Algumas iniciativas começaram a serem tomadas para a formação de profissionais que pudessem intervir sobre a expressão da questão social no que se refere à infância e juventude que, por meio de intervenção do Estado, tomava forma de política pública. Verificamosem 1936, por meio do Juizado de Menores do Distrito Federal sua inserção nessas ações. Foi desenvolvida a construção e o desenvolvimento de curso de formação para assistentes sociais destinadas a lidar com a temática d “menor”, conferida a duas assistentes sociais oriundas da Escola de Serviço Social de São Paulo (Maria Keel e Albertina Ramos). Ambas formadas pela Universidade de Serviço Social de Bruxelas, na Bélgica. Aquelas profissionais foram convidadas a prestar orientação técnica e estruturar o curso nos moldes da Escola de São Paulo, à qual as assistentes sociais pertenciam. O curso esteve estruturado em duas partes: técnica e prática. A parte prática era ministrada pelas assistentes sociais paulistas que desenvolviam atividades que “contavam de aulas práticas, visitas, de observação a obras sociais, pesquisas, relatórioa, fichas e provas (Pinheiro, 1985, p. 52). Apesar do curso não ser regulamentado como de nível superior, às profissionais que se formavam era conferido o título de assistente social. Após o término do curso, uma das assistentes sociais por ele formada ( Maria Isolina Pinheiro) foi indicada para atuar como assistente técnica do Laboratório de Biologia Infantil e como assistente social do Juizado de Menores do Distrito Federal. Ao concluir o curso no Juizado de Menores, Maria Isolina iniciou suas atividades na área social, por meio do Serviço de Obras Sociais do Rio de Janeiro (SOS), com crianças da localidade Ponta do Cajú, ocupando um cargo de Assistente Social e se tornando funcionária do Ministério da Justiça do Brasil (Pinheiro, 1985). Em 1938, Maria Isolina, por meio de funções no Laboratório de Biologia Infantil, passa a “formar profissionais técnicos de serviço social” Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br em parceria com a SOS, estruturando um curso intensivo de serviço social. Mesmo direcionado para uma prática de ajustamento funcional à estrutura, que buscava garantir a harmonia social e contribuía para o modelo de modernização conservadora, as profissionais referidas passaram para a história do serviço social, obtendo uma série de conquistas para a categoria e possibilitando que a profissão ganhasse, em seus primórdios, legitimidade social e política. Observamos que a profissão se insere no Juizado de Menores do Distrito Federal para lidar com os ditos “desajustamentos sociais”, numa perspectiva biológica dos “menores” e suas famílias. A profissão ainda não tinha referencia ética própria, visto que o primeiro Código de Ética Profissional foi formulado em 1947. A atuação do Serviço Social baseava-se em valores morais católicos, nos valores sociais e religiosos dominantes na sociedade da época. A perspectiva conservadora visava a uma investigação das causas biológicas para os “desajustamentos dos menores” e famílias. Estabelecia-se um tratamento por meio da institucionalização, da educação moral e cívica e da profissionalização com vistas ao idealizado progresso da nação. Próximo capítulo abordará, por meio dos estudos dos pareceres sociais de 1938 a 1950, como se desenvolvia a intervenção profissional na área da infância e juventude pobre e suas famílias, a fim de apontar elementos para um debate acerca da forma como os princípios e valores que direcionavam a ação profissional vão contribuir e ganhar expressão no Código de ética da profissão. 3-Considerações a partir da pesquisa Foram consultados 460 processos que se estenderam entre 1938 e 1950 no Juizado de Menores do Distrito Federal (Rio de Janeiro), dos quais foi possível retirar algumas informações essenciais para fundamentar a análise. No período analisado no Juizado de Menores e na intervenção do Serviço Social, verificou-se que prevalecia uma moral que convergia com a cultura católica da época. A tendência da intervenção profissional desse momento histórico era de reproduzir a visão conservadora da instituição e da sociedade. A partir da obra de Pimentel (1945) verificamos quanto ao Juizado de Menores junto a seu público alvo: exerce uma função tutelar, assistindo aqueles a quem se faltou a proteção dos que lhe deram o ser. Vê-se portanto, quanto é valiosa e nobre a sua ação. Representa a Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações contemporâneas NUMESS - Núcleo Mineiro de Estudos e Pesquisa em Serviço Social em parceria com Ciclo CEAP – Centro de Estudos Avançados de Psicologia www.cicloceap.com.br sociedade assegurando medidas de proteção, assistindo a infância desvalida e regenerando a infância pervertida. Daí a sua dupla função: jurídico-social. Jurídico enquanto cumpre as leis especializadas e salvaguarda os direitos dos menores; social, enquanto amparar e educar o menor, transformando-o no cidadão que vai exercer papel digno e humano na sociedade (Op. Cit., p. 18). 3.1 - Uma análise da atuação profissional junto a infância, a juventude e a família pobre Ao analisamos os processos, verificamos que nas situações com fins de internação, era utilizada uma ficha, espécie de questionário socioeconômico, nos quais. Às vezes, tinha a assinatura de um comissário de vigilancia. Além deste, havia em todos os processos uma entrevista realizada com os pais e/ou responsáveis, mas não eram assinadas por um profissional de Serviço Social. Diante das entrevistas verificamos que sua estrutura e linguagem se apresentam como típicas de pareceres sociais atuais. No entanto, apresentavam uma descric’~ao de situação familiar ea partir de uma visão moral, higiênica e conservadora do “problema”das famílias e das crianças. Mesmo estando descritas nas pesquisas bibliográficas e em documentos históricos, através deste estudo não foi confirmada a presença e participação de profissionais de serviço social na construção de pareceres sociais. Desse modo, só se pode comprovar a presença desses profissionais na instituição judiciária a partir de 1942, via pareceres sociais do Serviço de Assistencia ao Menor (SAM). Verifica-se que o serviço social realizava uma análise biopsicossocial dos “menores”. Isto porque o Laboratório de Biologia Infantil ainda era responsável por essa ação, pelo encaminhamento dos “menores” às instituições de internação, e pelo “acompanhamento”das internações subseqüentes. Assim, pode-se constatar que: O Serviço de Assistencia ao Menor (SAM) já está plenamente implantado em 1942. (Batista, 2003). Ao tratar do histórico da política de proteção à infância e juventude no Brasil, o SAM foi um modelo criado com a finalidade de centralizar as ações destinadas aos “menores”, de maneira que pudesse se desenvolver controle mais eficaz dos mesmos, tendo a ameaça comunista como uma contratransferência do desenvolvimento de uma política de “educação para o trabalho”, na perspectiva positivista do progresso da nação. O Serviço Social compreendia o processo de cumprimento desse ideal de nação. Não desenvolvia uma prática que refletisse as causas das situações apresentadas pelas crianças e pelas famílias. Ademais, a profissão ainda não havia realizado um debate sobre a ética profissional que Livro: Família e Famílias – Práticas sociais e conversações
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