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FAMILISMO DIREITOS E CIDADANIA Conselho Editorial da área de Serviço Social Ademir Alves da Silva Dilséa Adeodata Bonetti (Conselheira Honorífica) Elaine Rossetti Behring Ivete Simionatto Maria Lúcia Carvalho da Silva Maria Lúcia Silva Barroco Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Familismo, direito e cidadania [livro eletrônico] : contradições da política social / Regina Célia Tamaso Mioto, Marta Silva Campos, Cássia Maria Carloto , (orgs.). – São Paulo : Cortez, 2015. 6,9 Mb ; PDF Bibliografia. ISBN 978-85-249-2401-9 1. Assistência social 2. Cidadania 3. Família 4. Proteção social 5. Política social I. Mioto, Regina Célia Tamaso. II. Campos, Marta Silva. III. Carloto, Cássia Maria. 15-06980 CDD-362.82 Índices para catálogo sistemático: 1. Famílias : Proteção social : Bem-estar social 362.82 FAMILISMO, DIREITOS E CIDADANIA: contradições da Política Social Regina Célia Tamaso Mioto, Marta Silva Campos, Cássia Maria Carloto (Orgs.) Capa: de Sign Arte Visual Preparação de originais: Jaci Dantas Assessoria editorial: Maria Liduína de Oliveira e Silva Editora assistente: Priscila F. Augusto Revisão: Alexandra Resende Composição: Linea Editora Ltda. Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa das autoras e do editor. © 2015 by Autoras Direitos para esta edição CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 – Perdizes 05014-001 – São Paulo – SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: cortez@cortezeditora.com.br www.cortezeditora.com.br Publicado no Brasil — 2015 mailto:cortez@cortezeditora.com.br http://www.cortezeditora.com.br/ Sumário Apresentação Prefácio O casamento da política social com a família: feliz ou infeliz? Marta Silva Campos Políticas Sociais, família e proteção social: um estudo acerca das políticas familiares em diferentes cidades/países Marlene Bueno Zola Programas de transferências condicionadas, famílias e gênero: aproximações a alguns dilemas e desencontros Mónica De Martino Mudanças nas famílias brasileiras e a proteção desenhada nas políticas sociais Carmen Rosario Ortiz Gutierrez Gelinski e Liliane Moser Serviços sociais e responsabilização da família: contradições da política social brasileira Regina Célia Tamaso Mioto e Keli Regina Dal Prá Programa Bolsa Família, cuidados e o uso do tempo das mulheres Cássia Maria Carloto Política social contemporânea: a família como referência para as Políticas Sociais e para o trabalho social Solange Maria Teixeira Sobre as Autoras Apresentação A proposta que mobilizou um grupo de pesquisadoras a escrever sobre a família surgiu da urgência em problematizar e debater o caráter familista e o aspecto regressivo que tem caracterizado o conjunto de ações desenvolvidas pelo Estado Brasileiro, no contexto da nossa política social, notadamente a partir do final do século XX, em nome da focalização no Combate à Pobreza e à Miséria, de forma a ferir a própria lógica dos direitos sociais, forjada pela Constituição Federal de 1988. O processo de responsabilização das famílias por encargos dentro do sistema de proteção social, presente na configuração e na condução da política social brasileira contemporânea, se insere no debate sobre uma velha questão que é a da forma de incorporação da família à política social. A discussão desse fenômeno não pode ser realizada fora do quadro analítico que, tanto do ponto de vista estrutural como em várias conjunturas, tem marcado historicamente as relações entre família, política social e Estado. Nesse quadro se apresentam aspectos importantes, dos quais Chiara Saraceno destaca a grande dificuldade de estabelecer consensos sobre o campo de inter-relações família e política social. Mesmo existindo um acordo sobre a importância das políticas sociais para sustentar a vida familiar, não existe concordância, nem sobre o que é família, e nem acerca do que se entende por sustentar a família. Este problema dá fórum a uma velha pergunta, sempre presente nos debates e nos embates, que é a do quantum de responsabilidade caberia à família e ao Estado. As famílias não são homogêneas, nem em recursos, nem em fases dos ciclos de vida, nem em modelos culturais e organizativos; também são influenciadas e interagem com o conjunto da legislação e das políticas sociais. O segundo destaque dado pela socióloga italiana quanto à Política Social é de que esta constitui um campo que dá ampla visibilidade à interferência/participação do Estado na vida das famílias, considerando que esta acontece tanto através da legislação, como de suas políticas demográficas e econômicas. Isso, sem desconsiderar o fato que o próprio Estado de bem-estar social nasce de sua assunção de responsabilidades no campo da reprodução social, que tradicionalmente é terreno compartilhado com a família. Além disso, não pode deixar de ser assinalado o fato que nas sociedades capitalistas ocidentais todos os sistemas de proteção social sustentam-se na tríade Estado, mercado e família. Desde os seus primórdios até a atualidade têm sido organizados a partir da família nuclear burguesa, a saber, pai provedor e mãe dona de casa e cuidadora. Isto nos leva ao terceiro destaque que é o de constatarmos que, apesar das famílias terem se distanciado do ideal burguês na sua conformação, ainda são mantidas as mesmas expectativas sobre o seu papel e suas responsabilidades enquanto um grupo/ arranjo de proteção e cuidados dos indivíduos. Apesar da fecundidade das críticas já desenvolvidas, perdura em nosso meio a compreensão de que a família é o locus de atuação da mulher e o mercado de trabalho o locus de atuação do homem. Mesmo sendo sabido que homens e mulheres estão presentes em ambos os espaços, essa concepção é incorporada pelas intervenções estatais. Assim as mulheres, a partir de seu trabalho não pago na esfera doméstica-familiar fazem a mediação entre o Estado e a família no desenvolvimento das políticas sociais específicas, em áreas como assistência social, saúde, educação, habitação entre outras. Compartilhando do desafio de enfrentar o debate enunciado sobre a família no contexto da política social, este livro reúne trabalhos de pesquisadoras vinculadas a núcleos de pesquisa de Programas de Pós-graduação na área de Serviço Social de diferentes universidades — Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Universidad de la República (UDELAR) do Uruguai. A produção da maioria dos trabalhos é resultado de debates ocorridos no V Encontro de Núcleos de Pesquisa em Política Social e Família, ocorrido na UFSC em março de 2012 e apresentados no XIII ENPESS realizado em novembro de 2012. Eles contemplam de forma articulada diferentes eixos de discussão. Parte-se de uma contextualização sócio-histórica sobre a incorporação da família na política social, avança-se para o debate sobre a família brasileira contemporânea e suas disposições regressivas em relação à provisão de bem-estar, considerando suas configurações atuais. Inclui a problematização da “(in)viabilidade” de manter a centralidade na família como eixo estruturante da política social, dados os processos de responsabilização da família através dos serviços, pautados sobremaneira na questão do cuidado, e enfim, a sobrecarga que tal cuidado representa no interior da família, especialmente para as mulheres. Finalmente debruça-se na centralidade da família na política social de assistência social, focalizando a questão do trabalho com famílias. Nessa lógica a discussão é aberta pelo artigo, ironicamente intitulado “O casamento da política social com a família: feliz ou infeliz?” toma como matriz teórica a discussão da visível contradição entre o objetivo de promover direitos de cidadania — inerente à política social — com a participação da estrutura da família, estritamente hierarquizada e consagradaem seus padrões atuais. As suas conclusões reforçam a importância da abertura da família- domicílio, como grupo analisado em sua diversidade: unidade distribuidora interna de renda, cuidado e afetos, com significativas transferências materiais e imateriais, mas que encobre, dada a hierarquização de gêneros, a mulher-mãe sobrecarregada pelo trabalho domiciliar não pago e penalizada pela pior posição no mercado de trabalho. O trabalho “Políticas sociais, família e proteção social: um estudo acerca das políticas familiares em diferentes cidades/ países” discute as transformações da família na atualidade e o reconhecimento conceitual de políticas públicas enquanto conteúdos concretos regulamentados ou executados pelo Estado conduzindo à análise de várias legislações que, na atualidade, fundamentam a matricialidade familiar e a convivência familiar em âmbito internacional. Também ao reconhecimento de programas, projetos, serviços e benefícios dirigidos à família, em diferentes cidades/ países, da América Latina e Europa, parceiras de um projeto comum de cooperação internacional. Em seguida, o texto “Programas de transferências condicionadas, famílias e gênero: aproximações a alguns dilemas e desencontros” visa aproximar o leitor dos debates em torno dos Programas de Transferências Condicionadas de Renda (PTCR) na América Latina, a partir de duas perspectivas que pouco têm sido privilegiadas. A saber: suas relações materiais e simbólicas com a família e as construções de gênero ou generizantes que esses programas têm para além dos elementos discursivos. Nesse sentido, destaca como o discurso político e acadêmico sobre a pluralidade de arranjos familiares e a necessidade de relações mais igualitárias de gênero, perdem a oportunidade de materializar-se nesta nova geração de políticas sociais. Além disso, questiona o reconhecimento contido no discurso político da família como uma entidade privilegiada para quebrar o ciclo da pobreza. Aprofundando o debate na realidade brasileira são apresentados os trabalhos “Mudanças nas famílias brasileiras e a proteção desenhada nas políticas sociais”, “Serviços Sociais e responsabilização da família: contradições da política social brasileira” e “Programa Bolsa Família, cuidados e o uso do tempo das mulheres”. O primeiro traça o perfil das famílias brasileiras nos levantamentos demográficos recentes, tendo como pano de fundo a percepção de família enunciadas nas políticas públicas. Os dados mostram que as famílias estão menores, mais fragmentadas e com mais idosos e que, mesmo com a tão propalada centralidade da família nas políticas sociais, o Estado vem se desvencilhando há mais de três décadas de uma série de responsabilidades e as vem repassando para as famílias. As mudanças observadas na população levam a concluir que estas terão cada vez menos condições de dar conta dos encargos a elas propostos e, a despeito do aumento da vulnerabilidade das mesmas, não há sinais de que estejam sendo construídos sistemas de proteção sólidos para as gerações futuras. O segundo discute a relação família e serviços sociais no contexto da política social brasileira, tomando como foco os programas Brasil Carinhoso e Melhor em Casa. Através deles, demarca-se a tendência familista da política social considerando que o objeto dos programas que são os serviços, marcam uma inflexão nos rumos da política social e que ao reforçar a família no cuidado em saúde e focalizar o acesso aos serviços educacionais infantis à pobreza extrema, explicita-se o distanciamento ao princípio da universalidade dos direitos sociais. Assim, coloca em evidência a privatização da provisão de bem-estar através de dois atores, o mercado e a família. O terceiro, fruto de pesquisas desenvolvidas desde 2003, traz o debate sobre a participação das mulheres em programas de transferência condicionada de renda, na perspectiva de gênero. Os dados apreendidos, através de entrevistas e grupos focais com mulheres titulares do Programa Bolsa Família em diferentes cidades, sustentam a discussão desse trabalho sobre as tensas relações derivadas das necessidades geradas às mulheres para a conciliação entre a esfera dos cuidados intra-familiares e o trabalho remunerado. Finalizando a coletânea, encontra-se o trabalho “Política social contemporânea: a família como referência para as políticas sociais e para o trabalho social”, em que é reafirmado o debate sobre a centralidade da família nas políticas sociais. Trata especialmente da centralidade nas políticas de assistência social e saúde, que têm reatualizado as demandas de trabalho socioeducativo e de educação em saúde com grupos de famílias. No escopo desse debate problematiza-se tal centralidade, ao retratar a trajetória histórica, com ênfase na contemporaneidade, do modo de abordar e trabalhar com famílias nessas políticas, além de oferecer contribuições para repensá-las em bases críticas. As Organizadoras Prefácio A feliz incumbência de prefaciar este livro sobre familismo, direitos e cidadania, organizado por Regina Mioto, Marta Campos e Cássia Carloto — e constituído de textos cujas autoras, incluindo as organizadoras, são reconhecidas estudiosas do assunto — propiciou-me duas gratas satisfações: ter, de alguma forma, meu nome incluído nesta oportuna e necessária publicação; e merecer o privilégio de conhecer, previamente, o seu conteúdo. Além disso, como interessada que sou por tudo o que diga respeito às políticas sociais, a temática nele trabalhada incitou-me a expressar pontos de vista sobre a contraditória relação entre a transformação da família e posturas governamentais, assumidas ou não. Afinal, este é o eixo em torno do qual as discussões nesta obra são travadas. Sua atualidade candente, associada a mudanças estruturais e histórias, particularmente no âmbito dos costumes, respondem pela contínua alteração do padrão familiar convencional em todo o mundo. Hoje não é mais novidade o fato de a família estável, de elevada fertilidade, constituída de pai, mãe e filhos do mesmo casamento, e sustentada por um provedor masculino, ser raridade. E essa tendência tem produzido significativas reviravoltas no acervo factual, doutrinário e normativo, que garantia a reprodução consensual do Estado Social pós-bélico. Desde então, a transferência estatal de encargos de natureza social ao núcleo familiar, a título de parceria no cuidado mais humanizado de crianças e idosos, mas na verdade essenciais à reprodução do sistema capitalista, tornou-se anacrônica; e não só por causa do estiolamento do pleno emprego (masculino) dos anos dourados da política social, entre os anos 1945-1975; mas pelas alterações desencadeadas por novas forças produtivas que requeriam outros pactos e justificações sociais, políticos e jurídicos. Como bem diagnosticou Esping-Andersen,1 já na década de 1990, as ameaças que, desde o final dos anos 1970, pairavam sobre o Estado Social do segundo pós-guerra, procediam de duas potentes forças globais: a transição demográfica, responsável pelo irreversível processo de envelhecimento, e a transformação da família também em franca ascensão. Tais ameaças consistiam não no que, em si, elas expressavam, pois dependendo da análise poderiam significar avanços civilizatórios. O temor que passaram a inspirar era de outra ordem. Devia-se à constatação de que o modelo de regulação social keynesiano, vigente nos referidos anos dourados, e que poderia articular estabilidade econômica, democracia política e capitalismo, para enfrentar tais eventos, dava claros sinais de esgotamento. Com efeito, o sistema de proteção social conquistado por movimentos democráticos desde o final do século XIX, e pautado, após a Segunda Guerra Mundial, pelo estatuto da cidadania, tornou- se incompatível com a nova ordem socioeconômica emergente, de filiação liberal, que se implantava com vigor. Por isso, era preciso desacreditar o Estado Social, por meio de uma retórica avessa aos seus princípios e critérios eminentemente públicos. Não à toa passaram a vigorar slogans e juízos devalor que, ao mesmo tempo em que veiculavam a ideia de que não mais havia alternativas ao neoliberalismo triunfante (veja-se a ampla difusão da sigla “Tina” — there is no alternative), reduziam o social à mera soma de indivíduos. Um exemplo marcante desse culto às individualidades e ao mérito pessoal foi um emblemático discurso proferido pela ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher, no qual pontuava que na Grã-Bretanha não havia sociedade, mas apenas pessoas. Essa mudança produziu efeitos disruptivos sobre o protagonismo do Estado no processo de atenção pública às demandas sociais, especialmente daquelas procedentes de necessidades humanas coletivas. Com a dissolução do socialismo real, que constituía, ao menos simbolicamente, uma meta socialdemocrata a ser perseguida, esses efeitos destrutivos ganharam cada vez mais legitimidade. Em função desse movimento, novos atores institucionais privados recobraram notoriedade — não que eles, no passado, tivessem ficado fora do circuito das ações do Estado; mas sim que, agora, eles competiam com a liderança estatal. O primeiro ator privado a ser alçado à condição de protagonista da vida econômica e social foi o livre mercado caracterizado por um individualismo possessivo e pelo afã de privatizar o Estado, baratear o trabalho e transformar bens e serviços sociais em mercadoria. Em decorrência, uma cultura política que se consolidava em torno dos direitos e da justiça sociais, inclusive no chamado Terceiro Mundo, entrou em declive, dando vez ao domínio antissocial do sistema de trocas mercantil, ao trabalho assalariado ou rentável, como produtor de bem-estar, e das políticas econômicas monetaristas. Sob a égide da privatização, laborização e monetarização, outros atores privados, não mercantis, ressurgiram como substitutos do Estado na provisão bens e serviços essenciais a indivíduos e grupos, reduzindo-se, dessa forma, os gastos sociais públicos. Dentre esses atores, destaca-se a família como fonte primaz de reprodução humana e de solidariedades primárias no seu interior, instituindo-se, com a sua participação, novos arranjos de ajudas altruístas. Foi o caso do modelo misto ou pluralista de bem-estar (welfare mix), iniciado na Europa, a partir dos anos 1980. Nesse modelo, o Estado, o mercado e a família, além de outros setores voluntários da sociedade, formariam uma cadeia de participações não hierárquicas, equivalentes e corresponsáveis, para, com recursos variados — específicos de cada um — enfrentar os “riscos” gerados pela nova ordem socioeconômica mundial. E no rol desses “riscos” figurava, com precedência, a própria transformação da família, acompanhada do envelhecimento humano e populacional e de outros eventos também considerados incompatíveis com a linguagem da proteção social pública, na perspectiva da cidadania, como as correntes migratórias. Ou seja, ironicamente, a família vem sendo convocada para ajudar a amortecer os efeitos deletérios produzidos por determinações estruturais e políticas, que têm como prioridade o aumento da competitividade capitalista em escala planetária. Outro modelo recente, no qual a família ganhou centralidade, como fonte privada de apoio social, na contramão da responsabilidade pública, é o regido pelo chamado princípio da subsidiaridade. Tal modelo baseia-se na prédica, de tom religioso, que no fundo recomenda o amor ao próximo, principalmente ao “mais próximo”, deixando os mais “distantes” (leia-se, o Estado) como último recurso a ser acionado. Transportando essa retórica pseudoeducativa/ altruística para o campo minado de interesses opostos da política social, tem-se o prevalecimento da seguinte estratégia protetora, que se situa à margem dos direitos devidos pelo poder público: as pessoas necessitadas devem, em primeiro lugar, recorrer a si mesmas, aos seus próprios recursos, ou como sabiamente traduz um antigo dito popular: devem transformar suas “tripas em coração” para continuar sobrevivendo. O segundo passo, caso os indivíduos não possuam nenhum “ativo” de que possam lançar mão para se autoajudar, deverá ser dado em direção à família. É neste locus que carecimentos de ordem social se individualizam e devem ser tratados como assuntos particulares. Para enfrentá-los caberá à instituição familiar valer-se de uma virtude que só ela possui — o dever moral da ajuda parental — a qual deverá ser colocada a serviço de boas práticas voluntárias que configuram externalidades econômicas, mas das quais o sistema econômico dominante se beneficia. Contudo, na falta da família, uma terceira instância privada a ser acessada por indivíduos carentes repousa ainda no altruísmo associativo. Trata-se não só de instituições filantrópicas, religiosas ou laicas, formalmente constituídas, mas também de amigos e vizinhos; isto é, daquelas estruturas de relações informais que se organizam e funcionam movidas por sentimentos de fraternidade. Muitas delas, como as redes de amizade, de companheirismo e de vizinhança, se estabelecem espontaneamente, como forma de compensar a ausência do Estado, as incompetências governamentais e a inanição das políticas partidárias e dos representantes do povo; e se caracterizam como estratégias de sobrevivência precárias de cuja mutualidade todos os cooperantes podem se valer em situação de desamparo. Donde se conclui que a eleição dos poderes públicos como o último recurso a ser ativado, nada significa em termos educativos ou de estímulo à autonomia individual. Pelo contrário, a ausência do protagonismo estatal no processo de provisão social, não apenas priva os cidadãos da fruição de direitos, que só o Estado pode garantir, mas também sobrecarrega a família com encargos que superam as suas possibilidades de bancá-los. Isso, sem falar do incitamento à proliferação do assistencialismo, ou da negação da assistência social como política pública, tal como concebida na Constituição brasileira vigente, promulgada em 1988. Essa tendência tem contribuído, sobremaneira, para o reforço do familismo (ênfase na autoajuda familiar), onde ele já existia — como no sul da Europa, América Latina, e particularmente no Brasil — e para o enfraquecimento das experiências nacionais onde o Estado constituía a principal fonte de proteção social, como na Escandinávia. Até mesmo nesta região nórtica europeia, tida como a mais socialdemocrata, a ingerência neoliberal tem limitado o escopo e a intensidade protetora do Estado, fazendo com que indivíduos necessitados, especialmente os estrangeiros, passem a contar com o apoio de seus círculos informais privados. Em suma, tem-se, em todo mundo, um afrouxamento da relação de mútua implicação entre família, política social e direitos de cidadania. Na realidade latino-americana e, especificamente, brasileira — como demonstram as análises contidas neste livro além das controvérsias sobre o conceito de família e sobre a definição de atenções públicas mínimas aos seus membros mais fragilizados, não existem sinais de que o Estado esteja se esforçando para enfrentar as transformações familiares. Neste contexto geográfico- cultural, enfatizam vários textos, não só se espera que as famílias assumam a responsabilidade pelos cuidados pessoais em seu próprio âmbito, mas também que se transformem em unidades produtivas e em redes de proteção paralelas ao Estado. Impera o que uma das autoras chama de “neofamilismo”, para nominar o processo de refamilirização que se fortalece no rastro da remercantilização das relações familiares com a sociedade. Tal fato resgata e potencializa o assistencialismo, de conotação moralista, cuja principal consequência é a institucionalização de desigualdades sociais. Há, portanto, “um descaminho da lógica da cidadania”, pondera uma das autoras. Há também, afirmam outras, ao se referirem ao Brasil, flagrante descompasso entre os avanços sociais formalmente previstos na Constituição da República vigente e os atrasos ou retrocessos no respeito a esses avanços. E como era de se esperar, os programas sociais, de caráter monetário, condicionados a contrapartidase focalizados na pobreza extrema, endereçados às famílias latino-americanas, têm impactos reduzidos, quando não perversos. Isso porque, muitos não têm foro de direito, ou não estão positivados como tal; e, por definição própria, são instrumentos de alívio da pobreza — uma frase de efeito, importada de países regidos pelo ideário neoliberal, como os Estados Unidos, que no fundo expressa o desinteresse governamental em atacar o problema pela raiz. Disso se conclui que a magnitude das ameaças globais de que falava Esping-Andersen não está merecendo contra- ataques politicamente empenhados, nem no Brasil e nem alhures. É tendo em vista essa problemática, que avança tal qual um cavaleiro do apocalipse, não somente contra as famílias contemporâneas, mas contra a própria humanidade, que estudos como estes são sempre necessários e benquistos. Península Norte/ Brasília, 26 de novembro de 2013. Potyara Amazoneida Pereira Pereira Professora titular e emérita da Universidade de Brasília (UnB) O casamento da política social com a família: feliz ou infeliz? ___________________________ Marta Silva Campos 1. INTRODUÇÃO A associação entre Política Social e família é tema que ganha, hoje, mais força, na medida em que é reclamada a participação familiar ativa dentro do sistema de proteção social, com cobertura institucional extremamente favorável. Para problematizar e debater essa acolhida atual da família, enquanto instância necessariamente vinculada ao desenvolvimento da política social, fazemos aqui um recuo ao tempo da implementação das primeiras estruturas de bem-estar social, que podem dar os fundamentos que permitem compreender a posição atual da família na Política Social, ao propiciar o reconhecimento de que as formas atuais não são fenômeno totalmente novo. Chamamos a atenção para o fato de que essas formas existem, na verdade, desde a constituição dos primeiros esboços do que seria a Política Social brasileira. Para ligar as concepções de Política Social e Estado de Bem- Estar Social, mostramos uma aproximação, tomando a ideia de Beveridge (apud Marshall, 1967, p. 97), de vincular ambas mediante a continuidade e a transformação, ao falar numa “revolução britânica”, sob “um desenvolvimento natural do passado”, ou seja: […] fusão das medidas de política social num todo o qual, pela primeira vez, adquiriu, em consequência, uma personalidade própria e um significado que, até então, tinha sido apenas vislumbrado. Adotamos a expressão “Estado do Bem-Estar Social” para denotar essa nova entidade composta de elementos já conhecidos. Tal explicação permite ver a Política Social na condição de um estágio pouco desenvolvido, precursor do Welfare State vigente na sociedade inglesa entre os fins do século XIX e começo do XX.1 Assumimos, assim, a atual posição da família na Política Social não como uma novidade, ao contrário do que, em geral, vem sendo enfatizado em sua análise atual, pelos que a caracterizam apenas como consequência da política neoliberal, em ascensão a partir dos anos 1990. Por essa razão, tratamos detalhadamente da primeira combinação entre família e Política Social, base para a segunda configuração. Essa demonstração segue no tempo, mediante comentários ligados a diferentes bases conceituais relativas à família e seu uso no desenho e cotidiano das diversas políticas de caráter social. Recomendamos basicamente que se proceda à abertura da realidade das famílias, analisando não só suas transformações morfológicas, mas o sentido real do processo das profundas mudanças que a caracterizam. Enfim, tomamos como fio condutor a alusão ao paradoxo que se apresenta na vinculação entre família e direitos de cidadania existentes no país. De um lado, a busca intensificada do protagonismo — leia-se responsabilidade — da família no sistema de proteção social. De outro, a promoção da proteção social, tradicionalmente objeto da Política Social, com base na concretização de direitos políticos, civis e sociais, via de regra, especificados individualmente. Parece contraditória a simultaneidade da atribuição do caráter universal do direito de cidadania a tal política e da responsabilização ampla da família em seu desenho e desenvolvimento. Com foco na atual situação brasileira, recorremos à consolidada bibliografia internacional e à já consistente crítica interna existente no País acerca dos fundamentos relativos à busca de estratégias alternativas a partir dos esforços familiares, dentro da questão aqui analisada. 2. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO 2.1 Um primeiro casamento A primeira Política Social, com a qual a família casou-se, surgiu como produto histórico do período compreendido entre fins do século XIX e primeira metade do XX, constituindo proposta coletiva para solucionar a contradição entre interesses e demandas próprias do desenvolvimento acelerado do sistema capitalista em sua forma na época. Nesse contexto, diferentes forças sociais contribuíram para a construção de tal proposta: os sindicatos; movimentos e partidos de trabalhadores; industriais, em sua maioria; partidos políticos; governos; classes médias; outras instâncias e organizações da sociedade. Em jogo, as condições e garantias para a força de trabalho, a possibilidade de implantação de um regime antitético ao capitalismo, ou, simplesmente, a busca da distensão e de menores conflitos. Já no contexto do século XX, uniu-se bem com a reconstrução pós-guerra da Europa, além de servir à demonstração e defesa do sistema capitalista em tempos de Guerra Fria. Um conjunto bastante heterogêneo de forças sociais, econômicas e políticas, da consciência das incertezas vigentes, no final do século XIX, são testemunhos às diferentes fontes de aspiração por mudanças na sociedade: a Rerum Novarum, carta encíclica papal de 1891; as lutas sociais, comunista e socialista; ou iniciativas de matriz liberal. 2.1.1 A estrutura de apoio Esta primeira proposta, ainda no fim do século XIX, foi institucionalizada pela criação do seguro social, destinado aos trabalhadores titulares de contratos de trabalho formalizados.2 A vinculação original do Estado de Bem-Estar Social à formação, manutenção e controle da força de trabalho, destinou-se a prover uma base sólida para o funcionamento da economia e sociedade como um todo: sua prontidão — indispensável numa economia caracterizada por períodos alternados de crescimento e expansão produtiva —, ou depressão. Política de natureza contributiva, com aportes de patrões e trabalhadores, que tem o Estado como fiador político e suporte financeiro da gestão da institucionalidade necessária, destinada à proteção contra eventuais necessidades futuras relacionadas aos principais riscos sociais: desemprego, morte, doença, envelhecimento e/ou invalidez e origem do que se denomina previdência social, expandida pela maioria dos países que construíram estruturas de bem-estar social significativamente abrangentes. Também no caso do Brasil, é consensual a aceitação dessa forma como marco inicial de uma intervenção estatal mais consistente, em termos de política social, na década de 1930, momento de expansão industrial na economia nacional (Paula, 1992). Do ponto de vista que interessa aqui, deve-se lembrar que o funcionamento desse sistema de transferências sociais de caráter financeiro, ocorre, como demonstrado, dentro do sistema previdenciário, com base no princípio de trocas intergeracionais na sociedade em geral. Assim, oferece um lugar importante às famílias, quando examinadas em seu interior: enquanto os adultos trabalham, mantêm os mais novos e contribuem com parte de seus salários para gerar um fundo de recursos de caráter público, que provê aposentadorias e pensões para a geração anterior. 2.1.2 As dificuldades Esta rememoração torna presente o fato de que é pelo ângulo antes mencionado, com referência ao sistema de proteção social, que se delineia em grande parte seu papel criador de desigualdades, no tocante aos resultados da própria Política Social vigente. Fato, de certa forma, surpreendente, pois,dado seu estatuto de modelo redistributivista de recursos da sociedade, deveria ser considerado predominantemente agente de diminuição das desigualdades. Para analisar os prós e contras dessa forma inicial de associação entre a família e tal política social, impõe-se trilhar um caminho teórico específico, abrindo a política previdenciária em sua ponta, verificando como chega ao conjunto das pessoas beneficiadas. Com efeito, a organização do sistema previdenciário brasileiro — como em qualquer parte centrado na ótica da proteção e controle da força de trabalho — opera privilégios de várias formas. Em primeiro lugar, ao favorecer basicamente o acesso dos trabalhadores legalmente contratados, em detrimento dos atuantes na informalidade. Desta maneira, são deixados de lado, por exemplo, no Brasil, os trabalhadores rurais — uma massa respeitável de pessoas —; também os autônomos, os empregados domésticos, categorias que só vieram a contar com os benefícios previdenciários de aposentadorias e pensões, por força da Constituição de 1988. Além disso, sua montagem se fez de forma incremental, seletiva e negociada, de acordo com o peso das diferentes categorias profissionais, em termos econômicos e políticos. Ao criar inicialmente institutos de previdência social específicos para cada uma delas, propiciou benefícios mais amplos para as categorias contempladas com maiores salários, já que a contribuição de todos ao sistema de seguro é proporcional a esses rendimentos. A proporcionalidade da contribuição denuncia o caráter não distributivo entre os diferentes níveis salariais. A falta de isonomia espelha-se ainda na concessão de aposentadorias de valor integral, iguais às dos vencimentos na ativa, para funcionários públicos, contrastando com o seu rebaixamento no caso dos empregados do setor privado. Trata algumas categorias como especiais, para efeito dos benefícios, estabelecendo gritantes diferenciais quanto às exigências de tempo de contribuição ao sistema, caso da aposentadoria de parlamentares e da pensão vitalícia a filhas solteiras de militares.3 Todas essas diferenças de tratamento certamente influem no grau de proteção social às famílias, que são diferentemente situadas em função dos recursos obtidos por meio do trabalho. Mediante esses processos, portanto, tratando-se da previdência social — estrutura tradicional de todo o sistema de proteção social brasileiro — cujo desenho é orientado para estabelecer um benefício de abrangência familiar calculado pelos diferentes níveis salariais, são produzidas discriminações, pela segunda vez, mediante o próprio sistema de proteção social. E, ainda, aqueles que, no sistema previdenciário, são considerados os titulares de direito, a quem são transferidos os benefícios correspondentes, coincidiram majoritariamente com os trabalhadores homens, dada a relativamente mais baixa inserção de mulheres no mercado de trabalho, durante um longo período da vida nacional quanto a seu sistema de proteção social. Assim, observa-se que, nesse sistema, concretiza-se um padrão de transferência dos benefícios para aquele que detém o status de trabalhador, em geral, o homem “chefe de família”, e só de forma derivada abrangendo a mulher e os filhos. Lewis (1997) assevera que o seguro social, considerado um benefício de “primeira classe”, é dirigido majoritariamente aos homens, enquanto para as mulheres sobram os da assistência social, ou de “segunda classe”. Como consequência, registram-se prejuízos para o acesso das mulheres à proteção social vigente, conforme já mencionado, especialmente devido à sua posição (em geral menos favorecida) no mercado de trabalho e/ou quando o vínculo conjugal se torna instável (Gornic, 1997, apud Esping-Andersen, 1999). Para demonstrar a existência de implícita política de gênero — e, conjuntamente, de organização familiar — na construção do próprio Welfare State, o importante, na afirmação desses autores, é o fato de registrá-las como dotadas de amplo alcance para a estabilidade e o desenvolvimento social, em termos políticos, de construção nacional. Isto se explica perfeitamente, dentro do modelo normatizado e naturalizado da família nuclear conjugal, que se apoia no “homem provedor”, do qual a mulher é “dependente” (termo clássico) para seu sustento, bem como os filhos da união. Nessa situação, ao homem, considerado pelo seu status de trabalhador, correspondia o papel de “chefe de família”. Para o caso da Inglaterra, cujos primórdios, em termos de proteção social, apresentam boas condições de acompanhamento, pela existência de referências históricas amplas, há cabal definição da “funcionalidade”, em termos de Estado, dessa base familiar específica, presente no desenvolvimento inicial do padrão de intervenção social estatal. Traz claramente uma explícita política de gênero citada pelo próprio Beveridge (1942, apud Esping-Andersen, 1999), em seu Relatório: […] a grande maioria das mulheres casadas deve ser vista como ocupada com um trabalho que é vital, embora não pago, sem o qual seus maridos não poderiam fazer seu trabalho pago, e sem o qual a nação não poderia continuar (tradução nossa). 2.1.3 A convivência Glennerster (2007, p. 35) mostra a preocupação de Beveridge com o sistema de seguro social inglês, quando este afirma muito claramente seu pensamento relativo à família como “uma unidade social básica, como o lar do homem, da esposa e das crianças mantidas pelos rendimentos unicamente do primeiro”. Daí a importância que atribui a uma razoável segurança do emprego para o homem provedor. Enfatiza que, ao ter de lidar com grandes mudanças em suas próprias concepções acerca do papel das mulheres, esse defensor máximo de uma Seguridade Social ampla se vê diante de “uma infeliz justaposição de sua visão das mulheres como iguais e de seu papel dentro dos arranjos domésticos que sabotavam e excluíam tal status” (op. cit. p. 35). São disso evidência suas afirmações, em 1945: […] no casamento, uma mulher adquire um direito legal de ser sustentada por seu marido, como uma primeira linha de defesa contra os riscos que recaem diretamente sobre a mulher sozinha. Ou: É verdade que a maioria das mulheres casadas não desejará sair para trabalhar porque elas terão muito trabalho para fazer como donas de casa e mães. Mas numa sociedade livre é preciso deixar à própria mulher e a seu marido a decisão sobre isso.4 Em suas percepções, mostrando-se incomodado com a contraditoriedade entre os princípios supostamente envolvidos nesse tipo de associação entre família e política social, ele vem ao encontro da reflexão aqui feita: a indesejabilidade dessa “infeliz justaposição”, quer dizer, dessa dupla empresa de procurar promover igualdade, e acrescentam-se, também, direitos de cidadania, a partir de uma estrutura familiar, tendente à consagração de sua hierarquia interna, em que pese certa plasticidade. Observe-se que, nestes comentários sobre a família, o autor tem como fundo bem visível sua decisão estratégica pelo seguro social no sistema de bem-estar social inglês. Glennerster (2007) comenta a contradição quanto à aspiração ao universalismo como princípio do Welfare State, que ele expressou no Relatório, motivada por seu “profundo desejo de incluir tudo e todos e sua escolha metodológica: o seguro contributivo através do emprego”.5 Uma das consequências importantes dessa decisão, orientada para o destaque do seguro social como instrumento da Política Social, é costumeiramente o estabelecimento de uma superioridade de gastos com transferências financeiras sobre os relativos à oferta de serviços sociais enquanto instrumentos de políticas. A organização de uma rede de serviços sociais que esteja realmente disponível, como vias para a educação e criação das crianças e para os cuidados gerais aos membros dependentes, fica nesse caso bastante relegada dentro dos restritos orçamentos públicos. Muito claramente, para a vida familiar, a disponibilidade dos serviços é fundamental. Como expressam Campos e Reis (2009): “Os serviços conferem materialidadeàs políticas sociais e, por conseguinte, garantem direitos sociais”. Acrescentemos: conferem materialidade de potencial mais satisfatório, mais refinado e seguro, que as transferências financeiras. E com Mioto (2010, p. 5): […] os serviços atuam como ponto de convergência e mediação de ações vinculadas à proteção social e exercem papel fundamental no desenvolvimento da autonomia individual, familiar e social, além do enfrentamento aos riscos circunstanciais. Desvendando a partir do interior da família, configura-se mais uma vez a situação desfavorecida da mulher-mãe (em geral, com consequências indesejáveis para todo o grupo familiar) quanto à divisão de recursos indispensáveis para esse cuidado, que cabe a ela prover ou providenciar, dada a forte expectativa do cumprimento de sua responsabilidade familiar de cuidadora. Reforça-se a desigualdade do tratamento de gênero interno à família, influenciando nela a própria vida no tocante à reprodução social. Ao mesmo tempo, estimula-se a hierarquização entre o casal, por meio dessa própria estruturação. A crítica teórica feminista (Lewis, 1997; Pateman, 1989; Orloff, 1999) ressalta que, na verdade, o que substancialmente opera na consolidação de tal modelo de proteção social assim construído é o trabalho não pago da mulher. Fica bastante evidente, a partir dessa inclusão teórica da questão de gênero, a relação do sistema de proteção social com o mercado de trabalho e o próprio desenvolvimento econômico: à mulher é reservado um papel subsidiário; seu regime e ritmo de trabalho estão na dependência rigorosa das estratégias familiares e das conveniências do sistema produtivo, de forma bem menos vantajosa do que a do homem. A ótica do feminismo intelectual alerta para a necessária análise do tipo de relações que deverá sustentar a convivência a que a família foi conduzida após esse casamento. Pateman (2006) não hesita em denominar como The Patriarchal Welfare State6 a seu texto emblemático do ponto de vista dessa crítica, publicado em 1989. Nele ressalta muitos modos — eficazes e dissimulados — de impedir a igualdade de direitos da mulher que convive com um homem provedor na família e demonstra alguns deles. Partindo da ideia de que o modelo supõe a dependência financeira da mulher em relação ao cônjuge (já que a formação para o trabalho e a posição possível no mercado, além da força modelar em termos culturais, não favorecem decisivamente sua independência mediante inserção produtiva), a autora alerta para a expectativa aí incluída de que o homem seja “benevolente”, quer dizer, esteja disposto a compartilhar seu ganho individual de forma a garantir um padrão de vida igualitário. Afirma que isso nem sempre acontece, e conta que num único estudo que conseguiu localizar, de William Thompson, foi constatado o erro de se esperar sempre esse comportamento masculino, num longo período histórico7 (Pateman, op. cit., p. 137; tradução nossa). 2.2 Um segundo casamento Embora os efeitos do chamado segundo casamento não sejam completamente distintos do primeiro, quanto a sua influência sobre a desigualdade social e a cidadania, como veremos, é preciso analisar como vem sendo instalada outra associação entre uma nova política social e uma nova família. Em ambas há muitas diferenças devidas à passagem do tempo: a primeira desliza para o combate à pobreza e à miséria, sustentada em grande parte pela expansão dos mundialmente adotados programas de transferência direta de renda às famílias, como ação dos governos. Relativamente pouco dessa transferência está afeta ao sistema previdenciário — objeto de duas reformas tendentes a limitar gastos, — em 1998 e 2003, configurando-se como Assistência Social, portanto, Política Social não contributiva. A família, por sua vez, vislumbrada nos chamados diferentes “arranjos familiares”, distanciou-se ainda mais do antigo modelo plasmado na modernidade e reforçado pela política social contemporânea. Ao passar a receber benefícios da assistência social, em muitos casos constando da mulher sozinha,8 a família passou a ser condicionada, e ainda mais responsabilizada, leia-se cobrada, por certas obrigações definidas administrativamente em torno da educação e saúde dos filhos, sob pena de perder o subsídio. No Brasil, se considerados os níveis de remuneração do trabalho e dos benefícios, vem sendo evidenciado o aumento dos problemas de sobrevivência, especialmente no caso da mulher única responsável por sua própria manutenção e a dos filhos. O assunto foi bastante estudado no Brasil, tomando como base a situação das famílias denominadas “monoparentais”, e consubstanciado teoricamente no tema da “feminilização da pobreza”. Como já sugerido, a mulher enfrenta um caminho difícil, tanto na ausência de um companheiro na convivência conjugal, como na saída dessa união — principalmente se não reconhecida legalmente — pela falta de cobertura da proteção pessoal para si e para os filhos. Devido às suas demandas incontornáveis, e à sujeição inevitável a trabalhos mal pagos, torna-se, em geral, diretamente dependente do Estado, mediante subsídios assistenciais. Complementarmente à denúncia de que o tema da distribuição de renda dentro da unidade doméstica é em geral descuidado,9 Pateman (op. cit., p. 137; tradução nossa) registra o fato de a mulher ter em geral sua situação piorada com a separação.10 No Brasil, dados oficiais nacionais registram, nas últimas décadas, evolução nesse sentido. Apresentando esses e vários outros consistentes argumentos, a autora afirma apropriadamente que “a cidadania das mulheres é cheia de contradições e paradoxos” e que a negação de uma cidadania completa inclui mesmo “o objetivo de mantê-las fora da força de trabalho paga”. Essas observações articulam-se no Brasil, de modo a afirmar a configuração de uma nova situação estrutural, com referência ao seu sistema de proteção social. Apresenta-se, dentro dele, uma situação diferente, para a família, ligada a maior esgarçamento da solidariedade familiar intergeracional. Dentro de uma tendência mundial, medidas que atingem profundamente o sistema vigente de pensões e aposentadorias são adotadas no Brasil, respaldadas na aprovação da Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998, e posteriormente em nova legislação. Com base em princípios de contenção de gastos, considerados como agravantes do déficit do sistema previdenciário, e na garantia de um sistema caracterizado como um mix público-privado, conduz- se para a adesão a um sistema claro de dois “pilares” previdenciários, um básico, estatal, e outro privado, mediante operação de fundos fechados ou abertos de seguros, dentro de um teto financeiro de aposentadoria bastante restrito — dez salários- mínimos — para os trabalhadores de empresas privadas (com a possibilidade de sua extensão para os funcionários públicos). Utilizando-se do instituto da previdência complementar, já existente no sistema brasileiro, suas medidas centrais se dirigem ao retardamento da aposentadoria, ao estabelecer uma idade mínima — 60 anos para homens e 55 para mulheres —, funcionando de forma vinculada ao tempo de contribuição (35 anos para homens e 30 para mulheres) já vigente (exceto para professores universitários), com o fim da aposentadoria concedida simplesmente por tempo de serviço. Também favorecem a redução substancial do montante do “salário-benefício” a ser pago no caso das aposentadorias por idade e por tempo de contribuição, com a introdução do “fator previdenciário”, um corretor mais próximo de critérios atuariais para o cálculo e construído a partir da diferente ponderação, no momento da aposentadoria, do tempo de contribuição, da idade e expectativa de vida. Para a adequada compreensão do tipo de alcance que pode ser esperado dessa mudança, é bom prestar atenção ao posicionamento das forças que se alinham genericamente a uma perspectiva neoliberal. No caso das organizações patronais, é significativo o posicionamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), de importâncianacional, favorável à abolição da seguridade social como um conjunto, inclusive orçamentário, propondo a previdência social contributiva com caráter de seguro e uma Rede de Proteção Social ao Trabalhador, composta pela Política de Assistência Social e de Saúde, financiadas com recursos fiscais. Baseia-se na mínima interferência governamental e abolição das contribuições patronais, com a operação do sistema individual e de capitalização para os que desejem benefícios acima dos limites da previdência pública. O seguro de acidentes de trabalho seria inclusive de natureza privada, a partir de contribuições compulsórias dos trabalhadores. Sem pretensão de tratar também da conformação do sistema previdenciário brasileiro em geral, alguns aspectos específicos devem ser lembrados para esta argumentação: a vinculação da idade mínima para aposentadoria ao tempo de contribuição dilatou a exigência de vida laborativa para aqueles que começaram a trabalhar em idades mais baixas, presumivelmente os pertencentes às camadas de menor renda; o cotejamento da idade mínima com a expectativa média de vida dos brasileiros leva à previsão de pouco tempo de sobrevivência para os aposentados; algumas mudanças dos termos para recebimento do benefício causaram danos, especialmente para aqueles que estavam prestes a gozá-lo. Nesse sentido, num contexto de divergências profundas entre interesses expressos e propostas conflitantes — com vitórias e derrotas eleitorais e batalhas públicas, que produziram intensa luta, com perdas e ganhos entre segmentos da população —, temos de considerar que as normas previstas para a passagem gradual do velho ao novo foram bastante rápidas, comparativamente, por exemplo, ao caso italiano, no governo Dini. Do ponto de vista da relação entre família e política social, essa nova situação significa a deterioração da solidariedade intergeracional à qual nos referimos ao tratar do primeiro casamento. A entrada do chamado “segundo pilar” da Previdência Social — a previdência privada —, ao admitir a impossibilidade da estatal fazer face à cobertura de riscos, desmonta a relação de interajuda entre as gerações da família: os que trabalham hoje e mantêm as aposentadorias e pensões dos que já deixaram o mercado de trabalho e ao mesmo tempo cuidam de si e de seus filhos. Torna-se difícil, devido à insegurança do modelo, servir àqueles que devem manter-se e cuidar do seu futuro com proteção financeira privada, dada a insegurança de seu rendimento a longo prazo. A estrutura familiar “securitária” não é mais garantia adequada à permanência do grupo, dando origem a uma situação pior, do ponto de vista da relação entre esse casamento, com a família agora constituída, em relação à primeira união. Deduz-se, assim, que a cada configuração de Política Social corresponde uma dada família. CONSIDERAÇÕES FINAIS A discussão aqui feita reforça a importância da abertura da família-domicílio em sua diversidade interna, para vê-la como um grupo, dotado de estrutura própria, que inclui diferenciados sentimentos, relações e posições, com seus consequentes poderes e suas hierarquias. Muitas transferências materiais e imateriais de monta ocorrem dentro dela. Trata-se seguramente de uma unidade distribuidora interna de renda, o que se nota e se usa nos atuais programas de transferência condicionada de renda. Compreendê-la supõe evitar a indiferenciação de sua realidade interna, o que provocaria desrespeito a um detalhamento mais empenhado de sua realidade e sobre como tratá-la.11 A propósito, alguns critérios devem ser recuperados na continuidade da compreensão dessa intimidade familiar e das normas da família brasileira. Cabe lembrar que a posição de chefe de família foi objeto de legislação estrita (hoje extinta) concedendo- se, pelo Código Civil, ao homem, entre outras coisas, o direito de fixar a residência do casal, sob pena, para a mulher, de caracterizar “abandono de lar”, se desobedecido. Também o seu direito de administrar os bens do casal e, para não deixar dúvidas: “o direito de decidir, em caso de divergência”, conforme a letra da lei anterior (apud Campos, 2010). Dada essa forte configuração do papel proeminente do antigo homem-chefe-de-família, convém não se afastar desse modelo mediante o elogio à fortaleza da mulher como chefe da família, respondo às avessas a hierarquização dos cônjuges dentro da estrutura familiar. Ou seja, marcar antieticamente mudanças “profundas” na organização familiar, abandonar a possibilidade de estabelecer relações horizontais entre os cônjuges. Pior, refundar a desigualdade interna de gêneros, depois de séculos de avanços contrários, mas ainda desafiados. Desse ponto de vista, parece bastante equivocado (além de ilegal) insistir na recuperação de uma hierarquia familiar, ao empenhar-se na afirmação da “Chefia Feminina” (Campos, 2010). Tendência cujo inconveniente reside tanto no prejuízo à convivência entre os cônjuges, e deles com os filhos e outros membros, como no reforço a uma situação de pauperização da família, que comprovadamente ocorre quando a mulher está só com seus filhos no domicílio. Estudo da Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2010, p. 21) confirma essa situação, ao examinar dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2009), referentes ao caso dos “arranjos formados por mães com filhos, sem a presença do cônjuge” dentro do “fenômeno das famílias chefiadas por mulheres”. Observa que, nesse caso, a mulher é considerada responsável pela família por ser a única adulta presente, com o encargo do sustento de todos, nessa forma familiar. Entretanto, admite que “não se pode considerar como vantagem12 tanto o fato de mais mulheres serem consideradas responsáveis por suas famílias, com a ausência do cônjuge, especialmente no caso de haver crianças menores a serem sustentadas. Isso faz com que a renda familiar seja, por vezes, insuficiente e coloca essas mulheres em situação de maior fragilidade”, visto que “[…] o arranjo parece estar mais relacionado a uma situação de maior dificuldade” (op. cit., p. 21).13 Neste sentido, é preciso lembrar que o modelo nuclear conjugal de família, que Parsons definiu, partindo dos Estados Unidos, nos anos 1950, era coerente com a prosperidade econômica promovida pelo fordismo da época, gerando salários altos, suficientes para que o homem-pai fosse o provedor da família. Estendeu-se ao grosso dos países do Ocidente, mas não vem funcionando em termos das próprias funções que lhe são atribuídas. No Brasil, isso ocorre desde o registro do desaparecimento do “homem provedor”, na década de 1980, conforme constatado por Araújo e Scalon (2005). A mulher teve de sair de casa e trabalhar, para “ajudar o marido”, dado o nível salarial insuficiente do homem. Retoricamente, enfim, a importância desse modelo parece ter continuado, penalizando a compreensão da situação das mulheres sós na família. O reforço à financeirização da Política Social, tão ao gosto da perspectiva liberal, ao jogar dinheiro rapidamente no mercado, mediante uma política social de benefícios, extensiva a vasto setor da população, estimula o consumo espontâneo. Embora, com isso, cumpra um papel importante para os beneficiários atuais, ressente- se da inexistência simultânea de estratégias políticas de curto, médio e longo prazos para o problema da distribuição de renda e do patrimônio, tão desiguais no País, devido aos seus determinantes estruturais. Em termos do empenho dessa nova união da política social com a família — obrigatória, pela adesão em grau mais estreito a um novo patamar de exigência —, é necessário incluir, além de subsídios financeiros e programas, serviços adequados e medidas relativas às condições do trabalho feminino no país. Na atual Política Social, no tocante às mulheres, aspectos indispensáveis, como seu trabalho, sua formação, igualdade salarial, empregos, não constituem ainda os focos principais, de efeito prolongado, na direção real de promover sua autonomia em relação a certos entraves auma emancipação humana. Do ponto de vista teórico, pode-se reconhecer a importância da variação das estruturas de proteção social, de seu caráter mais ou menos amplo em termos de cobertura das necessidades e demandas da população, para o desenvolvimento da concepção de cidadania na sociedade. O alerta é para sua positividade, principalmente para essa população, que dela passou a se servir em suas lutas por mais direitos e difusão por um circuito mundial. Vale dizer que medidas foram implantadas em países diversos, alguns em que só remotamente havia a possibilidade de existir um novo estatuto nas relações Estado-sociedade, no sentido da democratização, pois muitos estavam mergulhados em ditaduras há séculos. Para o Brasil, também base para a redemocratização e ampliação da consciência das necessidades e demandas imperativas, houve impulso à legislação social. Em decorrência, a abertura para a responsabilização dos governos e das sociedades por respostas de enfrentamento dos riscos, principalmente os tradicionais: doença, morte, envelhecimento, incapacidades, além do desemprego; expansão da atenção à saúde e extensão da educação. Mesmo diante de todas as insuficiências que ainda encontramos, é certo. Por outro lado, também à custa de muita desigualdade histórica deixada intacta, à margem da sociedade, para além do que foi claramente discorrido neste trabalho. A fim de contrapor-se à reafirmação dessas injustiças, em muitas situações sistemicamente repetidas dentro dos padrões institucionais do exercício profissional, é imprescindível, ao trabalhar com a família, em qualquer de seus casamentos com a política social, atribuir profunda importância às matrizes políticas e econômicas em que ela se desenvolve; aos programas, que delas coerentemente descendem; e à ação direta com os membros das famílias, em sua condição de pessoas, trabalhadores e cidadãos, para lembrar o mínimo. REFERÊNCIAS CAMPOS, M. S. Reforma do sistema previdenciário brasileiro: condições e alternativas de mudança. COLÓQUIO INTERNACIONAL — “O MODELO LATINO DE PROTECÇÃO SOCIAL” REFLEXÕES SOBRE O ESTADO PROVIDÊNCIA EM PORTUGAL, ESPANHA E BRASIL. Anais…, Lisboa, ISEG, set. 2001, Ed. CD- ROM, socius@iseg.ul.pt. ______; REIS, D. S. Metodologias do trabalho social no Cras. In: CRAS: MARCOS LEGAIS. 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INTRODUÇÃO As sociedades humanas, no decorrer da história, criaram formas de proteger seus membros para a produção e reprodução da espécie. Nas sociedades modernas, a proteção social dos indivíduos, e da sociedade como um todo, ocorre pela combinação das funções da família, do trabalho e do Estado, que exercem, entre si, poderes e produzem efeitos, conforme a dinâmica e as forças sociais. As transformações familiares, inseparáveis do massivo ingresso da mulher no mundo do trabalho e da democratização das relações sociais, vêm alterando a composição familiar e sua dinâmica interna, impactando na tão naturalizada capacidade de proteção social. A interdependência do trabalho e a organização familiar podem ser bem observadas pela dificuldade da família, em especial da mulher, em conciliar as atividades familiares com o trabalho remunerado e manter a base relacional em equilíbrio. Esse descompasso coloca em evidência, além das desigualdades entre os gêneros, o forte comprometimento com a produção e reprodução social, demandando mudanças culturais e a regulação do Estado para apoiar a proteção social de indivíduos e sociedade. O objeto de estudo fundamenta-se em reconhecer as inter- relações e tensões existentes entre a família e o Estado para o desempenho da proteção social. A abordagem metodológica baseia- se nos procedimentos bibliográfico, documental e na pesquisa aplicada. Tem por base analítica literaturas e legislação, brasileira e internacional, e também dados obtidos de fonte primária, a partir de um estudo de cooperação internacional realizado entre cidades/países europeus e latino-americanos sobre as políticas sociais voltadas ao apoio familiar. Definidas como os conteúdos concretos da decisão política, foram identificadas a partir de legislação específica, quando da inserção do tema na agenda política, e também no momento de sua operacionalização, por meio de programas, projetos, serviços e benefícios desenvolvidos pelas cidades/países pesquisados. O texto é organizado em três eixos. No primeiro, apresenta o debate teórico sobre proteção social e as inter-relações da família e políticas públicas, para sua consecução, com diferentes acepções, que expressam a recursiva presença da família nas expectativas públicas, em diferentes períodos históricos. O segundo contém estudos e políticas sociais, implícitas e explícitas, de apoio familiar desenvolvidas na atualidade, em âmbito internacional. São classificadas três linhas de convergência das ações públicas em articulação com a família: apoio para os cuidados de seus membros; combate à pobreza; e conciliação de trabalho e família. O terceiro coloca em questão os cuidados familiares na contemporaneidade e a difícil igualdade de gênero. Com essa análise, pretende-se contribuir para o aprofundamento da discussão em torno das políticas sociais e da família. Destacam-se as transformações sociais, suas tensões e a necessidadede aprimorar a efetividade das políticas sociais. A interdependência do trabalho e a organização familiar doméstica, na atualidade, de intrincada conciliação para proteger os membros familiares e de difícil igualdade entre os gêneros masculino e feminino, evidenciam o comprometimento com a produção e reprodução social, em especial de famílias pobres. Distingue o avanço dos estudos e a implementação de políticas de proteção social na atualidade brasileira. Reconhece, todavia, que as políticas sociais fortalecem, em seu desenho, a concepção tradicional de família, que atribui à mulher a função de provedora de cuidados dos membros familiares. Essas políticas atuam para reduzir a pobreza e têm como prioridade a criança e o adolescente, mas são insuficientes e incapazes de intervir nas disparidades das relações de gênero. 2. PROTEÇÃO SOCIAL E INTER-RELAÇÕES DA FAMÍLIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS A pesquisa sobre o tema família e suas relações com as políticas sociais para desenvolver a proteção social recebeu impulso nas literaturas brasileira e internacional, no decorrer da década de 1980. O debate teórico é apresentado em três eixos: a proteção social desenvolvida pela família em diferentes períodos históricos; a proteção social expressa por intermédio das políticas públicas; e suas interligações, quando passa a ter centralidade nas políticas públicas sociais, em âmbito mundial. 2.1 Família e proteção social: transformações e impacto na capacidade de proteção de seus membros A família, histórica e naturalmente, tem se colocado como um dos eixos de proteção social existentes na sociedade. Ao longo do tempo, tem sido a forma básica de organização social para a sobrevivência, produção e reprodução da espécie humana, compartilhando as funções de cuidados de seus membros, com dimensões sociais, econômicas e afetivas (Parsons, 1980; Nazzari, 2001; Giddens, 2003; Campos e Mioto, 2003; Singly, 2007; Venâncio, 2008). O estudo de Muriel Nazzari (2001) identifica a organização social, em São Paulo, no período compreendido de 1600 a 1900, e, focalizado nas famílias que tinham posses, fundamenta as relações econômicas, de propriedade e de poder existentes, organizadas a partir dos clãs familiares ou famílias extensas. A estrutura social e a familiar se confundiam e se fortaleciam, de acordo com sua representação, na quantidade de parentes, índios e escravos africanos. Essa forma de organização social e o desempenho de funções socioeconômicas próprias das famílias patriarcais extensas garantiam a proteção social e dispensavam a intervenção do Estado. A proteção social realizada no meio rural, pela sociabilidade de famílias extensas ou da comunidade, no período colonial, pode ser observada também em artigo intitulado Maternidade negada, de Renato Venâncio (2008). Ao discorrer sobre os efeitos do processo de urbanização, em contraposição à vida nas áreas rurais, o autor destaca a sociabilidade das comunidades em acolher crianças, seja como agregado ou filho de criação, reduzindo os desequilíbrios sociais, tão acentuados nas cidades. A revolução industrial e o consequente crescimento da urbanização promoveram o declínio das famílias extensas empregadoras e provocou a nuclearização das famílias, de forma ampla, com o fortalecimento de vínculos de privacidade, cumplicidade e afetividade decorrentes do isolamento conjugal. A conexão inter-relacional, configurando a família num sistema harmônico e facilitador do equilíbrio social, é bem defendida por Parsons (1980), ao analisar a sociedade americana dos anos 1950, quando sugere funções sociais aos gêneros que atuam de formas solidária e complementar. Compete à atuação masculina, a esfera pública do trabalho e, à feminina, a esfera privada do lar e dos cuidados com os filhos; esta última, de natureza secundária: A família “moderna” nuclear é uma unidade solidária, um sistema baseado no princípio comunalista, sendo “que a responsabilidade principal para este apoio recai sobre o membro masculino adulto da família nuclear” pai exemplar e trabalhador. Cabe à mulher casada a responsabilidade pelo cuidado dos filhos e pelos assuntos internos da família (ibidem, 1980, p. 55). Essa visão tradicional, que atribui funções discriminadas aos gêneros, no âmbito da família nuclear, além da necessária solidariedade interna, encerra a dimensão econômica de dependência, privada e pública, que é alertada por Marta Campos e Regina Mioto (2003, p. 169): […] o grupo familiar aparece com dupla face, a de uma unidade econômica com dependentes e “chefes de família” que redistribuem renda e a de unidade “doadora de cuidados”, também a partir de redistribuição interna. Nele, a da mulher-mãe se espera que seja a principal provedora de cuidados para seus membros, mantendo-se economicamente dependente de seu marido. Assim supõe-se, por um lado, as responsabilidades do “chefe de família” com o sustento, e por outro, as da mulher com o cuidado. É dessa forma que, no âmbito privado, se gera a dependência dos filhos e da mulher ao homem provedor. Também o âmbito público é calcado na dependência do trabalho familiar desenvolvido pela mulher. Compete a ela dar a sustentação para a organização interna da casa, desempenhando os chamados afazeres domésticos, que incluem os cuidados dos membros familiares, com a garantia da harmonia e do equilíbrio interno, capaz de produzir o bem-estar e reproduzir a sociedade vigente. Anthony Giddens (2003, p. 70) observa o surgimento do valor do afeto, com a privatização da família. Considera que a unidade familiar é baseada em “comunicação emocional” ou “intimidade emocional” e destaca três situações que dão base afetiva à família: “os relacionamentos sexuais e de amor, os relacionamentos pais- filhos e também a amizade”. Utiliza-se da ideia de “relacionamento puro” para análise desses laços de intimidade e dos processos de confiança existentes na relação, com recompensas mútuas e apoios decorrentes do relacionamento, em que a franqueza é condição essencial, seja em relação ao casal e, destes, na relação com os filhos. Cabe ressaltar que o relacionamento puro fundamentado na confiança e no respeito mútuo não comporta o sentimento de exploração, desigualdade, opressão, pois existem direitos e deveres mutuamente cultivados e acordados que podem ser abalados e a família pode se tornar um espaço de conflitos e dificuldades. A afetividade, conforme a concepção de Spinoza (2009, p. 98), é reconhecida na célebre e complexa definição de afetos: “As afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções”. A afetividade é compreendida em suas duas dimensões: pelas emoções alegres e tristes. Quando o corpo é afetado de modo a aumentar sua potência, ele apresenta alegria; em seu contrário, a infelicidade. A base relacional, em suas interações, gera vínculos e tensões, encerra consensos e dissensos e expõe felicidades e sofrimentos, quando, diante desses últimos, pode exigir reajustamentos sociais, o que contribui para entender as novas formas de organização do núcleo familiar, na atualidade. A individualização é apontada como importante determinação para as transformações da família, com início em seu processo de nuclearização e, depois, em seus avanços na atualidade. Singly (2007) atribui duas dimensões ao processo atual de individuação da família, que possibilita aos seus membros o sentimento de liberdade: a autonomia e a independência. A independência é, principalmente, analisada em sua perspectiva econômica, em que o indivíduo, graças aos seus recursos pessoais, depende cada vez menos dos outros. E a autonomia é o conhecimento do mundo em que se insere. Esse processo vai provocando, além da individualização da família, também, a individualização na família, e cria as condições para a construção de novas individualidades. A mulher reivindica um processo pessoal de desenvolvimento, pois a concepção tradicional representada na família nuclear, em que a realizaçãofeminina se dá a partir dos resultados obtidos pelo marido e filhos, passa a ser insuficiente para manter a relação conjugal. Pode-se citar, dentre outros, alguns indicadores que vêm atestando essa transformação da morfologia das famílias em quase todas as sociedades na atualidade: o aumento do número de divórcios ou separações; o aumento de filhos fora do casamento; casamentos em idade mais tardia; permanência de filhos com mais idade na casa dos pais; o nascimento de filhos com idade mais avançada da mulher. Esses fatores, por sua vez, vão configurando diversas formas de organização familiar, como famílias nucleares, extensas, reconstituídas depois do divórcio, casais homoafetivos, unipessoais, monoparentais, estas últimas, em especial, compostas por mães e seus filhos. A breve análise histórica sobre família possibilita sustentar que os tipos observados não se esgotam em seus tempos, ou com o surgimento de novos modelos, mas convivem vários tipos de família, que demonstram prevalência de características, em alguns períodos, configurando-se como fenômenos sociais datados, determinados pelas ordens política, econômica e social. São permeados por valores patriarcais, que atravessam os tempos, sofrem transformações e convivem, na atualidade, com um processo cada vez mais comum de individualização da família. Mas ainda é simbolizada, no imaginário coletivo, a partir de visão funcionalista, como um grupo privilegiado de proteção social, em dimensões econômica e afetiva. Um descompasso colocado em evidência, destacadamente quando são observadas as dificuldades da família, em especial da mulher, em conciliar o trabalho familiar com o trabalho remunerado e manter o equilíbrio da base relacional e a proteção social dos membros familiares. A alteração do lugar da mulher na sociedade, principalmente por sua maciça entrada no mercado de trabalho, e o aumento da instabilidade conjugal, transformam o modelo de família tradicional, apoiado nas funções de pai, mãe e filhos, e sobrecarregam as funções familiares, como o cuidado com as crianças e os idosos. Indicadores que colocam em relevo a necessidade de ajustes/regulação pública e a desigualdade entre os gêneros. 2.2 O Estado e a proteção social pública: abordagem conceitual A origem da concepção de proteção social pública é atribuída, por vários estudiosos do tema, ao avanço do processo de industrialização e às contradições entre o capital e o trabalho, registradas na Europa do século XIX. Considerado o risco dos trabalhadores e suas famílias enfrentarem doenças, velhice, desemprego, ou morte, nos primórdios da industrialização, num mercado de trabalho competitivo e ainda instável, se reconheceu e evidenciou, na sociedade, o fenômeno do pauperismo, enquanto questão social. E sobre as respostas à questão social, Behring e Boschetti (2009, p. 51) apontam as políticas sociais como forma de proteção social: As políticas sociais e a formatação de padrões de proteção social são desdobramentos e até mesmo respostas e formas de enfrentamento — em geral setorizadas e fragmentadas — a expressões multifacetadas da questão social no capitalismo, cujo fundamento se encontra nas relações de exploração do capital sobre o trabalho. Luciana Jaccoud (2009, p. 58) define proteção social como “um conjunto de iniciativas públicas ou estatalmente reguladas para a provisão de serviços e benefícios sociais visando a enfrentar situações de risco social ou de privações sociais”. A proteção social, conforme Carmelita Yazbek (2010, p. 4), é uma “intervenção do Estado no processo de reprodução e distribuição da riqueza, para garantir o bem-estar dos cidadãos”. Aldaíza Sposati (2009, p. 21) ressalta o “caráter preservacionista” no conceito de proteção social que supõe “tomar a defesa de algo, impedir sua destruição” e aponta duas dimensões da proteção social, a “noção de segurança social” e a de “direitos sociais”. Considera a segurança como uma “exigência antropológica do indivíduo” e as políticas sociais como ferramentas usadas pelas sociedades para assegurar a proteção e os direitos sociais de seus membros. Na área do Serviço Social, observa-se o uso alternado das terminologias política pública e política social, ora como sinônimos, ora como distinção. Potyara Pereira (2008, p. 92) considera a política social como uma “espécie do gênero política pública”. A espécie política social é uma classificação ou especialização que se subordina ou deriva do gênero da política pública. A política pública, de caráter mais geral, possui outras espécies, como, por exemplo, política econômica. Marta Campos (2011, p. 119), de outra forma, também debate o tema e amplia o conceito quando imprime ação e responsabilidade às políticas. Situa a política pública na ação executiva dos governos e a política social trabalha nessa esfera do Estado, com as estratégias de proteção social. Em suas palavras: A expressão “políticas públicas” deve ser entendida no sentido das “estratégias governamentais” relacionadas às várias áreas de sua atuação. É, portanto, conotativa do investimento dos governos em áreas tanto econômicas como sociais, de grande efeito na sociedade, incluindo, por ex., transportes, produção agrícola, impostos etc. Por “política social” designamos aquelas estratégias mais diretamente ligadas ao sistema de proteção social stricto sensu: Seguridade Social com seu tripé: saúde, previdência social e assistência social […]. Na distinção de política pública, as inter-relações e a demarcação conceitual têm apontado as diferentes dimensões da política, e, embora imbricadas, possuem objetos e características diferentes. Potyara Pereira (2008, p. 101) distingue dois principais significados da política, a política clássica e a política pública. A política clássica é a “base institucional da atividade política”. É relacionada aos temas clássicos do processo político-eleitoral, como partido político, parlamento, votação, governabilidade. E política pública “têm como uma de suas principais funções a concretização de direitos de cidadania conquistados pela sociedade e amparados pela lei”. A literatura inglesa adota três dimensões da política, ao caracterizar os estudos da policy science. A polity, para designar as instituições políticas, refere-se ao ordenamento do sistema político e à estrutura institucional político-administrativa. A politics, para denominar os processos políticos, a dinâmica do relacionamento político para a tomada de decisões, frequentemente de caráter conflituoso, diante dos interesses e objetivos. A policy, para nomear a política pública, considerada a materialidade das decisões políticas para implementação dos programas de governo (cf. Frey, apud Zola, 2011, p. 70). Essas considerações, acompanhadas da prática desenvolvida, possibilitam sustentar o conceito de que política pública, da espécie social, ao equivalente da expressão inglesa policy, é definida como os conteúdos concretos da decisão política, representadas por um conjunto de ações ou normas de iniciativa governamental, que asseguram os direitos sociais. É realizada por meio de programas, projetos e serviços; regulamentados ou desenvolvidos pelo Poder Executivo, ou em parceria com setores da sociedade civil; demandam legislações e orçamento; são direcionadas a alterar uma realidade, em resposta às demandas, pressões e prioridades da sociedade. 2.3 Articulação e centralidade da família nas políticas públicas: diferentes abordagens sobre o lugar atribuído à família na proteção social A articulação dos temas família e Estado, para a proteção social, é analisada por Claude Martin (1995, p. 54) que reconhece o lugar ocupado pela família nos sistemas de proteção social, especialmente na atualidade. Atribui a centralidade como decorrência da crise do mercado e também pelo Estado, que trouxe de novo “à ribalta mecanismos tradicionais de integração social”. Considera que a partilha de responsabilidades está na ordem do dia e, tendo como referência os países europeus, interpreta a presença da família e, também,
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