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MELANCOLIA E PESSIMISMO FILOSÓFICO

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KIERKEGAARD E CIORAN 
MELANCOLIA E PESSIMISMO FILOSÓFICO 
 
 
 
 
 
Deyve Redyson 
Doutor em Filosofia 
Professor adjunto da UFPB 
 
 
 
Resumo: Este trabalho tem como principal mote apresentar o pensamento 
filosófico do romeno Emil Cioran sobre o pessimismo e a melancolia da 
vida e do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard que compreende a 
angústia como gênese de toda uma estrutura existencial. Pensar o 
pensamento pessimista é hoje tentar percorrer caminhos ainda pouco 
descobertos e pouco estudados 
Palavras-chave: Pessimismo – Melancolia – Angústia – Desespero 
 
 
Abstract: This work has as main mote present the philosophical thought of 
the Rumanian Emil Cioran on the pessimism and life melancholy and of the 
philosopher Dane Soren Kierkegaard who comprehends the anguish as 
genesis of all an existential structure. Think the pessimistic thought is today 
try to running through ways still little discovered and little studied. 
Key-words: Pessimism – Melancholy – Anguish– Despair 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
17 
 
Será o pessimismo uma corrente filosófica ou apenas um desgosto pela 
vida. A necessidade do ser humano nos leva a crer que o mundo, tal qual 
vivemos, nos confronta diariamente com as possibilidades positivas e negati- 
vas de uma existência. Coerente ou não o mundo é inextricavelmente uma 
composição de alegria e tristeza, saúde e dor, bom e mau, ótimo e péssimo. 
Um pensar filosófico que deslumbra o ser melancólico e a angústia humana é 
um pensar filosófico real. Kierkegaard é profundamente um pensador da exis- 
tência que de forma irônica deu ao mundo filosófico uma intensa produção 
ética, estética e religiosa. Cioran intrépido pensador sarcástico e impiedosa- 
mente pessimista, acreditava que viver não era nada mais que uma eterna e 
infame miséria. Entre estes dois tão esquecidos pensadores sem tradição 
filosófica, um dinamarquês e o outro romeno, é possível ver uma filosofia 
necessária a existência do ser humano na terra. 
Søren Kierkegaard (1813-1855) é autor de uma vasta obra que nos lança 
numa esfera filosófica impressionante. Fez de sua vida uma intensa batalha 
consigo mesmo e com a filosofia, escreveu sobre a angústia, sobre o deses- 
pero e sobre melancolia. Interpretado falsamente como o corifeu do 
existencialismo e um grande conhecedor da filosofia alemã. 
Emil Cioran (1911-1995) nasceu na cidade romena de Rasinari, uma pe- 
quena cidade da Transilvânia. Formado em filosofia na Universidade de Bu- 
careste pode ser compreendido hoje como o mais pessimista e mais trágico 
pensador que encarou a vida como uma fortuna angustiadamente desespe- 
rada, uma solidez da agonia estilizada nos paradoxos dos tormentos, uma 
incrível vocação para a dor. A Melancolia e o tédio do qual se utiliza em suas 
obras contagia mortalmente quem o lê. Suas leituras iniciais circundam Balzac, 
Baudelaire, Dostoievski, Schopenhauer, Nietzsche, Heidegger, Simmel e 
Kierkegaard, escreve, também inicialmente uma tese sobre Bergson e em 
seguida dedica-se a uma sobre Nietzsche. Sua primeira obra é escrita sob os 
auspícios da idéia de suicídio, dominado pela insônia e pela angústia vem a 
luz “Nos Cumes do Desespero”, escrito em romeno (Pe Culmine Disperari) 
em 1933 que é considerado a suma do pensamento cioraniano, seguido 
por outros, também em romeno, “O Livro dos Enganos” (Cartea Amagirilor) 
em 1936; “Lágrimas e Santos” (Lacrimi si Sfinti) em 1937; “O Crepúsculo 
dos Pensamentos” (Amurgul Gändurillor) em 1938 e “Breviário dos Venci- 
dos” (Îndreptar Patimas) entre 1941 e 1944. Em 1949 escreve sua primeira 
obra em francês, país ao qual adotou como patria, “Breviário de Decompo- 
sição” sucedendo as seguintes: “Silogismos da Amargura” em 1952; “A 
Tentação de Existir” em 1956; “História e Utopia” de 1960; “A Queda no 
tempo” de 1964; “O Funesto Demiurgo” de 1969; “Do Inconveniente de ter 
nascido” de 1973; “Esquartejamento” em 1979; “Exercícios de Admiração” 
em 1986 e “Confissões e Anátemas” de 1987. Além de 34 cadernos escri- 
tos entre 1957-1972. Cioran morreu em 1995 aos 84 anos de idade do Mal 
de Alzheimer. Sobre sua idade com a qual iria morrer dizia ser “escandalosa- 
18 mente avançada”. 
19
 
Acreditamos haver três fases no pensamento de Cioran: a primeira fase 
em que escreveu em romeno que demonstra um Cioran angustiado, voraz 
contra as felicidades do mundo e da existência que compreende de 1934 a 
1949. Uma segunda fase iniciada em 1949 vai até a data de sua morte 1995, 
fase em que publicou em francês e ganhou notoriedade na Europa, fazendo 
editar suas obras romenas em francês, constituindo amizade com Gabriel 
Marcel, Paul Celam, Samuel Beckett, Ernest Jünger, Jean-Paul Sartre, Mircea 
Eliade, Eugene Ionesco entre outros, e por fim uma terceira fase que engloba 
toda sua vida que seriam seus 34 cadernos escritos entre 1957-1972 que 
trazem impressões sobre sua obra e as circunstâncias na qual escreveu. Cioran 
que trata Deus como um artífice que brinca com a humanidade e que levou 
sua desesperança aos últimos extremos da linguagem vê a essência do sagra- 
do como uma alternativa de total desesperança. Em uma certa medida Cioran 
consegue ser mais pessimista do que o próprio Schopenhauer, entendido 
como o genitor da filosofia pessimista. 
Cioran leu Kierkegaard e chega a citá-lo em algumas obras que lhe che- 
gou a mão a partir das traduções francesas dos Tisseau1 e acreditava que seu 
pensamento tinha circunstâncias “viáveis” mais extremamente “desconsola- 
doras”, acreditava que Kierkegaard era uma mente incompreendida. 
Se percorrermos a história do pensamento filosófico pessimista encontra- 
remos sua nascente em Schopenhauer autor de obras fundamentais como “O 
Mundo como Vontade e Representação” (1819) e dos “Parerga e Paralipomena” 
(1851) que desenvolve sua expressão filosófica na negação da afirmação do 
querer viver, uma espécie de metafísica da morte. Kierkegaard desenvolve 
com maestria a noção de angustia e desespero, retirando elogios do próprio 
Heidegger, em suas obras “O Conceito de Angústia” (1844) e “Doença para a 
Morte” (1849) e Nietzsche o fugaz autor da morte de Deus visto como o mais 
trágico e dionisíaco filósofo que negou o cristianismo e a figura de Paulo de 
Tarso. Cioran vai beber nestas três fontes do pensamento. A influência de 
Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche no pensamento cioraniano é notório, 
tanto pelas citações quanto pela estrutura na qual pensa, pois ele extravasa 
sua dor em palavras e gritos. Cioran tem ciência da incompatibilidade deles 
perante o cristianismo e sua grande representação no mundo filosófico: 
“Apaixonados pela sua fatalidade, evocam irrupções, fulgores trágicos e 
solitários, próximos do apocalipse e da psiquiatria. Um Kierkegaard, um 
Nietzsche, mesmo que houvesse surgido no período mais anódino, não teri- 
am possuído uma inspiração menos fremente, nem menos incendiária. Pere- 
ceram em suas chamas; alguns séculos antes teriam perecido na fogueira: 
cara a cara com as verdades gerais, estavam destinados à heresia”2. E ainda: 
 
 
 
 
 
1 Oeuvres Complètes. Trad. Paul-Henri Tisseau e Else-Marie Jaquet Tisseau. Paris. Édition de L´Orante. 1966- 
1887. 20 Tomos. 
2 Cioran, Emil. Breviário de Decomposição. Riode Janeiro. Rocco. 1995, p. 170 
20
 
“Depois de Pascal e Kierkegaard não podemos mais conceber a salvação sem 
uma série de imperfeições e sem as volúpias secretas do drama interior”3. 
Para Cioran, não há um recuo a idéia de que o mundo é o pior, ele é o pior, 
então é o pior. Em Kierkegaard o fato de a angústia representar o estado 
psicológico do ser-humano lança-o a uma dicotomia que é estar entre a reali- 
dade visível e a possibilidade de transcender de si mesmo. “Eternamente 
morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. Por que morrer significa 
que tudo esta acabado, mas morrer a morte significa viver a morte e vivê-la 
um só instante é vivê-la eternamente”4. 
Como a angústia, o tédio, a tristeza, a melancolia, o desespero é sem 
causa, isto é, não é desencadeado por algo de determinado, que pode ser 
individualizado, nomeado ou enfrentado. O desespero se desespera pelo pró- 
prio ser-desesperado sem motivo. O sentido do ser que vive o desespero é o 
mesmo ser que desesperado vive a noção de estar mortalmente doente, e 
estar mortalmente doente é estar desesperado do desespero de si mesmo que 
é no ser o ser em potencial como desesperado. 
O “Breviário de Decomposição” remete-nos a uma metafísica negativa ba- 
seada na preeminência do não-ser, em que “o ser não passa de uma preten- 
são do nada, submetido as leis da degradação, uma espécie de putrefação 
das certezas. Dentro da perspectiva do pensamento de Cioran a religião e a 
relação homem-Deus é uma constantes batalha em si-mesmo. Sua crítica ao 
cristianismo e à civilização tem origem na análise dos movimentos trágicos 
que marcaram o avanço do que chama de “nova igreja”, que soube aproveitar 
as fraquezas do paganismo, o sectarismo suicida das heresias e a decadência 
de Roma utilizando-se de uma esfera ideológico-filosófico que prega a lastima 
de que para chegar a Deus é necessário passar pela fé. Sua reflexão é centrada 
na idéia de um Deus que: “criou o mundo por medo da solidão... A única 
razão de ser das criaturas é distrair o criador. Palhaços engraçados, esquece- 
mos que estamos vivendo os nossos dramas para divertir um espectador ao 
qual, até agora, ninguém no mundo tem escutado seus aplausos” 5. 
Vários são os exemplos que ilustram essa concepção. A figura do perso- 
nagem bíblico Jó, que muito provavelmente nunca existiu, a idéia de um Deus 
sarcástico que dá permissão ao Diabo para fazer o que bem entender de seu 
servo Jó, somente para saber se este renunciaria a Deus, a única ressalva é 
que o diabo não poderia tocar na vida de Jó, isto é, matá-lo. A igreja cristã vê 
este exemplo como um sinal de profunda humildade, obediência e paciência, 
um Deus que permite o sofrimento; se Deus conhece seu coração sabê-lo-á 
que não o renunciará, mais não, permite ao diabo brincar com o homem, isto 
é, com a humanidade. Para que então serve a doutrina da paciência de Jó? 
 
 
 
 
3 Cioran, E. Exercícios de Admiração. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 2001, pg. 84. 
4 Kierkegaard, S. O Desespero Humano in Col. Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1979. pg. 199. Vale 
lembrar que o título verdadeiro desta obra de Kierkegaard é “Doença para a Morte”. 
5 Cioran, E. Les Larmes et des Saints in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 300. 
21
 
Para uma única coisa: para os padres e pastores exortarem suas “ovelhas” 
dizendo “sejam humildes e pacientes como Jó foi”, para nada mais serve 
isso. Sobre Jó diz Cioran em seus cadernos “Sou um discípulo de Jó, mais 
um discípulo infiel”6. Para Cioran Deus brinca com a humanidade, onde em 
um mundo abalado pela estupidez religiosa transfigura a verdade de que a 
religião e até mesmo Deus não servem para nada, a não ser para pedidos 
inflamados pelo espírito de sucesso, alegria, que viriam da mesma forma sem 
nenhum pedido. Há na verdade uma grande hipocrisia no “ser” de deus que 
compreendemos ou que as igrejas nos fazem compreender, um Deus que só 
ama quem a ele serve. A alternativa de Cioran é a suspensão do tempo e 
irrupção do absoluto na história, o cristianismo falhou até hoje em sua mis- 
são de pacificação e amor ao próximo, não há paz e não há próximo, uma 
experiência mística está longe de alcançar uma verdadeira virada paradigmática 
da relação homem-Deus – Deus-homem, parece que o homem fala com um 
Deus surdo que não nos escuta ou não quer nos escutar, por isso Cioran nos 
diz: “Recuso-me à sedução malsã de um eu indefinido. Quero chafurdar-me 
em minha mortalidade. Quero permanecer normal”7 e continua: “Senhor, dá- 
me a faculdade de jamais rezar, poupa-me a insanidade de tua adoração, 
afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti. Que 
o vazio se estenda entre o meu coração e o céu! Não desejo ver meus deser- 
tos povoados pela Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, mi- 
nhas Sibérias fundidas sob Teu sol. Mais solitário do que Tu, quero minhas 
mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a 
terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo. Só peço à Tua estúpida onipo- 
tência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer 
com tuas palavras. Conceda-me o milagre recolhido antes do primeiro instan- 
te, a paz que Tu não pudeste tolerar e Te incitou a abrir uma brecha no nada 
para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, 
à humilhação e a vergonha de existir”8. O ateísmo de Cioran culmina ainda no 
“Breviário de Decomposição”: onde Deus é “causa inútil, absoluto sem senti- 
do, modelo dos bobos, passatempo dos solitários, ouropel ou fantasma con- 
forme divirta nosso espírito ou freqüente nossas febres”9. 
Em Cioran ocorre então uma metafísica negativa “A vida é demasiada- 
mente limitada”10, pois o mundo se configura como um sem sentido “este 
mundo é um mundo que nunca se resolve nada” 11. A metafísica aristotélica é 
fundamentada na origem do ser e na sua substancialidade, a partir daí temos 
as quatro causas e dez categorias, o ser se explica a si mesmo quando é na 
 
 
 
 
 
6 Cioran, E. Cuadernos 1957-1972. Trad. Carlos Manzano. Barcelona. Tusquets. 2000. pg. 232. 
7 Cioran, E. Breviário de Decomposição. Rio de Janeiro. Rocco. 1995. pg. 95. 
8 Idem. Pg. 95. 
9 Idem. Pg. 138. 
10 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperación. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. Pg. 22. 
11 Idem. Pg. 65. 
22
 
sua essência estimulada, para Cioran a essência e o ser da coisa mesma é ela 
em si mesma, isto é, sendo em si mesma ela não passa de uma verificação 
daquele ser antigo, “Deve-se-a filosofar como se a filosofia não existisse”12, 
sua negatividade é o vicio no mundo “A vida é um vicio. O maior que existe. 
Isto explica porque é tão difícil livrar-se dele”13. Será nesta metafísica negati- 
va que Cioran desenvolvera sua concepção de mais forte pessimismo, primei- 
ro ele atribui as desgraças no mundo ao seu imaginado “autor”, Deus, e em 
seguida acredita que esta criação não era nada, isto é uma metafísica do nada 
em si mesmo. As calamidades e a infelicidade são normais dentro de um 
mundo criado por esse deus. “Não se tratade combater o apetite de viver, 
mas o gosto pela descendência. Aquilo que deveria ser um dom excepcional, 
como a genialidade tem sido atribuído a todos, indistintamente: liberdade de 
péssimo valor, que desqualifica a natureza para sempre. É impossível que a 
criminosa injunção do gênese: ‘Crescei e multiplicai’ tenha saído da boca de 
um dom deus. Sejais escassos, teria aconselhado, se tivesse voz ativa”14. 
O nada que é o ser, diferentemente do que afirma Hegel ou Sartre, é para 
Cioran um recuo, uma escapatória do homem. O nada é um buraco negro, é 
puro abismo, é pura vertigem, é presença inexplicável que nega a si próprio. É 
um vazio. É neste vazio que reside todas as mazelas da humanidade, haja 
vista a melancolia, tédio, tristeza, desesperança são todos nomes de um 
determinado “algo” que é um não sei o “que” que atormenta o ser, atormenta 
a alma provocando “dor”, gritos dentro da alma humana e destruindo “por 
dentro” o ser em si, uma revelação do tormento e da revolta. Cioran, faz uma 
distinção entre melancolia que não é provocada por um motivo determinado, 
uma causa externa, e a tristeza que, ao contrário, surge de uma “razão 
precisa”, evidente e clara: “Sei por que estou triste, mas não saberia dizer 
porque sou melancólico”15 “Vencer a melancolia é impossível, ela não pode 
ser curada e só desaparecerá junto com o fluxo do nosso sangue. Lutar, 
combater, tornar-se um herói nos destroços do tempo” 16. Assim viver é 
lançar-se nas desdobras do desconsolo como tédio, angústia, melancolia e 
sofrimento. “O tédio que nos espera no futuro nos terrifica mais do que o 
terror do instante presente. O presente em si revela uma via agradavelmente 
insuportável”17. 
Poder morrer é coisa de quem está vivo, só posso ter a capacidade da 
morte se eu estiver vivo, logo somos seres capazes da morte, sem sentido 
tirar sua vida já que a morte é tão certa que temos medo dela. “Só os otimis- 
tas se suicidam, os otimistas que não conseguem mais sê-los. Os outros, não 
 
 
 
 
 
12 Cioran, E. Le Mauvais Demiurge in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1258. 
13 Cioran, E. Écartèlement in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1482. 
14 Cioran, E. Le Mauvais Démiurge in Oeuvres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1174 
15 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperación. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 73. 
16 Pecoraro, Rosano. Cioran, a filosofia em chamas. Porto Alegre. Edipucs. 2004. pg. 166. 
17 Cioran, E. Le Crépuscule des Pensèe in Ouevres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 439. 
23
 
tendo nenhuma razão para viver, por que a teriam para morrer”18. Não possu- 
ímos razões para viver nem para matar-nos: eis a fórmula cioraniana que tudo 
permite, tudo justifica e tudo admite “Embora a vida, para mim, seja um 
suplicio, não posso abandoná-la porque não acredito no absoluto de valores 
em nome dos quais sacrificar-me. Sendo sincero, deveria dizer que não sei 
porque vivo, nem por que não cesso de viver. A chave, provavelmente, reside 
na irracionalidade da vida, que faz com que ela se conserve sem razão. E se 
houvessem só razões absurdas para viver? “O mundo não merece que alguém 
se sacrifique por uma idéia ou por uma fé. Somos mais felizes hoje por que 
outros o tem feito para o nosso bem? Mas que bem? Se alguém se sacrificou 
para que eu seja mais feliz, eu sou, em verdade, mais infeliz do que ele, pois 
não posso pensar em construir a minha existência sobre um cemitério”19 e no 
mesmo sentido: “Por mais que eu saiba que não sou nada, ainda tenho que 
me persuadir verdadeiramente. Algo, em mim, recusa esta verdade da qual 
estou tão seguro. Esta recusa indica que em parte eu fujo de mim; e aquilo 
que em mim se subtrai à minha jurisdição e ao meu controle faz com que eu 
jamais esteja seguro de poder dispor plenamente de mim mesmo. E assim, à 
força de repisar no pro e no contra do único gesto que tenha importância, 
acaba-se por ficar com a má consciência de estar vivo”20. 
O ser-humano, para Cioran é uma criatura despedaçada, pois todos os 
valores que o nutre lhe são tirados, ele apenas tem uma pseudo idéia de 
liberdade, despedaçado em vida este mesmo homem está condenado a sobre- 
viver no mundo, a viver as falsas verdades, principalmente impostas pelo 
cristianismo, tornando-se um homem infeliz e amargurado, um barco em nau- 
frágio. “Os filósofos são demasiadamente orgulhosos para confessar seu 
medo da morte e demasiado presunçosos para reconhecer que a enfermidade 
possui uma fecundidade espiritual”21. 
Cioran é ainda entendido como: “O mais radical dos niilistas, esquartejador, 
impiedoso, luciferiano, com o dom de negação e estilo” 22. Cioran insiste: 
“Não são os pessimistas, senão os decepcionados, os que escrevem bem”23. 
Podemos fazer um diálogo entre Kierkegaard e Cioran a partir da forma que 
ambos enxergam a vida, tanto Kierkegaard como Cioran foram dominados 
pela melancolia de encontrar-se vivo no mundo. 
Em várias passagens dos Diários, Kierkegaard enfatiza sua melancolia, an- 
gústia e de certa forma desespero e até mesmo niilismo, o tema da melancolia 
persegue Kierkegaard na extensão de suas obras, pois sua vida é uma conti- 
nuidade que se dá a partir da dor da existência, por isso sua filosofia é uma 
 
 
 
 
 
18 Cioran, E. Silogismos da Amargura. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 1991. pg. 56. 
19 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperación. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 63-64. 
20 Cioran, E. Le Mauvais Démiurge in Ouevres. Paris. Gallimard. 1995. pg. 1210. 
21 Cioran, E. En las Cimas de la Desesperación. Trad. Rafael Panizo. Barcelona. Tusquets. 2003. pg. 51-52. 
22 Pecoraro, Rossano. Cioran, a filosofia em chamas. Porto Alegre. Edipucrs. 2004. pg. 221. 
23 Cioran, E. Cuadernos 1957-1972. Trad. Carlos Manzano. Barcelona. Tusquets. 2000. pg. 179. 
24
 
filosofia que nos liga a existência. Cioran da mesma forma é um pensador da 
existência, mas de uma existência factível e insalubre onde viver é tão somen- 
te viver e na mais. 
Os Diários são leitura obrigatória a quem quer entender o gênio de 
Kierkegaard, pois são neles onde se pode perceber o sentido de sua vida, 
vejamos algumas destas entradas: “Morte e inferno: posso fazer abstração de 
tudo, salvo de mim mesmo”24 ou então: “Talvez eu pudesse reproduzir a 
tragédia de minha infância, a chave horrível de toda a vida religiosa, que 
pavorosas suspeitas colocavam sorrateiramente em minhas mãos”25, insiste 
no problema de que sua melancolia tem, de alguma forma, inicio em sua 
educação cristã: “Minha desgraça, humanamente falando, consiste em que 
tive uma educação cristã demasiadamente severa. Desde a infância, vivi sob 
o domínio de uma melancolia originaria”26. Kierkegaard havia passado pelo 
grande tremor de sua vida, a descoberta dos delitos matrimoniais de seu pai, 
a morte de seu pai, o amor a Regine e o abandono a ela, sua melancolia 
expede-se dentro de todo seu universo, desde suas obras assinadas até as 
obras pseudonimicas. 
Muitos reflexos do pensamento de Cioran encontra-se na obra de Anti- 
Climacus, pseudônimo utilizado por Kierkegaardem “Doença para a Morte” 
que em suas primeiras palavras nós diz “O homem é espírito. Mas o que é 
espírito? É o eu. Mas, nesse caso, o eu? O eu é uma relação, que não se 
estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mais consigo própria. Mais e 
melhor do que a relação propriamente dita, ele consiste no orientar-se dessa 
relação para a própria interioridade. O eu não é a relação em si, mas o seu 
voltar-se sobre si própria, o conhecimento que ela tem em si própria depois de 
estabelecida”27, é justamente aqui que nasce o sentido de transcendência do 
ser-em si com o ser próprio em si, e esta relação quando transborda culmina 
no desespero. Kierkegaard mais adiante ainda diz: “Morrer a morte significa 
viver a morte”28. 
O que é desesperar-se ou entrar em desespero? Será uma inconstante vari- 
ação de que é acometido o homem. Muitas podem ser as leituras que podem 
ser feitos de um “tal desespero”. Insatisfeito com a busca estética, o homem 
atormenta-se e cai no desespero. 
O Desespero real é o retorno do poder desesperar-se, isto é, a superiorida- 
de do homem sobre o animal consciente em sua capacidade de se desesperar. 
É através do desespero que o homem alcança o estágio seguinte ao estético, 
 
 
 
 
 
24 Kierkegaard, S. Diários IA 162. 
25 Idem. IIA 144. 
26 Idem. X 2A 619. 
27 Mennesket er Aand. Men hvad er Aand? Aand er Selvet. Men hvad er Selvet? Selvet er et Forhold, der 
forholder sig til sig selv, eller er det i Forholdet, at Forholdet forholder sig til sig selv; Selvet er ikke Forholdet, 
men at Forholdet forholder sig til sig selv”. Sygdommen til Døden Samlede Vaerke. 3. pg. 15. 
28 Thi at døe, betyder at det er forbi, men at døe Døden betyder at opleve det at døe. Kierkegaard. Doença 
para a Morte. Col. Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1979. pg. 199. 
25
 
que seria o ético, pois só assim abandonará as experiências dissipadoras e a 
atitude passiva diante da realidade. 
Nos “Diapsalmata”, que fazem parte de uma obra maior “A Alternativa” 
Kierkegaard revela a sua mais intermitente melancolia: “Minha melancolia é a 
mais fiel das amantes que já conheci; que há de estranho em que eu também 
a ame?”29. Entre o Kierkegaard e seus pseudônimos percebe-se que a melan- 
colia que afligia um Kierkegaard e a mesma que é transpassada pelos seus 
pseudônimos, não um esconderijo, mas uma realidade infinita que tem a 
necessidade da busca pela vida ou pelo seu sentido. Por isso, cita o pseudô- 
nimo de Kierkegaard autor dos Diapsalmata: “A vida transformou-se para mim 
em uma bebida amarga, e, contudo, ela deve ser ingerida como gotas, deva- 
gar, contando”30, está é a visão cioraniana de encarar a vida e ver nela algum 
sentido. Ainda no “Diapsalmata”, Kierkegaard atinge o pessimismo metafísico: 
“Num teatro ocorreu um inicio de incêndio nos bastidores. O palhaço veio ao 
palco avisar o público. Acharam que era uma piada e ficaram aplaudindo, ele 
repetiu o aviso, as gargalhadas tornaram-se ainda mais fortes. Assim, eu 
penso que o mundo vai naufragar sob o jubilo geral de cabeças engraçadas 
que hão de crer trata-se de uma piada”31. Faz, ainda, o questionamento máxi- 
mo da existência: “Qual é o significado desta vida?”32. 
Nossa conclusão entre estes dois pensadores tão distintos é de que em 
Kierkegaard a melancolia ganha a projeção da conquista do mundo, do encon- 
tra-se existindo: “Eu era melancólico, de uma melancolia sem fim: foi isto que 
me ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o mundo”33. Cioran, o 
pessimista in natura nos colocar entre o amanhecer da insônia para o anoite- 
cer do nada: “Sabedoria e rebelião: dois venenos. Incapazes de assimilarmos 
ingenuamente, não encontramos em nenhum dos dois uma fórmula de salva- 
ção”34, e finalmente: “Como nosso destino é apodrecer com os continentes e 
as estrelas, exibiremos, como doentes resignados, e até a conclusão das 
eras, a curiosidade por um desenlace previsto, medonho e vão”35. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
29 Kierkegaard, S. Diapsalmata in Valls, Alvaro. Do desespero silencioso ao elogio do amor desinteressado. 
Aforismos, novelas e discursos de Søren Kierkegaard. Porto Alegre. Escritos. 2004. Pg. 20. 
30 Idem pg. 22. 
31 Idem. Pg. 22-23. 
32 Idem. 23. 
33 Idem Diários. IX A80. 
34 Cioran, E. La Tentación de Existir. Trad. Fernando Savater. Madrid. Punto de Lectura. 2002. Pg. 21. 
35 Idem. Breviário de Decomposição. Trad, Jose Thomaz Brum. Rio de Janeiro. Rocco. 1995. pg. 176. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 
 
 
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