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Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. O papel do clima na evolução do relevo: a contribuição de Julius Büdel1 Adilson Avansi De Abreu² Resumo: O autor sumariza a vida e a obra de Julius Büdel (1903 – 1983) e traduz para o português o seu texto ¨Geomorfologia Climática e Climatomórfica ¨, publicado no Zeitschrift für Geomorphologie, Supplementband 36, 1980. Palavras-chave: Julius Büdel; Geomorfologia Climática; Zonas Climatomórficas. Introdução A evolução da geomorfologia no século XX produziu uma progressiva valorização do papel do clima na explicação da gênese do relevo terrestre. Depois dos avanços notáveis que foram registrados a partir de W. Morris Davis e Walther Penck, um terceiro nome que marca a geomorfologia do Século XX é, sem dúvida nenhuma, o de Julius Büdel, falecido em 1983, aos 80 anos de idade. J. Büdel iniciou sua vida acadêmica dedicando-se à climatologia e deslocando, posteriormente, seu campo de interesse para entender e formular, cientificamente, o papel da ação do clima na gênese do relevo terrestre. Sua obra edificou a teoria de como os climas atuais e do passado cunharam o relevo e forneceram muitas chaves para interpretar as mudanças climáticas do passado recente. Torna-se, assim, um dos pilares da Geomorfologia Contemporânea. Além de grande formulador teórico, Büdel foi um incansável pesquisador de campo e um grande administrador da ciência, tendo, em 1974, fundado a Comissão Alemã de Geomorfologia (Deutscher Arbeitskreis für Geomorphologie) e sido reitor da Universidade de Würzburg. Sem dúvida nenhuma, seus estudos de campo nas regiões desérticas e tropicais da África e nas regiões temperadas e periglaciais da Europa permitiram-lhe uma visão integrada dos atuais sistemas morfogenéticos em operação, do Ártico ao Equador, bem como uma compreensão de como esses sistemas pulsaram nos últimos dois milhões de anos. A contribuição científica de Büdel permitiu que a Geomorfo- logia assumisse uma posição privilegiada no campo da investigação da natureza, como disciplina que procura explicar a diferenciação de áreas na superfície terrestre. Büdel ao conceituar a geomorfologia climática e a geomorfologia climato-genética, forneceu elementos funda- mentais para interpretar a dinâmica têmporo-espacial dos processos geomorfológicos e lançar luzes sobe a relação entre oscilações climáticas e quadros geomorfológicos e ambientais do presente. As reflexões e conceituações interessando ao estudo do papel dos climas nos processos que cunham as formas de relevo, já haviam sido propostas também por autores de língua inglesa, no contexto da evolução da teoria davisiana. Muitos autores poderiam ser citados, mas a lembrança de pelo menos dois, C. A. Cotton e L. C. Peltier, já nos fornece um bom quadro de fundo sobre como a questão estava evoluindo na primeira metade do Século XX. Na Europa, particularmente entre os autores de língua alemã, a valorização dos estudos de processos e de campo tinha raiz já no século anterior e o trabalho de Walther Penck estimulou a discussão do papel dos processos e dos depósitos correlativos, trazendo abordagem diferenciada para o estudo da influência do clima no modelado presente e pretérito do relevo. A partir dos anos 30 do século passado, o jovem Büdel dedica-se, incansavelmente, ao estudo dos climas e de suas influências no modelado do relevo. Progressivamente vai consolidando sua análise em pesquisas próprias e integrando suas conclusões com referências extraídas de outros autores, …………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………… ¹ Título original: “Climatic and Climatomorphic Geomorphology” ² Tradução: Prof. Dr. Adilson Avansi de Abreu, DG, FFLCH, USP 111 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. produzindo na década de 60, um sistema classificatório mundial que articula no espaço e no tempo os processos decisivos para explicar a atual distribuição do relevo terrestre. Propõe, em 1963, a existência de 5 regiões ou zonas clímato-genéticas distribuídas, esquematicamente, de forma especular entre o Equador e os Pólos, a saber: Zona Glacial; Zona de Formação Pronunciada de Vales; Zona Extra-tropical de Formação de Vales; Zona Subtropical de Formação de Pedimentos e Vales e Zona Tropical de Formação de Superfícies de Aplainamento. Deixando de lado as controvérsias que esta proposta trouxe consigo é necessário chamar a atenção para o avanço que se alcançou com o elevado grau de abstração contido neste modelo, que se libertou das amarras que prendiam as outras propostas, ao se ajustarem à classificação climática de Köppen e incorporou à classificação os processos fossilizados nos depósitos e nas formas de relevo. Cria-se assim a interpretação morfoclimática do presente, associada a seus antecedentes climatogenéticos representados nos depósitos e nas formas herdadas do passado. Um momento de grande criatividade de J. Büdel foi seu “insight” sobre o papel da “Casca de Gelo” na evolução da rede de vales do sudeste do arquipélago de Spitzbergen e sua relação com o que havia acontecido na Europa Central durante os períodos glaciais e interglaciais do Quaternário. Integra este insigh” a compreensão do contraste do significado dos processos geomorfológicos em momentos de sistemas controlados por variáveis físico-mecânicas, com as de controle químico-biológico, que acabou também sendo utilizado por outros autores em contextos diferentes de interpretação. Em plena maturidade Julius Büdel sistematizou toda sua obra no clássico “Klima-Geomorphologie”, publicado em 1977 pela Gebrüder Borntraeger, tendo sido traduzido para o inglês por Lenore Fischer e Detlef Busche em trabalho muito cuidadoso, sob o título de “Climatic Geomorphology”, editado pela Princeton University Press, em 1982, no qual um glossário, bem elaborado, permite boa compreensão dos significados dos termos utilizados por Büdel, que, a exemplo do que também aconteceu com a obra de Walther Penck, só pode ser melhor compreendida, fora do circuito de língua alemã, por meio da tradução para o inglês. Em 1979, no suplemento nº 36 do “Zeitschrift Für Geomorphologie”, dedicado ao Simpósio Germano Britânico de Geomorfologia, Julius Büdel abriu as contribuições com o texto “Climatic and Climatomorphic Geomorphology”, no qual traça um resumo conciso do conteúdo do “Klima - Geomorphologie”, anunciando sua tradução para o inglês e sua breve publicação. Abaixo é oferecida ao leitor a tradução para o português deste texto, na expectativa de estimular a leitura da obra completa, no original alemão ou na tradução inglesa. Tradução Geomorfologia Climática e Climatomórfica Julius Büdel³ Dois grupos de forças governam as formas de relevo dos continentes. As endogenéticas são responsáveis pela distribuição espacial de soerguimentos e abatimentos, assim como pelo comportamento morfológico dos afloramentos rochosos. A resistência geomorfológica das rochas, todavia, altera-se entre as diferentes zonas climáticas. Devido a sua complexa história no transcorrer de alguns bilhões de anos, o padrão das montanhas e dos afloramentos rochosos nos continentes é hoje muito irregular e a influência dessas estruturas no relevo é meramente passiva: elas são apenas obstáculos no caminho ativo e verdadeiro da formação do relevo, que é executado apenas pelos processos exogenéticos. É por meio de suas ações, que a verdadeira forma da superfície da Terra é criada. Se, por exemplo, os Alpes fossem apenas produto das forças endogenéticas de soerguimento, eles apareceriam como um domo massivo, com cerca de 10km de altura e com uma superfície caoticamente rugosa. Os processos exogenéticos destruíram mais da metade desta forma imaginária, desde o Terciário Inferior, mas, acima de tudo eles a remodelaram qualitativamente durante o soerguimento e em resposta à gravidade, produziram as formas intricadas que hoje percebemos. Os modos e mecanismos de formação do relevo, todavia, diferem quantitativa e qualitativamente na face da Terra. As diferenças não são, porém, distribuídas ao acaso. Elas são fortemente governadas pelo clima e, desta forma, um sistema natural de formação do relevo só pode ser baseado no mesmo. As diferenças entre os vários processos em operação e as diferenças resultantes, entre as próprias formas, são o objeto da Geomorfologia Climática. Até recentemente apenas três zonas de formação exogenética do relevo eram comumente reconhecidas: a zona glacial de atividade glacial predominante; a zona úmida de ...................................................................................................................................................................................................................... .......................................................................................................................................................................... ³ Zeitschrift für Geomorphologie N. F. Supp – Bd. 36, 1-8 – Berlin-Stuttgart – Dezembro 1980 112 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. atividade fluvial (que, todavia, está longe de ser homogênea); e a zona árida, onde se supunha que o vento era o principal agente. Na realidade esta não era uma subdivisão do relevo exogenético, mas apenas um balanço da distribuição mundial da água. Consequentemente ela teve que ser substituída por um sistema verdadeiramente geomorfológico, baseado nas forças que modelam o relevo nas diferentes zonas climáticas. O passo seguinte foi, então, a identificação da porção do relevo visível que é realmente formada hoje, isto é, durante o Holoceno. Isto levou a dois insights fundamentalmente novos. Um é que a geomorfologia climática identifica agora no Velho Mundo oito zonas muito diferentes de formação do relevo (em vez das antigas três), entre o pólo e o equador, que chamamos de zonas climatomórficas. O outro insight é que o relevo atual, como aparece hoje, não é primariamente o produto dos processos erosivos atualmente dominantes. Isto acontece porque é necessário um tempo muito longo (pelo menos algumas dezenas de milhões de anos) para que os processos exogenéticos produzam suas marcas no modelado da superfície, totalmente de acordo com sua ação específica. Em um período tão longo, todavia, houve repetidas alterações climáticas, especialmente nas áreas de latitudes médias (ectropics). Assim, mais de 95% do relevo da Europa Central não é o resultado dos processos morfológicos governados pelo clima atual. Ele foi formado, em vez disso, por processos antigos do Cretáceo Superior, do Terciário e do Pleistoceno. Como hoje eles não estão mais em operações, não podem mais ser observados nem medidos no campo. Felizmente formas relictuais amplamente distribuídas e, em alguns lugares, solos relictuais assim como alguns depósitos fósseis chaves foram preservados para estudo. Destas evidências puderam ser identificadas um número de gerações de relevo de diferentes idades. Para fazer isto é necessário que se identifique os remanescentes de cada geração, junto com os relictos pedológicos e os processos de intemperismo sincrônicos, assim como seus depósitos correspondentes, os quais são então utilizados para identificar as várias gerações, separando-as umas das outras. Frequentemente a informação assim organizada é suficiente para permitir uma reconstrução experimental do clima e dos processos em operação durante o período respectivo. Esta é a tarefa da Geomorfologia Climatogenética. Seus resultados podem ser melhor verificados pela comparação das gerações relictuais do relevo com as formas vivas em uma das zonas climatomórficas modernas. Desta maneira a geomorfologia climatogenética se funde com a geomorfologia climática. Ambas as linhas de pensamento são descritas detalhadamente no meu livro sobre geomorfologia climática, que está para ser lançado em inglês. Das antigas três zonas apenas a glacial sobreviveu, com a restrição, todavia, que “traços da geração” de relevo pré-glacial também existem nela. A assim chamada “erosão glacial” foi importante apenas onde grandes glaciares fluíram rapidamente em áreas de forte declividade, mas ela foi praticamente nula onde camadas finas de gelo que se movimentavam com dificuldade repousaram sobre superfícies quase horizontais. Para a zona árida parece que os processos eólicos foram superestimados e que aqui também a ação fluvial, ainda que esporádica, é o processo dominante. Deixando de lado diferenças menores, a zona árida deve ser subdividida em duas macrozonas. Em primeiro lugar a zona dos desertos tropicais dos alísios, que são livres de geada em suas partes mais baixas. Exemplos típicos são o Saara e a Austrália Central. Devido à escassez de chuvas e vegetação o intemperismo químico é pouco importante, mas como ela também está livre do gelo, a forma mais importante de intemperismo físico também está ausente. Finalmente a ausência de rios permanentes leva à falta de possibilidade de remoção de toda a sorte de detritos. Consequentemente os desertos tropicais quentes são idealmente adequados para a preservação ou, mais que isto, para a formação tradicionalmente continuada de formas de relevo antigas (pois sua modificação exigiria um novo conjunto de processos, que não se definem significamente para afetar o aspecto geral do relevo – nota do tradutor). Superfícies relictuais de etchplanos, salpicados de inselbergs são bons exemplos. Os desertos continentais com invernos frios são bastante diferentes porque estão sujeitos anualmente à forte ação das geadas, as quais são muito eficazes devido à escassez de solo e de cobertura vegetal. O Tibete e o Irã central são bons exemplos deste tipo de deserto. Muitas das estepes subtropicais modernas foram submetidas ao mesmo regime durante os períodos mais frios do Pleistoceno. Essas regiões são caracterizadas por amplos pedimentos e superfícies de “glacis” envolvendo as montanhas. A antiga zona úmida ficou mais diferenciada que as outras. Presentemente reconhecemos cinco zonas totalmente diferentes, que trazem consigo cinco significados para o termo “fluvial”. Em duas dessas zonas os processos fluviais são muito eficazes, mas muito diferentes de uma para outra. Eles representaram os extremos da formação de relevo subaéreo. Na realidade, eles são os dois fundamentos mais importantes através dos quais a superfície da Terra é moldada. 113 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. Figura 1 Zonas climatomórficas atuais distinguidas segundo os processos erosionais holocênicos (excluídas as altas montanhas). 1. Zona Glacial; 2. Zona periglacial com formação pronunciada de vales; 3. Latitudes médias: processos holocênicos fracos; importância maior das gerações de relevo antigas, incluindo a geração periglacial; 4. Zona Etesiana: importância maior das gerações de relevo tropicais; 5. Zona árida com invernos frios, com pedimentos e superfícies de “glacis”; 6. Zona tropical árida com predominância de superfícies relictuais preservadas; 7. Trópicos sazonais com pronunciada planação; 8. Trópicos sempre úmidos com planação parcial. Vamos começar com a zona 2 da Fig. 1. É a zona periglacial moderna da tundra gelada subpolar e da tundra. Ela é denominada de zona de formação pronunciada de vales (exzessive Talbildung), deacordo com seu mais importante fator singular de formação do relevo. Esta zona, que eu estudei a SE de Spitzbergen, é caracterizada pela predominância absoluta do intemperismo mecânico. Isto significa que são produzidos principalmente clásticos grosseiros, os menores dos quais na fração silte. Em nível superficial, a camada de 30 a 80 centímetros de profundidade é anualmente retrabalhada pelos vários processos da crioturbação, resultando nos padrões de formas de solo bem conhecidos. Em todas as vertentes essa massa móvel é transportada para os rios pela ação combinada da solifluxão, lavagem em lençol e lavagem em sulcos. Isto provoca uma forte erosão lateral ao longo do amplo pavimento detrítico dos rios. Durante o início do verão a fusão das neves provoca enormes enchentes que transportam grande volume de detritos, mas durante todo o inverno (que dura de 8 a 9 meses) o pavimento detrítico permanece seco, coberto apenas por uma camada fina de neve e exposto a congelamento severo (o extremo chegando a –40ºC). Esses invernos extremos, com congelamento profundo, têm um efeito de grande alcance em toda a região. No outono o congelamento atinge não apenas a camada degelada sazonalmente, mas também a parte superior de 2 a 5 metros do permafrost basal, que em Spitzbergen atinge 400 metros de profundidade. 114 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. Esta camada superior do permafrost se contrai durante o resfriamento até –30ºC; o vapor de água que penetra nas fraturas é transformado imediatamente em agulhas de gelo. O gelo impede que as fendas se fechem no verão seguinte, e no severo inverno que se segue, fendas adicionais são formadas e preenchidas por agulhas de gelo. Assim a camada superior do permafrost fica crivada de fendas preenchidas por gelo, no período de algumas centenas de anos. O leito rochoso é fragmentado em pequenos pedaços flutuantes em uma matriz de gelo. Nós denominamos esta parte do perfil de “casca de gelo”. Na medida em que os rios não fluem no inverno, seus pavimentos detríticos também ficam expostos ao congelamento profundo. Consequentemente a “casca de gelo” se expande abaixo dos leitos fluviais, como pode ser demonstrado em diversas perfurações e escavações. Isto facilita enormemente a erosão vertical, que é muito mais eficaz que a erosão vertical que se segue ao intemperismo químico nos rios de planaltos tropicais ou a erosão mecânica dos rios das latitudes médias, onde o permafrost é ausente. No último caso a erosão fluvial é meramente capaz de um leve polimento do leito rochoso, e mesmo isto é restrito a ações dos redemoinhos em poços individuais. Os rios que fluem sobre a casca de gelo, todavia, precisam apenas fundir o gelo para liberar grandes quantidades de detritos de pequeno porte, o que pode ser feito de maneira uniforme ao longo de toda sua extensão e largura. Poderíamos mostrar que os rios do SE de Spitzbergen foram capazes de rebaixar seus amplos pavimentos detríticos, de 10 a 30 metros de profundidade, durante os 10.000 anos do Holoceno, a uma taxa média de 1 a 3 metros a cada 1.000 anos. Os mesmos valores são obtidos quando fazemos os cálculos para os rios da Europa Central, usando a distância vertical entre os fundos de vales modernos e os terraços do período Günz, ou entre os terraços de Riβ e Würm. Naturalmente o aprofundamento aconteceu principalmente durante os estágios frios, ou, para ser mais específico, durante cada uma de suas fases iniciais. As similaridades vão mesmo além. Similarmente aos vales de Spitzbergen, nossos vales das latitudes médias estendem-se continuamente até o centro das montanhas a toda largura e sem rupturas abruptas nos perfis. Isto não poderia ser explicado por qualquer mecanismo, a não ser pelo efeito “casca de gelo”. O termo “thermische Tiefenerosion” (ou erosão vertical térmica) que algumas vezes é aplicado a esta situação não é adequado, porque ele não inclui o fraturamento do leito rochoso pela casca de gelo, que é o fator chave neste processo. Em nenhum outro clima a erosão é, comparativamente, tão eficaz. Por essa razão falamos em formação de vales pronunciada (exzessive Talbildung). Especialmente os pequenos rios não foram capazes de modificar seus amplos pisos fluviais wurmianos, de forma significativa, durante o Holoceno. Há muitos exemplos para ilustrar este fato, como o amplo piso fluvial do Meno ou do Tauber na Francônia, ou outros na Floresta Negra, ou nas partes jamais glaciadas dos Alpes Orientais. Na Suábia (Schwäbische Alb) os rebordos separando os vales recentes das superfícies antigas, são acentuados pelas camadas sub-horizontais do calcário jurássico resistente. Nós interpretamos estes vales como a terceira geração principal de relevos da Europa Central (fig. 2). As amplas superfícies elevadas relictuais, nas quais as bordas destes vales frequentemente agem de maneira direta, se encaixando, são chamadas de primeira geração de relevo. Elas compreendem amplos e antigos etchplains (Rumpfflächen) que truncam suavemente todos os tipos de rochas, todos os deslocamentos tectônicos pré Mioceno e atravessam os divisores que separam os sistemas de drenagem do Quaternário. Nós devemos antão perguntar por qual combinação de processos essas superfícies impressionantes, que ainda dominam muito do relevo, foram originadas. Os processos devem, obrigatoriamente, ter sido totalmente diferentes daqueles que criaram os relevos do Pleistoceno e do Holoceno. A julgar pelos relictos das massas caoliníticas vermelhas, pelos fósseis bem identificados encontrados em dutos cársticos preenchidos com argilas de diversas idades na Francônia, esta superfície se formou do Cretáceo Inferior até o Cretáceo Superior, em alguns lugares até o médio Plioceno, englobando assim cerca de 60 milhões de anos. Durante todo este tempo o clima das latitudes médias foi tropical, oscilando entre permanentemente e sazonalmente úmido. Isto significa que processos relativamente uniformes puderam agir durante períodos longos de tempo. Em áreas de soerguimento pronunciado as superfícies foram inclinadas em Rumpftreppen ou etchplanos escalonados. Os processos e as formas vivas correspondentes são encontrados nos trópicos sazonais, nas paisagens de savana da África, da América do Sul e da Índia. Estas condições também podem ser largamente comparadas com as encontradas nos trópicos úmidos. É claro que também existem montanhas e vales nos trópicos úmidos. Os vales dos Andes Tropicais e de partes de Ásia de Sudeste são talvez os exemplos mais eloqüentes. Mas estes vales são completamente diferentes daqueles extratropicais acima descritos. Eles são predominantemente estreitos e em 115 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. forma de V; eles não possuem pavimentos de seixos e seus perfis longitudinais são interrompidos por numerosas quedas d’água e corredeiras. Eles dissecam fortemente as bordas de suas montanhas, mas eles não penetram nelas profundamente. Os rios assumem um caráter totalmente diferente tão logo ingressam nas planícies adjacentes, que geralmente encontram as montanhas em ângulos côncavos acentuados. Este é o domínio dos etchplanos ativos, com sua cobertura de massas argilosas vermelhas profundamente intemperizadas e salpicadas por inselbergs isolados (bornhardts) e montanhas inselbergs. No Sudão ou na Índia Meridional eles se estendem por milhões de quilômetros quadrados. Eles são o produto de uma denudação areal de longa duração, totalmente diferente dos processos que governam hoje o desenvolvimento do relevo nas regiões extratropicais. A força motriz é o intemperismo químico muito intenso que transforma quase todos os minerais em caulinita, haloisita e minerais de argila relacionados.O produto do intemperismo é um regolito argiloso vermelho de 3 a 30 metros de espessura, denominado de maneira variável de latossolo, ferrolítico, plastossolo ou oxissolo, contendo apenas uma pequena fração de areias finas ou de quartzo. O processo denudacional é aquele do duplo aplainamento (doppelte Einebnung). A cobertura de regolitos argiolosos vermelhos jaz sobre a uma superfície de intemperismo basal, exibindo um relevo irregular de protuberâncias em resposta às resistências das rochas. Nesta superfície acontece intensa desintegração rochosa, mas nenhum transporte mecânico de materiais. Este acontece apenas na parte superior, formando uma superfície de lavagem. Na estação chuvosa os minerais de argila da superfície são mobilizados, em suspensão, a cada episódio chuvoso, podendo assim ser conduzidos mesmo pelos pequenos filetes d’água. Simultaneamente os ácidos húmicos e carbônicos no solo facilitam a remoção dos materiais dissolvidos. Na superfície a água lamacenta é coletada em depressões de lavagem rasas, separadas por divisores de lavagem ligeiramente mais altos (spülscheiden). Mesmo os rios maiores fluem nestas amplas depressões de lavagem. Seus pavimentos de areia fina ficam predominantemente secos na estação seca, mas são amplamente inundados na estação chuvosa. Frequentemente eles desenvolvem diques baixos bloqueando seus tributários, mas devido à falta de instrumentos erosivos eles são incapazes de erodir verticalmente. Em muitos casos não são capazes de cortar abaixo desta cobertura detrítica vermelha. Onde ocorre deles fluírem sobre a rocha fresca não são capazes de cortá-la, formando, em vez disto, corredeiras e cachoeiras. Estas “cataratas” foram grande obstáculo na exploração das regiões tropicais, onde se desenvolveram ao longo dos rios como o Nilo, o Congo e os afluentes do Amazonas. Estes rios funcionam apenas como níveis de base passivos ou dutos passivos mas não são ativos no sentido de erosão linear. Em geral, eles não conseguem se sobrepor à denudação areolar, em vez disso estão completamente integrados no processo generalizado de rebaixamento da superfície. Figura 2 Gerações de relevo na Europa Ocidental e Central 1. Etchplanos terciários e etchplanos em patamares (supefícies relictuais); 2 a. Altos terraços pliocênicos; 2 b. Terraços amplos (Plioceno superior ao Pleistoceno inferior; 2.5 a 0.8 milhões de anos a.p.); 3. Vales periglaciais estreitos (formação pronunciada de vales durante as fases frias do Pleistoceno); 4. Fraca formação de vales no Holoceno 116 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. Toda evidência indica que as antigas superfícies coroando as montanhas das latitudes médias foram formadas de forma similar durante o Terciário. Nós a chamamos de primeira geração de relevo. Ela é efetivamente bem preservada nos planaltos da Francônia (Frankenalb) ou na Normandia (fig. 2, nº 1). Em áreas de soerguimento apenas moderado e distante dos rios principais não há nenhum relevo intermediário entre ela e os vales esculpidos nas fases periglaciais do Pleistoceno. Nestas áreas formações antigas contínuas operaram até o Plioceno Médio. Em áreas onde blocos foram rapidamente soerguidos na borda de rios principais (como o Reno e o Danúbio) ou em depressões, um sistema intermediário de faixas estreitas de superfícies planas foi criado, o qual nós chamamos de segunda geração do relevo (fig. 2, nº 2). Ocasionalmente, um sistema mais antigo e outro mais recente podem ser distinguidos (2a e 2b). A idade e a natureza da subgeração mais antiga (2a) é ainda objeto de investigação. Há um pouco mais de informação sobre a geração 2b. Sempre onde ela tem podido ser datada ela pertence ao Plioceno Final (Villafranca) ou Pleistoceno Inicial (do estágio frio Pré-Tegelen ao estágio quente Waal), isto é, a um tempo localizado aproximadamente entre 2,5 e 0,8 milhões de anos A.P. Neste tempo os processos de formação de etchplanos estavam em operação em nossas latitudes, enquanto aqueles responsáveis pela formação dos vales periglaciais ainda não estavam operando. As diferenças entre fases quentes e frias eram ainda moderadas; as fases frias não eram ainda frias o suficiente para formação de glaciares e permafrost. De outro lado, as geadas já forneciam, nos invernos, algum material grosseiro para os rios. Acima de tudo, todavia, havia prolongados períodos secos, quando apenas uma vegetação de estepe podia sobreviver. Sob estas condições, amplos mas ainda pouco profundos vales eram cortados nos etchplanos. Em seus cursos superiores estes rios transportavam predominantemente o solo e a camada intemperizada que era lavada das superfícies planas antigas. Relictos destes depósitos são ocasionalmente encontrados em amplos terraços, compostos de detritos subangulares irregu- larmente distribuídos em uma matriz caolinítica (Wälzschutt), que, no conjunto, guarda algumas semelhanças com depósitos de corrida de lama. Ao redor das montanhas estes amplos terraços freqüen- temente passam para amplos pedimentos e superfícies de glacis cobertos com camadas de detritos similares em transporte. Bons exemplos são encontrados ao longo do arco interior e auréola externa dos Cárpatos. Formas comparáveis são encontradas hoje nos atuais desertos com invernos frios. Este foi um conciso sumário para as quatro maiores gerações de formas de relevo das latitudes médias, como podemos interpretar com base nos conhecimentos atuais da geomorfologia climatogenética. O trabalho sobre esse tema está longe de estar completo. Mas é evidente que a abordagem genética é o único caminho pelo qual todas as fases do desenvolvimento em direção às formas de relevo visíveis hoje podem ser explicadas. A natureza das fases individuais, todavia, apenas poderá ser entendida quando as zonas climáticas forem investigadas e encontradas na Terra, nas quais processos análogos modelam formas similares, que poderão ser estudadas detalhadamente. A abordagem climática é, desta forma, baseada na abordagem climatomórfica, englobando a Terra do Equador ao Pólo. Apenas a união de ambas colocará a geomorfologia em nível adequado com as outras ciências da natureza, independente de seus objetivos e métodos. 117 Revista do Departamento de Geografia, 19 (2006) 111-118. Abstract: The author summarizes the life and work of Julius Büdel (1903-1983) and translates to Portuguese his ¨Climatic and Climatomorphic Geomorphology¨ published in the ¨Zeitschrift für Geomorphologie¨, Supplementband 36, 1980. Key words: Julius Büdel, Climatic Geomorphology, Climatomorphic Zones. 118
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