Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
GENERALIDADES E CLASSIFICAÇÃO Nas leucemias agudas, a população Ieucêrnica compõe-se de 10 a 20% de células em ciclo celular ativo, de células em repouso, mas capazes de volver ao ciclo mitótico, e de células senescentes, incapazes de ulterior divisão. Há maturação anárquica e alterações cromossômicas e moleculares. Por ocasião do diagnóstico, o organis- mo contém mais de 1012 células leucêmicas, geralmente designadas "blastos", que se acumulam compactamente na medula, nos tecidos linfoides (no caso das leucemias linfoblásticas) e que podem infiltrar virtualmente todos os órgãos. A leucemia aguda (LA) pode ter origem linfoide (LLA) ou mieloi- de (LMA). Na infância, predomina a LLA (85% dos casos); no adulto, aLMA (80% dos casos). A LA não tratada causa insuficiência hema- topoética progressiva, rapidamente fatal. A quimioterapia Tom proto- colos de indução, seguidos de longo período de manutenção, leva à remissão duradoura e à cura de 70% dos casos de LLA.Com quimiote- rapia agressiva de indução, seguida de doses de consolidação, obtém- se remissão em 70% dos casos de LMA em pacientes abaixo de 60 anos; as recidivas, contudo, são a regra, de modo que a curabilidade é da ordem de 20 a 30%. Havendo doador compatível, o transplante de medula óssea é, muitas vezes, indicado e pode ser curativo. Em pacientes idosos, as perspectivas de cura são quase nulas. Dada a variabilidade de progênies e estágios de maturação celu- lar donde pode originar-se o clone leucêmico, a distinção puramente morfológica FAB (comitê Franco-Americano-Britânico), em moda no fim do século, é agora utilizada somente para a descrição dos blastos vistos no hemo grama e no mielograma. O diagnóstico clínico final 342 Renato Failace & cais. exige uma base mais ampla: a morfologia e a cito química (como auxílio rápido à morfologia) servem para o diagnóstico presuntivo inicial que orienta a escolha econômica dos marcadores imunológicos da imunofenotipagem por citometria em fluxo; seguem-se exames ci- togenéticos e de biologia molecular. A classificação da OMS, elaborada nesses termos, distingue en- tre as leucemias mieloides agudas uma variedade de entidades clínicas. Algumas se caracterizam por anormalidades citogenético/moleculares recorrentes; outras, por se acompanharem ou derivarem de quadros mielodisplásicos; um terceiro grupo, por decorrer de tratamento pré- vio com antiblásticos; um quarto grupo, subclassificado por aspectos citomorfológicos e imunofenotípicos (similares aos da classificação FAB), pela falta das correlações recém-citadas; num quinto grupo es- tão as proliferações mieloides relacionadas à síndrome de Down. Como a discussão e a caracterização dos subtipos ultrapassam os limites deste manual, consulte-se a classificação completa da OMS, no Apêndice 2. O conjunto de exames, para enquadramento de cada caso de LMA na classificação, é trabalho para laboratórios especializados de hospitais universitários ou institucionais. Nas leucemias linfoides agudas, que o texto da OMS define como expansões clonais de linfócitos B e T precursores (linfoblastos), também existem alterações cito genéticas recorrentes que caracterizam muitas das entidades clínicas, mas a imunofenotipagem mostra-se suficiente, preferencial até, para defini-Ias na rotina clínica. A forma leucêmica do linfoma de Burkitt (antiga LLAFABL3), apesar da célula de origem ser um linfócito B maduro, clinicamente é uma leucemia aguda como as demais. No caso das LLA de precursores B, o grau de diferenciação dos linfoblastos tem correlações clínicas; a subclassificação é feita por imunofenotipagem. Todas as B são TdT+, HLA-DR+, CD19+, CD22+ e CD79a+; a de precursores B mais indiferenciados (pró-B) é CD10-; a LLAde precursores intermediários é CD10+ (LLA comum, pois CD10 é o cALLA = commonALL antigen) e na pré-B os blastos são cIg+ (têm imunoglobulina citoplasmática). As células de Burkitt têm todos os marcadores B e mlg (IgM na membrana); são negativas para TdT e CD23. A classificação da OMS lista sete alterações cito genético/mole- culares (ver Apêndice 2) como recorrentes e clinicamente relevantes na LLA de precursores B. Hiperdiploidia entre 51 e 65 cromossomos acompanha-se de prognóstico especialmente favorável; hipodiploi- Leucemias agudas 343 dia, principalmente :s 44 cromos somos, implica prognóstico desfa- vorável. Na LLAde precursores T, os linfoblastos são sempre CD3+ e/ou CD7+ (quase sempre ambos). Outros marca dores T têm expressão variável. Não foram demonstradas alterações citogenéticas clinica- mente relevantes. Acomete principalmente crianças acima de 6 anos e adolescentes, frequentemente há comprometimento tímico com mas- sa mediastinal, e a evolução é mais grave, com prognóstico pior, do que é usual nas LLAde origem B. HEMOGRAMA NAS LEUCEMIAS AGUDAS Independentemente das classificações mencionadas, o diagnós- tico de leucemia aguda (LA) origina-se dos sinais e sintomas discuti- dos a seguir, todos indicativos da necessidade de um hemo grama, ou de resultado inesperado de hemo grama, solicitado sem essa suspeita. Pensar em LA quando forem notados: 1. Empalidecimento ou outros sinais de anemia de rápida instalação, sem perda sanguínea que a justifique. 2. Púrpura recente: se as equimoses, as petéquias e o sangramento das mucosas forem súbitos (de um dia para outro) e notados em paciente com bom estado geral, sem aspecto doentio, o diagnóstico de púpura trombocitopênica aguda é mais provável; caso contrário, com empalidecimento, anorexia, febrícula e duração de algumas semanas, pensar em LA. 3. Febre ou outros sinais de infecção com itens (1) e/ou (2) descritos acima: é a apresentação clássica de LA; são sinais de pancitopenia (anemia, trombocitopenia e neutropenia). 4. Dor óssea (40% dos casos): pesquisá-la pela pressão digital no esterno. Não é apanágio da LA: está presente em qualquer dissemi- nação tumoral metastática na medula; nesta pode haver, também, pancitopenia. 5. Linfonodomegalias: presentes em 60% dos casos de LLA; raras na LMA. 6. Esplenomegalia: o baço é palpável em 70% dos casos de LLAe 30% de LMA. 7. Dores reumáticas em criança: são associadas a qualquer desses itens. 8. Gengivite hipertrójica: caracteriza os tipos monocíticos de LMA. 344 Renato Failace & cais. No caso de suspeita clínica, solicitar hemograma e plaquetas. Escolher um laboratório reconhecidamente dedicado à Hematologia; LA é um diagnóstico difícil, de grande responsabilidade e relativa ur- gência. Não pedi-lo a laboratórios-satélite de clínicas de atendimento primário, nem fora do horário convencional de expediente. Se a sus- peita ocorrer em fim de semana, encaminhar o paciente ao plantão do laboratório de um grande hospital, mas certificar-se de que o he- matologista titular verá pessoalmente o exame. Dois resultados de LA incipiente estão na Figura 21.1. O hemograma da esquerda mostra apenas pancitopenia; a ane- mia é moderada, a trombocitopenia não deve ainda estar causan- do manifestações hemorrágicas, a neutrocitopenia já é acentuada. Presume-se que o laboratorista não tenha notado células leucêmicas (blastos); cabe-lhe procurá-Ias com especial atenção em hemo gramas como esse; a fórmula leucocitária do resultado foi a fornecida pelo contador eletrônico (note-se que as porcentagens vêm com decimal). É indistinguível do hemograma de anemia aplástica; a clínica favore- cerá o diagnóstico de LA se houver dor óssea ou organomegalias. Já no hemograma da direita, o laboratorista identificou e anotou no resultado 7% de blastos; deve tê-los descontado da porcentagem de linfócitos e assumido o resto da fórmula feita pelo contador; é pro- vável que a máquina tenha emitido flag de blasts ou variant lymphs, mas nessa porcentagem a sensibilidade é baixa. A confirmar-se o diagnóstico de LA aguda pelo mielograma, in- dicado nos dois casos, o primeiro seria (ainda) aleucêmico (sem blas-tos), o segundo, subleucêmico (com blastos, mas sem leucocitose); os termos são corretos e pertinentes, mas pouco usados. É sempre mais sensato, de parte do médico que recebe um desses resultados, enca- minhar oia) paciente à consulta com hematologista do que pedir mie- lograma ao laboratório. Já os hemo gramas da Figura 21.2 são patognomônicos de LA. Em ambos os casos o contador eletrônico foi incapaz de fazer a fór- mula leucocitária; foram feitas ao microscópio (notem-se as porcenta- gens com decimal zero). No hemograma da esquerda os números dos leucócitos normais remanescentes não são fidedignos, pelo erro esta- tístico diante da alta contagem de blastos. LA com alta contagem de blastos exige tratamento urgente; cabe ao médico encaminhar imedia- tamente ota) paciente a um centro de tratamento apropriado. Notando blastos leucêrnicos no hemo grama, cabe ao laboratoris- ta descrevê-los para sugerir a progênie mais provável; em alguns casos Leucemias agudas 345 ERITRÓCITOS 2,95 M/llL ERITRÓCITOS 2,77 M/tJL HEMOGLOBINA 9,1 g/dL HEMOGLOBINA 8,4 g/dL HEMATÓCRITO 27,7 % HEMATÓCRITO 24,5 % VCM 93,9 fL VCM 88,4 fL HCM 30,8 pg HCM 30,3 pg CHCM 32,8 % CHCM 34,3 % RDW 13,8 RDW 14,9 Policromatocitose 1+ Policromatocitose 1+ LEUCÓCITOS 1800 ltJL LEUCÓClTOS 2900 ltJL fórmula % ltJL fórmula % /tJL Neutrófilos 15,5 279 Neutrófilos 6,6 191 Linfócitos 70,1 1262 Linfócitos 66,1 1917 Monócitos 12,2 220 Monócitos 18,3 531 Eosinófilos 2,0 36 Eosinófilos 1,8 52 Basófilos 0,2 3 Basófilos 0,2 6 Blastos 7,0 203 PLAQUETAS 44000 ltJL PLAQUETAS 16000 ltJL FIGURA 21.1 Hemogramas de leucemia aguda aleucêmica (E) e subleucêmica (D). ERITRÓCITOS 1,94 MItJL ERITRÓCITOS 2,55 MItJL HEMOGLOBINA 5,9 g/dL HEMOGLOBINA 7,4 g/dL HEMATÓCRITO 18,1 % HEMATÓCRITO 23,0 % VCM 93,3 fL VCM 90,2 fL HCM 30,4 pg HCM 29 pg CHCM 32,6 % CHCM 32,2 % RDW 15,5 RDW 15,1 Policromatocitose 1+ Eritrócitos fragmentados 1+ LEUCÓCITOS 116000 /tJL LEUCOCITOS 4400 /tJL fórmula % ltJL fórmula % /tJL Neutrófilos 1,0 1160 Neutrófilos 4,0 176 Linfócitos 6,0 6960 Linfócitos 60,0 2640 Monócitos 1,0 1160 Monócitos 10,0 440 Eosinófilos O O Eosinófilos 1,0 44 Basófilos O O Basófilos O O Blastos 92,0 106720 Promielócitos 25,0 1100 Blastos peroxidase-negativos Alguns promielócitos com bastões de Auer PLAQUETAS 11000 /tJL PLAQUETAS 7000 /tJL FIGURA 21.2 Hemograma de leucemia linfoblástica aguda com alta contagem de blastos (E) e de leucemia promielocítica (D). 346 Renata Failace & cais. a morfologia permite uma classificação acurada. No hemo grama 21.2 (E), o laboratório, num toque de qualidade, complementou o hemo- grama com uma coloração de mieloperoxidase; se positiva, identificaria os blastos como de origem mieloide; tendo sido negativa, sugere, mas não confirma, uma origem linfoide. No hemo grama 21.2 (D) as células leucêmicas puderam ser mo r- fologicamente identificadas como promielócitos pela presença de gra- nulação citoplasmática abundante e bastões de Auer, conglomerados de grânulos citoplasmáticos vistos somente em blastos mieloides. Esse tipo particular de LMA costuma acompanhar-se de coagulopatia de consumo, com grave síndrome hemorrágica; justifica-se tratá-Ia em regime de emergência. Compreenda-se que os aspectos microscópicos no hemo grama só às vezes permitem caracterizar a célula de origem. Descrições morfológicas têm sentido apenas quando acompanhadas de microfotografias ilustrativas; o autor recomenda a consulta a Atlas especializado. * O diagnóstico diferencial definitivo, entretanto, é fei- to somente após os exames complementares citados. * Texto, com atlas, recomendado: BAIN, Barbara J. Leukaemia diagnosis. 3rd Ed. Malden: Blackwell, 2003.
Compartilhar