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Cap 21 Leucemias Agudas

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GENERALIDADES E CLASSIFICAÇÃO
Nas leucemias agudas, a população Ieucêrnica compõe-se de
10 a 20% de células em ciclo celular ativo, de células em repouso,
mas capazes de volver ao ciclo mitótico, e de células senescentes,
incapazes de ulterior divisão. Há maturação anárquica e alterações
cromossômicas e moleculares. Por ocasião do diagnóstico, o organis-
mo contém mais de 1012 células leucêmicas, geralmente designadas
"blastos", que se acumulam compactamente na medula, nos tecidos
linfoides (no caso das leucemias linfoblásticas) e que podem infiltrar
virtualmente todos os órgãos.
A leucemia aguda (LA) pode ter origem linfoide (LLA) ou mieloi-
de (LMA). Na infância, predomina a LLA (85% dos casos); no adulto,
aLMA (80% dos casos). A LA não tratada causa insuficiência hema-
topoética progressiva, rapidamente fatal. A quimioterapia Tom proto-
colos de indução, seguidos de longo período de manutenção, leva à
remissão duradoura e à cura de 70% dos casos de LLA.Com quimiote-
rapia agressiva de indução, seguida de doses de consolidação, obtém-
se remissão em 70% dos casos de LMA em pacientes abaixo de 60
anos; as recidivas, contudo, são a regra, de modo que a curabilidade
é da ordem de 20 a 30%. Havendo doador compatível, o transplante
de medula óssea é, muitas vezes, indicado e pode ser curativo. Em
pacientes idosos, as perspectivas de cura são quase nulas.
Dada a variabilidade de progênies e estágios de maturação celu-
lar donde pode originar-se o clone leucêmico, a distinção puramente
morfológica FAB (comitê Franco-Americano-Britânico), em moda no
fim do século, é agora utilizada somente para a descrição dos blastos
vistos no hemo grama e no mielograma. O diagnóstico clínico final
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exige uma base mais ampla: a morfologia e a cito química (como
auxílio rápido à morfologia) servem para o diagnóstico presuntivo
inicial que orienta a escolha econômica dos marcadores imunológicos
da imunofenotipagem por citometria em fluxo; seguem-se exames ci-
togenéticos e de biologia molecular.
A classificação da OMS, elaborada nesses termos, distingue en-
tre as leucemias mieloides agudas uma variedade de entidades clínicas.
Algumas se caracterizam por anormalidades citogenético/moleculares
recorrentes; outras, por se acompanharem ou derivarem de quadros
mielodisplásicos; um terceiro grupo, por decorrer de tratamento pré-
vio com antiblásticos; um quarto grupo, subclassificado por aspectos
citomorfológicos e imunofenotípicos (similares aos da classificação
FAB), pela falta das correlações recém-citadas; num quinto grupo es-
tão as proliferações mieloides relacionadas à síndrome de Down.
Como a discussão e a caracterização dos subtipos ultrapassam os
limites deste manual, consulte-se a classificação completa da OMS, no
Apêndice 2. O conjunto de exames, para enquadramento de cada caso
de LMA na classificação, é trabalho para laboratórios especializados
de hospitais universitários ou institucionais.
Nas leucemias linfoides agudas, que o texto da OMS define como
expansões clonais de linfócitos B e T precursores (linfoblastos), também
existem alterações cito genéticas recorrentes que caracterizam muitas
das entidades clínicas, mas a imunofenotipagem mostra-se suficiente,
preferencial até, para defini-Ias na rotina clínica. A forma leucêmica
do linfoma de Burkitt (antiga LLAFABL3), apesar da célula de origem
ser um linfócito B maduro, clinicamente é uma leucemia aguda como
as demais.
No caso das LLA de precursores B, o grau de diferenciação dos
linfoblastos tem correlações clínicas; a subclassificação é feita por
imunofenotipagem. Todas as B são TdT+, HLA-DR+, CD19+, CD22+
e CD79a+; a de precursores B mais indiferenciados (pró-B) é CD10-; a
LLAde precursores intermediários é CD10+ (LLA comum, pois CD10
é o cALLA = commonALL antigen) e na pré-B os blastos são cIg+ (têm
imunoglobulina citoplasmática). As células de Burkitt têm todos os
marcadores B e mlg (IgM na membrana); são negativas para TdT e
CD23.
A classificação da OMS lista sete alterações cito genético/mole-
culares (ver Apêndice 2) como recorrentes e clinicamente relevantes
na LLA de precursores B. Hiperdiploidia entre 51 e 65 cromossomos
acompanha-se de prognóstico especialmente favorável; hipodiploi-
Leucemias agudas 343
dia, principalmente :s 44 cromos somos, implica prognóstico desfa-
vorável.
Na LLAde precursores T, os linfoblastos são sempre CD3+ e/ou
CD7+ (quase sempre ambos). Outros marca dores T têm expressão
variável. Não foram demonstradas alterações citogenéticas clinica-
mente relevantes. Acomete principalmente crianças acima de 6 anos e
adolescentes, frequentemente há comprometimento tímico com mas-
sa mediastinal, e a evolução é mais grave, com prognóstico pior, do
que é usual nas LLAde origem B.
HEMOGRAMA NAS LEUCEMIAS AGUDAS
Independentemente das classificações mencionadas, o diagnós-
tico de leucemia aguda (LA) origina-se dos sinais e sintomas discuti-
dos a seguir, todos indicativos da necessidade de um hemo grama, ou
de resultado inesperado de hemo grama, solicitado sem essa suspeita.
Pensar em LA quando forem notados:
1. Empalidecimento ou outros sinais de anemia de rápida instalação,
sem perda sanguínea que a justifique.
2. Púrpura recente: se as equimoses, as petéquias e o sangramento
das mucosas forem súbitos (de um dia para outro) e notados em
paciente com bom estado geral, sem aspecto doentio, o diagnóstico
de púpura trombocitopênica aguda é mais provável; caso contrário,
com empalidecimento, anorexia, febrícula e duração de algumas
semanas, pensar em LA.
3. Febre ou outros sinais de infecção com itens (1) e/ou (2) descritos
acima: é a apresentação clássica de LA; são sinais de pancitopenia
(anemia, trombocitopenia e neutropenia).
4. Dor óssea (40% dos casos): pesquisá-la pela pressão digital no
esterno. Não é apanágio da LA: está presente em qualquer dissemi-
nação tumoral metastática na medula; nesta pode haver, também,
pancitopenia.
5. Linfonodomegalias: presentes em 60% dos casos de LLA; raras na
LMA.
6. Esplenomegalia: o baço é palpável em 70% dos casos de LLAe 30%
de LMA.
7. Dores reumáticas em criança: são associadas a qualquer desses itens.
8. Gengivite hipertrójica: caracteriza os tipos monocíticos de LMA.
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No caso de suspeita clínica, solicitar hemograma e plaquetas.
Escolher um laboratório reconhecidamente dedicado à Hematologia;
LA é um diagnóstico difícil, de grande responsabilidade e relativa ur-
gência. Não pedi-lo a laboratórios-satélite de clínicas de atendimento
primário, nem fora do horário convencional de expediente. Se a sus-
peita ocorrer em fim de semana, encaminhar o paciente ao plantão
do laboratório de um grande hospital, mas certificar-se de que o he-
matologista titular verá pessoalmente o exame. Dois resultados de LA
incipiente estão na Figura 21.1.
O hemograma da esquerda mostra apenas pancitopenia; a ane-
mia é moderada, a trombocitopenia não deve ainda estar causan-
do manifestações hemorrágicas, a neutrocitopenia já é acentuada.
Presume-se que o laboratorista não tenha notado células leucêmicas
(blastos); cabe-lhe procurá-Ias com especial atenção em hemo gramas
como esse; a fórmula leucocitária do resultado foi a fornecida pelo
contador eletrônico (note-se que as porcentagens vêm com decimal).
É indistinguível do hemograma de anemia aplástica; a clínica favore-
cerá o diagnóstico de LA se houver dor óssea ou organomegalias.
Já no hemograma da direita, o laboratorista identificou e anotou
no resultado 7% de blastos; deve tê-los descontado da porcentagem
de linfócitos e assumido o resto da fórmula feita pelo contador; é pro-
vável que a máquina tenha emitido flag de blasts ou variant lymphs,
mas nessa porcentagem a sensibilidade é baixa.
A confirmar-se o diagnóstico de LA aguda pelo mielograma, in-
dicado nos dois casos, o primeiro seria (ainda) aleucêmico (sem blas-tos), o segundo, subleucêmico (com blastos, mas sem leucocitose); os
termos são corretos e pertinentes, mas pouco usados. É sempre mais
sensato, de parte do médico que recebe um desses resultados, enca-
minhar oia) paciente à consulta com hematologista do que pedir mie-
lograma ao laboratório.
Já os hemo gramas da Figura 21.2 são patognomônicos de LA.
Em ambos os casos o contador eletrônico foi incapaz de fazer a fór-
mula leucocitária; foram feitas ao microscópio (notem-se as porcenta-
gens com decimal zero). No hemograma da esquerda os números dos
leucócitos normais remanescentes não são fidedignos, pelo erro esta-
tístico diante da alta contagem de blastos. LA com alta contagem de
blastos exige tratamento urgente; cabe ao médico encaminhar imedia-
tamente ota) paciente a um centro de tratamento apropriado.
Notando blastos leucêrnicos no hemo grama, cabe ao laboratoris-
ta descrevê-los para sugerir a progênie mais provável; em alguns casos
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ERITRÓCITOS 2,95 M/llL ERITRÓCITOS 2,77 M/tJL
HEMOGLOBINA 9,1 g/dL HEMOGLOBINA 8,4 g/dL
HEMATÓCRITO 27,7 % HEMATÓCRITO 24,5 %
VCM 93,9 fL VCM 88,4 fL
HCM 30,8 pg HCM 30,3 pg
CHCM 32,8 % CHCM 34,3 %
RDW 13,8 RDW 14,9
Policromatocitose 1+ Policromatocitose 1+
LEUCÓCITOS 1800 ltJL LEUCÓClTOS 2900 ltJL
fórmula % ltJL fórmula % /tJL
Neutrófilos 15,5 279 Neutrófilos 6,6 191
Linfócitos 70,1 1262 Linfócitos 66,1 1917
Monócitos 12,2 220 Monócitos 18,3 531
Eosinófilos 2,0 36 Eosinófilos 1,8 52
Basófilos 0,2 3 Basófilos 0,2 6
Blastos 7,0 203
PLAQUETAS 44000 ltJL PLAQUETAS 16000 ltJL
FIGURA 21.1
Hemogramas de leucemia aguda aleucêmica (E) e subleucêmica (D).
ERITRÓCITOS 1,94 MItJL ERITRÓCITOS 2,55 MItJL
HEMOGLOBINA 5,9 g/dL HEMOGLOBINA 7,4 g/dL
HEMATÓCRITO 18,1 % HEMATÓCRITO 23,0 %
VCM 93,3 fL VCM 90,2 fL
HCM 30,4 pg HCM 29 pg
CHCM 32,6 % CHCM 32,2 %
RDW 15,5 RDW 15,1
Policromatocitose 1+ Eritrócitos fragmentados 1+
LEUCÓCITOS 116000 /tJL LEUCOCITOS 4400 /tJL
fórmula % ltJL fórmula % /tJL
Neutrófilos 1,0 1160 Neutrófilos 4,0 176
Linfócitos 6,0 6960 Linfócitos 60,0 2640
Monócitos 1,0 1160 Monócitos 10,0 440
Eosinófilos O O Eosinófilos 1,0 44
Basófilos O O Basófilos O O
Blastos 92,0 106720 Promielócitos 25,0 1100
Blastos peroxidase-negativos Alguns promielócitos com bastões de Auer
PLAQUETAS 11000 /tJL PLAQUETAS 7000 /tJL
FIGURA 21.2
Hemograma de leucemia linfoblástica aguda com alta contagem de blastos
(E) e de leucemia promielocítica (D).
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a morfologia permite uma classificação acurada. No hemo grama 21.2
(E), o laboratório, num toque de qualidade, complementou o hemo-
grama com uma coloração de mieloperoxidase; se positiva, identificaria
os blastos como de origem mieloide; tendo sido negativa, sugere, mas
não confirma, uma origem linfoide.
No hemo grama 21.2 (D) as células leucêmicas puderam ser mo r-
fologicamente identificadas como promielócitos pela presença de gra-
nulação citoplasmática abundante e bastões de Auer, conglomerados
de grânulos citoplasmáticos vistos somente em blastos mieloides. Esse
tipo particular de LMA costuma acompanhar-se de coagulopatia de
consumo, com grave síndrome hemorrágica; justifica-se tratá-Ia em
regime de emergência. Compreenda-se que os aspectos microscópicos
no hemo grama só às vezes permitem caracterizar a célula de origem.
Descrições morfológicas têm sentido apenas quando acompanhadas
de microfotografias ilustrativas; o autor recomenda a consulta a Atlas
especializado. * O diagnóstico diferencial definitivo, entretanto, é fei-
to somente após os exames complementares citados.
* Texto, com atlas, recomendado: BAIN, Barbara J. Leukaemia diagnosis. 3rd
Ed. Malden: Blackwell, 2003.

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