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São proliferações clonais, efetivas e capazes de maturação, de células primitivas da mielopoese, originando populações excessivas que se acumulam em medula hipercelular. Predomínio de prolifera- ção eritroide causa poliglobulia (policitemia vera, PV); predomínio da megacariocitopoese causa trombocitose (trombocitemia essencial, TE) e/ou fibrose da medula ósea e mielopoese extramedular (mielofibrose primária, MFP). Hiperplasia da granulocitopoese, com leucocitose peri- férica, é acompanhante usual da PVe da MFP, mas incoÍnum na TE. Correlação recíproca entre as neoplasias mieloproliferativas (NMP) citadas, na época "síndromes mieloproliferativas", foi sugerida por W. Dameshek em 1951, incluindo no grupo a leucemia mieloide crônica (LMC). A evidenciação do cromossomo Ph em 1960, da fusão BCR-ABL 1 a seguir, individualizou a LMC (discutida no Capítulo 22) e separou-a das demais. A clonalidade das NMPs foi demonstrada em 1976. A des- coberta em 2005 da mutação pontual V617F no gene Janus-quinase 2 (JAK2) forneceu uma explicação unificadora para os aspectos comuns entre elas, sugerindo que PV e TE sejam evoluções distintas de um pro- cesso similar, daí a perspectiva de aparente transformação recíproca. Poderiam representar um espectro fenotípico do mesmo genótipo, em- bora a presença da mutação, quase constante na PY,seja demonstrá- vel em apenas 50-60% dos casos de TE e de MFP.Tanto na PV como na TE, com o passar dos anos, pode ocorrer neoangiogênese e aumento de fibrose reticulínica na medula óssea, configurando-se uma histo- patologia idêntica a da MFP de novo. O processo mielofibrótico, em qualquer dos casos, é uma reação policlonal às cito quinas produzidas pelos megacariócitos e monócitos clonais, pois os fibroblastos e as células do estroma não derivam do clone. 354 Renata Failace & cais. JAK2 é a tirosinoquinase correlacionada aos receptores de eri- tropoetina e trombopoetina e presença necessária para sua expres- são na superfície celular. A substituição de valina por fenilalanina (V617F) em JAK2 causa uma "ativação constitucional" dos receptores e os aspectos hematológicos de NMP. A mutação, inicialmente he- terozigótica nas células hematopoéticas acometidas, pode tornar-se progressivamente homozigótica por recombinação mitótica no cro- moss_omo 9. O aumento de carga alélica por esse mecanismo é usual na PV e na MFp, mas não na TE; é provável que isso contribua para a diferença fenotípica. Na evolução a longo prazo das NMP podem emergir novos elo- nes neoplásicos independentes de JAK2, gerando uma população mie- loblástica idêntica a de leucemia aguda, agressiva e refratária a trata- mento. Na história natural da doença este evento é incomum: <5% dos casos em 20 anos de evolução. A frequência mais elevada dessa terminação maligna (=15% em 10 a 20 anos de evolução), antes des- crita, devia-se ao efeito mutagênico dos agentes alquilantes e do 32p até recentemente usados no tratamento. POllCITEMIA VERA (PV) É uma proliferação clonal que compromete as três séries mieloi- des, com predomínio da eritroide, cujos precursores in vitro e in vivo multiplicam-se independentemente do estímulo da eritropoetina. A mutação JAK2 V617F está presente em >95% dos casos; nos demais costuma haver mutações próximas, mais raras, com ação similar so- bre a tirosinoquinase. Acomete geralmente pessoas idosas (pico entre 60 e 65 anos), embora haja casos, inclusive do autor, diagnosticados na 4ª década da vida; a incidência é de 0,5 a l/100.000/ano, mas a prevalência é muito maior pela longa sobrevida dos pacientes quando bem tratados. O diagnóstico é feito ao notar-se a fascies pletórica e a turgência venosa ou, muito mais vezes, por hemo grama feito em revisão médica ou por causas fortuitas; devem ser excluídas todas as causas de poli- globulia secundária (ver Capítulo 12). A detecção de esplenomegalia (= 65% dos casos), geralmente moderada, favorece o diagnóstico. O hemagrama (Figura 23.1, E) mostra considerável elevação da série vermelha. Com a evolução há uma tendência a microcitose que se acentua se houver tratamento com sangrias. A eritrocitose acompa- Neoplosios mieloproliferotivas nõo-Ieucêmicas 355 ERITRÓClTOS 7,65 M/Jil ERITRÓClTOS 4,32 M/Jil HEMOGlOBINA 19,5 g/dl HEMOGlOBINA 11,1 g/dl HEMATÓCRITO 62,0 % HEMATÓCRITO 34,1 % VCM 81,0 fl VCM 78,9 fl (microeitose) HCM 25,5 pg HCM 25,7 pg CHCM 31,5 % CHCM 32,6 % RDW 16,3 (anisoeitose) RDW 17,6 (anisoeitose) Policromatoeitase 1+ Dacriócitos 3+ Peeiloeitose 1+ Policromatoeitose 2+ Eritrablastos 6/100 leucóeitos lEUCÓCITOS 14700 /Jil 1320 /J1l fórmula % /IA Mielócitos 2,0 294 lEUCÓCITOS 22000 /Jil Neutrófilos fórmula % /J1l bastonados 8,0 1176 Blastos 1,0 220 segmentados 70,0 10290 Mielóeitos 7,0 1540 linfóeitos 13,0 1911 Neutrófilos Manóeitos 3,0 441 bastonados 11,0 2420 Easinófilos 2,0 294 segmentados 69,0 15180 Basófilos 2,0 294 lnfóeitos 6,0 1320 Monóeitos 2,0 440 PLAQUETAS 467000 /Jil Eosinófilos 2,0 440 Basófilos 2,0 440 PLAQUETAS 330000 /J1l Plaquelas gigantes e dismórficas 2+ FIGURA 23.1 Hemograma de policitemia vera (E)e de mielofibrose primária (D). nha-se de leucocitose e/ou trombocitose em 2/3 dos casos. A leucoci- tose é neutrófila, podem ser vistos mielócitos, e aumento de basófilos é usual. Eritroblastos são raros. A trombocitose, ao diagnóstico, ra- ramente ultrapassa 600.000/I1-L; ao microscópio são vistas plaquetas gigantes, mas o VPM não está aumentado. O exame da medula óssea não é necessário. Na dúvida quanto ao diagnóstico (poliglobulia apenas moderada, sem esplenomegalia, trombocitose ou leucocitose) toma-se mandatória a pesquisa de JAK2 por testes de biologia molecular. A determinação da volemia globular com SlCr diferencia a poliglobulia real (aumento da massa eritroide circulante) da pseudopoliglobulia (diminuição da volemia plasmática); é desnecessária nos casos JAK2 positivos. A hiperviscosidade sanguínea (principalmente), a hipervolemia e a trombocitose causam alta incidência de complicações trombóticas. 356 Renato Failace & cols. Um AVC isquêmico, às vezes, é o evento que leva ao diagnóstico. São frequentes tromboses venosas em áreas incomuns; tromboses de veias porta ou hepáticas (síndrome de Budd-Chiari) são tão características da PV que se constituem em indicação para a pesquisa de JAK2 mes- mo em pacientes sem poliglobulia no hemograma. Se positiva, indica- se determinação da volemia globular com 51Cr. Essa rotina evidenciou um dado antes não reconhecido: há casos de policitemia vera em que uma poliglobulia real é disfarçada por aumento concomitante da vo- lemia plasmática, mantendo-se a proporção plasma/glóbulos no eri- trograma (que analisa apenas uma amostra). Há hipervolemia global, às vezes considerável, com eritrograma enganador. A suscetibilidade trombótica, nesses casos de hipervolemia com eritrograma pseudonor- mal, é idêntica a dos casos com poliglobulia notada no eritrograma. Úlcera péptica hemorrágica é outra complicação comum da pv. Há casos de PV que lentamente evoluem para mielofibrose, com as implicações prognósticas respectivas (ver adiante). Na grande maioria dos casos, entretanto, o tratamento com sangrias (preferido em pacientes jovens) e/ou com hidroxicarbamida (Hydrea'"), quando controlado por hematologista experiente, diminui e mantém as cifras hematimétricas em nível satisfatório, permitindo sobrevida próxima à prevista para o grupo etário. A experiência tem demonstado que a hidroxicarbamida é bem tolerada e não compartilha a ação onco- gênica dos agentes alquilantes; a macrocitose causada pelo fármaco gera um hemo grama muito alterado que deve ser interpretado nesse contexto. TROMBOCITEMIA ESSENCIAL (TE) A trombocitemia essencial tem incidência e prevalência seme- lhante a da PV,mas é mais frequente no sexo feminino. Predomina em idosos, embora possa acometer também pacientes até na 3ª década da vida. A proliferaçãodonal dominante é megacariocítica. A pesquisa de JAK2 é positiva em 50-60% dos casos; a carga alélica é sempre baixa (células heterozigóticas). A contagem de plaquetas eleva-se lentamente, no decurso de vá- rios meses ou anos. Números entre 400.000 e 600.000/j.LL são usuais ao ser notada, mas o autor já viu casos com contagem de mais de 2 milhões/ul, ao diagnóstico. As demais séries do hemo grama, na maioria dos casos, são normais; raramente há neutrofilia, basofilia e Neoplasias mieloproliferativas não-Ieucêmicas 357 raros mielócitos. O baço não costuma estar aumentado. O exame da medula óssea, em casos diagnosticados após trombocitose de longa data, não é indispensável. A biópsia é sempre mais esclarecedora que o mielograma. A medula é hipercelular, com óbvia riqueza em mega- cariócitos de alta ploidia. A evolução é lenta e benigna, mas, quando a contagem de pla- quetas ultrapassa 1,0 M/J.LL,há significativo risco de complicações tromboembólicas predominantemente arteriais. Um paciente do au- tor teve infarto do miocárdio aos 26 anos, ocasião em que foi notada a contagem de plaquetas == 1,6 M/J.LL;mantém-se bem, com hidroxicar- bamida, decorridos mais de 16 anos. Sinais de insuficiência circula- tória periférica são comuns, principalmente cianose, dormência e dor nos artelhos; melhoram rapidamente com 100 mg diários de AAS. Alguns pacientes com aparente trombocitemia essencial - todos JAK2 positivos - na verdade têm policitemia vera, com poliglobulia disfarçada por aumento simultâneo da volemia plasmática; às vezes o diagnóstico é suspeitado por desenvolverem síndrome de Budd-Chiari. Em casos de trombocitemia JAK2 positivos, com hematócrito >48% (O') ou 44% (9), com esplenomegalia ou com leucocitose, deve ser feita determinação da volemia globular com SlCr. Diante de contagens de plaquetas acima de 1 M/J.LL,há indica- ção de tratamento permanente com hidroxicarbamida ou anagrelide (Agrylin'"), para manter a contagem abaixo de 500-600.000/J.LL. Ex- cluindo-se os casos que evoluem para MFp' e os raros casos que desen- volvem LMA, a sobrevida assemelha-se à usual para o grupo etário. MIELOFIBROSE PRIMÁRIA (MFP) Como as demais NMp' ocorre da meia-idade em diante; embora possa derivar de casos de PVe TE, é mais rara do que qualquer delas. A proliferação clonal compromete toda a mielopoese, mas é predomi- nante na série megacariocítica; há hematopoese ineficaz na medula óssea, e citoquinas megacariocíticas e monocíticae estimulam prolife- ração fibroblástica e neoangiogênese. Células imaturas circulam e dão origem a metaplasia mieloide, principalmente no baço e no fígado. A pesquisa de JAK2 é positiva em 50-60% dos casos. Quando surge de novo, hepatoesplenomegalia e sinais de doença consumptiva levam ao pedido de hemo grama e ao diagnóstico; as ma- nifestações clínicas e laboratoriais iniciais são facilmente confundidas 358 Renato Foilcce & cais. com as da LMC. O processo é lento, mas progressivo e irreversível; casos de longa evolução sem tratamento desenvolvem o "maior baço da patologia". A hepatoesplenomegalia causa hiperesplenismo, pres- são abdominal, hipertensão porta e ascite. A sobrevida mediana é da ordem de cinco anos. O hemograma é característico (Figura 23.1, D): anemia leucoe- ritroblástica, inicialmente normocítica, depois algo microcítica, com policromatocitose e reticulocitose moderadas, pecilocitose acentuada com grande número de dacriócitos (eritrócitos em gota), eritroblasto- se, leucocitose a expensas de toda a série mieloide, trombocitose com plaquetas gigantes e bizarras. O diagnóstico diferencial com a LMC faz-se pela disparidade entre a grande esplenomegalia e a baixa leu- cocitose, pela presença da dacriocitose, pela positividade dos neutró- filos à coloração da fosfatase alcalina, pela negatividade da pesquisa de cromossomo Ph (ou fusão BCR-ABL 1) e pela positividade JAK2. A medula fibrótica é firme, e à aspiração não se obtém material (dry tap = punção branca). A biópsia mostra riqueza celular, megacariocitose, fibrose colágena e neoangiogênese. Tanto biópsia como cito genética e biologia molecular podem ser dispensadas diante de um(a) paciente muito idoso(a), com esplenomegalia e hemograma típico. Não há tratamento eficaz. Usa-se hidroxicarbamida para con- trolar a esplenomegalia; quando resistente, a esplenectomia pode ser necessária, mas é cirurgia de alto risco e favorece aumento ulterior da hepatomegalia. A talidomida tem sido tentada para limitar a angiogê- se e a evolução; a toxicidade supera o duvidoso efeito benéfico. Nos raros pacientes abaixo de 60 anos, se houver doador HLA compatível, o TMO é indicado e pode ser curativo.
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