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A S Í N D R O M E D E D O W N R E L AT O D E U M PA I - E D U C A D O R G u g a D o r e a R E V E N D O C O N C E P Ç Õ E S E P R Á T I C A S E D U C A C I O N A I S A Vida em Sua Multiplicidade Nesse dia Internacional da Síndrome de Down comemorar o Que, Para Que e Por Que? Síndrome de Down e a Genética Deficiência e Não Doença Genérica Familiar Determinismo Genético Determinismo Biológico O Mito da Eterna Criança Padrões Históricos da Normalidade A Modernidade e a Exclusão A Sociedade Disciplinar A Genética e a Política Ódio ao Estrangeiro O Nazismo e a Eutanásia A Vitória dos Aliados e Outra Exclusão A Exclusão na Modernidade Os “Deficiente Mentais” A Educação Especial e o Modelo Clínico A Descoberta do Cromossomo 21 No Brasil Exclusão Invisível O Estigma do Diferente Discriminações Exemplo Histórico O Determinismo Geográfico O Que É Ser Igual e Diferente? Todos Somos Iguais Somos Todos Diferentes Educação Inclusiva - Tensão entre Exclusão e Inclusão Social Nascimento da Escola Inclusão e a Necessidade de Mudarmos a Escola (Para Todos) sumário parte ii parte i Possíveis Adequações na Sala de Aula Considerações Finais O Educador 03 07 10 13 14 15 16 18 15 19 20 21 22 23 23 24 25 26 27 28 30 30 31 32 33 34 34 35 37 40 50 56 58 62 3 A vida em sua Meu fi lho tem a Síndrome de Down E daí? Não é problema dele Quem continuar a enxergar o Outro, isolado em guetos identitários Em identidades corpóreas fechadas em si mesmas Corpos enlatados Não conseguirá enxergar a ninguém Continuarão jorrando galhos que não se tocam Dormindo em prateleiras fechadas Sequer tentarão olhar as diferenças pela fechadura Eu, de minha par te Prefiro olhar através do vidro Enxergar o outro lado do espelho O não -Eu em mim Consigo, assim, olhar para meu fi lho E a todos que, como o Thiago Clamam por serem Eles em sua Multiplicidade PARTE I Multiplicidade 4 Caro leitor, você deve estar imaginando porque iniciei esse e-book com essa poesia intimista e pessoal. É apenas para dizer que ele não é apenas o resultado, jamais definitivo, de anos de prática educacional e reflexões teóricas como jornalista e sociólogo. Ele é muito mais do que isso. É reflexo de minha experiência como pai e pessoa. Toda minha trajetória, profissional e pessoal, veio ao encontro de um dos momentos mais marcantes de minha vida: o nascimento do meu filho Thiago. OLÁ 5 Ele nasceu no dia 22 de fevereiro de 1997, com a Síndrome de Down, o que me direcionou não só para o dilema inclusão-exclusão, mas também e, sobretudo, para a tênue fronteira, histórica e cultural, entre a chamada normalidade e o seu contraponto, a anormalidade. Estou lançando esse e-book também para dizer que minha meta é tornar visíveis aquelas pessoas que a história e a nossa cultura ocidental tentaram e ainda tentam tornar invisíveis. Será então que grande parte da inclusão que estamos vivenciando não está recheada de vícios ou mitos do passado? 6 Não há dúvidas que não foram poucas as conquistas, sobretudo a partir da luta de movimentos de pais e educadores nos anos 90, em relação à luta contra o preconceito e pelo direito de todos estudarem no sistema regular de ensino. Ninguém questiona ainda que o Dia Internacional da Síndrome de Down, 21 de março, colocou na agenda de debates, não só a inclusão da pessoa com deficiência, mas também o problema histórico e cultural da exclusão social. No entanto, muita há que se fazer. Você não concorda? O QUE, PARA QUE E POR QUE? NESSE D IA INTERNACIONAL DA S ÍNDROME DE DOWN COMEMORAR 8 Quem conhece, sabe o quanto são atuais as narrativas contadas oralmente pelos gregos, conhecidas como mitos, lá na Grécia Antiga. Os também conhecidos como mitos eram uma forma não científica que os povos gregos buscavam explicar a realidade. Segundo a mitologia grega, Procustro obrigava a todos os viajantes, aprisionados entre Mégara e Atenas, a deitarem sobre um leito com tamanho padronizado. Aqueles que ultrapassavam a medida estabelecida tinham parte de seu corpo decepado e os que não atingiam eram violentamente esticados. Será que, mesmo em nome da inclusão, ainda estejamos reproduzindo o mito de Procustro? 9 Isso porque, além da não compreensão e mesmo resistência de parte da sociedade e do próprio poder público, há os que confundem inclusão com a necessidade de adequação, daquele que é visto negativamente como diferente, a um suposto modelo de normalidade. Ou seja, a busca para muitos é ainda o de enquadrar a pessoa na cama do Procrustro. É nesse sentido que o e-book tem como objetivo resgatar o passado para refletir sobre o presente, pensando sempre no futuro. Mas vamos com calma. Antes disso, é importante conhecer melhor o que é criação histórica e cultural e o que é realidade quando estamos falando da Síndrome de Down. Vamos juntos? SÍNDROME DE DOWN E A GENÉTICA TENDÊNCIAS CLÍNICAS 11 Não existe no Brasil uma estatística de quantos brasileiros tem a Síndrome de Down. No entanto, há uma estimativa de que uma pessoa a cada 700 nascimentos nasce com a síndrome. E quem procurar conhecer melhor as características físicas que podem ser comuns nas pessoas com essa síndrome vai encontrar que elas costumam ter olhos amendoados, prega única na palma das mãos, dedos mais curtos e a língua protusa. Vai descobrir ainda que, a maioria das vezes, os bebês nascem com hipotonia e maior flacidez muscular, o que praticamente exige estimulação precoce desde cedo, entre elas a fisioterapia e a terapia ocupacional. Muitas ainda apresentam quadros de hipotonias nas vias respiratórias e digestivas, exigindo também cuidados especializados. 12 Descobrirá ainda que aproximadamente 50% das crianças com síndrome de Down têm cardiopatia congênita, o que exige intervenção cirúrgica na maioria dos casos, além de apresentarem o que a ciência chama de redução do tônus dos órgãos fonoarticulatórios, responsável pela dificuldade para articular a fala. E que, por esse motivo, é fundamental a procura por atendimento fonoaudiológico desde cedo. Além disso, de 60% a 80% têm incidências na visão, como miopia e astigmatismo. 13 DEFICIêNCIA e NÃO DOENÇA Mas o importante a frisar é que não estamos falando de uma doença. Dizer que uma pessoa é vítima ou padece da Síndrome de Down apenas alimenta o estigma da incapacidade motora e cognitiva da pessoa. Na prática, até o conceito da palavra deficiência deveria ser debatido com maior cuidado. É possível aqui resgatar a especialista em Educação Inclusiva Rosita Edler Carvalho quando ela afirma que o conceito de deficiência, no âmbito da História, foi criado a partir do concebido como sua oposição, ou seja, um fictício modelo de normalidade, separando os seres em iguais, de um lado, e negativamente diferentes de outro. 14 GENÉTICA FAMILIAR E apesar desses e de outros sinais aparentemente comuns, o fundamental é lembrar que cada pessoa com a síndrome tem a sua carga genética familiar, apresentando também traços de seus pais e irmãos. O grande equívoco é considerar que todas as pessoas com síndrome de Down são iguais e tem as mesmas patologias. São apenas tendências e não uma carteira de identidade que as iguala. 15 DETERMINISMO GENÉTICO No campo da Sociologia, o que temos de combater aqui são os chamados determinismos. O próprio significado da palavra DETERMINISMO tem de ser debatido. O que determina o que cadaser humano é em sua essência? DETERMINISMO BIOLÓGICO No caso da Síndrome de Down, o determinismo biológico apontaria o cromossomo 21 a mais como ponto de partida e, sobretudo, de chegada. Tal definição alimenta a ideia de que todas as pessoas com a síndrome têm limites pré-definidos, jamais viverão os elementos constitutivos da adolescência e, portanto, não chegarão ao mundo adulto. 21 16 O MITO DA ETERNA CRIANÇA Muitos ainda pensam que todas elas serão “eternas crianças”. Esse é talvez o principal mito que precisa ser rompido nos dias de hoje. Isso pode explicar porque, segundo evidências apontadas pela história da medicina, a descrição dessa síndrome apareceu pela primeira vez em 1862. Foi quando o médico britânico, John Langdon Down, apresentou cientificamente o que ele denominou como doença degenerativa. Fortemente influenciado pelas teorias racistas da época, Langdon Down apontou para a possibilidade de algumas pessoas estarem retornando a uma condição racial concebida como primitiva, muito próxima à fisionomia dos Mongóis que, segundo o cientista, viviam em um “estado regressivo da evolução”. 17 Langdon Down era médico de crianças com atraso neuropsicomotor em uma clínica de tratamento em Surrey, na Inglaterra. Ao descobrir algumas características semelhantes aos mongóis, passou a chamá-los também de “idiotas mongólicas”. Segundo ele, os “mongoloides” só conseguiriam sair de sua condição de “inacabados” com um treinamento especializado. 18 PADRÕES HISTÓRICOS DE NORMALIDADE Esse exemplo serve para nos mostrar que em todos os períodos da História desenvolveram-se padrões e modelos dominantes de vida. Desde pelo menos o século XVI, um modelo de vida burguês vai se delineando no que se habituou a chamar de processo civilizatório. Nesse contexto, aqueles que não se adequassem a esse novo leito de Procustro foram classificados como degenerados de um sistema, que sempre se pautou pelas idéias de racionalidade e homogeneização. 19 Foi no período conhecido como modernidade que esse processo excludente se institucionalizou. Para que o ideal de produção em série pudesse se concretizar, com a rapidez esperada pelos novos detentores do poder, era preciso estabelecer o lugar de cada um nesse vertiginoso crescimento do capitalismo. A MODERNIDADE E A EXCLUSÃO 20 A SOCIEDADE DISCIPLINAR Pensando no filósofo Michel Foucault, foi nesse período, sobretudo entre o século XVIII e meados do XX, que práticas constantes de disciplinalização foram sendo colocadas em prática contra todos que eram rotulados de “degenerados” e “desgarrados” da “boa e coesa” sociedade capitalista. Em seu livro Vigiar e Punir, o autor descreve que instituições fechadas, entre elas a prisão, o manicômio e mesmo a escola, tinham como objetivo confinar e disciplinar pessoas consideradas inadequadas, buscando tornar seus corpos “dóceis e úteis” para o bom andamento da sociedade 21 No âmbito da política, quem utilizou essa definição, para criar hierarquias entre os seres humanos e justificar a xenofobia, foi a denominada extrema direita. Essa linha de pensamento tentou provar que a genética é o que define quem é quem em nossa sociedade. A GENÉTICA E A POLÍTICA 22 Vale aqui lembrar que, no âmbito da História Moderna, esse ódio ao estrangeiro surgiu como resposta da extrema direita ao lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, preconizada pela Revolução Francesa de 1789. A partir do pressuposto de que as pessoas são biologicamente diferentes, defendem eles, as pessoas não poderiam e não podem ter direitos iguais. O alvo da xenofobia, nesse contexto, é sempre o Outro visto como diferente em relação a uma evidência primeira e inaugural: um ser fundador: Igual x Diferente; Branco x Negro; Civilizado x Selvagem; Normal x Anormal, entre muitas outras dicotomias excludentes. Concebe “o diferente” como algo menor e inferior, o que justifica o tratamento desigual, ou seja, a xenofobia. ÓDIO AO ESTRANGEIRO 23 Essa divisão dos seres humanos entre “normais” e “anormais” chegou a seu ponto mais trágico e catastrófico no período do nazismo. Em um programa de eutanásia chamado Aktion T4, os nazistas passaram a exterminar todas as pessoas concebidas na época como “perigosas”. O NAZISMO E A EUTANÁSIA Com a derrocada do Nazismo e a vitória dos aliados, tanto na Europa, como nos EUA, começou-se a pensar na inclusão social e escolar. No entanto, ainda tendo como pano de fundo o modelo da homogeneidade e não o da heterogeneidade. A VITÓRIA DOS ALIADOS E OUTRA EXCLUSÃO 24 Até pelo menos a segunda metade do século XX, não havia sequer a distinção entre a hoje categorizada como deficiência e a doença mental. Com poucas exceções, entre elas os surdos e cegos da elite burguesa e os oriundos da nobreza, que tinham certo acesso à educação especial, todos os outros eram jogados nos chamados asilos correcionais ou em hospícios e prisões. A EXCLUSÃO NA MODERNIDADE 25 Os posteriormente rotulados como “deficientes mentais” foram concebidos, na maioria das vezes, como incapazes de aprender e de se adaptarem às exigências do desenvolvimento industrial e do mercado de trabalho, além de serem vistos muitas vezes como perturbadores da ordem social. OS “DEFICIENTES MENTAIS” 26 Esse total desprezo só começa a mudar em meados do século XIX quando a educação especial se estende à hoje chamada pessoa com deficiência intelectual. No Brasil, só no início do século XX que essa instituição começou de fato a sair do âmbito filantrópico-assistencial. Por outro lado, o modelo estabelecido passou a ser o clínico, ampliandose o estigma de que deficiência é doença, passível ou não de cura. A EDUCAÇÃO ESPECIAL E O MODELO CLÍNICO 27 Apenas em 1959, o cientista Jerome Lejeune descobriu que a Síndrome de Down é causada pela trissomia do cromossomo 21. Daí a comemoração nesse dia. Uma nova página da História estava prestes a se iniciar, porém não menos recheado de preconceitos, inclusive na conceituação da própria palavra “down”. É importante enfatizar, só para começar, que a idéia de inclusão, na história da humanidade, é bastante recente. Na Europa e nos EUA essa discussão se remete ao fim da Segunda Guerra Mundial. A DESCOBERTA DO CROMOSSOMO 21 28 No Brasil, a inclusão ganha peso com a Constituição Federal de 1988 e a assinatura de declarações internacionais, como a de Salamanca (Espanha), que prevê a inclusão escolar. Temos sim de comemorar os inquestionáveis avanços dos últimos tempos. Por outro lado, deixo aqui essa provocação, é importante enfatizar: continuaremos a exercer uma forma – muitas vezes sutil e imperceptível, de preconceito – enquanto não for quebrado o paradigma de que “eles” são diferentes de “nós” – os supostos “iguais”. Aqui podemos af irmar que essas leis iniciam um processo teórico de quebra de paradigma, mas será que quebramos mesmo o paradigma igual x diferença na prática? NO BRASIL 29 Para que a justa homenagem, que habitualmente ocorre nesse 21 de março, não se transforme em mais um enfeite no calendário das infinitas outras comemorações espalhadas pelo planeta, é necessário o rompimento do paradigma que separa as pessoas “iguais” de um lado e de outro os “diferentes”. Se não quebrarmos esse paradigma excludente, continuaremos a colocar a prática, de uma forma talvez mais branda e até invisível, o mito de Procustro. Para estarem aptos a viverem no seleto mundo da normalidade, ainda terão que se adequar a um protótipo excludente da igualdade. Nunca é demaislembrar que ainda vivemos em uma sociedade extremamente excludente e seletiva. 30 Nesse contexto, mesmo que positivemos o “diferente”, a tarefa dos que não se adequam continuará a de ser uma cópia, a mais perfeita possível, desse modo de ser e de se comportar padronizado e único. E só dessa forma se candidatar a entrar para o seleto clube dos “iguais”, podendo significar a reprodução, mesmo que de forma sutil, de um passado de exclusões. EXCLUSÃO INVISÍVEL Nesse caso, o estigma do “diferente” continuará a ser um obstáculo para que cada pessoa com a Síndrome de Down tenha sua própria singularidade, como se não houvesse diferenças entre eles. O ESTIGMA DO “DIFERENTE” 31 É o mesmo que dizer: todos os indígenas são igualmente “diferentes” do modelo ideal de sociedade, representado aqui pelo homem branco e “civilizado”. Essas e muitas outras formas de discriminação continuarão a existir se não derrubarmos mais esse muro, o que separa os seres humanos em dicotomias excludentes, como: NORMAL x ANORMAL IGUAL x DIFERENTE CIVILIZADO x SELVAGEM DISCRIMINAÇÕES 32 A Síndrome de Down, nessa perspectiva, é apenas um exemplo histórico dos riscos e das armadilhas do determinismo genético. O estigma de que eles são geneticamente inferiores, eternamente dependentes e incapazes, não passa de uma criação histórica justificada por esse modo fragmentado de separar rigidamente o ser humano em binômios excludentes, tais quais normal X anormal; igual X diferente; Civilizado X Selvagem, entre muitos outros. EXEMPLO HISTÓRICO 33 No outro lado desse complexo e polêmico quebra-cabeças, temos o determinismo geográfico, que define o ser humano e a diversidade humana a partir do ambiente físico em que ele vive. Caímos nesse caso na criação de outros estereótipos dos mais perigosos como, por exemplo, acreditar que o nordestino é mais preguiçoso, pelo simples fato de viver em uma região mais quente. O DETERMINISMO GEOGRÁFICO 34 Com toda essa complexidade, fica então a pergunta: o que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea? Como fica a frase, tão difundida pela esquerda no âmbito da Política: todos somos iguais SERÁ QUE SOMOS MESMO? A frase solta também gerou outra distorção no que muitos chamam de inclusão. Quando alguém fala “aquela pessoa é diferente” o que ele está querendo dizer? Essa pessoa é diferente em relação a quem ou a que? O QUE É SER IGUAL E DIFERENTE? 35 Afinal, somos todos diferentes, cada qual com seus limites e potencialidades, além de iguais em direitos, mesmo que essa lei ainda esteja apenas no papel. Pensando de outra maneira, portanto, para que todos possam se desenvolver e a aprender de forma significativa, cada um no seu tempo, temos que tratar as pessoas de uma forma diferente. E isso independe da pessoa ter ou não a Síndrome de Down, ou outra das rotuladas como deficiência. SOMOS TODOS DIFERENTES Encerro a primeira parte desse e-book, defendendo a ideia de que para sermos realmente inclusivos temos que romper com o dualismo excludente IGUAL x DIFERENTE. A EDUCAÇÃO INCLUSIVA E A S ÍNDROME DE DOWN: INCLUIR AONDE? 37 EDUCAÇÃO INCLUSIVA “Somente na medida em que a história serve à vida queremos servi - la” Friedrich Nietzsche PARTE II TENSÃO ENTRE EXCLUSÃO E INCLUSÃO SOCIAL 38 Agora convido vocês a embarcarem no universo da Síndrome de Down e da chamada Educação Inclusiva. Sempre quando alguém coloca essa questão em pauta, a primeira pergunta que me vem à mente é a seguinte: DE QUE ESCOLA ESTAMOS FALANDO? QUAL É O FORMATO DE ESCOLA QUE ESTAMOS TENTANDO INCLUIR? QUAL É REALIDADE DE NOSSA ESCOLA HOJE? A meu ver, o debate em relação a essa questão impõe que voltemos um pouco no tempo. Segundo o ainda atual pedagogo brasileiro, Paulo Freire, falar sobre o passado é importante para podermos refletir no aqui e agora reiterando sempre que podemos mudar os rumos do futuro próximo. 40 Com raras e instigantes exceções, a escola, do jeito que ela ainda existe hoje, foi criada entre os séculos XVIII e XIX. Não querendo me estender muito sobre esse tema, vem logo outra indagação: Porque esse sistema de ensino foi criado? A resposta não é simples, mas o objetivo foi o de produzir pessoas em série para se tornarem produtoras e consumidoras no sistema que estava emergindo na época: o capitalismo. Daí, caro leitor, as pessoas catalogadas como incapazes e improdutivas foram alijadas dessa escola que tinha como intenção, já nos revelou Foucault, criar “corpos dóceis e úteis”. E o que é pior. No início, não havia opção nenhuma para elas. Só depois, nasceu a chamada Escola Especial. NASCIMENTO DA ESCOLA 41 Pensemos um pouco no Brasil, sobretudo na escola pública. Histórica e sociologicamente falando, até a década de 60, já estamos no século XX, a grande maioria das pessoas vivia no campo. Entre esse período e a década de 80, houve uma surpreendente inversão desse número com o intitulado êxodo rural, ou seja, as grandes cidades passaram a ser moradia, a maioria precária, da maior parte da população. Mas qual é a ligação desse fenômeno, que ocorreu durante a ditadura militar no Brasil, com nosso tema? Antes, quem estudava na escola pública era uma elite que passava as férias na Europa. Da década de 80 em diante, a escola pública foi tendo que crescer para receber as pessoas que estavam chegando do campo até que, nos anos 90, começou-se o discurso de que o ensino deveria ser para todos. 42 Pois bem, não muito tempo depois (lá pelo meio dos anos 90), veio o debate sobre a inclusão da Pessoa com Deficiência nessa mesma rede de ensino. Na prática então foram duas inclusões praticamente simultâneas: a dos moradores do campo e a das também chamadas hoje como pessoas com necessidades educacionais especiais. Até a década de 90, no Brasil, o debate e certa prática de inserção das pessoas com deficiência e/ou dificuldade de aprendizagem no sistema regular de ensino girou em torno do que pode ser chamado hoje de inclusão adequativa. A meta foi a de focar o processo de inclusão única e exclusivamente no intitulado “aluno de inclusão”, dando destaque ao diagnóstico. 43 Sobretudo desde o final dos anos 90, o discurso inclusivo passou a cobrar da escola a tarefa de criar as condições necessárias para que a inclusão realmente se efetive. O que observamos, no entanto, na grande maioria das escolas, foi a tentativa de realmente colocar em prática a adequação a um modelo de escola pronto e acabado. Mesmo considerando que houve avanços significativos durante todos esses anos, é importante destacar que ainda enfrentamos limites substanciais e graves em relação à constituição de uma escola verdadeiramente inclusiva e democrática, que venha a responder de fato todas as singularidades e necessidades básicas inerentes a cada ser humano, independente dele ser rotulado como pessoa com deficiência. 44 Enquanto isso, pensemos juntos leitor, a maioria das escolas continuam a tentar ensinar do mesmo jeito que fazia para a elite dos anos 60, desconsiderando por completo o novo público que estava batendo em sua porta. No campo da educação, a escola continuou sendo dividida em séries e compartimentos fechados, além das intituladas disciplinas, no qual todos os estudantes devem se adequar de uma forma regiamente homogênea, restando a exclusão e a cultura do fracasso para os que não acompanham. A maioria das escolas, habilmente escondidas no manto obscuro de um discurso inclusivo, acaba promovendo, na melhordas hipóteses, o que pode ser denominado como inclusão seletiva. 45 Na maioria das vezes, o formato da sala de aula continua o mesmo. Alunos enfileirados, cada um olhando a nuca do outro, se resumindo a ouvir e anotar todo um conteúdo imposto de cima para baixo, sem levar em consideração a história de vida, a realidade social e econômica e as particularidades de cada um de seus educandos. A própria palavra aluno, que significa “sem luz”, sequer foi discutida. Uma nova pergunta vem necessariamente à tona: como universalizar o ensino em uma escola que não foi criada para todos? 46 O resultado parece estar claro para todos: a exclusão de todos aqueles que, seja por qual motivo for, não conseguem acompanhar o ritmo frenético das informações transmitidas pelo professor, em que a quantidade continua a ser mais importante do que a qualidade. É o que o Paulo Freire chamou de Educação Bancária. O especialista em alfabetização e mentor na Escola da Ponte em Portugal, José Pacheco, não se cansa de falar: provas como a do ENEM servem apenas para medir a memória de curto prazo dos alunos e não o que eles realmente aprenderam, o que ficou de verdadeiramente significativo. 47 Prezado leitor, espero que você tenha acompanhado meu raciocínio. O que está em jogo aqui são duas concepções de inclusão. Aquela que eu gosto de chamar de adequativa, pressupondo que o equivocadamente chamado “aluno de inclusão” tem que se adaptar a um modelo de ensino visto como pronto e acabado. É que a escola tradicional foi criada, pelo modelo dominante, para lidar com uma fictícia homogeneidade e não com a heterogeneidade, com as singularidades inerentes a cada ser humano. O capitalismo, por sua vez, tende a classificar cada pessoa para dizer qual é seu papel hierárquico em seus tentáculos, selecionando quem pode ou não ser integrado a ele. 48 Nesse caso, podemos evocar a letra do músico Nando Reis, cantada magistralmente por ele e pelo Arnaldo Antunes: “EU NÃO CAIBO MAIS NAS ROUPAS QUE EU CABIA... EU NÃO VOU ME ADAPTAR, NÃO VOU ME ADAPTAR” 49 Historicamente falando, a grande preocupação do sistema regular de ensino sempre foi com o ensino e não com o aprendizado propriamente dito, significando dizer que o papel do professor era, e ainda é em muitos sentidos, o de apenas transmitir informações contidas em um currículo imposto de cima para baixo e aplicado de forma homogênea a todos os seus alunos indiscriminadamente. Pensando na Filosofia da Diferença, significa dizer que o Outro, nesse contexto, é obrigado a se adequar a um modelo ideal de ensino, ou seja, a um currículo predeterminado e imposto de fora para dentro. Trata-se aqui tão somente de mudar o lugar da exclusão, em nome de um discurso inclusivo que não pressupõe a necessidade de transformar esse modelo de escola ainda hegemônico e dominante. I N C L U S Ã O E A N E C E S S I D A D E D E M U D A R M O S A E S C O L A ( P A R A T O D O S ) O que seria então uma legítima inclusão para aqueles que não conseguem acompanhar a denominada escola tradicional. 51 A outra concepção de inclusão é a que a intitulada aula não seja mais tecnicista, conteudista e muito menos exaustivamente expositiva, sem a participação efetiva do aluno na construção de seu próprio processo de aprendizagem. As chamadas disciplinas, que deveriam ser na verdade áreas do conhecimento, não podem mais ser expostas mecanicamente, sem a preocupação com significado delas para a realidade do aluno. Com isso, cada educando, com sua especificidade e condição, vai traçando seu roteiro de estudo específico, levando em conta interesses, desejos, necessidades e mesmo dificuldades. E isso, caro leitor, vale para todos, incluindo os que têm Síndrome de Down ou outra das rotuladas como deficiências. 52 Segundo Paulo Freire, incluir não é colocar alguém, que está supostamente “à margem de”, para dentro de uma sociedade aparentemente estática e que não necessita de transformação. Temos, ao contrário, que aprender a olhar as diferenças, transformando nossos próprios preconceitos e desconstruindo uma cultura histórica recheada de estigmatizações. Trata-se de elaborar novas e diferenciadas estratégias de ensino- aprendizado, capazes de atingir e fortalecer o potencial de cada estudante em sua singularidade sem, no entanto, nos afastarmos do coletivo. 53 A inclusão social e escolar, sob essa ótica, significa um profundo reordenamento do que é viver em sociedade, além de desconstruir a ideia de que inclusão não é destinada apenas às diagnosticadas como pessoas com deficiência e sim reestruturar as práticas educativas homogeneizantes de um modelo de escola que não foi criada para ser inclusiva. Dito tudo isso, podemos sim criar estratégias de ensino que vão nos ajudar a pensar e a ampliar ao máximo a aprendizagem dos que apenas nasceram com o Cromossomo 21 a mais e nada mais. Como ampliar ao máximo o aprendizado das pessoas com Síndrome de Down ou mesmo das chamadas pes- soas com def iciência? 54 É preciso, antes de tudo, exercitar o princípio da escuta, do que dizem e pensam os alunos, além de respeitar a diversidade humana e a multiplicidade de interesses, desejos e necessidades. Em linhas gerais, é importante que o professor observe e registre, com o apoio de especialistas caso necessário, a evolução do processo de aprendizado do “aluno com dificuldade de aprendizagem” ou “com deficiência”, enfatizando que o educador deve ter um olhar capaz de apreender e descrever os seus avanços e as dificuldades, traçando caminhos alternativos em seu planejamento pedagógico, considerando sempre as especificidades do estudante ou grupo de estudantes. 55 • Elaborar propostas pedagógicas baseadas na interação com e entre os alunos, adotando metodologias motivadoras e avaliando os educandos numa abordagem processual e emancipadora. • Detectar diferentes ritmos de aprendizagem e singulares formas de comunicação, desenvolvendo ações inclusivas para toda a escola. É importante aqui não subestimar o aluno, desencorajando-o e alimentando o estigma da incapacidade. • Buscar criar comunidades mais acolhedoras e participativas, investindo na possibilidade de todos perceberem o valor da diversidade e a importância do respeito às diferenças, sejam elas quais forem. Após essa explanação inicial, segue agora alguns tópicos que podem ser inseridos inclusive nos Projetos Políticos Pedagógicos (PPPs) das escolas: 56 • Detectar quais as necessidades de modificações da organização espacial da sala de aula para auxiliar o desenvolvimento cognitivo e pessoal do estudantes: Adequar as características físicas e espaciais da classe. • Mudanças na disposição das carteiras como, por exemplo, agrupá-las em círculo e diminuindo o número de estudantes por classe. • Modificar o agrupamento dos estudantes e as condições gerais da sala para favorecer o aprendizado do aluno e sua interatividade com os demais estudantes. POSSÍVEIS ADEQUAÇÕES nA SALA DE AULA 57 • Procurar estabelecer uma pedagogia mais colaborativa e menos competitiva, criando grupos de aprendizagem e de pesquisas heterogêneos. • Conectar-se efetivamente com os pais ou responsáveis. • Não pensar que para ser incluído e aprender, o aluno tem que superar a sua deficiência. • Colocar-se no lugar do estudante, não só buscando afetá-lo, mas também sendo afetado por ele. POSSÍVEIS ADEQUAÇÕES nA SALA DE AULA 58 É importante, nessa perspectiva, desconstruir a histórica fragmentação linear e extremamente imobilistaque subdividiu o ensino em séries estanques e intransponíveis, como se fossem condomínios fechados e isolados entre si. Se estivermos realmente interessados em pensar a inclusão escolar, é preciso resistir ao que é exigido habitualmente como expectativa de aprendizado pelas escolas, como sendo um único possível a ser alcançado para todos os seus alunos. 59 Para aqueles que não chegaram a um mesmo possível almejado, consideram os que defendem a inclusão adequativa, basta utilizar o conhecido reforço, tendo como objetivo a aproximação cada vez maior entre o pejorativamente estigmatizado como aluno de inclusão e o que é esperado não só para ele, mas para todos, de uma forma homogênea e regiamente evolucionista. É nesse contexto que se torna urgente começarmos a desconstruir certo conceito de inclusão. Não se trata de pensarmos em uma sociedade estática e parada, na qual os que estão ou estavam supostamente fora devem se ajustar. 60 O foco então não deve ser mais as chamadas pessoas com deficiência ou com alguma dificuldade de aprendizagem e sim nós, os seres humanos, cada um com sua diferenciação, seus limites e potencialidades. O educador, nesse sentido, deve sempre estar aberto a reinventar a si mesmo permitindo sempre ser afetado pela diferença, não preconizando mais o seu aluno como uma página em branco pronta ou não a armazenar envelopes conteudistas, prontos e acabados, sem nenhum vínculo com o contexto social no qual ele está inserido. Incluir verdadeiramente, ao contrário, não é destruir as diferenças em nome de uma eventual igualdade/normalidade. É se manter na diferença trocando com outras diferenças. É i n ve s t i r n a p o ss i b i l i d a d e d e q u e o a l u n o p o d e c h e g a r a s e u m á x i m o n a q u e l e m o m e n t o . E Q U E E S S E M Á X I M O N U N C A É O D E F I N I T I V O ! 62 Guga Dorea é graduado em Comunicação Social pelas Faculdades Integradas Alcantara Machado (FIAM-SP) e em ciências Sociais pela PUC-SP, além de Mestrado e Doutorado em Sociologia e Ciências Políticas também pela PUC. Atualmente é professor dos cursos de pós-graduação da UNISED, além articulista e educador nas áreas de Inclusão Social e Educação. Coloca em prática também o projeto, de sua autoria, Conectando Diferenças - oficina de escrita para Pessoas com Deficiência no Instituto Casa do Todos e no Morungaba, além de editar o Jornal Todos na Diferença, com textos elaborados pelos próprios participantes da oficina. Frequenta ainda o Grupo de Estudo sobre Filosofia da Diferença, pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP. O EDUCADOR O EDUCADOR Guga Dorea é graduado em Comunicação Social pelas Faculdades Integradas Alcantara Machado (FIAM-SP) e em ciências Sociais pela PUC-SP, além de Mestrado e Doutorado em Sociologia e Ciências Políticas também pela PUC. Atualmente é professor dos cursos de pós-graduação da UNISED, além articulista e educador nas áreas de Inclusão Social e Educação. Coloca em prática também o projeto, de sua autoria, Conectando Diferenças - oficina de escrita para Pessoas com Deficiência no Instituto Casa do Todos e no Morungaba, além de editar o Jornal Todos na Diferença, com textos elaborados pelos próprios participantes da oficina. Frequenta ainda o Grupo de Estudo sobre Filosofia da Diferença, pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) contato@unised.com.br www.unised.com.br (11) 2084-8433
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