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O Enfermeiro - Machado de Assis Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado. Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada. Não tarda o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui. Não me peça também o império do Grão-Mogol, nem a fotografia dos Macabeus; peça, porém, os meus sapatos de defunto e não os dou a ninguém mais. Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava os estudos de teologia de um padre de Niterói, antigo companheiro de colégio, que assim me dava, delicadamente, casa, cama e mesa. Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele uma carta de um vigário de certa vila do interior, perguntando se conhecia pessoa entendida, discreta e paciente, que quisesse ir servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, mediante um bom ordenado. O padre falou- me, aceitei com ambas as mãos, estava já enfarado de copiar citações latinas e fórmulas eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um irmão, e segui para a vila. Chegando à vila, tive más notícias do coronel. Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. Respondi que não tinha medo de gente sã, menos ainda de doentes; e depois de entenderme com o vigário, que me confirmou as notícias recebidas, e me recomendou mansidão e caridade, segui para a residência do coronel. Achei-o na varanda da casa estirado numa cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. Começou por não dizer nada; pôs em mim dous olhos de gato que observa; depois, uma espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum dos enfermeiros que tivera, prestava para nada, dormiam muito, eram respondões e andavam ao faro das escravas; dous eram até gatunos! — Você é gatuno? — Não, senhor. Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse- lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. Valongo? achou que não era nome de gente, e propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao que respondi que estaria pelo que fosse de seu agrado. Contolhe esta particularidade, não só porque me parece pintá-lo bem, como porque a minha resposta deu de mim a melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o declarou ao vigário, acrescentando que eu era o mais simpático dos enfermeiros que tivera. A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de sete dias. No oitavo dia, entrei na vida dos meus predecessores, uma vida de cão, não dormir, não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, às vezes, rir delas, com um ar de resignação e conformidade; reparei que era um modo de lhe fazer corte. Tudo impertinências de moléstia e do temperamento. A moléstia era um rosário delas, padecia de aneurisma, de reumatismo e de três ou quatro afecções menores. Tinha perto de sessenta anos, e desde os cinco toda a gente lhe fazia a vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. No fim de três meses estava farto de o aturar; determinei vir embora; só esperei ocasião. Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não desse a tempo uma fomentação, pegou da bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não era preciso mais; despedi-me imediatamente, e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a pena zangar por uma rabugice de velho. Instou tanto que fiquei. — Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele à noite; não posso viver muito tempo. Estou aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu enterro, Procópio; não o dispenso por nada. Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de noite para lhe puxar as pernas. Você crê em almas de outro mundo, Procópio? — Qual o quê! — E por que é que não há de crer, seu burro? redarguiu vivamente, arregalando os olhos. Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu- se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui calejando, e não dava mais por nada; era burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia mais gente que recolhesse uma parte desses nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho que morreu tísico, em fins de maio ou princípios de julho, em Minas. Os amigos iam por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; era eu sozinho para um dicionário inteiro. Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo vigário, ia ficando. Não só as relações foram-se tornando melindrosas, mas eu estava ansioso por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos não é que havia de acostumar-me à reclusão constante, ao pé de um doente bravio, no interior. Para avaliar o meu isolamento, basta saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma notícia mais importante que levavam ao coronel, eu nada sabia do resto do mundo. Entendi, portanto, voltar para a Corte, na primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma confissão geral) que, nada gastando e tendo guardado integralmente os ordenados, estava ansioso por vir dissipá-los aqui. Era provável que a ocasião aparecesse. O coronel estava pior, fez testamento, descompondo o tabelião, quase tanto como a mim. O trato era mais duro, os breves lapsos de sossego e brandura faziam-se raros. Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão. No princípio de agosto resolvi definitivamente sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, pediram-me que ficasse algum tempo mais. Concedilhes um mês; no fim de um mês viria embora, qualquer que fosse o estado do doente. O vigário tratou de procurar-me substituto. Vai ver o que aconteceu. Na noite de vinte e quatro de agosto, o coronel teve um acesso de raiva, atropelou- me, disse-me muito nome cru, ameaçoume de um tiro, e acabou atirando-me um prato de mingau, que achou frio, o prato foi cair na parede onde se fez em pedaços. — Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele. Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas passou pelo sono. Enquanto ele dormia, saquei um livro do bolso, um velho romance de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus- me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena distância da cama; tinha de acordá-lo à meia- noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da segunda página adormeci também. Acordei aos gritos do coronel, e levantei-me estremunhado. Ele, que parecia delirar, continuou nos mesmos gritos, e acabou por lançar mão da moringa e arremessá-la contra mim. Não tive tempo de desviar-me; a moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente,pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e esganei-o. Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. Parecia-me que as paredes tinham vultos; escutava umas vozes surdas. Os gritos da vítima, antes da luta e durante a luta, continuavam a repercutir dentro de mim, e o ar, para onde quer que me voltasse, aparecia recortado de convulsões. Não creia que esteja fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! assassino! Tudo o mais estava calado. O mesmo som do relógio, lento, igual e seco, sublinhava o silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do quarto na esperança de ouvir um gemido, uma palavra, uma injúria, qualquer coisa que significasse a vida, e me restituísse a paz à consciência. Estaria pronto a apanhar das mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa na sala, sentava-me, punha as mãos na cabeça; arrependia-me de ter vindo. — "Maldita a hora em que aceitei semelhante coisa!" exclamava. E descompunha o padre de Niterói, o médico, o vigário, os que me arranjaram um lugar, e os que me pediram para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à cumplicidade dos outros homens. Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri uma das janelas, para escutar o som do vento, se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, as estrelas fulguravam, com a indiferença de pessoas que tiram o chapéu a um enterro que passa, e continuam a falar de outra coisa. Encostei-me ali por algum tempo, fitando a noite, deixando-me ir a uma recapitulação da vida, a ver se descansava da dor presente. Só então posso dizer que pensei claramente no castigo. Achei-me com um crime às costas e vi a punição certa. Aqui o temor complicou o remorso. Senti que os cabelos me ficavam de pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de pessoas, no terreiro espiando, com um ar de emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no ar; era uma alucinação. Antes do alvorecer curei a contusão da face. Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, não cheguei logo à cama. Tremiam-me as pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar na fuga; mas era confessar o crime, e, ao contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os olhos arregalados e a boca aberta, como deixando passar a eterna palavra dos séculos: "Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto a camisa e cheguei ao queixo a ponta do lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse- lhe que o coronel amanhecera morto; mandei recado ao vigário e ao médico. A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a pretexto de ter meu irmão doente, e, na verdade, recebera carta dele, alguns dias antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas adverti que a retirada imediata poderia fazer despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo amortalhei o cadáver, com o auxílio de um preto velho e míope. Não saí da sala mortuária; tinha medo de que descobrissem alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências: os passos de ladrão com que entravam na sala, os cochichos, as cerimônias e as rezas do vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade: — Coitado do Procópio! Apesar do que padeceu, está muito sentido. Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da meia escuridão da casa para a claridade da rua deu-me grande abalo; receei que fosse então impossível ocultar o crime. Meti os olhos no chão, e fui andando. Quando tudo acabou, respirei. Estava em paz com os homens. Não o estava com a consciência, e as primeiras noites foram naturalmente de desassossego e aflição. Não é preciso dizer que vim logo para o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, embora longe do crime; não ria, falava pouco, mal comia, tinha alucinações, pesadelos... — Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. Não é caso para tanta melancolia. E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, impertinente, é verdade, mas um coração de ouro. E elogiando, convencia-me também, ao menos por alguns instantes. Outro fenômeno interessante, e que talvez lhe possa aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei dizer uma missa pelo eterno descanso do coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi- la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por intenção do finado. Não queria embair os homens; a prova é que fui só. Para completar este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale n’alma!" E contava dele algumas anedotas alegres, rompantes engraçados... Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, dizendo-me que fora achado o testamento do coronel, e que eu era o herdeiro universal. Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos leram a mesma cousa. Estava escrito; era eu o herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor que fosse uma cilada; mas adverti logo que havia outros meios de capturar-me, se o crime estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a probidade do vigário, que não se prestaria a ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, muitas vezes; lá estava a notícia. — Quanto tinha ele? perguntava-me meu irmão. — Não sei, mas era rico. — Realmente, provou que era teu amigo. — Era... Era... Assim por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. Parecia-me odioso receber um vintém do tal espólio; era pior do que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso três dias, e esbarrava sempre na consideração de que a recusa podia fazer desconfiar alguma cousa. No fim dos três dias, assentei num meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas. Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à proporção que me ia aproximando, recordava o triste sucesso; as cercanias da vila tinham um aspecto de tragédia, e a sombra do coronel parecia-me surgir de cada lado. A imaginação ia reproduzindo as palavras, os gestos, toda a noite horrenda do crime... Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me nessa idéia. E balanceava os agravos, punha no ativo as pancadas, as injúrias... Não era culpa do coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o tornava assim rabugento e até mau... Mas eu perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade daquela noite... Considerei também que o coronel não podia viver muito mais; estava por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até que menos. Jánão era vida, era um molambo de vida, se isto mesmo se podia chamar ao padecer contínuo do pobre homem... E quem sabe mesmo se a luta e a morte não foram apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais provável; não foi outra cousa. Fixeime também nessa idéia... Perto da vila apertou- se-me o coração, e quis recuar; mas dominei- me e fui. Receberam-me com parabéns. O vigário disse-me as disposições do testamento, os legados pios, e de caminho ia louvando a mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao coronel, que, apesar de áspero e duro, soube ser grato. — Sem dúvida, dizia eu olhando para outra parte. Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a dedicação e a paciência. As primeiras necessidades do inventário detiveram-me algum tempo na vila. Constituí advogado; as cousas correram placidamente. Durante esse tempo, falava muita vez do coronel. Vinham contar-me cousas dele, mas sem a moderação do padre; eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era austero... — Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o diabo. E referiam-me casos duros, ações perversas, algumas extraordinárias. Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo cheio de curiosidade; depois, entrou-me no coração um singular prazer, que eu sinceramente buscava expelir. E defendia o coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às rivalidades locais; confessava, sim, que era um pouco violento... Um pouco? Era uma cobra assanhada, interrompia-me o barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o escrivão, todos diziam a mesma coisa; e vinham outras anedotas, vinha toda a vida do defunto. Os velhos lembravam-se das crueldades dele, em menino. E o prazer íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de mim, espécie de tênia moral, que por mais que a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo e ia ficando. As obrigações do inventário distraíram-me; e por outro lado a opinião da vila era tão contrária ao coronel, que a vista dos lugares foi perdendo para mim a feição tenebrosa que a princípio achei neles. Entrando na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribuí-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação. Restringi o plano primitivo: distribuí alguma cousa aos pobres, dei à matriz da vila uns paramentos novos, fiz uma esmola à Santa Casa da Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous contos. Mandei também levantar um túmulo ao coronel, todo de mármore, obra de um napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi morrer, creio eu, no Paraguai. Os anos foram andando, a memória tornou-se cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no coronel, mas sem os terrores dos primeiros dias. Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo. Pode ser que eu, involuntariamente, exagerasse a descrição que então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia morrer, ainda que não fosse aquela fatalidade... Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses apontamentos valem alguma coisa, pague-me também com um túmulo de mármore, ao qual dará por epitáfio esta emenda que faço aqui ao divino sermão da montanha: "Bem aventurados os que possuem, porque eles serão consolados." Análise O conto, O enfermeiro é narrado em 1º pessoa pelo protagonista-narrador Procópio. Ele é convidado a cuidar de um velho enfermo, o coronel Felisberto, homem muito rude, o qual acaba sendo morto "acidentalmente" por Procópio. Essa obra literária começa com Procópio, já velho e à beira da morte, narrando a sua história sobre os meses infernais que passara ao lado do coronel, como se pode verificar no trecho que segue: "Parece-lhe que o que se deu comigo em 1860, pode entrar numa página de livro? Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha morte. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado. Olhe, eu podia mesmo contar-lhes minha vida inteira, em que há outras cousas interessantes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à lamparina de madrugada (...) Não tarde o sol do outro dia, um sol dos diabos, impenetrável como a vida. Pediu-me um documento humano, ei-lo aqui". O Enfermeiro é um típico relato machadiano. Humano, porém irônico e distanciado, trabalha com a imperfeição ética das personagens que são, claro, representantes típicos da espécie. O ceticismo de Machado levava-o a avaliar objetivamente a condição moral de seus semelhantes. Podemos notar que, após a morte do coronel Felisberto Procópio sentia-se culpado, mas com o passar do tempo a culpa foi cada vez ficando menor aos seus olhos. O homem é mais uma vez retratado por Machado como um ser corrompido, egoísta, ingrato, oportunista e preso às forças malignas. Tais características podem ser observadas tanto em Procópio quanto no Coronel Felisberto. Esse pessimismo Machadiano em retratar a humanidade evidencia uma certa "má vontade" do autor em julgar o ser humano e a vida de uma maneira geral. Isto pode ser bem percebido no trecho abaixo: "(...) Era homem insuportável, estúrdio, exigente, ninguém o aturava, nem os próprios amigos. Gastava mais enfermeiros que remédios. A dous deles quebrou a cara. (...) Se fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a humilhação dos outros. (...) Já por esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de piedade que me fazia esquecer os excessos do doente; trazia dentro de mim um fermento de ódio e aversão". Outro dado importante a destacar é a tematização da morte, a qual está vinculada, ao mesmo tempo, à decomposição moral – se julgarmos que foi o enfermeiro o causador de tal fato – e a decomposição carnal – se considerarmos a doença como causadora do falecimento do coronel. Esse teor dramático dado ao contemporâneo está relacionado à tragédia, a qual Machado acreditava ser o tema central da vida. Para ele, os melhores momentos da arte concentram-se na visão trágica da existência humana, como se pode observar nessa passagem: "Quando percebi que o doente expirava, recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá- lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e durante duas horas não ousei voltar ao quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que passei, durante esse tempo. Era um atordoamento, um delírio vago e estúpido. (...) digo-lhe que eu ouvia distintamente umas vozes que me bradavam: assassino! Assassino!". Durante a leitura, há uma mudança gigantesca não apenas nos perfis psicológicos das personagens como também em nossas próprias convicções iniciais. O enfermeiro passa de vítima da rudeza do Coronel à responsável pela morte do mesmo. O Coronel, de vilão e ingrato passa a ser visto como uma pessoa com um imenso sentimento de gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda a sua fortuna. Logo, há um deslocamento de um esquema maniqueísta, onde se acredita que existam pessoas boas e pessoas ruins. Machado nos quer mostrar, portanto, que ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa parecer. Os trechos que seguem ilustram bem esse fato, mostrando, na figura do enfermeiro, o modo como Machado representava esse conflito interior do ser humano entre o bem e o mal: "Queria ver no rosto dos outros se desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. Tudo me dava impaciências (...) Vindo a hora, fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tãotrêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, disse a outra com piedade: - Coitado do Procópio! apesar do que padeceu está muito sentido. Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver tudo acabado. (...) Assim, por uma ironia da sorte, os bens do coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. (...) No fim dos três dias, assentei num meio- termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos bocados e às escondidas. Não era só escrúpulo; era também o modo de resgatar o crime por um ato de virtude; pareceu-me que ficava assim de contas saldas (...) na posse da herança, converti-a em títulos e dinheiro. Eram então passados muitos meses, e a idéia de distribui-la toda em esmolas e donativos pios não me dominou como da primeira vez; achei mesmo que era afetação (...)". Ao término desse conto, algumas dúvidas insistem em nos intrigar: Qual seria a real intenção de Procópio ao aceitar o serviço de enfermeiro? Será que ele foi o responsável pela morte de Felisberto, ou esta foi fruto da enfermidade? E quanto ao Coronel, será que ele era tão mau quanto parecia? Será que Felisberto não deixou a herança para o enfermeiro somente porque não tinha para quem deixar, ou até mesmo por simples arrependimento? E Quanto ao relato inicial de Procópio, este não tinha um tom de arrependimento, como se ele dissesse "Perdoe o meu pecado" - no caso, a morte do Coronel? Observe essa passagem, extraída do relato inicial do enfermeiro: "Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a rosas (...)". Será isto uma possível confissão de Procópio? Observe outra passagem, extraída dos momentos finais do texto: "Todos os médicos a quem contei as moléstias dele, foram acordes em que a morte era certa, e só se admiravam de ter resistido tanto tempo". Nesse trecho residiria a constatação da inocência de Procópio, ou seria apenas um álibi que ele se utilizava para provar sua inocência? Enfim, tais questionamentos são frutos de uma técnica Machadiana, a qual se baseia em instaurar as dúvidas, ou seja, é a arte da sugestão, onde se espera que o leitor seja co-participante do texto, completando-o. Concluímos, com isso, que Procópio –o enfermeiro- tinha uma aspecto de submissão ao coronel. Já o coronel Felisberto utilizava-se de autoritarismo. Procópio faz um flash-back dos dias em que trabalhou como enfermeiro, fato que acontecera entre os anos de 1859 e 1860. E como todo o conto Machadiano, ele coloca na mão do leitor a tarefa de julgar, decidir, como lhe bem entender, fato que se dá no trecho citado a seguir: "... perdoe-me o que lhe parecer mau.” O caso da vara, de Machado de Assis: a sutileza na construção das personagens Em O caso da vara, as sutilezas das relações interpessoais permeiam e dão o tom da estória. Como em todas as outras obras de Machado, o enredo do conto é simples; os pequenos detalhes é que são importantes e reveladores. Aliás, em toda sua obra, Machado faz emergir a natureza humana, o caráter de cada personagem, por meio de fatos cotidianos, aparentemente comezinhos. Machado parece ter elaborado tipos psicológicos, uma tipologia de caracteres, dentre os quais parece escolher personas que são testadas em situações-limite, numa espécie de análise combinatória, ou de uma matriz, em que as bases são compostas pelo caráter dos personagens e pelos episódios que exigem uma tomada de decisão. O resultado dessas combinações sempre revela as razões egocêntricas que movem cada um, como se uma pessoa somente se constituísse nas interações, na relação com a outra pessoa. Como em Dom Casmurro, nesse conto há a rejeição do seminário por parte de Damião, o protagonista, que tem interesse que seu pai seja convencido de que ele, Damião, não tem vocação para ser padre. Dessa forma, para atingir seu objetivo, se livrar definitivamente do seminário, Damião envolve três pessoas em sua trama, uma exercendo poder sobre a outra em benefício dele. Ao fugir do seminário, em razão da impossibilidade de retornar à sua casa, onde estava o pai que o devolveria imediatamente ao seminário, Damião começa a “inventariar” mentalmente quem poderia acolhê-lo até o pai ser persuadido a aceitar sua desistência do seminário. Pensa em seu padrinho, João Carneiro, para dissuadir o pai da ideia de mantê-lo no seminário, mas como o padrinho é um “moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil”, ele decide convencer uma amiga de seu padrinho, a viúva Sinhá Rita, a interceder em seu favor, persuadindo o padrinho a falar com o seu pai. À primeira vista, o conto parece tratar da fuga de Damião do seminário e de suas articulações e manipulações para se safar da vida religiosa. Sua condição é caracterizada pelos adjetivos “espantado, medroso, fugitivo” e o leitor realmente torce para que ele seja ajudado. Assim, nessa primeira parte do conto, o protagonista parece ser a vítima de um destino traçado por razões alheias à sua vontade. No entanto, já nesse começo, Machado apresenta indícios de que Damião não é a vítima que parece. Sendo João Carneiro compadre de seu pai, parece ser ele a pessoa mais adequada para uma aproximação física e amistosa do pai de Damião. Contudo, como o padrinho, movido por si só, não agiria em favor de Damião, rapidamente, o seminarista escolhe Sinhá Rita, uma “amiga querida” do padrinho; essa escolha se deu porque ele “tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar” Ainda assim, embora não pareça ser uma vítima “tão vitimizada”, o seminarista continua a ser o desvalido do conto. Até surgir Lucrécia. Nesse momento, o seminário passa a ser um fator secundário e entra em evidência outro episódio do qual o seminarista, embora esteja na cena principal, não pode ser considerado o herói da estória. Ao aguardar que o padrinho fosse contatado para em seguida interceder em seu favor, Damião se mantém na casa de Sinhá Rita, onde conta anedotas, causando o riso da viúva e das crias dela, que faziam trabalhos de bordado. Entre as crias, há Lucrécia, com onze anos, que por rir das anedotas de Damião, o que acarretaria o atraso da tarefa, é ameaçada, com uma vara, por Sinhá Rita. Ao perceber a situação, Damião tem pena da negrinha e promete para si mesmo que, caso ela não terminasse a tarefa, ele a apadrinharia. No entanto, na hora de recolher os trabalhos das crias, Sinhá Rita percebe que apenas Lucrécia não havia terminado sua tarefa. Furiosa, a viúva agride a negrinha, que foge para dentro, chorando e pedindo perdão. Sinhá Rita, irredutível, agarra a negrinha pela orelha e pede a vara a Damião. O seminarista fica indeciso por alguns instantes, escuta as súplicas que a negrinha lhe faz e lembra-se que tinha jurado a apadrinhá-la, já que foi por causa dele que ela atrasara o trabalho. Pressionado, tanto pelo pedido da viúva quanto pelas súplicas de Lucrécia, Damião entrega a vara a Sinhá Rita. E o conto termina. Nessa passagem, em que há a inserção da personagem Lucrécia, o conto parece tomar outra direção. Até então, Damião era o desvalido da narrativa. No entanto, a questão do seminário e o impasse sobre a cadeia de influências (Damião que convence Sinhá Rita, que convence João Carneiro, que deve tentar convencer o pai de Damião) se torna secundária. Os personagens principais passam a apresentar características que antes não apareciam, e as que já apareciam se tornam inexpressivas. Sinhá Rita, que se destacava pela vaidade, mostra-se implacável e cruel; Damião, o desprotegido que implorava a interferência de pessoas que tinham condições de ajudá-lo a se livrar do seminário, não consegueinterferir em favor de quem implora sua ajuda e, em vez de ajudar, auxilia na punição. Neste último caso, ainda há uma agravante: Lucrécia seria punida, em parte, por culpa de Damião. Dessa forma, a recusa do seminarista em ajudar a negrinha transforma a vítima inicial do conto, Damião, em algoz. Por intermédio desses episódios, já é possível perceber que nas relações propostas por Machado é tocante a falta de alteridade. É curioso que o outro, o “não-eu”, pareça pouco importar numa situação em que o “eu” se define na relação com o outro. Isso nos faz considerar que, para Machado, a distinção entre as pessoas está na relação de poder estabelecida entre elas. Nesse conto, as relações de poder são determinadas por fatores sócio-econômicos, sexuais e situacionais. Na relação entre Sinhá Rita e Damião, a viúva se destaca pela vaidade, a qual, quando “alimentada” pelo seminarista, impulsiona-a a ajudá-lo. É notável a rapidez com que Damião conclui traços do caráter do padrinho e da viúva, usando um para influenciar o outro: “— Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém… — Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não…”. O seminarista logo percebe que apelando à vaidade de Sinhá Rita, de forma sutil e dissimulada, ele alcançaria seu intento. Entre Sinhá Rita e João Carneiro há uma relação de dominação sexual, em que a autoritária viúva exerce um poder sobre o padrinho, como é demonstrada na seguinte passagem: “Joãozinho, ou você salva o môço, ou nunca mais nos vemos.”. Já entre Sinhá Rita e Lucrécia novamente é preponderante a dominação da viúva. No entanto, dessa vez, a relação de propriedade que os senhores mantêm com seus escravos determina a predominância de uma cultura escravocrata e patriarcal e estabelece contrastes entre etnias e classes sociais. Entre Damião e Lucrécia é marcante o egoísmo do protagonista. Embora nessa situação também esteja em jogo uma relação de poder, não é uma cultura patriarcal ou escravocrata que move o seminarista, nem mesmo ele tem intenção de subjugar a menina. Ele, em sua condição de homem branco e bem colocado socialmente, só quer se dar bem. A decisão tomada por Damião parece ainda mais egoísta quando é projetada a imagem da cena, pouco descrita por Machado, mas sutilmente insinuada por ele. De um lado há Sinhá Rita, viúva, branca e bem relacionada. De outro lado há Lucrecia, “uma negrinha magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda”. A cor da pele, a constituição física e as cicatrizes caracterizam a situação da cria: uma escrava subnutrida que frequentemente é punida. É no confronto das condições dessas duas personagens que Damião resolve ficar de seu próprio lado. Em termos de personalidade, os dois personagens-chave do conto são Damião e Sinhá Rita: a viúva tem personalidade mais forte, e o seminarista é mais perspicaz e manipulador. Porém, tanto um quanto o outro se define de maneira mais marcante na relação com Lucrécia. É a condição da pequena escrava que faz aflorar o traço mais impactante de cada um. A relação de domínio apresentada por Sinhá Rita é determinada por fatores sócio- econômicos. Embora sua característica de subjugar o outro por meio de um exercício de poder – ou mais precisamente de um abuso de poder – a torne mais implacável, Sinhá Rita é um tipo previsível e manipulável. Já Damião tem uma personalidade camaleônica que se mostra e se adapta de acordo com as exigências dos fatos. Esse caráter situacional do personagem o torna um sobrevivente em qualquer circunstância. Quando ele ainda era o desvalido do conto, mesmo que um desvalido situacional, Sinhá Rita o ajudou, atendendo a suas súplicas. Mas quando a desvalida é Lucrécia, escrava humilhada, socialmente desvalorizada e com marcas de castigo, Damião não a ajuda, sob o risco de perder a influência da viúva, mesmo diante das súplicas da escrava. Assim, para conseguir sua própria sobrevivência, as ações do seminarista são motivadas por razões egoístas, fazendo-o agir sempre no sentido de salvar a própria pele, custe o que custar a quem custar. Se fosse o caso de concluir uma moral para a história, nesse conto Machado parece nos dizer que uma pessoa é muito mais do que aquilo que conhecemos dela, na relação que temos com ela. Outra coisa que ele parece nos mostrar é que no confronto entre a condição historicamente marginal do outro – que não é apenas um, mas toda uma coletividade que pena um atavismo de exclusão – vão valer as razões do indivíduo, tipo social moderno, em situação de alguma espécie de desconforto. Mesmo que seja apenas ocasional. ANÁLISE DO CONTO "PAI CONTRA MÃE” 3.1 Elementos estruturais da narrativa literária A narrativa literária é um texto centrado em um acontecimento, possuindo elementos estruturais básicos como enredo, personagens, espaço e tempo, relatado por um narrador. Os fatos de uma história não precisam ser necessariamente verdadeiros mas devem ser verossímeis; isto significa que, mesmo sendo inventados, o leitor deve acreditar no que está lendo. Gancho (2008, p. 12) preconiza que “a verossimilhança é uma peculiaridade da narrativa definida como “lógica interna do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor: verossimilhança é pois, a essência do texto de ficção.” 3.2 Enredo Para se entender a organização dos fatos no enredo, “não basta perceber que toda história tem começo, meio e fim; é preciso compreender o elemento estruturador das partes: o conflito” (Gancho, 2008, p. 12). Este, geralmente, determina as partes do enredo: exposição, complicação, clímax e desfecho. O conto “Pai contra Mãe” é uma narrativa publicada, em 1906, na obra “Relíquias da casa velha” e ambientada no Rio de Janeiro, nos tempos do Brasil imperial, tendo como assunto, a história de um caçador de escravos pobre que, para poder ficar com seu filho recém-nascido, tem que entregar uma escrava negra fugitiva e grávida, recebendo por esta a sua recompensa. O tema abrange a escravidão, a discriminação e dominação raciais, e a mensagem, o jogo de poder na luta pela sobrevivência. 3.2.1 Exposição Gancho (2008, p. 13) afirma que a Exposição (ou introdução ou apresentação) “é a parte na qual se situa o leitor diante da história”. Descrição dos instrumentos aplicados na tortura aos negros, da perda dos escravos fujões e do ofício de capturá-los: “A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha- de-flandres. [...] Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.” (Duarte, 2007, p. 147/148) 3.2.2 Complicação Na lição de GANCHO (2008, 12), a Complicação (ou desenvolvimento) “constitui a maior parte da narrativa, na qual agem forças auxiliares e opositoras ao desejo da personagem e que intensificam o conflito”. Apresentação do personagem Cândido Neves, seu ofício, seu casamento com Clara e o nascimentodo filho: “Cândido Neves, -- em família, Candinho --, é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos. [...] Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a 21 recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintaralhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. “(Duarte, 2007, p. 148/156) 3.2.3 Clímax Para Gancho (2008, p. 12) o Clímax é “o momento culminante da história, o momento de maior tensão, no qual o conflito chega a seu ponto máximo”. A saída para entrega do filho à Roda dos Enjeitados, o encontro com Arminda, a negra fugida, sua captura e a entrega ao seu senhor: “Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos. [...] O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.” (Duarte, 2007, p. 156/158) 3.2.4 Desfecho Gancho apregoa (2008, p. 12) que o Desfecho (ou desenlace ou conclusão) é a “solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não”. A volta para casa com a recompensa e o filho: “Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem milréis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. 22 -- Nem todas as crianças vingam, bateu- lhe o coração.” (Duarte, 2007, p. 158) 3.3 Personagens Quanto ao papel desempenhado no enredo, Cândido Neves e Arminda são os personagens principais em oposição, que através do embate travado, sai vencedor o primeiro, o mais “forte”, apesar de sua fraqueza moral e instabilidade emocional, em razão da legitimidade concedida pelo poder da classe dominante: Cândido Neves, chamado de Candinho, em família, tem 30 anos, livre, pobre, cuja ocupação que escolheu é vaga pois “passa semanas sem vintém“. Possui o ofício de “pegar escravos fugidos”. Seu defeito grave é o de não aguentar emprego nem ofício; falta-lhe estabilidade. Acumula dívidas e mora com um primo. Quisera efetivamente fazer outra coisa, pelo simples gosto de trocar de ofício, porém não achava à mão nenhum negócio que aprendesse depressa. Arminda é negra e escrava fugida que está esperando um filho. Os personagens secundários, são Clara, esposa de Cândido Neves, 22 anos de idade, órfã, e mora com uma tia e deseja muito se casar; Mônica, tia de Clara cuja profissão é a de costurar, bem como o farmacêutico, senhor de Arminda. Cumpre ressaltar que determinados personagens possuem nomes que não correspondem à realidade de suas personalidades. O personagem de nome Cândido que nos remete a uma relação de pureza e inocência, é rude e possui um caráter duvidoso. Por sua vez, Clara, nome da mulher de Cândido, que evoca uma matiz que pressupõe luz, apresenta-se como apagada e submissa. 3.4 Tempo No primeiro parágrafo o narrador informa que “a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”. Como o tempo verbal desta oração é o pretérito perfeito, “levou”, a trama que irá narrar já terminou, não mais existe. Mas em seguida, mais precisamente, no terceiro parágrafo, o narrador afirma que “há meio século, os escravos fugiam com freqüência”, levando a crer que a ação se passa no final do Brasil-império. O tempo cronológico vem a ser “o tempo que transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o final. Está, portanto, ligado ao enredo linear [...]; chama-se cronológico porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos. (GANCHO, 2008, p. 25). Ora, o conto em tela compreende o período desde em que, o protagonista, no início, é solteiro e vai até o nascimento do filho que teve com Clara, a moça com quem se casou. Entretanto, no nono parágrafo do texto em questão há uma única referência expressa e delimitada de tempo: “O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o primeiro ofício do namorado, - tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos.” (grifo meu) 3.5 Ambiente Ambiente, para Gancho (2008, p. 27) “é o espaço carregado de características socioeconômicas, morais e psicológicas em que vivem as personagens. Neste sentido, ambiente é um conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a confluência deste dois referenciais, acrescida de um clima”. As principais funções do ambiente são as de situar os personagens no tempo, espaço e nas condições em que vivem, projetar os conflitos vividos pelos personagens, além de oferecer indícios para o desenrolar da narrativa. O ambiente deste conto é da época ubana em que o Brasil vive sob à égide da instituição da escravatura. A violência e a hipocrisia da sociedade tem o apoio das convenções sociais, legalizada para impor a “ordem social e humana” aos dominados. A situação socioeconômica dos personagens é muito precária, vivendo com dificuldades financeiras enormes, beirando a miséria. O clima é de muita frieza, violência e tensão. 3.6 Narrador O narrador é o encarregador de contar ou narrar os acontecimentos em uma obra literária. Em relação aos tipos de narrador, Gancho(2008, p. 31) explica: “Dois são os termos mais usados pelos manuais de análise literária, para designar a função do narrador na história: foco narrativo e ponto de vista (do narrador ou da narração). Tanto um quanto outro se referem à posição ou perspectiva do narrador frente aos fatos narrados. Assim, teríamos dois tipos de narrador, identificados à primeira vista pelo pronome pessoal usado na narração: primeira ou terceira pessoa (do singular)”. No Conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, o narrador se posiciona, ora fora dos fatos narrados, tipificando o narrador observador, ora dentro, ou seja, falando com o leitor ou julgando diretamente o comportamento dos personagens, chamado este de narrador “intruso”, conforme, a título de exemplo, denota-se da narrativa: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha- de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando. (grifo meu).” Destarte, é possível afirmar que o tempo da narração é após a abolição, enquanto o narrado é durante o período escravagista. O narrador também descreve os instrumentos de tortura utilizados na época da escravidão, a função de cada aparelho, mas, em certo momento, ele interrompe a descrição para instigar o leitor acerca dos seus sentidos visuais e imaginar as sensações do sofrimento. Há, ainda, a presença do discurso direto, em que os personagens dialogam diretamente, mesclado com o discurso indireto, no qual o narrador intermedia a conversa do personagem com o leitor. 3.7 Análise Crítica Machado de Assis questiona e denuncia, com extrema destreza, o panorama traçado com a instituição da escravidão e suas nefastas conseqüências. Não obstante, foi acusado de cidadão omisso perante os problemas de seu tempo. Duarte reproduz discurso de um dos intelectuais do movimento negro, Ironides Rodrigues (Duarte apud Rodrigues, 2007, p.9): “[Machado] exprimia-se como um escritor branco que não sentisse o mínimo de sangue negro correndo em seu coração. É o patrono da Academia Brasileira de Letras, numa prova de sua branquitude de inspiração, ficando à margem e pouco se preocupando com movimento sociais do seu tempo, como a Abolição e a República.” Entretanto, não é isso que se percebe da leitura de sua obra. Ao contrário, o posicionamento do escritor frente ao sistema patriarcal e escravista, encontra-se registrado, em várias obras suas e sobretudo neste brilhante texto literário. Descreve o autor os instrumentos de tortura utilizados nos escravos e o ofício de capturá-los para em seguida apresentar o protagonista da narrativa, Cândido Neves, sujeito pobre, que, por não se adaptar a nenhum ofício da época, torna-se caçador de escravos. Mais tarde, conhece Clara com quem se casa e tem um filho. Desesperado, por não poder sustentá-lo, a providência se encarrega de fazê-lo encontrar uma negra fugida, Arminda, cuja polpuda recompensa é oferecida, e que por conta de sua captura, acaba por perder o filho que também espera. Nos entremeios de sua narrativa, marcada por uma linguagem correta, clássica, com frases curtas e pelo diálogo com o leitor, salpicada com uma fina ironia e disfarçada indiferença, o notável escritor, delata todo o horror da escravidão, assim 26 como o egoísmo, humano, a degradação social e moral a que os personagens Cândido e Arminda são submetidos, e a proximidade na condição de miserável tanto do branco livre quanto o negro escravo. Entretanto, mesmo próximos à miséria, o homem e pai, livre e branco, que acredita ser superior à escrava, negra e mãe, vinga, em detrimento desta, considerada mera mercadoria, em razão da proteção que o perverso sistema social da época lhe confere. É sabido que a escravidão teve seu início no Brasil durante o período colonial, quando os portugueses, para explorar o comércio do pau- brasil, utilizaram o trabalho dos negros, após a malsucedida tentativa de explorar os índios que aqui habitavam, vindos principalmente de Moçambique, Angola e Guiné para o Brasil e transportados nos chamados “navios negreiros”, em condições extremamente precárias, desembarcavam nos portos, sobretudo, do Rio de Janeiro, Recife e Salvador. O tráfico de escravos negros perdurou até 1850. Foi, então, promulgada a Lei do Ventre Livre, em 1871, que garantia a liberdade aos filhos dos escravos. Finalmente, em 1888, foi decretada a lei que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, intitulada de Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel. Consequentemente, houve uma intensa miscigenação de grupos raciais, decorrente, sobretudo, da fusão dos europeus, negros, índios e mulatos, na população brasileira. De lá para cá muita coisa aconteceu. Contudo, o Brasil atual continua sendo um país de grandes contrastes sociais, especialmente no que diz respeito ao aspecto racial. Conforme dados noticiados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, ao divulgar um estudo especial da Pesquisa Mensal de Emprego, em setembro de 2006, dão conta de que a população declaradamente preta ou parda tem menos escolaridade e um rendimento médio equivalente à metade do recebido pela população branca, na média das seis regiões metropolitanas investigadas. O olhar sensível do escritor deixa um relato bastante atual, apesar de escrito no final do século XIX. ESSES LOPES – GUIMARÃES ROSA RESUMO O presente artigo objetiva realizar uma análise do conto “Esses Lopes”, de João Guimarães Rosa. No texto literário em questão, o leitor se depara com uma narradora-personagem, a Flausina, que relata as diversas formas de violência vividas em sua juventude; bem como o detalhamento dos artifícios,por ela utilizados, para se livrar de seus sofrimentos. Para tal análise, primeiramente, será observada a opção narrativa do autor, recorrente em sua obra, em uma breve tentativa de localização da obra de Rosa no panorama literário brasileiro. Em seguida, será destacada a importância, para a construção do enredo, desta modalidade de narrador, que conta uma história da qual participou como protagonista. A análise segue com a evidenciação da pertinência, ainda atual, da abordagem da violência contra a mulher – tema que é tratado no conto em questão. Nesta análise será destacado, ainda, o modo pelo qual a narradora tenta superar seus traumas a partir da concretização de planos ardilosos e fatais contra seus opressores, tentando justificar, em seu discurso, suas ações, também violentas. Empregam-se considerações teóricas de Bosi (1988), Genette (19--) e Reis; Lopes (1988), para auxiliar a tarefa analítica. Espera-se, com o presente artigo, refletir acerca da opção do foco narrativo e sua pertinência para a construção dos significados no conto. O conto escolhido para esta análise é Esses Lopes, um dos quarenta contos de Tutameia. Nele, Rosa deu voz a uma narradora-personagem que conta sua própria estória a um interlocutor inominado. Esse procedimento narrativo faz parte de sete contos dessa obra rosiana e traz para a narrativa uma visão “de dentro” da estória3 . Nesse conto, a narradora relata a situação traumática pela qual passou, tratando de um assunto vigente até nossos dias: a violência, por vezes silenciosa, contra a mulher. Nesse caso, o universo ficcional literário dá margem para tratar de um assunto delicado, que talvez a própria sociedade da época não atribuísse a devida atenção. Deixando brevemente o campo literário e observando as práticas sociais e políticas, nota-se, nas últimas décadas, uma maior preocupação com a questão da violência contra mulheres no Brasil, como é possível observar, a partir da criação de dispositivos legais para aumentar o rigor na punição de crimes contra a mulher, como, por exemplo, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha. De modo semelhante, a instituição de delegacias da mulher demonstra maior atenção ao problema. O anseio de mudança pode ser notado ainda com a criação de diretrizes e políticas públicas para as mulheres, incluindo formas de enfrentamento às formas de violência contra as mulheres, que constituem “uma das principais formas de violação dos seus direitos humanos”. (BRASIL, 2008, p. 95) No entanto, apesar dos esforços de diversos movimentos sociais e instituições, a violência contra as mulheres ainda se faz presente, como atesta, segundo Gonçalves (2013), Eleonora Menicucci, ex- ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Voltando ao universo ficcional dos contos de Guimarães Rosa, nota-se sua ambientação em um momento anterior a esse descrito acima, em que a personagem precisa se valer de seus próprios métodos, ainda que violentos, para se livrar da opressão, da angústia e do sofrimento que causam sua opressão. Em Esses Lopes, o ato narrativo tem por objetivo exteriorizar as mágoas e os abusos sofridos, contidos por anos a fio pela, então, jovem protagonista – agora, mulher madura, convertida. em narradora de sua própria estória de vida. Sua narração funciona como uma espécie de catarse para o trauma do passado. De acordo com o Dicionário Houaiss Eletrônico, a etimologia da palavra trauma está ligada ao termo grego traûma, significando “ferida, avaria, derrota, desastre”. A narradora retorna aos seus anos de juventude, percorrendo, com a narração, o período de longos anos, até remeter seu relato ao momento atual, em que fala já envelhecida. Nesse momento, em busca de mais sentido para sua vida, faz planos para o futuro e dirige suas palavras diretamente ao(s) interlocutor(es), que permanece(m) indeterminado(s) na estória. Sua narração é, até certo ponto, marcada pelo estado de inquietação emocional, pelo rancor diante da violência vivida, mas, ao final, passa a ser marcada pelo tom “otimista”, diante da possibilidade de mudança. A narradora tenta reverter o seu passado de lembranças infelizes, utilizando-se de outros meios, sempre ardilosos, como será evidenciado a seguir. No conto em questão, encontra-se a narração de Flausina, mulher de origem humilde, que, desde a mocidade, se viu como “propriedade” dos poderosos homens da família Lopes. Em sua exposição, retoma o modo pelo qual exterminou, um a um, os seus parceiros, até tornar-se mulher de muitas posses. Em seu discurso, marcado pela emoção, pelo rancor e pela indignação, conta como conseguiu transformar seus sofrimentos em vitória, a partir do plano traçado de utilizar a astúcia, a palavra e a paciência contra o poder, a riqueza e a força bruta dos Lopes. Flausina caracteriza sua origem humilde retomando os tempos de infância: “Eu era menina, me via vestida de flôres. Só que o que mais cedo reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?” (Rosa, 1968, p. 45)4 . Sua beleza também é destacada: “linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem” (p. 45). Nota-se que essa oposição, aqui expressa pela imagem da beleza remirada na lavagem, se mantém em todo o seu relato, como, por exemplo, na constante oscilação entre sentimentos de satisfação e insatisfação. A maneira como ela se refere, logo a princípio, ao seu nome expressa bem essa ideia: “Eu queria me chamar Maria Miss, reprovo meu nome, de Flausina” (p. 45). A narradora, com essa colocação, reitera o aspecto opositivo mencionado, dessa vez expresso pelo embate entre o desejo, de se chamar Maria Miss, e a realidade, de ter Flausina como nome. Inclusive, ao final do conto, quando é retomado o instante da enunciação, percebe-se a que o orgulho da narradora de ter vencido é acompanhado pela amargura da perda da pureza: “De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de das saudades?” (p. 48) Desse modo, mantém-se a oposição vista no começo do relato. Os sentimentos de angústia, de tristeza e sofrimento perpassam todo o seu discurso. Flausina, no momento do seu relato, se encontra no mesmo lugar em que se passaram todas as suas experiências: “Êsses Lopes, raça, vieram da outra ribeira, tudo adquiriam ou tomavam; não fosse Deus, e até hoje mandavam aqui, donos” (p. 45). O espaço da diegese não possui determinações explícitas, a não ser por alguns poucos marcadores, como por exemplo: “outra ribeira”, “aqui” e “na beira do meu terreiro” (p. 47). Desse modo, poder- se-ia considerar tanto o espaço da diegese quanto o da enunciação como “interiorizados”. Carlos Reis e Ana Cristina Lopes caracterizam o espaço psicológico como constituído “em função da necessidade de evidenciar atmosferas densas e perturbantes, projetadas sobre o comportamento, também normalmente conturbado, das personagens” (1988, p. 205). Esse espaço se caracteriza ainda pela sua manifestação em forma de “monólogo interior” (REIS; LOPES, 1988, p. 266), muito próximo da atitude narrativa de Flausina. Infere-se que o espaço físico desse lugar seja o do sertão, tanto pela ambientação – conforme demostra os trechos a seguir: [1] “outra ribeira”, “na beira do meu terreiro” (p. 47) e [2] “Meus filhos, Lopes, também, provi de dinheiro, para longe daqui viajarem gado” (p. 48) –; quanto pela contextualização dos costumes descritos em que a menina é tirada da casa dos pais, a contragosto,para “se casar”, conforme é possível verificar neste trecho: “eu queria enxoval, ao menos, feito as outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja. O homem me pegou, com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dêle” (p. 45). Percebe-se, portanto, que esse lugar pertence a uma sociedade arcaica, classista e machista; representa um Brasil antes das políticas públicas destinadas às mulheres, como as de enfrentamento às formas de violência, ou, então, da participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. Nota-se, atualmente, uma paulatina expansão nos campos de atividades profissionais e mesmo o exercício de cargos políticos elevados, antes exclusividade dos homens. Isso demonstra maior equidade na questão de gêneros. Mesmo no campo artístico, como na literatura, por exemplo, percebe-se a progressiva participação das mulheres, o que indicia uma mudança de mentalidade. O discurso da narradora, Flausina, é marcadamente oral, e se faz em forma de monólogo, por estar ausente a figura de um narratário. As várias interrogações presentes no conto, além de servirem à própria reflexão da narradora, parecem “testar” o canal comunicativo. Referentemente a isso, seguem alguns trechos: [1] “Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?” (p. 45); [2] “Tive algum?” (p. 45); [3] “sei as perversidades que roncava?” (p. 46); [4] “os Lopes me davam sossêgo?” (p. 47); [5]“E o govêrno da vida?” (p. 47) ; [6]“Ao Sertório dei mesmo dois filhos?” (p. 48); [7] “sou de me constar em folhinhas e datas?” (p. 48); e, por fim [8] “De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades?” (p. 48). Em sua fala, percebese, por certo tom emotivo e amargurado, o trauma do passado, principalmente quando ela contrasta os anos de infância com o sofrimento causado pelos anos de convivência com os Lopes. Observa-se, no conto, a presença de nível narrativo no qual a narradora Flausina se encontra, dirigindo suas palavras diretamente ao(s) ouvinte(s), que é (são) completamente indeterminado(s). Não há qualquer menção a possíveis “relatores” de seu discurso, assim como não há intromissões em sua fala no plano da enunciação. A narração de Flausina mostra como passou da época de inocência para a maturidade, depois de passar anos “nas mãos” dos Lopes, que a sujeitavam aos seus desejos. A narradora relata, ainda, a maneira pela qual se livrou de todos eles, detendo-se em cada caso vivenciado, explicando como se iniciaram e acabaram. É necessário observar mais detidamente como isso se faz no discurso de Flausina. Ao começar seu relato, a narradora anuncia sua intenção: “quero falar alto” (p. 45). Assim, ela demonstra, logo de saída, seu ódio, sua ira e seu rancor pelos Lopes, incluindo os filhos que com eles teve. Os dois trechos, transcritos a seguir, um que inicia e o outro que encerra o conto, exemplificam tal dado: “Má gente, de má paz; dêles quero distantes léguas. Mesmo de meus filhos, os três” (p.45); “Todo o mundo vive para ter alguma serventia. Lopes, não! – dêsses me arrenego.” (p. 48) A condição econômica confortável dos Lopes era vinculada a atitudes desmedidas: “Êsses Lopes, raça, vieram de outra ribeira, tudo adquiriam ou tomavam” (p.45). A então menina Flausina, diante desses poderosos Lopes – sendo “órfã de dinheiro” (p. 45) e sem apoio dos pais “para punir” (p. 45) por ela –, inicia sua via crucis com Zé Lopes, “rompente sedutor” (p. 45) que, a leva, contrariada, para sua casa, como esposa. A jovem Flausina, descontente com a situação opressora, passa a agir de modo dúplice, fazendo- se de “miúda, mansa, feito botão de flor” (p. 45) e contendo seus sentimentos: “Mais aprendi lição de ter juízo. Calei muitos prantos.” (p. 45). A personagem relata ter suportado a sujeição pacientemente, conforme demostra este trecho: “Agüentei aquele caso corporal”(p. 46). Mas, ao mesmo tempo, planejava sua libertação por meio de atitudes e palavras: “Fiz que quis: saquei malinas lábias” (p. 46). Flausina emprega, então, a dissimulação como método para se libertar; usa essa estratégia, inclusive, contra a “preta Si-Ana”, colocada em casa por Zé Lopes para vigiá-la. A esse respeito, evidencia-se o trecho a seguir: “Entendi: a que eu tinha de engambelar, por arte de contas; e à qual chamei de madrinha e comadre. Regi de alisar por fora a vida” (p. 46). O poder de dissimulação da personagem chega a tal ponto que ela consegue se livrar da “preta SiAna”, inventando uma mentira a seu respeito, fazendo, assim, com que ela fosse despedida: “Mandou embora a preta Si-Ana, quando levantei o falso alegado: que ela alcovitava eu cedesse vêzes carnais a outro, Lopes igual – que da vida logo desapareceu, em sistema de não-se-sabe”. (p. 46) Flausina agiu mascarando suas verdadeiras intenções contra seus opressores, mas cuidou de justificar, a seu(s) interlocutor(es), essas atitudes dissimuladas, sensibilizando-o(s). Para isso, ela expõe, dentre outras formas de violência, a submissão sexual que tanto a oprimia: “Deitada é que eu achava o somenos do mundo, camisolas do demônio” (p. 46). O parágrafo transcrito logo abaixo explicita bem a sua angústia e infelicidade, bem como seu desejo de mudar de vida e “querer outras larguras” (p. 46): Ninguém põe idéia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre, com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada môça, cativa assim, com o abafo daquele, sempre rente, no escuro. Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um dia come o outro, sei as perversidades que roncava? Aquilo tange as canduras de nôiva, pega feito doença, para a gente em espírito se traspassa. Tão certo como eu hoje estou o que nunca fui. Eu ficava espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer outras larguras. (p. 46) Aqui é notório o tom comovente, também marcado pela indignação. Uma das angústias da narradora está ligada à questão da pureza perdida: “A maior prenda, que há, é ser virgem.” (p. 45). Observa-se, além disso, que o problema da sujeição também está atrelado à carência econômica: “Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?” (p. 45). Em função disso, Flausina se esforça para reverter, ao longo da vida, seu estado de privação econômica: “E dê-cá dinheiro. [...] Sem acautelar, êle me enriquecia”. (p. 46). Para cumprir tal intento, a personagem emprega, além da dissimulação, o aprimoramento do trato com as palavras, que deseja conhecer melhor: “Tracei as letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, conforme escondida”. (p. 46) Já decidida a mudar sua situação, a narradora passa, pouco a pouco, a enfraquecer o seu opressor. Assim ela descreve o modo como deu cabo de Zé Lopes, “o pior” (p. 45): “Virei cria de cobra. Na cachaça, botava sementes da cabaceira- preta, dosezinhas; no café, cipó timbó e saiabranca. Só para arrefecer aquela desabada vontade, nem confirmo que seja crime”. (p. 46) Vê-se, aqui, que a narradora, consciente de seus atos maldosos (“Virei cria de cobra”), questiona sua ação como não sendo criminosa (“nem confirmo que seja crime”). Coloca-se, então, uma questão moral, que Flausina levanta implicitamente em seu relato: a menina, arrancada de sua inocência para se tornar mulher e que fez de sua libertação objetivo maior, agiu certo ao usar os meios descritos para se livrar desse “povo ruim”,que era os Lopes? Do ponto de vista de Flausina, os assassinatos por ela cometidos se justificam como uma forma de autodefesa, pois, vivendo em um universo machista e classista, provavelmente não lhe restariam muitas alternativas diferentes. Seu discurso, que desde o princípio menciona a agressividade e a desmesura das atitudes dos Lopes, parece se antecipar a uma possível pergunta do leitor: foi correto arquitetar a morte deles? Se, por um lado, o conto pode suscitar esse questionamento, por outro, a narradora faz com que, a esse, esteja atrelada a seguinte ponderação: mas, foi certo padecer tantos abusos, a contragosto? Como consequência do plano de Flausina, Zé Lopes morre envenenado depois de algum tempo. Mas a narradora não tem paz, pois, logo após a morte de Zé Lopes, relata que outros Lopes ainda desejavam-na como mulher: “Dois deles, tesos, me requerendo, o primo e o irmão do falecido Mexi em vão por me soltar [...] Nicão, um, mau me emprazou: ‘Despois da missa de mês, me espera...’ ”(p.47). Sem saída, passa, antes disso, às mãos de Sertório Lopes: “Mas o Sertório, senhor, o outro, ouro e punhal na mão, inda antes do sétimo dia já entrava por mim a dentro em casa”. (p. 47) Os Lopes se sucedem assim na “posse” de Flausina, como uma herança familiar. A narradora demonstra novamente seu descontentamento e angústia diante da situação imposta: “Padeci com jeito. E o govêrno da vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, custoso que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve” (p. 47). Assim, mais uma vez, ela justifica sua atitude de compensar tal sofrimento com a transferência, para si, das posses de seu companheiro. Flausina então revela como conseguiu conquistar o dinheiro de Sertório Lopes: “Total, o quanto era dêle, cobrei, passando ligeiro já para minhas posses; até honra. Experimentei finuras novas” (p. 47). Depois, instigando ciúmes no cônjuge, inventa uma mentira que causa um embate fatal entre Sertório e Nicão Lopes, parentes que disputavam entre si Flausina: “Vi foi êle sair, fulo de fulo, revestido de raiva, com os bolsos cheios de calúnia. Ao outro eu tinha enviado os recados, embebidos em doçura [...] Se enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos, a tiros e ferros” (p. 47). Após a morte de mais dois Lopes, Flausina não deixa de lado a máscara que adotara, ao dissimular seus sentimentos diante dos moradores do lugar: “Inconsolável chorei, conforme os costumes certos, por a piedade de todos”. (p. 48) Por fim, a narradora relata como se deu o seu último relacionamento com um Lopes: “Sorocabano Lopes, velhôco, o das fortes propriedades. Me viu e me botou na cabeça. Aceitei, de boa graça, êle era o aflitinho dos consolos. Eu impondo: ‘De hoje em diante, só muito casada!’ Êle, por fervor, concordou” (p. 47). Aqui, tendo visto que esse Lopes, já idoso, não era truculento, sua estratégia de sobrevivência e transferência de propriedades muda um pouco; ela trata de satisfazer os desejos dele: “bem demais e melhor tratei, seu desejo efetuado” (p. 47). Mas a morte, também a ele destinada pela narradora, se dá de outra forma: “dava a êle gordas, temperadas comidas, e sem descanso agradadas horas – o sujeito chupado de amôres, de chuchurro. Tudo o que é bom faz mal e bem. Quem morreu mais foi ele” (p. 47 - 48). Mais uma vez, a astuta Flausina não deixa de pensar em sua situação financeira: “Daí, tudo quanto herdei, até que com nenhum enjôo” (p. 48). Finalmente, ela acaba com “o povo ruim” dos Lopes, conseguindo finalmente sua libertação. Agora, remediada, a narradora decide os rumos de sua vida e pode, enfim, escolher seu parceiro, mais jovem que ela: “Deixo de porfias, com o amor que achei. Duvido, discordo de quem não goste. Amo, mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem, sou de me constar em folhinhas e datas?” (p. 48). Percebe-se, ao final, como já observado anteriormente, que a retomada do momento presente revela certo orgulho, por parte de Flausina, por ter vencido, por si só, as situações difíceis, estando agora com posses e entendimento, ao mesmo tempo em que desponta a tristeza por ter perdido a inocência dos tempos de infância: “De que me adianta estar remediada e entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um dia, já fui muito menininha” (p. 48). Mantém-se, portanto, a oposição citada inicialmente, que pode ser sugerida inclusive pela contraposição entre o significado do nome da narradora e o do sobrenome Lopes. Flausina, segundo o Dicionário de Nomes Próprios, em grego é “alegre, feliz”; já Lopes, de acordo com o mesmo dicionário, é originário de “lobo” e, portanto, pode ter, segundo o Dicionário Houaiss Eletrônico, figuradamente o significado de “homem perverso, de maus instintos”. Pode-se notar que o primeiro e os dois últimos parágrafos do conto remetem ao momento atual da narração, em tempo verbal do presente; enquanto os outros constituem a diegese. Flausina fala, primeiramente, da sua infância, no pretérito imperfeito, conforme é possível verificar nos seguintes trechos: [1] “Eu era menina, me via vestida de flôres” (p. 45); [2] “tirava junto cantigas de roda e modinhas de sentimento” (p. 45); e [3] “linda eu era até a remirar minha cara na gamela dos porcos” (p. 45). Assim, a narradora marca as lembranças mais remotas, referentes ao tempo da inocência pueril, que se constituem em uma memória saudosa do passado. Com a chegada dos Lopes iniciam-se os seus sofrimentos e a perda da inocência, marcados, terminantemente, pelo tempo verbal do pretérito perfeito: “O homem me pegou com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa, para a cama dêle. Mais aprendi lição de ter juízo. Calei muitos prantos. Agüentei aquêle caso corporal” (p. 45). Seu relato perpassa os anos de sofrimento até o momento em que leva a cabo seu plano de acabar com todos os Lopes que a desejavam. Tratase de uma narração reveladora de seus martírios, assim como uma espécie de confissão e uma justificativa para seus crimes cometidos no passado. Ao final, com a retomada do tempo presente, há uma projeção para o futuro em que transmite o desejo de ter uma vida diferente e melhor: “por bem de mim, me venham filhos, outros, modernos e acomodados. Quero o bom-bocado que não fiz, quero gente sensível” (p. 48). A construção temporal, toda moldada pela memória de Flausina, possui aspecto interiorizado, pois é a partir de suas lembranças que o relato se constrói, como ela mesma diz: “Aos pedacinhos, me alembro.” (p. 45). Como se o tempo de seu relato não fosse ditado pelas “folhinhas e datas” (p. 48), mas sim pelo recorte seletivo de suas lembranças, mostrando a ação e reação dos atos de violência praticados contra ela. Assim, a narradora, além de expor sua estória – comovente e brutal –, defende e justifica suas atitudes do passado, diante do narratário. O relato pessoal de Flausina demonstra como ela, em busca de superar sua angustiante condição de sofrimento e submissão, conseguiu autonomia e liberdade utilizando mecanismos cruéis – o que pode soar como um contrassenso, já que se trata do uso de violência contra a violência. Como foi visto anteriormente, no relato de Flausina, a emotividade do discurso é marcante, visto que ela retoma os eventos do passado mencionando seus sentimentos. É possível reconhecer aí a chamada função emotiva da linguagem (JAKOBSON, 2007, 123-124). Já Gérard Genette (19--) classifica tal discurso como função testemunhal,
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