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O Enfermeiro - Machado de Assis

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O Enfermeiro - Machado de Assis 
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 
1860, pode entrar numa página de livro? Vá 
que seja, com a condição única de que não há 
de divulgar nada antes da minha morte. Não 
esperará muito, pode ser que oito dias, se não 
for menos; estou desenganado. 
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida 
inteira, em que há outras cousas 
interessantes, mas para isso era preciso 
tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; o 
ânimo é frouxo, e o tempo assemelha-se à 
lamparina de madrugada. Não tarda o sol do 
outro dia, um sol dos diabos, impenetrável 
como a vida. Adeus, meu caro senhor, leia isto 
e queira-me bem; perdoe-me o que lhe 
parecer mau, e não maltrate muito a arruda, 
se lhe não cheira a rosas. Pediu-me um 
documento humano, ei-lo aqui. Não me peça 
também o império do Grão-Mogol, nem a 
fotografia dos Macabeus; peça, porém, os 
meus sapatos de defunto e não os dou a 
ninguém mais. 
Já sabe que foi em 1860. No ano anterior, ali 
pelo mês de agosto, tendo eu quarenta e dois 
anos, fiz-me teólogo, — quero dizer, copiava 
os estudos de teologia de um padre de Niterói, 
antigo companheiro de colégio, que assim me 
dava, delicadamente, casa, cama e mesa. 
Naquele mês de agosto de 1859, recebeu ele 
uma carta de um vigário de certa vila do 
interior, perguntando se conhecia pessoa 
entendida, discreta e paciente, que quisesse ir 
servir de enfermeiro ao coronel Felisberto, 
mediante um bom ordenado. O padre falou-
me, aceitei com ambas as mãos, estava já 
enfarado de copiar citações latinas e fórmulas 
eclesiásticas. Vim à Corte despedir-me de um 
irmão, e segui para a vila. 
Chegando à vila, tive más notícias do coronel. 
Era homem insuportável, estúrdio, exigente, 
ninguém o aturava, nem os próprios amigos. 
Gastava mais enfermeiros que remédios. A 
dous deles quebrou a cara. Respondi que não 
tinha medo de gente sã, menos ainda de 
doentes; e depois de entenderme com o 
vigário, que me confirmou as notícias 
recebidas, e me recomendou mansidão e 
caridade, segui para a residência do coronel. 
Achei-o na varanda da casa estirado numa 
cadeira, bufando muito. Não me recebeu mal. 
Começou por não dizer nada; pôs em mim 
dous olhos de gato que observa; depois, uma 
espécie de riso maligno alumiou-lhe as feições, 
que eram duras. Afinal, disse-me que nenhum 
dos enfermeiros que tivera, prestava para 
nada, dormiam muito, eram respondões e 
andavam ao faro das escravas; dous eram até 
gatunos! 
— Você é gatuno? 
— Não, senhor. 
Em seguida, perguntou-me pelo nome: disse-
lho e ele fez um gesto de espanto. Colombo? 
Não, senhor: Procópio José Gomes Valongo. 
Valongo? achou que não era nome de gente, e 
propôs chamar-me tão-somente Procópio, ao 
que respondi que estaria pelo que fosse de 
seu agrado. Contolhe esta particularidade, não 
só porque me parece pintá-lo bem, como 
porque a minha resposta deu de mim a 
melhor idéia ao coronel. Ele mesmo o 
declarou ao vigário, acrescentando que eu era 
o mais simpático dos enfermeiros que tivera. 
A verdade é que vivemos uma lua-de-mel de 
sete dias. 
No oitavo dia, entrei na vida dos meus 
predecessores, uma vida de cão, não dormir, 
não pensar em mais nada, recolher injúrias, e, 
às vezes, rir delas, com um ar de resignação e 
conformidade; reparei que era um modo de 
lhe fazer corte. Tudo impertinências de 
moléstia e do temperamento. A moléstia era 
um rosário delas, padecia de aneurisma, de 
reumatismo e de três ou quatro afecções 
menores. Tinha perto de sessenta anos, e 
desde os cinco toda a gente lhe fazia a 
vontade. Se fosse só rabugento, vá; mas ele 
era também mau, deleitava-se com a dor e a 
humilhação dos outros. No fim de três meses 
estava farto de o aturar; determinei vir 
embora; só esperei ocasião. 
Não tardou a ocasião. Um dia, como lhe não 
desse a tempo uma fomentação, pegou da 
bengala e atirou-me dous ou três golpes. Não 
era preciso mais; despedi-me imediatamente, 
e fui aprontar a mala. Ele foi ter comigo, ao 
quarto, pediu-me que ficasse, que não valia a 
pena zangar por uma rabugice de velho. 
Instou tanto que fiquei. 
— Estou na dependura, Procópio, dizia-me ele 
à noite; não posso viver muito tempo. Estou 
aqui, estou na cova. Você há de ir ao meu 
enterro, Procópio; não o dispenso por nada. 
Há de ir, há de rezar ao pé da minha sepultura. 
Se não for, acrescentou rindo, eu voltarei de 
noite para lhe puxar as pernas. Você crê em 
almas de outro mundo, Procópio? 
— Qual o quê! 
— E por que é que não há de crer, seu burro? 
redarguiu vivamente, arregalando os olhos. 
Eram assim as pazes; imagine a guerra. Coibiu-
se das bengaladas; mas as injúrias ficaram as 
mesmas, se não piores. Eu, com o tempo, fui 
calejando, e não dava mais por nada; era 
burro, camelo, pedaço d’asno, idiota, 
moleirão, era tudo. Nem, ao menos, havia 
mais gente que recolhesse uma parte desses 
nomes. Não tinha parentes; tinha um sobrinho 
que morreu tísico, em fins de maio ou 
princípios de julho, em Minas. Os amigos iam 
por lá às vezes aprová-lo, aplaudi-lo, e nada 
mais; cinco, dez minutos de visita. Restava eu; 
era eu sozinho para um dicionário inteiro. 
Mais de uma vez resolvi sair; mas, instado pelo 
vigário, ia ficando. Não só as relações foram-se 
tornando melindrosas, mas eu estava ansioso 
por tornar à Corte. Aos quarenta e dois anos 
não é que havia de acostumar-me à reclusão 
constante, ao pé de um doente bravio, no 
interior. Para avaliar o meu isolamento, basta 
saber que eu nem lia os jornais; salvo alguma 
notícia mais importante que levavam ao 
coronel, eu nada sabia do resto do mundo. 
Entendi, portanto, voltar para a Corte, na 
primeira ocasião, ainda que tivesse de brigar 
com o vigário. Bom é dizer (visto que faço uma 
confissão geral) que, nada gastando e tendo 
guardado integralmente os ordenados, estava 
ansioso por vir dissipá-los aqui. 
Era provável que a ocasião aparecesse. O 
coronel estava pior, fez testamento, 
descompondo o tabelião, quase tanto como a 
mim. O trato era mais duro, os breves lapsos 
de sossego e brandura faziam-se raros. Já por 
esse tempo tinha eu perdido a escassa dose de 
piedade que me fazia esquecer os excessos do 
doente; trazia dentro de mim um fermento de 
ódio e aversão. 
No princípio de agosto resolvi definitivamente 
sair; o vigário e o médico, aceitando as razões, 
pediram-me que ficasse algum tempo mais. 
Concedilhes um mês; no fim de um mês viria 
embora, qualquer que fosse o estado do 
doente. O vigário tratou de procurar-me 
substituto. 
Vai ver o que aconteceu. 
Na noite de vinte e quatro de agosto, o 
coronel teve um acesso de raiva, atropelou-
me, disse-me muito nome cru, ameaçoume de 
um tiro, e acabou atirando-me um prato de 
mingau, que achou frio, o prato foi cair na 
parede onde se fez em pedaços. 
— Hás de pagá-lo, ladrão! bradou ele. 
Resmungou ainda muito tempo. Às onze horas 
passou pelo sono. Enquanto ele dormia, 
saquei um livro do bolso, um velho romance 
de d’Arlincourt, traduzido, que lá achei, e pus-
me a lê-lo, no mesmo quarto, a pequena 
distância da cama; tinha de acordá-lo à meia-
noite para lhe dar o remédio. Ou fosse de 
cansaço, ou do livro, antes de chegar ao fim da 
segunda página adormeci também. Acordei 
aos gritos do coronel, e levantei-me 
estremunhado. Ele, que parecia delirar, 
continuou nos mesmos gritos, e acabou por 
lançar mão da moringa e arremessá-la contra 
mim. Não tive tempo de desviar-me; a 
moringa bateu-me na face esquerda, e tal foi a 
dor que não vi mais nada; atirei-me ao doente,pus-lhe as mãos ao pescoço, lutamos, e 
esganei-o. 
Quando percebi que o doente expirava, recuei 
aterrado, e dei um grito; mas ninguém me 
ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-lo à 
vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, e o 
coronel morreu. Passei à sala contígua, e 
durante duas horas não ousei voltar ao 
quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que 
passei, durante esse tempo. Era um 
atordoamento, um delírio vago e estúpido. 
Parecia-me que as paredes tinham vultos; 
escutava umas vozes surdas. Os gritos da 
vítima, antes da luta e durante a luta, 
continuavam a repercutir dentro de mim, e o 
ar, para onde quer que me voltasse, aparecia 
recortado de convulsões. Não creia que esteja 
fazendo imagens nem estilo; digo-lhe que eu 
ouvia distintamente umas vozes que me 
bradavam: assassino! assassino! 
Tudo o mais estava calado. O mesmo som do 
relógio, lento, igual e seco, sublinhava o 
silêncio e a solidão. Colava a orelha à porta do 
quarto na esperança de ouvir um gemido, uma 
palavra, uma injúria, qualquer coisa que 
significasse a vida, e me restituísse a paz à 
consciência. Estaria pronto a apanhar das 
mãos do coronel, dez, vinte, cem vezes. Mas 
nada, nada; tudo calado. Voltava a andar à toa 
na sala, sentava-me, punha as mãos na 
cabeça; arrependia-me de ter vindo. — 
"Maldita a hora em que aceitei semelhante 
coisa!" exclamava. E descompunha o padre de 
Niterói, o médico, o vigário, os que me 
arranjaram um lugar, e os que me pediram 
para ficar mais algum tempo. Agarrava-me à 
cumplicidade dos outros homens. 
Como o silêncio acabasse por aterrar-me, abri 
uma das janelas, para escutar o som do vento, 
se ventasse. Não ventava. A noite ia tranqüila, 
as estrelas fulguravam, com a indiferença de 
pessoas que tiram o chapéu a um enterro que 
passa, e continuam a falar de outra coisa. 
Encostei-me ali por algum tempo, fitando a 
noite, deixando-me ir a uma recapitulação da 
vida, a ver se descansava da dor presente. Só 
então posso dizer que pensei claramente no 
castigo. Achei-me com um crime às costas e vi 
a punição certa. Aqui o temor complicou o 
remorso. Senti que os cabelos me ficavam de 
pé. Minutos depois, vi três ou quatro vultos de 
pessoas, no terreiro espiando, com um ar de 
emboscada; recuei, os vultos esvaíram-se no 
ar; era uma alucinação. 
Antes do alvorecer curei a contusão da face. 
Só então ousei voltar ao quarto. Recuei duas 
vezes, mas era preciso e entrei; ainda assim, 
não cheguei logo à cama. Tremiam-me as 
pernas, o coração batia-me; cheguei a pensar 
na fuga; mas era confessar o crime, e, ao 
contrário, urgia fazer desaparecer os vestígios 
dele. Fui até a cama; vi o cadáver, com os 
olhos arregalados e a boca aberta, como 
deixando passar a eterna palavra dos séculos: 
"Caim, que fizeste de teu irmão?" Vi no 
pescoço o sinal das minhas unhas; abotoei alto 
a camisa e cheguei ao queixo a ponta do 
lençol. Em seguida, chamei um escravo, disse-
lhe que o coronel amanhecera morto; mandei 
recado ao vigário e ao médico. 
A primeira idéia foi retirar-me logo cedo, a 
pretexto de ter meu irmão doente, e, na 
verdade, recebera carta dele, alguns dias 
antes, dizendo-me que se sentia mal. Mas 
adverti que a retirada imediata poderia fazer 
despertar suspeitas, e fiquei. Eu mesmo 
amortalhei o cadáver, com o auxílio de um 
preto velho e míope. Não saí da sala 
mortuária; tinha medo de que descobrissem 
alguma cousa. Queria ver no rosto dos outros 
se desconfiavam; mas não ousava fitar 
ninguém. Tudo me dava impaciências: os 
passos de ladrão com que entravam na sala, 
os cochichos, as cerimônias e as rezas do 
vigário. Vindo a hora, fechei o caixão, com as 
mãos trêmulas, tão trêmulas que uma pessoa, 
que reparou nelas, disse a outra com piedade: 
— Coitado do Procópio! Apesar do que 
padeceu, está muito sentido. 
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver 
tudo acabado. Saímos à rua. A passagem da 
meia escuridão da casa para a claridade da rua 
deu-me grande abalo; receei que fosse então 
impossível ocultar o crime. Meti os olhos no 
chão, e fui andando. Quando tudo acabou, 
respirei. Estava em paz com os homens. Não o 
estava com a consciência, e as primeiras 
noites foram naturalmente de desassossego e 
aflição. Não é preciso dizer que vim logo para 
o Rio de Janeiro, nem que vivi aqui aterrado, 
embora longe do crime; não ria, falava pouco, 
mal comia, tinha alucinações, pesadelos... 
— Deixa lá o outro que morreu, diziam-me. 
Não é caso para tanta melancolia. 
E eu aproveitava a ilusão, fazendo muitos 
elogios ao morto, chamando-lhe boa criatura, 
impertinente, é verdade, mas um coração de 
ouro. E elogiando, convencia-me também, ao 
menos por alguns instantes. Outro fenômeno 
interessante, e que talvez lhe possa 
aproveitar, é que, não sendo religioso, mandei 
dizer uma missa pelo eterno descanso do 
coronel, na igreja do Sacramento. Não fiz 
convites, não disse nada a ninguém; fui ouvi-
la, sozinho, e estive de joelhos todo o tempo, 
persignando-me a miúdo. Dobrei a espórtula 
do padre, e distribuí esmolas à porta, tudo por 
intenção do finado. Não queria embair os 
homens; a prova é que fui só. Para completar 
este ponto, acrescentarei que nunca aludia ao 
coronel, que não dissesse: "Deus lhe fale 
n’alma!" E contava dele algumas anedotas 
alegres, rompantes engraçados... 
Sete dias depois de chegar ao Rio de Janeiro, 
recebi a carta do vigário, que lhe mostrei, 
dizendo-me que fora achado o testamento do 
coronel, e que eu era o herdeiro universal. 
Imagine o meu pasmo. Pareceu-me que lia 
mal, fui a meu irmão, fui aos amigos; todos 
leram a mesma cousa. Estava escrito; era eu o 
herdeiro universal do coronel. Cheguei a supor 
que fosse uma cilada; mas adverti logo que 
havia outros meios de capturar-me, se o crime 
estivesse descoberto. Demais, eu conhecia a 
probidade do vigário, que não se prestaria a 
ser instrumento. Reli a carta, cinco, dez, 
muitas vezes; lá estava a notícia. 
— Quanto tinha ele? perguntava-me meu 
irmão. 
— Não sei, mas era rico. 
— Realmente, provou que era teu amigo. 
— Era... Era... 
Assim por uma ironia da sorte, os bens do 
coronel vinham parar às minhas mãos. Cogitei 
em recusar a herança. Parecia-me odioso 
receber um vintém do tal espólio; era pior do 
que fazer-me esbirro alugado. Pensei nisso 
três dias, e esbarrava sempre na consideração 
de que a recusa podia fazer desconfiar alguma 
cousa. No fim dos três dias, assentei num 
meio-termo; receberia a herança e dá-la-ia 
toda, aos bocados e às escondidas. Não era só 
escrúpulo; era também o modo de resgatar o 
crime por um ato de virtude; pareceu-me que 
ficava assim de contas saldas. 
Preparei-me e segui para a vila. Em caminho, à 
proporção que me ia aproximando, recordava 
o triste sucesso; as cercanias da vila tinham 
um aspecto de tragédia, e a sombra do 
coronel parecia-me surgir de cada lado. A 
imaginação ia reproduzindo as palavras, os 
gestos, toda a noite horrenda do crime... 
Crime ou luta? Realmente, foi uma luta, em 
que eu, atacado, defendi-me, e na defesa... Foi 
uma luta desgraçada, uma fatalidade. Fixei-me 
nessa idéia. 
E balanceava os agravos, punha no ativo as 
pancadas, as injúrias... Não era culpa do 
coronel, bem o sabia, era da moléstia, que o 
tornava assim rabugento e até mau... Mas eu 
perdoava tudo, tudo... O pior foi a fatalidade 
daquela noite... Considerei também que o 
coronel não podia viver muito mais; estava 
por pouco; ele mesmo o sentia e dizia. Viveria 
quanto? Duas semanas, ou uma; pode ser até 
que menos. Jánão era vida, era um molambo 
de vida, se isto mesmo se podia chamar ao 
padecer contínuo do pobre homem... E quem 
sabe mesmo se a luta e a morte não foram 
apenas coincidentes? Podia ser, era até o mais 
provável; não foi outra cousa. Fixeime 
também nessa idéia... Perto da vila apertou-
se-me o coração, e quis recuar; mas dominei-
me e fui. Receberam-me com parabéns. O 
vigário disse-me as disposições do testamento, 
os legados pios, e de caminho ia louvando a 
mansidão cristã e o zelo com que eu servira ao 
coronel, que, apesar de áspero e duro, soube 
ser grato. 
— Sem dúvida, dizia eu olhando para outra 
parte. 
Estava atordoado. Toda a gente me elogiava a 
dedicação e a paciência. As primeiras 
necessidades do inventário detiveram-me 
algum tempo na vila. 
Constituí advogado; as cousas correram 
placidamente. Durante esse tempo, falava 
muita vez do coronel. Vinham contar-me 
cousas dele, mas sem a moderação do padre; 
eu defendia-o, apontava algumas virtudes, era 
austero... 
— Qual austero! Já morreu, acabou; mas era o 
diabo. 
E referiam-me casos duros, ações perversas, 
algumas extraordinárias. 
Quer que lhe diga? Eu, a princípio, ia ouvindo 
cheio de curiosidade; depois, entrou-me no 
coração um singular prazer, que eu 
sinceramente buscava expelir. E defendia o 
coronel, explicava-o, atribuía alguma coisa às 
rivalidades locais; confessava, sim, que era um 
pouco violento... Um pouco? 
Era uma cobra assanhada, interrompia-me o 
barbeiro; e todos, o coletor, o boticário, o 
escrivão, todos diziam a mesma coisa; e 
vinham outras anedotas, vinha toda a vida do 
defunto. Os velhos lembravam-se das 
crueldades dele, em menino. E o prazer 
íntimo, calado, insidioso, crescia dentro de 
mim, espécie de tênia moral, que por mais que 
a arrancasse aos pedaços recompunha-se logo 
e ia ficando. 
As obrigações do inventário distraíram-me; e 
por outro lado a opinião da vila era tão 
contrária ao coronel, que a vista dos lugares 
foi perdendo para mim a feição tenebrosa que 
a princípio achei neles. Entrando na posse da 
herança, converti-a em títulos e dinheiro. 
Eram então passados muitos meses, e a idéia 
de distribuí-la toda em esmolas e donativos 
pios não me dominou como da primeira vez; 
achei mesmo que era afetação. Restringi o 
plano primitivo: distribuí alguma cousa aos 
pobres, dei à matriz da vila uns paramentos 
novos, fiz uma esmola à Santa Casa da 
Misericórdia, etc.: ao todo trinta e dous 
contos. Mandei também levantar um túmulo 
ao coronel, todo de mármore, obra de um 
napolitano, que aqui esteve até 1866, e foi 
morrer, creio eu, no Paraguai. 
Os anos foram andando, a memória tornou-se 
cinzenta e desmaiada. Penso às vezes no 
coronel, mas sem os terrores dos primeiros 
dias. Todos os médicos a quem contei as 
moléstias dele, foram acordes em que a morte 
era certa, e só se admiravam de ter resistido 
tanto tempo. Pode ser que eu, 
involuntariamente, exagerasse a descrição que 
então lhes fiz; mas a verdade é que ele devia 
morrer, ainda que não fosse aquela 
fatalidade... 
Adeus, meu caro senhor. Se achar que esses 
apontamentos valem alguma coisa, pague-me 
também com um túmulo de mármore, ao qual 
dará por epitáfio esta emenda que faço aqui 
ao divino sermão da montanha: "Bem 
aventurados os que possuem, porque eles 
serão consolados." 
Análise 
O conto, O enfermeiro é narrado em 1º pessoa 
pelo protagonista-narrador Procópio. Ele é 
convidado a cuidar de um velho enfermo, o 
coronel Felisberto, homem muito rude, o qual 
acaba sendo morto "acidentalmente" por 
Procópio. Essa obra literária começa com 
Procópio, já velho e à beira da morte, 
narrando a sua história sobre os meses 
infernais que passara ao lado do coronel, 
como se pode verificar no trecho que segue: 
"Parece-lhe que o que se deu comigo em 
1860, pode entrar numa página de livro? Vá 
que seja, com a condição única de que não há 
de divulgar nada antes da minha morte. Não 
esperará muito, pode ser que oito dias, se não 
for menos; estou desenganado. Olhe, eu podia 
mesmo contar-lhes minha vida inteira, em que 
há outras cousas interessantes, mas para isso 
era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só 
tenho papel; o ânimo é frouxo, e o tempo 
assemelha-se à lamparina de madrugada (...) 
Não tarde o sol do outro dia, um sol dos 
diabos, impenetrável como a vida. Pediu-me 
um documento humano, ei-lo aqui". 
O Enfermeiro é um típico relato machadiano. 
Humano, porém irônico e distanciado, 
trabalha com a imperfeição ética das 
personagens que são, claro, representantes 
típicos da espécie. O ceticismo de Machado 
levava-o a avaliar objetivamente a condição 
moral de seus semelhantes. Podemos notar 
que, após a morte do coronel Felisberto 
Procópio sentia-se culpado, mas com o passar 
do tempo a culpa foi cada vez ficando menor 
aos seus olhos. 
O homem é mais uma vez retratado por 
Machado como um ser corrompido, egoísta, 
ingrato, oportunista e preso às forças 
malignas. Tais características podem ser 
observadas tanto em Procópio quanto no 
Coronel Felisberto. Esse pessimismo 
Machadiano em retratar a humanidade 
evidencia uma certa "má vontade" do autor 
em julgar o ser humano e a vida de uma 
maneira geral. Isto pode ser bem percebido no 
trecho abaixo: 
"(...) Era homem insuportável, estúrdio, 
exigente, ninguém o aturava, nem os próprios 
amigos. Gastava mais enfermeiros que 
remédios. A dous deles quebrou a cara. (...) Se 
fosse só rabugento, vá; mas ele era também 
mau, deleitava-se com a dor e a humilhação 
dos outros. (...) Já por esse tempo tinha eu 
perdido a escassa dose de piedade que me 
fazia esquecer os excessos do doente; trazia 
dentro de mim um fermento de ódio e 
aversão". 
Outro dado importante a destacar é a 
tematização da morte, a qual está vinculada, 
ao mesmo tempo, à decomposição moral – se 
julgarmos que foi o enfermeiro o causador de 
tal fato – e a decomposição carnal – se 
considerarmos a doença como causadora do 
falecimento do coronel. Esse teor dramático 
dado ao contemporâneo está relacionado à 
tragédia, a qual Machado acreditava ser o 
tema central da vida. Para ele, os melhores 
momentos da arte concentram-se na visão 
trágica da existência humana, como se pode 
observar nessa passagem: 
"Quando percebi que o doente expirava, 
recuei aterrado, e dei um grito; mas ninguém 
me ouviu. Voltei à cama, agitei-o para chamá-
lo à vida, era tarde; arrebentara o aneurisma, 
e o coronel morreu. Passei à sala contígua, e 
durante duas horas não ousei voltar ao 
quarto. Não posso mesmo dizer tudo o que 
passei, durante esse tempo. Era um 
atordoamento, um delírio vago e estúpido. (...) 
digo-lhe que eu ouvia distintamente umas 
vozes que me bradavam: assassino! 
Assassino!". 
Durante a leitura, há uma mudança gigantesca 
não apenas nos perfis psicológicos das 
personagens como também em nossas 
próprias convicções iniciais. O enfermeiro 
passa de vítima da rudeza do Coronel à 
responsável pela morte do mesmo. O Coronel, 
de vilão e ingrato passa a ser visto como uma 
pessoa com um imenso sentimento de 
gratidão, ao deixar para o seu enfermeiro toda 
a sua fortuna. Logo, há um deslocamento de 
um esquema maniqueísta, onde se acredita 
que existam pessoas boas e pessoas ruins. 
Machado nos quer mostrar, portanto, que 
ninguém é tão bom ou tão mau quanto possa 
parecer. Os trechos que seguem ilustram bem 
esse fato, mostrando, na figura do enfermeiro, 
o modo como Machado representava esse 
conflito interior do ser humano entre o bem e 
o mal: 
"Queria ver no rosto dos outros se 
desconfiavam; mas não ousava fitar ninguém. 
Tudo me dava impaciências (...) Vindo a hora, 
fechei o caixão, com as mãos trêmulas, tãotrêmulas que uma pessoa, que reparou nelas, 
disse a outra com piedade: 
- Coitado do Procópio! apesar do que padeceu 
está muito sentido. 
Pareceu-me ironia; estava ansioso por ver 
tudo acabado. (...) Assim, por uma ironia da 
sorte, os bens do coronel vinham parar às 
minhas mãos. Cogitei em recusar a herança. 
(...) No fim dos três dias, assentei num meio-
termo; receberia a herança e dá-la-ia toda, aos 
bocados e às escondidas. Não era só 
escrúpulo; era também o modo de resgatar o 
crime por um ato de virtude; pareceu-me que 
ficava assim de contas saldas (...) na posse da 
herança, converti-a em títulos e dinheiro. 
Eram então passados muitos meses, e a idéia 
de distribui-la toda em esmolas e donativos 
pios não me dominou como da primeira vez; 
achei mesmo que era afetação (...)". 
Ao término desse conto, algumas dúvidas 
insistem em nos intrigar: Qual seria a real 
intenção de Procópio ao aceitar o serviço de 
enfermeiro? Será que ele foi o responsável 
pela morte de Felisberto, ou esta foi fruto da 
enfermidade? E quanto ao Coronel, será que 
ele era tão mau quanto parecia? Será que 
Felisberto não deixou a herança para o 
enfermeiro somente porque não tinha para 
quem deixar, ou até mesmo por simples 
arrependimento? E Quanto ao relato inicial de 
Procópio, este não tinha um tom de 
arrependimento, como se ele dissesse "Perdoe 
o meu pecado" - no caso, a morte do Coronel? 
Observe essa passagem, extraída do relato 
inicial do enfermeiro: 
"Adeus, meu caro senhor, leia isto e queira-me 
bem; perdoe-me o que lhe parecer mau, e não 
maltrate muito a arruda, se lhe não cheira a 
rosas (...)". 
Será isto uma possível confissão de Procópio? 
Observe outra passagem, extraída dos 
momentos finais do texto: 
"Todos os médicos a quem contei as moléstias 
dele, foram acordes em que a morte era certa, 
e só se admiravam de ter resistido tanto 
tempo". 
Nesse trecho residiria a constatação da 
inocência de Procópio, ou seria apenas um 
álibi que ele se utilizava para provar sua 
inocência? Enfim, tais questionamentos são 
frutos de uma técnica Machadiana, a qual se 
baseia em instaurar as dúvidas, ou seja, é a 
arte da sugestão, onde se espera que o leitor 
seja co-participante do texto, completando-o. 
Concluímos, com isso, que Procópio –o 
enfermeiro- tinha uma aspecto de submissão 
ao coronel. Já o coronel Felisberto utilizava-se 
de autoritarismo. Procópio faz um flash-back 
dos dias em que trabalhou como enfermeiro, 
fato que acontecera entre os anos de 1859 e 
1860. 
E como todo o conto Machadiano, ele coloca 
na mão do leitor a tarefa de julgar, decidir, 
como lhe bem entender, fato que se dá no 
trecho citado a seguir: 
"... perdoe-me o que lhe parecer mau.” 
 
 
 
 
 
 
O caso da vara, de Machado de Assis: a sutileza na construção das personagens 
Em O caso da vara, as sutilezas das relações 
interpessoais permeiam e dão o tom da 
estória. Como em todas as outras obras de 
Machado, o enredo do conto é simples; os 
pequenos detalhes é que são importantes e 
reveladores. Aliás, em toda sua obra, Machado 
faz emergir a natureza humana, o caráter de 
cada personagem, por meio de fatos 
cotidianos, aparentemente comezinhos. 
Machado parece ter elaborado tipos 
psicológicos, uma tipologia de caracteres, 
dentre os quais parece escolher personas que 
são testadas em situações-limite, numa 
espécie de análise combinatória, ou de uma 
matriz, em que as bases são compostas pelo 
caráter dos personagens e pelos episódios que 
exigem uma tomada de decisão. O resultado 
dessas combinações sempre revela as razões 
egocêntricas que movem cada um, como se 
uma pessoa somente se constituísse nas 
interações, na relação com a outra pessoa. 
Como em Dom Casmurro, nesse conto há a 
rejeição do seminário por parte de Damião, o 
protagonista, que tem interesse que seu pai 
seja convencido de que ele, Damião, não tem 
vocação para ser padre. Dessa forma, para 
atingir seu objetivo, se livrar definitivamente 
do seminário, Damião envolve três pessoas em 
sua trama, uma exercendo poder sobre a 
outra em benefício dele. 
Ao fugir do seminário, em razão 
da impossibilidade de retornar à sua casa, 
onde estava o pai que o devolveria 
imediatamente ao seminário, Damião começa 
a “inventariar” mentalmente quem poderia 
acolhê-lo até o pai ser persuadido a aceitar 
sua desistência do seminário. Pensa em seu 
padrinho, João Carneiro, para dissuadir o pai 
da ideia de mantê-lo no seminário, mas como 
o padrinho é um “moleirão sem vontade, que 
por si só não faria cousa útil”, ele decide 
convencer uma amiga de seu padrinho, a viúva 
Sinhá Rita, a interceder em seu favor, 
persuadindo o padrinho a falar com o seu pai. 
À primeira vista, o conto parece tratar da fuga 
de Damião do seminário e de suas articulações 
e manipulações para se safar da vida religiosa. 
Sua condição é caracterizada pelos adjetivos 
“espantado, medroso, fugitivo” e o leitor 
realmente torce para que ele seja ajudado. 
Assim, nessa primeira parte do conto, o 
protagonista parece ser a vítima de um 
destino traçado por razões alheias à sua 
vontade. No entanto, já nesse começo, 
Machado apresenta indícios de que Damião 
não é a vítima que parece. 
Sendo João Carneiro compadre de seu pai, 
parece ser ele a pessoa mais adequada para 
uma aproximação física e amistosa do pai de 
Damião. Contudo, como o padrinho, movido 
por si só, não agiria em favor de Damião, 
rapidamente, o seminarista escolhe Sinhá Rita, 
uma “amiga querida” do padrinho; essa 
escolha se deu porque ele “tinha umas idéias 
vagas dessa situação e tratou de a aproveitar” 
Ainda assim, embora não pareça ser uma 
vítima “tão vitimizada”, o seminarista continua 
a ser o desvalido do conto. Até surgir Lucrécia. 
Nesse momento, o seminário passa a ser um 
fator secundário e entra em evidência outro 
episódio do qual o seminarista, embora esteja 
na cena principal, não pode ser considerado o 
herói da estória. 
Ao aguardar que o padrinho fosse contatado 
para em seguida interceder em seu favor, 
Damião se mantém na casa de Sinhá Rita, 
onde conta anedotas, causando o riso da viúva 
e das crias dela, que faziam trabalhos de 
bordado. Entre as crias, há Lucrécia, com onze 
anos, que por rir das anedotas de Damião, o 
que acarretaria o atraso da tarefa, é 
ameaçada, com uma vara, por Sinhá Rita. Ao 
perceber a situação, Damião tem pena da 
negrinha e promete para si mesmo que, caso 
ela não terminasse a tarefa, ele a 
apadrinharia. 
No entanto, na hora de recolher os trabalhos 
das crias, Sinhá Rita percebe que apenas 
Lucrécia não havia terminado sua tarefa. 
Furiosa, a viúva agride a negrinha, que foge 
para dentro, chorando e pedindo perdão. 
Sinhá Rita, irredutível, agarra a negrinha pela 
orelha e pede a vara a Damião. O seminarista 
fica indeciso por alguns instantes, escuta as 
súplicas que a negrinha lhe faz e lembra-se 
que tinha jurado a apadrinhá-la, já que foi por 
causa dele que ela atrasara o trabalho. 
Pressionado, tanto pelo pedido da viúva 
quanto pelas súplicas de Lucrécia, Damião 
entrega a vara a Sinhá Rita. E o conto termina. 
Nessa passagem, em que há a inserção da 
personagem Lucrécia, o conto parece tomar 
outra direção. Até então, Damião era o 
desvalido da narrativa. No entanto, a questão 
do seminário e o impasse sobre a cadeia de 
influências (Damião que convence Sinhá Rita, 
que convence João Carneiro, que deve tentar 
convencer o pai de Damião) se torna 
secundária. Os personagens principais passam 
a apresentar características que antes não 
apareciam, e as que já apareciam se tornam 
inexpressivas. Sinhá Rita, que se destacava 
pela vaidade, mostra-se implacável e cruel; 
Damião, o desprotegido que implorava a 
interferência de pessoas que tinham 
condições de ajudá-lo a se livrar do seminário, 
não consegueinterferir em favor de quem 
implora sua ajuda e, em vez de ajudar, auxilia 
na punição. Neste último caso, ainda há uma 
agravante: Lucrécia seria punida, em parte, 
por culpa de Damião. Dessa forma, a recusa 
do seminarista em ajudar a negrinha 
transforma a vítima inicial do conto, Damião, 
em algoz. 
Por intermédio desses episódios, já é possível 
perceber que nas relações propostas por 
Machado é tocante a falta de alteridade. É 
curioso que o outro, o “não-eu”, pareça pouco 
importar numa situação em que o “eu” se 
define na relação com o outro. Isso nos faz 
considerar que, para Machado, a distinção 
entre as pessoas está na relação de poder 
estabelecida entre elas. Nesse conto, as 
relações de poder são determinadas por 
fatores sócio-econômicos, sexuais e 
situacionais. 
Na relação entre Sinhá Rita e Damião, a viúva 
se destaca pela vaidade, a qual, quando 
“alimentada” pelo seminarista, impulsiona-a a 
ajudá-lo. É notável a rapidez com que Damião 
conclui traços do caráter do padrinho e da 
viúva, usando um para influenciar o outro: 
 “— Meu padrinho? Esse é ainda pior que 
papai; não me atende, duvido que atenda a 
ninguém… — Não atende? interrompeu Sinhá 
Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro 
se atende ou não…”. 
 O seminarista logo percebe que apelando à 
vaidade de Sinhá Rita, de forma sutil e 
dissimulada, ele alcançaria seu intento. 
Entre Sinhá Rita e João Carneiro há uma 
relação de dominação sexual, em que a 
autoritária viúva exerce um poder sobre o 
padrinho, como é demonstrada na seguinte 
passagem: “Joãozinho, ou você salva o môço, 
ou nunca mais nos vemos.”. 
Já entre Sinhá Rita e Lucrécia novamente é 
preponderante a dominação da viúva. No 
entanto, dessa vez, a relação de propriedade 
que os senhores mantêm com seus escravos 
determina a predominância de uma cultura 
escravocrata e patriarcal e estabelece 
contrastes entre etnias e classes sociais. 
Entre Damião e Lucrécia é marcante o 
egoísmo do protagonista. Embora nessa 
situação também esteja em jogo uma relação 
de poder, não é uma cultura patriarcal ou 
escravocrata que move o seminarista, nem 
mesmo ele tem intenção de subjugar a 
menina. Ele, em sua condição de homem 
branco e bem colocado socialmente, só quer 
se dar bem. 
A decisão tomada por Damião parece ainda 
mais egoísta quando é projetada a imagem da 
cena, pouco descrita por Machado, mas 
sutilmente insinuada por ele. De um lado há 
Sinhá Rita, viúva, branca e bem relacionada. 
De outro lado há Lucrecia, “uma negrinha 
magricela, um frangalho de nada, com uma 
cicatriz na testa e uma queimadura na mão 
esquerda”. A cor da pele, a constituição física 
e as cicatrizes caracterizam a situação da cria: 
uma escrava subnutrida que frequentemente 
é punida. É no confronto das condições dessas 
duas personagens que Damião resolve ficar de 
seu próprio lado. 
Em termos de personalidade, os dois 
personagens-chave do conto são Damião e 
Sinhá Rita: a viúva tem personalidade mais 
forte, e o seminarista é mais perspicaz e 
manipulador. Porém, tanto um quanto o outro 
se define de maneira mais marcante na 
relação com Lucrécia. É a condição da 
pequena escrava que faz aflorar o traço mais 
impactante de cada um. 
A relação de domínio apresentada por Sinhá 
Rita é determinada por fatores sócio-
econômicos. Embora sua característica de 
subjugar o outro por meio de um exercício de 
poder – ou mais precisamente de um abuso de 
poder – a torne mais implacável, Sinhá Rita é 
um tipo previsível e manipulável. 
Já Damião tem uma personalidade 
camaleônica que se mostra e se adapta de 
acordo com as exigências dos fatos. Esse 
caráter situacional do personagem o torna um 
sobrevivente em qualquer circunstância. 
Quando ele ainda era o desvalido do conto, 
mesmo que um desvalido situacional, Sinhá 
Rita o ajudou, atendendo a suas súplicas. Mas 
quando a desvalida é Lucrécia, escrava 
humilhada, socialmente desvalorizada e com 
marcas de castigo, Damião não a ajuda, sob o 
risco de perder a influência da viúva, mesmo 
diante das súplicas da escrava. Assim, para 
conseguir sua própria sobrevivência, as ações 
do seminarista são motivadas por razões 
egoístas, fazendo-o agir sempre no sentido de 
salvar a própria pele, custe o que custar a 
quem custar. 
Se fosse o caso de concluir uma moral para a 
história, nesse conto Machado parece nos 
dizer que uma pessoa é muito mais do que 
aquilo que conhecemos dela, na relação que 
temos com ela. Outra coisa que ele parece nos 
mostrar é que no confronto entre a condição 
historicamente marginal do outro – que não é 
apenas um, mas toda uma coletividade que 
pena um atavismo de exclusão – vão valer as 
razões do indivíduo, tipo social moderno, em 
situação de alguma espécie de desconforto. 
Mesmo que seja apenas ocasional. 
 
 
 
 
 
 
ANÁLISE DO CONTO "PAI CONTRA MÃE” 
3.1 Elementos estruturais da narrativa literária 
A narrativa literária é um texto centrado em um 
acontecimento, possuindo elementos estruturais 
básicos como enredo, personagens, espaço e 
tempo, relatado por um narrador. 
Os fatos de uma história não precisam ser 
necessariamente verdadeiros mas devem ser 
verossímeis; isto significa que, mesmo sendo 
inventados, o leitor deve acreditar no que está 
lendo. Gancho (2008, p. 12) preconiza que “a 
verossimilhança é uma peculiaridade da narrativa 
definida como “lógica interna do enredo, que o 
torna verdadeiro para o leitor: verossimilhança é 
pois, a essência do texto de ficção.” 
3.2 Enredo Para se entender a organização dos 
fatos no enredo, “não basta perceber que toda 
história tem começo, meio e fim; é preciso 
compreender o elemento estruturador das partes: 
o conflito” (Gancho, 2008, p. 12). Este, geralmente, 
determina as partes do enredo: exposição, 
complicação, clímax e desfecho. 
O conto “Pai contra Mãe” é uma narrativa 
publicada, em 1906, na obra “Relíquias da casa 
velha” e ambientada no Rio de Janeiro, nos tempos 
do Brasil imperial, tendo como assunto, a história 
de um caçador de escravos pobre que, para poder 
ficar com seu filho recém-nascido, tem que 
entregar uma escrava negra fugitiva e grávida, 
recebendo por esta a sua recompensa. O tema 
abrange a escravidão, a discriminação e dominação 
raciais, e a mensagem, o jogo de poder na luta pela 
sobrevivência. 
3.2.1 Exposição Gancho (2008, p. 13) afirma que a 
Exposição (ou introdução ou apresentação) “é a 
parte na qual se situa o leitor diante da história”. 
 Descrição dos instrumentos aplicados na tortura 
aos negros, da perda dos escravos fujões e do 
ofício de capturá-los: 
“A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, 
como terá sucedido a outras instituições sociais. 
Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a 
certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro 
o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-
de-flandres. [...] Ora, pegar escravos fugidios era 
um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser 
instrumento da força com que se mantêm a lei e a 
propriedade, trazia esta outra nobreza implícita 
das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em 
tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a 
necessidade de uma achega, a inaptidão para 
outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de 
servir também, ainda que por outra via, davam o 
impulso ao homem que se sentia bastante rijo para 
pôr ordem à desordem.” (Duarte, 2007, p. 
147/148) 
3.2.2 Complicação Na lição de GANCHO (2008, 12), 
a Complicação (ou desenvolvimento) “constitui a 
maior parte da narrativa, na qual agem forças 
auxiliares e opositoras ao desejo da personagem e 
que intensificam o conflito”. 
Apresentação do personagem Cândido Neves, seu 
ofício, seu casamento com Clara e o nascimentodo 
filho: 
“Cândido Neves, -- em família, Candinho --, é a 
pessoa a quem se liga a história de uma fuga, 
cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar 
escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse 
homem, não agüentava emprego nem ofício, 
carecia de estabilidade; é o que ele chamava 
caiporismo. Começou por querer aprender 
tipografia, mas viu cedo que era preciso algum 
tempo para compor bem, e ainda assim talvez não 
ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si 
mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era 
carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro 
para um armarinho. A obrigação, porém, de 
atender e servir a todos feria-o na corda do 
orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava 
na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo 
de uma repartição anexa ao Ministério do Império, 
carteiro e outros empregos foram deixados pouco 
depois de obtidos. [...] Voltou para a triste casa que 
lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si 
mesma a dieta para a 21 recente mãe, e tinha já o 
menino para ser levado à Roda. O pai, não 
obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor 
do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica 
lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. 
Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum 
prestava. Não podia esquecer o próprio albergue 
em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou 
resignada. Tia Mônica pintaralhe a criação do 
menino; seria maior a miséria, podendo suceder 
que o filho achasse a morte sem recurso. “(Duarte, 
2007, p. 148/156) 
3.2.3 Clímax Para Gancho (2008, p. 12) o Clímax é 
“o momento culminante da história, o momento 
de maior tensão, no qual o conflito chega a seu 
ponto máximo”. 
 A saída para entrega do filho à Roda dos 
Enjeitados, o encontro com Arminda, a negra 
fugida, sua captura e a entrega ao seu senhor: 
“Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; 
pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite 
que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno 
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da 
Rua dos Barbonos. [...] O fruto de algum tempo 
entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da 
mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido 
Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que 
horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à 
Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer 
conhecer as conseqüências do desastre.” (Duarte, 
2007, p. 156/158) 
 3.2.4 Desfecho 
Gancho apregoa (2008, p. 12) que o Desfecho (ou 
desenlace ou conclusão) é a “solução dos conflitos, 
boa ou má, vale dizer configurando-se num final 
feliz ou não”. 
 A volta para casa com a recompensa e o filho: 
“Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, 
sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. 
Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; 
o menino estava lá dentro com a família, e ambos 
entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria 
com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria 
diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu 
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda 
dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo 
com o filho e os cem milréis de gratificação. Tia 
Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do 
pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, 
é verdade, algumas palavras duras contra a 
escrava, por causa do aborto, além da fuga. 
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, 
verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do 
aborto. 22 -- Nem todas as crianças vingam, bateu-
lhe o coração.” (Duarte, 2007, p. 158) 
3.3 Personagens 
Quanto ao papel desempenhado no enredo, 
Cândido Neves e Arminda são os personagens 
principais em oposição, que através do embate 
travado, sai vencedor o primeiro, o mais “forte”, 
apesar de sua fraqueza moral e instabilidade 
emocional, em razão da legitimidade concedida 
pelo poder da classe dominante: 
Cândido Neves, chamado de Candinho, em família, 
tem 30 anos, livre, pobre, cuja ocupação que 
escolheu é vaga pois “passa semanas sem vintém“. 
Possui o ofício de “pegar escravos fugidos”. Seu 
defeito grave é o de não aguentar emprego nem 
ofício; falta-lhe estabilidade. Acumula dívidas e 
mora com um primo. Quisera efetivamente fazer 
outra coisa, pelo simples gosto de trocar de ofício, 
porém não achava à mão nenhum negócio que 
aprendesse depressa. 
Arminda é negra e escrava fugida que está 
esperando um filho. 
Os personagens secundários, são Clara, esposa de 
Cândido Neves, 22 anos de idade, órfã, e mora com 
uma tia e deseja muito se casar; Mônica, tia de 
Clara cuja profissão é a de costurar, bem como o 
farmacêutico, senhor de Arminda. 
Cumpre ressaltar que determinados personagens 
possuem nomes que não correspondem à 
realidade de suas personalidades. O personagem 
de nome Cândido que nos remete a uma relação 
de pureza e inocência, é rude e possui um caráter 
duvidoso. Por sua vez, Clara, nome da mulher de 
Cândido, que evoca uma matiz que pressupõe luz, 
apresenta-se como apagada e submissa. 
 3.4 Tempo 
No primeiro parágrafo o narrador informa que “a 
escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como 
terá sucedido a outras instituições sociais”. Como o 
tempo verbal desta oração é o pretérito perfeito, 
“levou”, a trama que irá narrar já terminou, não 
mais existe. Mas em seguida, mais precisamente, 
no terceiro parágrafo, o narrador afirma que “há 
meio século, os escravos fugiam com freqüência”, 
levando a crer que a ação se passa no final do 
Brasil-império. 
O tempo cronológico vem a ser “o tempo que 
transcorre na ordem natural dos fatos no enredo, 
isto é, do começo para o final. Está, portanto, 
ligado ao enredo linear [...]; chama-se cronológico 
porque é mensurável em horas, dias, meses, anos, 
séculos. (GANCHO, 2008, p. 25). Ora, o conto em 
tela compreende o período desde em que, o 
protagonista, no início, é solteiro e vai até o 
nascimento do filho que teve com Clara, a moça 
com quem se casou. Entretanto, no nono parágrafo 
do texto em questão há uma única referência 
expressa e delimitada de tempo: 
“O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu 
Cândido Neves, sentiu que era este o possível 
marido, o marido verdadeiro e único. O encontro 
deu-se em um baile; tal foi - para lembrar o 
primeiro ofício do namorado, - tal foi a página 
inicial daquele livro, que tinha de sair mal 
composto e pior brochado. O casamento fez-se 
onze meses depois, e foi a mais bela festa das 
relações dos noivos.” (grifo meu) 
 3.5 Ambiente 
Ambiente, para Gancho (2008, p. 27) “é o espaço 
carregado de características socioeconômicas, 
morais e psicológicas em que vivem as 
personagens. Neste sentido, ambiente é um 
conceito que aproxima tempo e espaço, pois é a 
confluência deste dois referenciais, acrescida de 
um clima”. 
As principais funções do ambiente são as de situar 
os personagens no tempo, espaço e nas condições 
em que vivem, projetar os conflitos vividos pelos 
personagens, além de oferecer indícios para o 
desenrolar da narrativa. 
O ambiente deste conto é da época ubana em que 
o Brasil vive sob à égide da instituição da 
escravatura. A violência e a hipocrisia da sociedade 
tem o apoio das convenções sociais, legalizada 
para impor a “ordem social e humana” aos 
dominados. A situação socioeconômica dos 
personagens é muito precária, vivendo com 
dificuldades financeiras enormes, beirando a 
miséria. O clima é de muita frieza, violência e 
tensão. 
3.6 Narrador 
O narrador é o encarregador de contar ou narrar os 
acontecimentos em uma obra literária. Em relação 
aos tipos de narrador, Gancho(2008, p. 31) explica: 
 “Dois são os termos mais usados pelos manuais de 
análise literária, para designar a função do 
narrador na história: foco narrativo e ponto de 
vista (do narrador ou da narração). Tanto um 
quanto outro se referem à posição ou perspectiva 
do narrador frente aos fatos narrados. Assim, 
teríamos dois tipos de narrador, identificados à 
primeira vista pelo pronome pessoal usado na 
narração: primeira ou terceira pessoa (do 
singular)”. 
 No Conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, 
o narrador se posiciona, ora fora dos fatos 
narrados, tipificando o narrador observador, ora 
dentro, ou seja, falando com o leitor ou julgando 
diretamente o comportamento dos personagens, 
chamado este de narrador “intruso”, conforme, a 
título de exemplo, denota-se da narrativa: 
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, 
como terá sucedido a outras instituições sociais. 
Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a 
certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro 
o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-
de-flandres. A máscara fazia perder o vício da 
embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. 
Tinha só três buracos, dois para ver, um para 
respirar, e era fechada atrás da cabeça por um 
cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação 
de furtar, porque geralmente era dos vinténs do 
senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí 
ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a 
honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas 
a ordem social e humana nem sempre se alcança 
sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros 
as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. 
Mas não cuidemos de máscaras. O ferro ao 
pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai 
uma coleira grossa, com a haste grossa também à 
direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e 
fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, 
mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia 
assim, onde quer que andasse, mostrava um 
reincidente, e com pouco era pegado. Há meio 
século, os escravos fugiam com freqüência. Eram 
muitos, e nem todos gostavam da escravidão. 
Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e 
nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande 
parte era apenas repreendida; havia alguém de 
casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não 
era mau; além disso, o sentimento da propriedade 
moderava a ação, porque dinheiro também dói. A 
fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda 
que raros, em que o escravo de contrabando, 
apenas comprado no Valongo, deitava a correr, 
sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam 
para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao 
senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo 
fora, quitandando. (grifo meu).” 
 Destarte, é possível afirmar que o tempo da 
narração é após a abolição, enquanto o narrado é 
durante o período escravagista. O narrador 
também descreve os instrumentos de tortura 
utilizados na época da escravidão, a função de cada 
aparelho, mas, em certo momento, ele interrompe 
a descrição para instigar o leitor acerca dos seus 
sentidos visuais e imaginar as sensações do 
sofrimento. Há, ainda, a presença do discurso 
direto, em que os personagens dialogam 
diretamente, mesclado com o discurso indireto, no 
qual o narrador intermedia a conversa do 
personagem com o leitor. 
3.7 Análise Crítica 
Machado de Assis questiona e denuncia, com 
extrema destreza, o panorama traçado com a 
instituição da escravidão e suas nefastas 
conseqüências. Não obstante, foi acusado de 
cidadão omisso perante os problemas de seu 
tempo. Duarte reproduz discurso de um dos 
intelectuais do movimento negro, Ironides 
Rodrigues (Duarte apud Rodrigues, 2007, p.9): 
 “[Machado] exprimia-se como um escritor branco 
que não sentisse o mínimo de sangue negro 
correndo em seu coração. É o patrono da 
Academia Brasileira de Letras, numa prova de sua 
branquitude de inspiração, ficando à margem e 
pouco se preocupando com movimento sociais do 
seu tempo, como a Abolição e a República.” 
Entretanto, não é isso que se percebe da leitura de 
sua obra. Ao contrário, o posicionamento do 
escritor frente ao sistema patriarcal e escravista, 
encontra-se registrado, em várias obras suas e 
sobretudo neste brilhante texto literário. 
Descreve o autor os instrumentos de tortura 
utilizados nos escravos e o ofício de capturá-los 
para em seguida apresentar o protagonista da 
narrativa, Cândido Neves, sujeito pobre, que, por 
não se adaptar a nenhum ofício da época, torna-se 
caçador de escravos. Mais tarde, conhece Clara 
com quem se casa e tem um filho. Desesperado, 
por não poder sustentá-lo, a providência se 
encarrega de fazê-lo encontrar uma negra fugida, 
Arminda, cuja polpuda recompensa é oferecida, e 
que por conta de sua captura, acaba por perder o 
filho que também espera. 
 Nos entremeios de sua narrativa, marcada por 
uma linguagem correta, clássica, com frases curtas 
e pelo diálogo com o leitor, salpicada com uma fina 
ironia e disfarçada indiferença, o notável escritor, 
delata todo o horror da escravidão, assim 26 como 
o egoísmo, humano, a degradação social e moral a 
que os personagens Cândido e Arminda são 
submetidos, e a proximidade na condição de 
miserável tanto do branco livre quanto o negro 
escravo. 
Entretanto, mesmo próximos à miséria, o homem e 
pai, livre e branco, que acredita ser superior à 
escrava, negra e mãe, vinga, em detrimento desta, 
considerada mera mercadoria, em razão da 
proteção que o perverso sistema social da época 
lhe confere. 
 É sabido que a escravidão teve seu início no Brasil 
durante o período colonial, quando os 
portugueses, para explorar o comércio do pau-
brasil, utilizaram o trabalho dos negros, após a 
malsucedida tentativa de explorar os índios que 
aqui habitavam, vindos principalmente de 
Moçambique, Angola e Guiné para o Brasil e 
transportados nos chamados “navios negreiros”, 
em condições extremamente precárias, 
desembarcavam nos portos, sobretudo, do Rio de 
Janeiro, Recife e Salvador. 
O tráfico de escravos negros perdurou até 1850. 
Foi, então, promulgada a Lei do Ventre Livre, em 
1871, que garantia a liberdade aos filhos dos 
escravos. Finalmente, em 1888, foi decretada a lei 
que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, 
intitulada de Lei Áurea, assinada pela Princesa 
Isabel. Consequentemente, houve uma intensa 
miscigenação de grupos raciais, decorrente, 
sobretudo, da fusão dos europeus, negros, índios e 
mulatos, na população brasileira. De lá para cá 
muita coisa aconteceu. 
 Contudo, o Brasil atual continua sendo um país de 
grandes contrastes sociais, especialmente no que 
diz respeito ao aspecto racial. Conforme dados 
noticiados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e 
Estatística – IBGE, ao divulgar um estudo especial 
da Pesquisa Mensal de Emprego, em setembro de 
2006, dão conta de que a população 
declaradamente preta ou parda tem menos 
escolaridade e um rendimento médio equivalente 
à metade do recebido pela população branca, na 
média das seis regiões metropolitanas 
investigadas. 
 O olhar sensível do escritor deixa um relato 
bastante atual, apesar de escrito no final do século 
XIX. 
 
 
 
 
 
 
 
ESSES LOPES – GUIMARÃES ROSA 
RESUMO 
O presente artigo objetiva realizar uma análise do 
conto “Esses Lopes”, de João Guimarães Rosa. No 
texto literário em questão, o leitor se depara com 
uma narradora-personagem, a Flausina, que relata 
as diversas formas de violência vividas em sua 
juventude; bem como o detalhamento dos 
artifícios,por ela utilizados, para se livrar de seus 
sofrimentos. Para tal análise, primeiramente, será 
observada a opção narrativa do autor, recorrente 
em sua obra, em uma breve tentativa de 
localização da obra de Rosa no panorama literário 
brasileiro. Em seguida, será destacada a 
importância, para a construção do enredo, desta 
modalidade de narrador, que conta uma história da 
qual participou como protagonista. A análise segue 
com a evidenciação da pertinência, ainda atual, da 
abordagem da violência contra a mulher – tema 
que é tratado no conto em questão. Nesta análise 
será destacado, ainda, o modo pelo qual a 
narradora tenta superar seus traumas a partir da 
concretização de planos ardilosos e fatais contra 
seus opressores, tentando justificar, em seu 
discurso, suas ações, também violentas. 
Empregam-se considerações teóricas de Bosi 
(1988), Genette (19--) e Reis; Lopes (1988), para 
auxiliar a tarefa analítica. Espera-se, com o 
presente artigo, refletir acerca da opção do foco 
narrativo e sua pertinência para a construção dos 
significados no conto. 
O conto escolhido para esta análise é Esses Lopes, 
um dos quarenta contos de Tutameia. Nele, Rosa 
deu voz a uma narradora-personagem que conta 
sua própria estória a um interlocutor inominado. 
Esse procedimento narrativo faz parte de sete 
contos dessa obra rosiana e traz para a narrativa 
uma visão “de dentro” da estória3 . Nesse conto, a 
narradora relata a situação traumática pela qual 
passou, tratando de um assunto vigente até nossos 
dias: a violência, por vezes silenciosa, contra a 
mulher. Nesse caso, o universo ficcional literário dá 
margem para tratar de um assunto delicado, que 
talvez a própria sociedade da época não atribuísse 
a devida atenção. 
Deixando brevemente o campo literário e 
observando as práticas sociais e políticas, nota-se, 
nas últimas décadas, uma maior preocupação com 
a questão da violência contra mulheres no Brasil, 
como é possível observar, a partir da criação de 
dispositivos legais para aumentar o rigor na 
punição de crimes contra a mulher, como, por 
exemplo, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei 
Maria da Penha. De modo semelhante, a 
instituição de delegacias da mulher demonstra 
maior atenção ao problema. O anseio de mudança 
pode ser notado ainda com a criação de diretrizes e 
políticas públicas para as mulheres, incluindo 
formas de enfrentamento às formas de violência 
contra as mulheres, que constituem “uma das 
principais formas de violação dos seus direitos 
humanos”. (BRASIL, 2008, p. 95) No entanto, 
apesar dos esforços de diversos movimentos 
sociais e instituições, a violência contra as 
mulheres ainda se faz presente, como atesta, 
segundo Gonçalves (2013), Eleonora Menicucci, ex-
ministra da Secretaria de Políticas para as 
Mulheres. 
 Voltando ao universo ficcional dos contos de 
Guimarães Rosa, nota-se sua ambientação em um 
momento anterior a esse descrito acima, em que a 
personagem precisa se valer de seus próprios 
métodos, ainda que violentos, para se livrar da 
opressão, da angústia e do sofrimento que causam 
sua opressão. Em Esses Lopes, o ato narrativo tem 
por objetivo exteriorizar as mágoas e os abusos 
sofridos, contidos por anos a fio pela, então, jovem 
protagonista – agora, mulher madura, convertida. 
 em narradora de sua própria estória de vida. Sua 
narração funciona como uma espécie de catarse 
para o trauma do passado. De acordo com o 
Dicionário Houaiss Eletrônico, a etimologia da 
palavra trauma está ligada ao termo grego traûma, 
significando “ferida, avaria, derrota, desastre”. 
A narradora retorna aos seus anos de juventude, 
percorrendo, com a narração, o período de longos 
anos, até remeter seu relato ao momento atual, 
em que fala já envelhecida. Nesse momento, em 
busca de mais sentido para sua vida, faz planos 
para o futuro e dirige suas palavras diretamente 
ao(s) interlocutor(es), que permanece(m) 
indeterminado(s) na estória. Sua narração é, até 
certo ponto, marcada pelo estado de inquietação 
emocional, pelo rancor diante da violência vivida, 
mas, ao final, passa a ser marcada pelo tom 
“otimista”, diante da possibilidade de mudança. A 
narradora tenta reverter o seu passado de 
lembranças infelizes, utilizando-se de outros meios, 
sempre ardilosos, como será evidenciado a seguir. 
No conto em questão, encontra-se a narração de 
Flausina, mulher de origem humilde, que, desde a 
mocidade, se viu como “propriedade” dos 
poderosos homens da família Lopes. Em sua 
exposição, retoma o modo pelo qual exterminou, 
um a um, os seus parceiros, até tornar-se mulher 
de muitas posses. Em seu discurso, marcado pela 
emoção, pelo rancor e pela indignação, conta como 
conseguiu transformar seus sofrimentos em vitória, 
a partir do plano traçado de utilizar a astúcia, a 
palavra e a paciência contra o poder, a riqueza e a 
força bruta dos Lopes. 
Flausina caracteriza sua origem humilde 
retomando os tempos de infância: “Eu era menina, 
me via vestida de flôres. Só que o que mais cedo 
reponta é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo 
órfã de dinheiro?” (Rosa, 1968, p. 45)4 . Sua beleza 
também é destacada: “linda eu era até a remirar 
minha cara na gamela dos porcos, na lavagem” (p. 
45). Nota-se que essa oposição, aqui expressa pela 
imagem da beleza remirada na lavagem, se 
mantém em todo o seu relato, como, por exemplo, 
na constante oscilação entre sentimentos de 
satisfação e insatisfação. A maneira como ela se 
refere, logo a princípio, ao seu nome expressa bem 
essa ideia: “Eu queria me chamar Maria Miss, 
reprovo meu nome, de Flausina” (p. 45). A 
narradora, com essa colocação, reitera o aspecto 
opositivo mencionado, dessa vez expresso pelo 
embate entre o desejo, de se chamar Maria Miss, e 
a realidade, de ter Flausina como nome. Inclusive, 
ao final do conto, quando é retomado o instante da 
enunciação, percebe-se a que o orgulho da 
narradora de ter vencido é acompanhado pela 
amargura da perda da pureza: “De que me adianta 
estar remediada e entendida, se não dou conta de 
das saudades?” (p. 48) Desse modo, mantém-se a 
oposição vista no começo do relato. Os 
sentimentos de angústia, de tristeza e sofrimento 
perpassam todo o seu discurso. 
 Flausina, no momento do seu relato, se encontra 
no mesmo lugar em que se passaram todas as suas 
experiências: “Êsses Lopes, raça, vieram da outra 
ribeira, tudo adquiriam ou tomavam; não fosse 
Deus, e até hoje mandavam aqui, donos” (p. 45). O 
espaço da diegese não possui determinações 
explícitas, a não ser por alguns poucos marcadores, 
como por exemplo: “outra ribeira”, “aqui” e “na 
beira do meu terreiro” (p. 47). Desse modo, poder-
se-ia considerar tanto o espaço da diegese quanto 
o da enunciação como “interiorizados”. 
Carlos Reis e Ana Cristina Lopes caracterizam o 
espaço psicológico como constituído “em função 
da necessidade de evidenciar atmosferas densas e 
perturbantes, projetadas sobre o comportamento, 
também normalmente conturbado, das 
personagens” (1988, p. 205). Esse espaço se 
caracteriza ainda pela sua manifestação em forma 
de “monólogo interior” (REIS; LOPES, 1988, p. 266), 
muito próximo da atitude narrativa de Flausina. 
 Infere-se que o espaço físico desse lugar seja o do 
sertão, tanto pela ambientação – conforme 
demostra os trechos a seguir: [1] “outra ribeira”, 
“na beira do meu terreiro” (p. 47) e [2] “Meus 
filhos, Lopes, também, provi de dinheiro, para 
longe daqui viajarem gado” (p. 48) –; quanto pela 
contextualização dos costumes descritos em que a 
menina é tirada da casa dos pais, a contragosto,para “se casar”, conforme é possível verificar neste 
trecho: “eu queria enxoval, ao menos, feito as 
outras, ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias 
nem igreja. O homem me pegou, com quentes 
mãos e curtos braços, me levou para uma casa, 
para a cama dêle” (p. 45). Percebe-se, portanto, 
que esse lugar pertence a uma sociedade arcaica, 
classista e machista; representa um Brasil antes das 
políticas públicas destinadas às mulheres, como as 
de enfrentamento às formas de violência, ou, 
então, da participação das mulheres nos espaços 
de poder e decisão. Nota-se, atualmente, uma 
paulatina expansão nos campos de atividades 
profissionais e mesmo o exercício de cargos 
políticos elevados, antes exclusividade dos 
homens. Isso demonstra maior equidade na 
questão de gêneros. Mesmo no campo artístico, 
como na literatura, por exemplo, percebe-se a 
progressiva participação das mulheres, o que 
indicia uma mudança de mentalidade. 
O discurso da narradora, Flausina, é marcadamente 
oral, e se faz em forma de monólogo, por estar 
ausente a figura de um narratário. As várias 
interrogações presentes no conto, além de 
servirem à própria reflexão da narradora, parecem 
“testar” o canal comunicativo. Referentemente a 
isso, seguem alguns trechos: [1] “Me valia ter pai e 
mãe, sendo órfã de dinheiro?” (p. 45); [2] “Tive 
algum?” (p. 45); [3] “sei as perversidades que 
roncava?” (p. 46); [4] “os Lopes me davam 
sossêgo?” (p. 47); [5]“E o govêrno da vida?” (p. 47) 
; [6]“Ao Sertório dei mesmo dois filhos?” (p. 48); 
[7] “sou de me constar em folhinhas e datas?” (p. 
48); e, por fim [8] “De que me adianta estar 
remediada e entendida, se não dou conta de 
questão das saudades?” (p. 48). Em sua fala, 
percebese, por certo tom emotivo e amargurado, o 
trauma do passado, principalmente quando ela 
contrasta os anos de infância com o sofrimento 
causado pelos anos de convivência com os Lopes. 
Observa-se, no conto, a presença de nível narrativo 
no qual a narradora Flausina se encontra, dirigindo 
suas palavras diretamente ao(s) ouvinte(s), que é 
(são) completamente indeterminado(s). Não há 
qualquer menção a possíveis “relatores” de seu 
discurso, assim como não há intromissões em sua 
fala no plano da enunciação. A narração de 
Flausina mostra como passou da época de 
inocência para a maturidade, depois de passar 
anos “nas mãos” dos Lopes, que a sujeitavam aos 
seus desejos. A narradora relata, ainda, a maneira 
pela qual se livrou de todos eles, detendo-se em 
cada caso vivenciado, explicando como se iniciaram 
e acabaram. É necessário observar mais 
detidamente como isso se faz no discurso de 
Flausina. 
Ao começar seu relato, a narradora anuncia sua 
intenção: “quero falar alto” (p. 45). Assim, ela 
demonstra, logo de saída, seu ódio, sua ira e seu 
rancor pelos Lopes, incluindo os filhos que com 
eles teve. Os dois trechos, transcritos a seguir, um 
que inicia e o outro que encerra o conto, 
exemplificam tal dado: “Má gente, de má paz; 
dêles quero distantes léguas. Mesmo de meus 
filhos, os três” (p.45); “Todo o mundo vive para ter 
alguma serventia. Lopes, não! – dêsses me 
arrenego.” (p. 48) A condição econômica 
confortável dos Lopes era vinculada a atitudes 
desmedidas: “Êsses Lopes, raça, vieram de outra 
ribeira, tudo adquiriam ou tomavam” (p.45). A 
então menina Flausina, diante desses poderosos 
Lopes – sendo “órfã de dinheiro” (p. 45) e sem 
apoio dos pais “para punir” (p. 45) por ela –, inicia 
sua via crucis com Zé Lopes, “rompente sedutor” 
(p. 45) que, a leva, contrariada, para sua casa, 
como esposa. 
A jovem Flausina, descontente com a situação 
opressora, passa a agir de modo dúplice, fazendo-
se de “miúda, mansa, feito botão de flor” (p. 45) e 
contendo seus sentimentos: “Mais aprendi lição de 
ter juízo. Calei muitos prantos.” (p. 45). A 
personagem relata ter suportado a sujeição 
pacientemente, conforme demostra este trecho: 
“Agüentei aquele caso corporal”(p. 46). Mas, ao 
mesmo tempo, planejava sua libertação por meio 
de atitudes e palavras: “Fiz que quis: saquei 
malinas lábias” (p. 46). Flausina emprega, então, a 
dissimulação como método para se libertar; usa 
essa estratégia, inclusive, contra a “preta Si-Ana”, 
colocada em casa por Zé Lopes para vigiá-la. A esse 
respeito, evidencia-se o trecho a seguir: “Entendi: a 
que eu tinha de engambelar, por arte de contas; e 
à qual chamei de madrinha e comadre. Regi de 
alisar por fora a vida” (p. 46). O poder de 
dissimulação da personagem chega a tal ponto que 
ela consegue se livrar da “preta SiAna”, inventando 
uma mentira a seu respeito, fazendo, assim, com 
que ela fosse despedida: “Mandou embora a preta 
Si-Ana, quando levantei o falso alegado: que ela 
alcovitava eu cedesse vêzes carnais a outro, Lopes 
igual – que da vida logo desapareceu, em sistema 
de não-se-sabe”. (p. 46) 
Flausina agiu mascarando suas verdadeiras 
intenções contra seus opressores, mas cuidou de 
justificar, a seu(s) interlocutor(es), essas atitudes 
dissimuladas, sensibilizando-o(s). Para isso, ela 
expõe, dentre outras formas de violência, a 
submissão sexual que tanto a oprimia: “Deitada é 
que eu achava o somenos do mundo, camisolas do 
demônio” (p. 46). O parágrafo transcrito logo 
abaixo explicita bem a sua angústia e infelicidade, 
bem como seu desejo de mudar de vida e “querer 
outras larguras” (p. 46): 
 Ninguém põe idéia nesses casos: de se estar noite 
inteira em canto de catre, com o volume do outro 
cercando a gente, rombudo, o cheiro, o ressonar, 
qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, 
delicada môça, cativa assim, com o abafo 
daquele, sempre rente, no escuro. Daninhagem, o 
homem parindo os ocultos pensamentos, como 
um dia come o outro, sei as perversidades que 
roncava? Aquilo tange as canduras de nôiva, pega 
feito doença, para a gente em espírito se 
traspassa. Tão certo como eu hoje estou o que 
nunca fui. Eu ficava espremida mais pequena, na 
parede minha unha riscava rezas, o querer outras 
larguras. (p. 46) 
 Aqui é notório o tom comovente, também 
marcado pela indignação. Uma das angústias da 
narradora está ligada à questão da pureza perdida: 
“A maior prenda, que há, é ser virgem.” (p. 45). 
Observa-se, além disso, que o problema da 
sujeição também está atrelado à carência 
econômica: “Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de 
dinheiro?” (p. 45). Em função disso, Flausina se 
esforça para reverter, ao longo da vida, seu estado 
de privação econômica: “E dê-cá dinheiro. [...] Sem 
acautelar, êle me enriquecia”. (p. 46). Para cumprir 
tal intento, a personagem emprega, além da 
dissimulação, o aprimoramento do trato com as 
palavras, que deseja conhecer melhor: “Tracei as 
letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, 
conforme escondida”. (p. 46) 
Já decidida a mudar sua situação, a narradora 
passa, pouco a pouco, a enfraquecer o seu 
opressor. Assim ela descreve o modo como deu 
cabo de Zé Lopes, “o pior” (p. 45): “Virei cria de 
cobra. Na cachaça, botava sementes da cabaceira-
preta, dosezinhas; no café, cipó timbó e 
saiabranca. Só para arrefecer aquela desabada 
vontade, nem confirmo que seja crime”. (p. 46) 
Vê-se, aqui, que a narradora, consciente de seus 
atos maldosos (“Virei cria de cobra”), questiona 
sua ação como não sendo criminosa (“nem 
confirmo que seja crime”). Coloca-se, então, uma 
questão moral, que Flausina levanta 
implicitamente em seu relato: a menina, arrancada 
de sua inocência para se tornar mulher e que fez 
de sua libertação objetivo maior, agiu certo ao usar 
os meios descritos para se livrar desse “povo ruim”,que era os Lopes? Do ponto de vista de Flausina, os 
assassinatos por ela cometidos se justificam como 
uma forma de autodefesa, pois, vivendo em um 
universo machista e classista, provavelmente não 
lhe restariam muitas alternativas diferentes. Seu 
discurso, que desde o princípio menciona a 
agressividade e a desmesura das atitudes dos 
Lopes, parece se antecipar a uma possível pergunta 
do leitor: foi correto arquitetar a morte deles? Se, 
por um lado, o conto pode suscitar esse 
questionamento, por outro, a narradora faz com 
que, a esse, esteja atrelada a seguinte ponderação: 
mas, foi certo padecer tantos abusos, a 
contragosto? 
Como consequência do plano de Flausina, Zé Lopes 
morre envenenado depois de algum tempo. Mas a 
narradora não tem paz, pois, logo após a morte de 
Zé Lopes, relata que outros Lopes ainda 
desejavam-na como mulher: “Dois deles, tesos, me 
requerendo, o primo e o irmão do falecido Mexi 
em vão por me soltar [...] Nicão, um, mau me 
emprazou: ‘Despois da missa de mês, me espera...’ 
”(p.47). Sem saída, passa, antes disso, às mãos de 
Sertório Lopes: “Mas o Sertório, senhor, o outro, 
ouro e punhal na mão, inda antes do sétimo dia já 
entrava por mim a dentro em casa”. (p. 47) 
Os Lopes se sucedem assim na “posse” de Flausina, 
como uma herança familiar. A narradora 
demonstra novamente seu descontentamento e 
angústia diante da situação imposta: “Padeci com 
jeito. E o govêrno da vida? Anos, que me foram, de 
gentil sujeição, custoso que nem guardar chuva em 
cabaça, picar fininho a couve” (p. 47). Assim, mais 
uma vez, ela justifica sua atitude de compensar tal 
sofrimento com a transferência, para si, das posses 
de seu companheiro. Flausina então revela como 
conseguiu conquistar o dinheiro de Sertório Lopes: 
“Total, o quanto era dêle, cobrei, passando ligeiro 
já para minhas posses; até honra. Experimentei 
finuras novas” (p. 47). Depois, instigando ciúmes 
no cônjuge, inventa uma mentira que causa um 
embate fatal entre Sertório e Nicão Lopes, 
parentes que disputavam entre si Flausina: “Vi foi 
êle sair, fulo de fulo, revestido de raiva, com os 
bolsos cheios de calúnia. Ao outro eu tinha enviado 
os recados, embebidos em doçura [...] Se 
enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos, 
a tiros e ferros” (p. 47). Após a morte de mais dois 
Lopes, Flausina não deixa de lado a máscara que 
adotara, ao dissimular seus sentimentos diante dos 
moradores do lugar: “Inconsolável chorei, 
conforme os costumes certos, por a piedade de 
todos”. (p. 48) 
Por fim, a narradora relata como se deu o seu 
último relacionamento com um Lopes: 
“Sorocabano Lopes, velhôco, o das fortes 
propriedades. Me viu e me botou na cabeça. 
Aceitei, de boa graça, êle era o aflitinho dos 
consolos. Eu impondo: ‘De hoje em diante, só 
muito casada!’ Êle, por fervor, concordou” (p. 47). 
Aqui, tendo visto que esse Lopes, já idoso, não era 
truculento, sua estratégia de sobrevivência e 
transferência de propriedades muda um pouco; ela 
trata de satisfazer os desejos dele: “bem demais e 
melhor tratei, seu desejo efetuado” (p. 47). Mas a 
morte, também a ele destinada pela narradora, se 
dá de outra forma: “dava a êle gordas, temperadas 
comidas, e sem descanso agradadas horas – o 
sujeito chupado de amôres, de chuchurro. Tudo o 
que é bom faz mal e bem. Quem morreu mais foi 
ele” (p. 47 - 48). Mais uma vez, a astuta Flausina 
não deixa de pensar em sua situação financeira: 
“Daí, tudo quanto herdei, até que com nenhum 
enjôo” (p. 48). Finalmente, ela acaba com “o povo 
ruim” dos Lopes, conseguindo finalmente sua 
libertação. 
Agora, remediada, a narradora decide os rumos de 
sua vida e pode, enfim, escolher seu parceiro, mais 
jovem que ela: “Deixo de porfias, com o amor que 
achei. Duvido, discordo de quem não goste. Amo, 
mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem, 
sou de me constar em folhinhas e datas?” (p. 48). 
Percebe-se, ao final, como já observado 
anteriormente, que a retomada do momento 
presente revela certo orgulho, por parte de 
Flausina, por ter vencido, por si só, as situações 
difíceis, estando agora com posses e 
entendimento, ao mesmo tempo em que desponta 
a tristeza por ter perdido a inocência dos tempos 
de infância: “De que me adianta estar remediada e 
entendida, se não dou conta de questão das 
saudades? Eu, um dia, já fui muito menininha” (p. 
48). Mantém-se, portanto, a oposição citada 
inicialmente, que pode ser sugerida inclusive pela 
contraposição entre o significado do nome da 
narradora e o do sobrenome Lopes. Flausina, 
segundo o Dicionário de Nomes Próprios, em grego 
é “alegre, feliz”; já Lopes, de acordo com o mesmo 
dicionário, é originário de “lobo” e, portanto, pode 
ter, segundo o Dicionário Houaiss Eletrônico, 
figuradamente o significado de “homem perverso, 
de maus instintos”. 
 Pode-se notar que o primeiro e os dois últimos 
parágrafos do conto remetem ao momento atual 
da narração, em tempo verbal do presente; 
enquanto os outros constituem a diegese. Flausina 
fala, primeiramente, da sua infância, no pretérito 
imperfeito, conforme é possível verificar nos 
seguintes trechos: [1] “Eu era menina, me via 
vestida de flôres” (p. 45); [2] “tirava junto cantigas 
de roda e modinhas de sentimento” (p. 45); e [3] 
“linda eu era até a remirar minha cara na gamela 
dos porcos” (p. 45). Assim, a narradora marca as 
lembranças mais remotas, referentes ao tempo da 
inocência pueril, que se constituem em uma 
memória saudosa do passado. 
Com a chegada dos Lopes iniciam-se os seus 
sofrimentos e a perda da inocência, marcados, 
terminantemente, pelo tempo verbal do pretérito 
perfeito: “O homem me pegou com quentes mãos 
e curtos braços, me levou para uma casa, para a 
cama dêle. Mais aprendi lição de ter juízo. Calei 
muitos prantos. Agüentei aquêle caso corporal” (p. 
45). Seu relato perpassa os anos de sofrimento até 
o momento em que leva a cabo seu plano de 
acabar com todos os Lopes que a desejavam. 
Tratase de uma narração reveladora de seus 
martírios, assim como uma espécie de confissão e 
uma justificativa para seus crimes cometidos no 
passado. 
Ao final, com a retomada do tempo presente, há 
uma projeção para o futuro em que transmite o 
desejo de ter uma vida diferente e melhor: “por 
bem de mim, me venham filhos, outros, modernos 
e acomodados. Quero o bom-bocado que não fiz, 
quero gente sensível” (p. 48). A construção 
temporal, toda moldada pela memória de Flausina, 
possui aspecto interiorizado, pois é a partir de suas 
lembranças que o relato se constrói, como ela 
mesma diz: “Aos pedacinhos, me alembro.” (p. 45). 
Como se o tempo de seu relato não fosse ditado 
pelas “folhinhas e datas” (p. 48), mas sim pelo 
recorte seletivo de suas lembranças, mostrando a 
ação e reação dos atos de violência praticados 
contra ela. Assim, a narradora, além de expor sua 
estória – comovente e brutal –, defende e justifica 
suas atitudes do passado, diante do narratário. O 
relato pessoal de Flausina demonstra como ela, em 
busca de superar sua angustiante condição de 
sofrimento e submissão, conseguiu autonomia e 
liberdade utilizando mecanismos cruéis – o que 
pode soar como um contrassenso, já que se trata 
do uso de violência contra a violência. 
Como foi visto anteriormente, no relato de 
Flausina, a emotividade do discurso é marcante, 
visto que ela retoma os eventos do passado 
mencionando seus sentimentos. É possível 
reconhecer aí a chamada função emotiva da 
linguagem (JAKOBSON, 2007, 123-124). Já Gérard 
Genette (19--) classifica tal discurso como função 
testemunhal,

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