Prévia do material em texto
7 A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA RELIGIOSA Introdução Diversidade é um conceito estratégico para a compreensão e atuação no mundo contemporâneo, tanto mais quando falamos da realidade social e educacional brasileira. Como eixo central dessa disciplina, a diversidade é um fenômeno cultural já consolidado na sociedade globalizada e plural em que vivemos. Ela chegou com a força de romper paradigmas que padronizavam visões unívocas e homogeneizadas em diferentes temas e contextos. A diversidade, como um construto epistemológico, permite que diversas concepções, interesses e cosmovisões coexistam dialogicamente em diferentes áreas acadêmicas, científicas e pessoais, relacionadas à própria concretude do viver e do conviver (ou viver com). Se insere, portanto, no conjunto de ações que promovem os direitos humanos fundamentais e que favorecem a construção de uma sociedade mais inclusiva. Esse capítulo vai tratar de um tipo específico de diversidade, a religiosa, que conforme iremos demonstrar, tem o seu grau de importância para os profissionais da educação. São muitas as relações entre religião e sociedade, ou entre as estruturas sociais e as diversas denominações religiosas. Seja no âmbito privado ou público, a fé e as tradições religiosas/espirituais demarcam formas diferentes de ser, pensar, sentir e agir dos indivíduos e grupos, nos diferentes âmbitos da existência humana. A religiosidade tem a função precípua de dar sentido aos acontecimentos da vida, transversalizando as grandes questões humanas, desde o nascimento até a morte. Porém, diante da enorme diversidade religiosa existente no Brasil o educador terá que desenvolver um espírito investigativo e um desejo de conhecer, compreender, valorizar e interagir com formas não apenas distintas, mas até opostas de compreensão de mundo, influenciadas e normatizadas pelas diferentes religiões. 7.1 Diversidade e universalidade religiosa Falar de religiosidade é falar de um dos elementos antropológicos mais básicos da humanidade. Diferentes de outras expressões que são comuns aos diversos seres vivos, como a expressão sociorelacional, afetiva, volitiva e lúdica, a dimensão ou expressão religiosa parece ser uma exclusividade da espécie humana. O homo religiosus busca sentido para seu viver, sofrer e morrer em crenças religiosas, inserindo uma alcunha transcendente e sagrada para compreender e dar significado a muitas das coisas que lhe acontecem. De modo geral, indivíduos e grupos elegem uma divindade ou alguma forma de ser superior com o qual passam a relacionar-se, de diferentes maneiras, senda essa uma das principais marcas da religião, que busca re-ligar o ser humano com um centro transcendente de poder. Os estudos em antropologia afirmam que o ser humano “desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira aparição na cena da história e que todas as tribos e todas as populações de qualquer nível cultural cultivaram alguma forma de religião”.1 Segundo os teólogos Reblin e von Sinner, a religião e a sociedade estão profundamente imbricadas, no sentido de que “não é possível entender a experiência religiosa distante da vida social, como se esta independesse daquela, assim como não é possível conceber uma sociedade sem uma vida religiosa. Religião e sociedade se interconectam, se emaranham e, por vezes, se fundem e se confundem na própria amálgama que é a vida humana”.2 No dizer dos mesmos autores, as diferentes religiões ao redor do mundo, bem como as instituições religiosas mais recentes escrevem e inscrevem-se na história da humanidade. Elas desempenham um papel relevante no desenvolvimento dos acontecimentos, não apenas no sentido de moldar pensamentos e ideologias, ditar comportamentos e práticas, mas também atuando contra ou a favor do poder político estatal.3 A título de exemplificação, podemos citar religiões da antiguidade e da modernidade, que sofreram ou impuseram influências nas respectivas culturas e sociedades onde estavam inseridas: a religião egípcia e sua íntima relação com os reinos dos faraós, a cultura grega inscrita na mitologia dos 1 MONDIN, Battista. O homem, quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. São Paulo: Edições Paulinas, 1980., p 218. 2 REBLIN, Iuri A.; SINNER, Rudolf von. Religião e sociedade: desafios contemporâneos. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012. Prefácio. 3 REBLIN; SINNER, 2012, Prefácio. deuses do Olimpo, o Império Romano e seus imperadores divinizados, as civilizações incas, maias e astecas, dizimadas pelos colonizadores por serem “pagãs”, o Cristianismo e a tomada crescente dopoder no mundo Ocidental desde a baixa Idade Média, as Cruzadas - guerras religiosas fomentadas por poder e riquezas, as Reformas Protestantes que redistribuíram o poder geo- político-religioso na Europa, as colonizações portuguesas e espanholas na América e a imposição do catolicismo como religião oficial, as colonizações anglo-saxãs na América do Norte e sua relação com o espírito protestante do capitalismo, o Islamismo e sua relação com algumas teocracias no Oriente Médio, os grupos evangélicos pentecostais e neopentecostais e sua inserção no campo da política brasileira, o espiritismo kardecista e suas pesquisas no campo da espiritualidade e saúde, a forte religiosidade popular de influência africana e indígena, as inúmeras superstições existentes no imaginário social, entre tantos outros acontecimentos históricos e culturais que aqui poderiam ser citados. O fato de muitas religiões tradicionais e históricas estarem vivendo hoje uma crise, no sentido da perda crescente de sua credibilidade gerando, consequentemente, um menor impacto social, não exclui ou elimina a sua influência cultural. Como vai dizer Mondin, a religião “se impõe como uma constante do ser humano, mesmo se não é cultivada por todos os indivíduos da espécie”.4 Souza e Martino, sociólogos da religião, apontam para esse relativo paradoxo da modernidade, demonstrando as complexas relações entre os fenômenos religiosos, as religiões, a modernidade e as mudanças sociais. Se por um lado os índices recentes apontam para o declínio da religião, com a perda de espaço dentro da sociedade, por outro lado percebe-se um aumento no número de igrejas, templos, centros e “espaços místicos”.5 Desse modo, podemos afirmar que a religiosidade não está desaparecendo, mas está apenas tomando diferentes formas na sua expressão individual e social. É 4 MONDIN, 1980, p. 218. 5 SOUZA, Beatriz Muniz de; MARTINO, Luís Mauro Sá. (orgs). Sociologia da Religião e Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 2004., p.7. dessa diversidade que o educador precisa dar-se conta na análise desse fenômeno. 7.2 Diversidade e hermenêutica do fenômeno religioso/religiões Para que um educador possa ter elementos para compreender o fenômeno religioso ou as diferentes religiões os pesquisadores da área afirmam que é necessário circunscrever o objeto “religião” em três aspectos: a) ver o objeto religião como uma totalidade; b) reconhecer que essa totalidade apresenta-se de maneira quádrupla; c) observar que a totalidade está viva e que não para de se transformar.6 Olhar para a religião como uma totalidade significa perceber as suas múltiplas nuances, ou seja, saber que existem diferentes abordagens para sua compreensão, tais como a Antropologia da Religião, Sociologia da Religião, Psicologia da Religião, História das Religiões, Filosofia da Religião, Fenomenologia das Religiões, Arte e Religião etc.Todas essas áreas têm algo a contribuir para uma compreensão mais correta e profunda do fenômeno religioso, porém, analisadas individualmente, elas ainda não contemplam toda a complexidade desse fenômeno, até porque, como afirma o terceiro aspecto, as religiões nunca param de se transformar, adaptando-se e moldando-se às diferentes épocas e contextos culturais. Com relação à maneira quádrupla como se apresenta essa totalidade, ela consiste em quatro perspectivas. A primeira é que as religiões possuem uma clara manifestação comunitária, reunindo-se em comunidades. Dessa forma há uma distinção entre os que estão “dentro” da religião daqueles que estão “fora” dela. A segunda perspectiva trata do sistema de atos religiosos, ou seja, uma religião liga-se a ritos, a práticas, a costumes, a comportamentos, que são cheios de simbolismos e significados. A terceira perspectiva é a compreensão do sistema doutrinário de cada religião. Preceitos, princípios, verdades, dogmas fazem parte de cada religião, sendo decisivos para normatizar os atos de fé e dar a cada indivíduo/comunidade religiosa uma cosmovisão específica. A última perspectiva é a mais complexa, 6 GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005., p.24. e está vinculada à experiência religiosa. Essa experiência é a força vital que anima as religiões, alimentando seus ensinamentos e fortalecendo os ritos. É a vivência da fé, propriamente dita, sendo o que há de mais genuíno e subjetivo no fenômeno religioso.7 Percebe-se, aqui, o quanto o conceito de diversidade religiosa se justifica e assume um lugar de destaque, não só para o reconhecimento da sua própria religião, quanto da religião do outro. Porém, com o crescente aumento do secularismo da sociedade, é preciso levar em conta também o respeito à ausência ou negação da religiosidade, nos casos de posições ateístas e agnósticas. O ateísmo, que nega a existência de Deus - ou de alguma forma transcendente de poder - , além do agnosticismo, que afirma que aquilo que não se pode provar empiricamente pelo método científico deve ser ignorado, são duas ideologias crescentes na contemporaneidade, que também precisam ser consideradas dentro do contexto da diversidade religiosa e a-religiosa. O fato é que a enorme diversidade religiosa na qual estamos inseridos exige de cada indivíduo, quanto mais de um educador, o exercício constante da alteridade. A alteridade nos leva a respeitar os pensamentos do outro e a reconhecer aquilo que é diferente de si mesmo. Além disso, a alteridade nos ensina a dar um passo a mais, no sentido validar, empaticamente, as crenças dos outros, mesmo que estas se oponham ao próprio conjunto de crenças do indivíduo. 7.3 Diversidade e Verdade religiosa Uma das grandes questões quando se estuda as religiões está no estabelecimento do que é a verdade. Diferentemente da ciência, que procura estabelecer verdades a partir de métodos científicos, que podem ser comprovados e mensurados estatisticamente, a religião trabalha num outro nível de verdade, quase sempre considerada como absoluta e inequívoca pelos membros de cada religião. Há um alto grau de subjetividade naquilo que chamamos de verdade religiosa, porque o que é verdade para um grupo religioso poderá ser o extremo da falsidade para outro grupo. 7 GRESCHAT, 2005, p.24-27. Por esse motivo é que trabalhar num contexto de diversidade religiosa é sempre desafiante. Cabe ao profissional que se ocupa do tema religião desenvolver uma postura não valorativa, ou seja, buscar a idealizada neutralidade científica, sem perder a criticidade na sua reflexão, ação e interação. Quanto à questão do julgamento que se é comum fazer sobre as religiões, Wiebe, citando Smith, afirma que é improvável que uma pessoa possa dominar totalmente qualquer tradição religiosa a ponto de afirmar que ela seja “verdadeira” ou “falsa”. Também não há elementos suficientes para se afirmar que esta ou aquela religião apresenta uma compreensão adequada ou inadequada da realidade. Porém, é preciso ser capaz de discernir se as afirmativas e pretensões de diferentes tradições conflitam entre si e apresentam compreensões conflitantes ou mesmo complementares.8 É importante, porém, estar atento a questões de coerência e de autocontradição nas religiões, além de verificar se elas são capazes de satisfazer necessidades psicológicas, sociais, intelectuais e morais do ser humano,9 além das espirituais. Nesse ponto podemos encontrar um sério problema de ordem prática, que pode ser exemplificado pelo fanatismo religioso. A amplitude do conceito fé permite que indivíduos se considerem supridos nas necessidades supracitadas, apesar de que, numa análise externa e isenta, se perceba que estão num processo de alienação social, intelectual ou de outra ordem. A história demonstra, em diversos casos, que determinadas seitas ou comunidades religiosas tiveram o poder de alienar as pessoas em torno de “verdades” profundamente questionáveis, levando-as a sentir, pensar e agir de forma não saudável e até destrutiva, prejudicando a si mesmos e a terceiros. Como educadores, cabe desenvolver habilidades e atitudes que permitam aos indivíduos refletirem sobre suas crenças, ideologias e práticas religiosas, não de forma autoritária, valorativa ou preconceituosa, mas de forma sempre dialógica e crítica. 8 WIEBE, Donald. Religião e verdade: rumo a um paradigma alternativo para o estudo da religião. São Leopoldo: Sinodal. 1998., p. 125. 9 WIEBE, 1998, p. 125-6. 7.4 Diversidade, liberdade e tolerância religiosa O tema da diversidade tem relação direta com os conceitos de liberdade e tolerância religiosa. Conforme afirma Souza, a noção de tolerância surge primeiramente como um valor de cunho religioso, surgida no período da Reforma Protestante no século XVI, e que depois passou a ser assimilado por toda a sociedade liberal burguesa. Para o autor, o conceito de tolerância foi sendo construído dentro do espírito do Iluminismo, como uma resposta a situações de conflito provocados por diferenças de pertença religiosa e de liberdade de consciência, ganhando solidez como ideário político na Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, onde é expressado, no artigo X, o seguinte: “Ninguém pode ser incomodado por causa das suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que não perturbem a ordem pública estabelecida na lei”. 10 Outra decorrência positiva da institucionalização social e política da tolerância religiosa é que “tornou-se possível a emergência e o desenvolvimento do conceito e prática da laicidade do Estado, o que permitiu cessar o vínculo entre crença religiosa e pertencimento político no contexto das repúblicas modernas”.11 No contexto brasileiro, vivemos num país onde goza-se de plena liberdade religiosa. Com a Proclamação da República, em 1889, estabeleceu- se a separação entre Igreja e Estado, com a extinção do Direito de Padroado, que retirou da Igreja Católica o posto de religião oficial do Brasil. Como afirma Souza, “a liberdade de culto é constitucionalmente estabelecida a todo e qualquer grupo religioso através do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 1890, instaurando a separação entre Igreja e Estado. Na constituição republicana de 1891 é estabelecida oficialmente a liberdade de culto”.12 10 SOUZA, Mailson Fernandes Cabral. Laicidade e Liberdade Religiosa no Brasil: situando a discussão entre religião e política. RevistaInterações, Belo Horizonte, Brasil, v12, n.21, p. 77-93. Jan/Jul.2017., p.78. 11 SOUZA, 2017, p. 80. 12 SOUZA, 2017, p. 85-6. Obviamente que o decreto constitucional não eliminou a forte influência da religião majoritária, que era o catolicismo, sobre a política brasileira, especialmente nas décadas de 1920-30, onde tentou-se novamente estabelecer a união entre Igreja-Estado, na tentativa de fazer do Brasil uma Nação Católica. Também em outros períodos da República a aliança política entre a Igreja Católica e o governo permaneceram, com privilégios que foram suprimidos na Carta Magna, mas que permaneciam vigendo na prática. Finalmente, a diversidade religiosa encontra seu amparo de plena liberdade de direito na Constituição de 1988, descritas no artigo 5º, incisos VI a VIII. VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de cultos e suas liturgias. VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir a prestação alternativa, fixada na lei.13 O debate sobre liberdade e tolerância também se colocam numa decorrência quase natural da discussão acerca da verdade religiosa. Quando indivíduos e grupos se acham “donos” da verdade e se instituem socialmente de algum poder/autoridade, invariavelmente isso acaba gerando formas impositivas, cerceadoras da liberdade e de intolerância para com aqueles que não compartilham dessas mesmas crenças. Alguns países teocráticos, normalmente ligados a grupos religiosos de maioria islâmica, são exemplos clássicos da falta de liberdade religiosa e de uma consequente intolerância. Porém, a intolerância não foi nem é “privilégio” de uma única religião. A Santa Inquisição, na Idade Média, foi dura e cruel com os indivíduos que ousavam questionar a autoridade da igreja cristã na época. No cenário brasileiro, em que se vive plena liberdade religiosa, garantida por lei, também temos, esporadicamente, exemplos clássicos de intolerância. O caso do pastor evangélico que chutou a estátua de Nossa Senhora de Aparecida, veiculado no ano de 1995 por um programa religioso de 13 Constituição Federal de 1988. In: SOUZA, 2017, p. 88. TV, foi paradigmático, gerando muito desconforto, pois colocou duas facções cristãs uma contra a outra. Os ataques recorrentes a membros de religiões afro-brasileiras também têm gerado muita celeuma, desvelando a intolerância religiosa mesmo num país que defende a liberdade religiosa. Lembramos que, no ano de 2017, segundo dados da Revista Carta Capital, só no estado do Rio de Janeiro foram contabilizados 79 ataques a templos ou seguidores de religiões de matriz africana. Já no estado de São Paulo foram registrados 27 atos de violência do mesmo tipo.14 Reiteramos que a intolerância está intimamente ligada com aquilo que cada grupo religioso considera como verdade ou falsidade, gerando uma postura dicotômica e maniqueísta, onde se estabelece uma batalha entre o que se considera o bem e o mal. Porém, essa questão precisa ser urgentemente superada pelos indivíduos que convivem numa realidade social marcada pela diversidade. Com relação a esse tema, da tolerância às diferentes verdades, Wiebe afirma: O encontro de duas pretensões absolutas de Verdade [...] não termina com um abandono da pretensão de Verdade absoluta de um dos lados ou dos dois lados; ele também não termina em querelas a fim de estabelecer uma pretensão de verdade contra a outra, nem na atitude de polidamente manter silêncio a fim de não ofender o/a outro/a parceiro/a, bem sabendo que ele/a tem de estar errado/a. Um princípio básico do diálogo é que a tensão existente entre as diferentes religiões não precisa, não deveria e não pode ser resolvida: ela configura uma dialética real surgida do fato de que a própria vida possui aspectos e dimensões contraditórios que se refletem nas principais tradições. O diálogo não visa ao monólogo, e sim a manter a continuidade do diálogo, manter a identidade de ambos os parceiros e pressupor bases comuns suficientes para continuar a exploração. O diálogo [...] continua e leva ambos os parceiros a aperceber-se dos limites e valor de suas próprias “verdades” em suas tradições ...15 Tolerância e diálogo inter-religioso precisam sair do mundo ideal das ideias e se tornarem práticas cotidianas, ensinadas desde muito cedo por todas as instituições, desde a família, escola, organizações e pelo próprio 14 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/em-tres-semanas-sao-paulo-tem-oito- ataques-a-religioes-de-matriz-africana 15 WIEBE, 1998, p. 129. Estado, com políticas afirmativas que garantam plena liberdade de pensamento e vivência religiosa. 7.5 Diversidade, sincretismo e trânsito religioso Um outro elemento importante a ser considerado na análise da diversidade religiosa é o fenômeno conhecido como trânsito religioso, que acaba dando margem para um segundo fenômeno, conhecido por sincretismo. Trânsito religioso é um fenômeno que define a circulação de pessoas pelas novas e diferentes alternativas religiosas, num processo de adesão a novos credos, em substituição a um credo anterior. Esse trânsito pode ser contínuo, num movimento que prevê idas e vindas. Esse cenário é favorecido pela fragmentação institucional de muitas denominações religiosas que acabam dando origem a novos grupos. Por vezes, as religiões são tão semelhantes que a consciência religiosa não acusa incongruências cognitivas, facilitando essa mobilidade religiosa, adjetivada por sociólogos como sendo característica de uma religiosidade fluida, híbrida, sincrética e contínua, típica do nosso país, onde as fronteiras de muitas religiões não são mais tão claras e nítidas.16 Para Almeida e Montero, uma das explicações mais aceitas pela sociologia da religião é de que o trânsito religioso está ligado diretamente ao chamado ‘mercado religioso’, ou seja, ao processo de mercantilização dos bens de salvação. Dizem os autores: Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo a ideia de que a racionalização do sagrado no mundo moderno realizar-se-ia pela transformação das crenças em mercadorias a serem consumidas pelos adeptos que, volúveis, escolheriam os produtos segundo as suas necessidades imediatas.17 Mesmo que haja uma constatação científica de que indivíduos buscam cura, prosperidade, sucesso, felicidade e salvação em diferentes espaços religiosos e sagrados, na satisfação de suas próprias necessidades, numa relação quase clientelista com as religiões, não é apenas isso que explica o fenômeno do trânsito religioso. Uma outra explicação está ligada justamente 16 ALMEIDA, Ronaldo de; MONTERO, Paula. Trânsito Religioso no Brasil., 2001, p. 92. 17 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 92. ao cenário plural e eclético no qual foi sendo construído o atual panorama religioso brasileiro. Dizem Almeida e Montero a esse respeito: Desse ponto de vista, a circulação entre os diferentes códigos seria estimulado pela existência de um substrato cognitivo e/ou cultural comum às religiões populares brasileiras, fundado seja em uma ideia abstrata de deus que incorpora todas as variantes, seja em uma representação ambígua e não dicotômica da ideia de mal. Umexemplo disto é a Igreja Universal do Reino de Deus, que pode ser entendida como resultante da interação entre uma tradição evangélica-pentecostal e um catolicismo afro-kardecista, articulada em torno da figura do diabo. [...] Outros estudos apontam na mesma direção ao demonstrarem que, entre a “malineza” dos encantados da cultura amazônica, dos demônios do catolicismo popular e dos evangélicos e os “exus” das religiões afro-brasileiras, haveria a permanência de uma concepção ética particular às camadas populares.18 Essa estrutura análoga ou similar entre as diferentes religiões brasileiras, mesmo que passe quase desapercebida pela maioria dos fiéis, é que leva ou facilita a transição tão fluida de uma religião para a outra, pois parece não ferir a essência da identidade religiosa dos indivíduos, que logo encontram, mesmo que inconscientemente, um sentimento de pertença cognitivo-espiritual. Por outro lado, um pouco diferente do trânsito religioso é o fenômeno do sincretismo, palavra que significa mescla ou mistura harmonizada. No contexto religioso, essa mescla implica num indivíduo que mantém simultaneamente religiosidades diferentes, mas funde filosofias, princípios e práticas. Diz Araújo, que “o sincretismo ocorre quando dois ou mais sistemas religiosos se combinam, de modo que ambos deixam de existir como tais e produzem um sistema religioso original”.19 O exemplo mais clássico de sincretismo brasileiro encontramos na Umbanda, que combina elementos de diferentes religiões, incluindo religiões afro-brasileiras, elementos do espiritismo kardecista, catolicismo popular e também de religiões indígenas. Porém, há formas mais sutis de sincretismo. Um católico que vai eventualmente a missas, frequenta esporadicamente um centro espírita, busca tomar um passe num centro de umbanda, consulta uma cartomante, faz 18 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 92-3. 19 ARAÚJO, João Dias. Sincretismo. In: Dicionário Brasileiro de Teologia. (Fernando Bortolleto Filho – Org.). São Paulo, ASTE, 2008, p.930-1, p. 930. uma terapia de Reiki etc, também poderia ser considerado como exemplo de sincretismo. Finalmente, um outro tipo de sincretismo acontece quando há uma apropriação de determinadas crenças ou ritos de uma outra religião, que passam a ser apenas ressignificadas, no que alguns autores chamam de transferência simbólica. Isso fica claro com o exemplo dado por Almeida e Montero, a partir de uma das mais conhecidas igrejas brasileiras: A Igreja Universal construiu uma religiosidade que condenou – e ao mesmo tempo validou – os conteúdos de outras religiões, contudo, paradoxalmente, incorporou as formas de apresentação e certos mecanismos de funcionamento de uma prática encontrada particularmente na umbanda. Ela ficou mais parecida com a religiosidade inimiga ao elaborar um sincretismo às avessas, que associou as entidades da umbanda e orixás do candomblé ao pólo negativo do cristianismo: o diabo. Se originalmente os universos foram formados em contextos diferentes, a interação (produto do trânsito de pessoas e ideias) gerou uma religiosidade que mistura exus com glossolalia, exorcismo com transe; de tal maneira que se estabeleceu uma continuidade pela qual as entidades conseguiram transitar e esses universos puderam, pelo transe, se comunicar. Os pares negação/inversão e assimilação/continuidade são os mecanismos fundamentais pelos quais se processaram essa antropofagia religiosa. Graças a esses binômios, a Universal pôde manter o proselitismo de fiéis e, ao mesmo tempo, ser sincrética com outras crenças, que, juntamente com os infortúnios vividos pela população brasileira, formam o alimento constitutivo do seu simbolismo religioso (Almeida, 1996).20 Sabemos que a interpretação sociológica acima proposta não precisa ser aceita por todos e pode gerar até certo desconforto, mas ela é feita a partir de métodos científicos de análise, podendo ser replicada em outros contextos da diversidade religiosa brasileira. 7.6 O Brasil como exemplo de diversidade religiosa Quando falamos de diversidade religiosa precisamos admitir que há uma multiplicidade de religiões ao redor do mundo. Num primeiro grupo precisamos colocar os grandes “ismos”, ou seja, as grandes religiões universais, como Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo, Hinduísmo, Taoísmo, Xintoísmo. São elas que contemplam a maior parte dos fiéis religiosos da população mundial. Porém, mesmo dentro dessas grandes e 20 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 99. históricas tradições religiosas, percebe-se uma diversidade de tendências, correntes e subdivisões, com diferenças, por vezes, significativas em termos de doutrinas e práticas. O Brasil é um país rico na diversidade religiosa, contemplando em maior ou menor quantidade, fiéis de todas as religiões acima citadas, em diferentes correntes e tradições. A história da religiosidade brasileira começa a ser contada com a conquista e colonização portuguesa em 1500, que foi acompanhada da catequização das populações indígenas pelos missionários da ordem católica jesuíta. A religiosidade indígena foi sendo, então, sistematicamente cerceada, por ser considerada de cunho pagã, o que hoje seria considerado uma grande violência a sua cultura e tradição. A íntima relação entre Estado e Igreja, desde a época do descobrimento, transformou o Brasil num país oficialmente católico por quase quatro séculos. Como relata Gaarder, “cabia ao rei de Portugal conquistar, junto com as novas terras, novas almas. Devia construir templos e mosteiros, dotá-los de padres e religiosos e, principalmente, nomear os bispos”.21 Já vimos que, com a Proclamação da República ao final do século XIX, o Brasil se tornou um país laico. A pluralidade religiosa brasileira começa a ser forjada de muitas formas. As religiões de matriz africana vieram junto com o comércio escravocrata, porém foram muito reprimidas pelos senhores de engenho e pela própria Igreja e Estado. A organização das religiões conhecidas hoje como afro-brasileiras só começou a acontecer ao final do século XIX, quando os africanos trazidos em levas para o Brasil foram assentados nas cidades. Essa fixação urbana dos escravos “forneceu as condições favoráveis à sobrevivência de algumas tradições religiosas africanas, com o aparecimento de grupos de culto organizados”.22 Há uma enorme diversidade de cultos afro-brasileiros, que não possuem uma forma rígida ou muito sistematizada de crenças e práticas. Alguns dos principais cultos afro-brasileiro são conhecidos como candomblé, xangô, tambor de mina, batuque, macumba, umbanda, nação entre outros diferentes nomes. 21 GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 282. 22 GAARDER, 2000, p. 292. Um outro grupo que alterou o panorama religioso brasileiro foi a vinda dos religiosos protestantes. O protestantismo no Brasil possui duas vertentes. O protestantismo de imigração chegou com os imigrantes estrangeiros, especialmente os alemães, que trouxeram o luteranismo, primeiramente para o sul do Brasil, a partir de 1824. Também anglicanos e parte dos metodistas, nessa mesma época, compõem esse tipo de protestantismo, que se preocupou, primeiramente, e, atender os imigrantes, constituindo-se em “enclaves culturais, desinteressados em se abrir para os brasileiros e sem afã proselitista, retardando sobremaneira o processo de ‘nacionalização’ dessas igrejas”.23 O segundo tipo de protestantismo é o de conversão, representados pelos presbiterianos,maior parte dos metodistas, os batistas e os episcopais. A dinâmica desse tipo de protestantismo era o de “nacionalizar” os seguidores e as lideranças, bem como de converter o maior número de brasileiros para suas religiões, no que ficou conhecido como missões evangélicas.24 Já no início do século XX chegaram no Brasil as igrejas pentecostais, sendo criadas as igrejas Congregação Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus, sendo, ainda hoje, as duas maiores alas do pentecostalismo no Brasil. Já por volta de 1960 um novo grupo começa a tomar forma, denominado de neopentecostalismo. Esse movimento, que é o que mais cresce ainda hoje no país, oferece uma forma de religiosidade que é pouco exigente em termos éticos e doutrinariamente descomplicada. Porém, mantiveram características do pentecostalismo, como cultos com forte apelo emocional, com destaque para dons do Espírito Santo como a glossolalia, práticas de cura, libertação e exorcismo.25 Grupos neopentecostais também se tornaram conhecidos pela Teologia da Prosperidade. Essa teologia faz parte de um “movimento carismático interconfessional que enfatiza a saúde física e a prosperidade financeira como evidências básicas das bênçãos divinas na vida cristã”.26 Um outro grupo que encontrou um grande acolhimento no Brasil foi o espiritismo kardecista. Diferente dos grupos supracitados, todos de vertente 23 GAARDER, 2000, p. 286. 24 GAARDER, 2000, p. 286. 25 GAARDER, 2000, p. 288. 26 TIMM, Alberto R. Teologia da Prosperidade. In: Dicionário Brasileiro de Teologia, 2008, p. 966-968, p. 966. cristã, o kardecismo bebe nas fontes do hinduísmo ao colocar como uma de suas bases filosófico-religiosas a crença no carma e na reencarnação. Porém, também o sincretismo é encontrado no kardecismo, quando Jesus Cristo é visto como a maior entidade já encarnada e a ética da caridade/amor é a virtude suprema a ser buscada pelos seus adeptos, aproximando-a visceralmente dos preceitos da ética cristã. Importa ainda referir que o Brasil possui inúmeras outras igrejas minoritárias, mas cuja influência se fazem sentir em regiões específicas. Nas cidades de fronteira, como Foz do Iguaçu, por exemplo, temos grandes número de islâmicos. Em São Paulo e Porto Alegre encontramos fortes núcleos do judaísmo. Templos budistas de diferentes vertentes são encontrados em inúmeras cidades pelo país. Religiões e Movimentos como Seicho-No-Iê, Hare Krishna, Soka Gakkai, Igreja Messiânica, Exército da Salvação, Testemunhas de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia, Mormonismo entre tantas outras denominações encontram terreno livre e fértil para disseminar suas crenças. Como já dissemos antes, Gaarder conclui que Hoje, a situação do quadro religiosos brasileiro é de competição pluralista entre religiosidades as mais diversas. O quadro é de pluralismo religioso, energizado por um processo de conversão e reconversão muito complexo e dinâmico, com os mais diferentes movimentos de reavivamento das religiões tradicionais, além da incorporação de novas formas de religiosidade, a criação de novas igrejas e até mesmo de algumas novas religiões, não raro com a passagem do converso por várias possibilidades de adesão religiosa. Nunca houve tanta liberdade religiosa no Brasil como agora. Nunca antes as religiões foram tão livres para se estabelecer, competir entre si e se propagar como agora.27 Recapitulando Vimos, nesse capítulo, que a religiosidade é uma característica humana universal, presente em todas as civilizações ao longo da história. No Brasil essa religiosidade encontrou um terreno com ampla liberdade para ser expressada nas mais diferentes formas, gerando um panorama de enorme diversidade religiosa. Marcada por um trânsito religioso muito acentuado, além de práticas sincréticas, a religiosidade brasileira é um desafio para ser compreendida, por sua enorme fluidez e hibridismo, em constante dinamismo de transformação. 27 GAARDER, 2000, p. 283. REFERÊNCIAS ALMEIDA, RONALDO DE; MONTEIRO, PAULA. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo Perspec., São Paulo , v. 15, n. 3, p. 92-100, July 2001 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000300012&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 27 Jun. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-88392001000300012