Logo Passei Direto
Buscar
Material
páginas com resultados encontrados.
páginas com resultados encontrados.

Prévia do material em texto

7 A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA RELIGIOSA 
 
Introdução 
Diversidade é um conceito estratégico para a compreensão e atuação 
no mundo contemporâneo, tanto mais quando falamos da realidade social e 
educacional brasileira. Como eixo central dessa disciplina, a diversidade é um 
fenômeno cultural já consolidado na sociedade globalizada e plural em que 
vivemos. Ela chegou com a força de romper paradigmas que padronizavam 
visões unívocas e homogeneizadas em diferentes temas e contextos. A 
diversidade, como um construto epistemológico, permite que diversas 
concepções, interesses e cosmovisões coexistam dialogicamente em 
diferentes áreas acadêmicas, científicas e pessoais, relacionadas à própria 
concretude do viver e do conviver (ou viver com). Se insere, portanto, no 
conjunto de ações que promovem os direitos humanos fundamentais e que 
favorecem a construção de uma sociedade mais inclusiva. 
Esse capítulo vai tratar de um tipo específico de diversidade, a 
religiosa, que conforme iremos demonstrar, tem o seu grau de importância 
para os profissionais da educação. São muitas as relações entre religião e 
sociedade, ou entre as estruturas sociais e as diversas denominações 
religiosas. Seja no âmbito privado ou público, a fé e as tradições 
religiosas/espirituais demarcam formas diferentes de ser, pensar, sentir e agir 
dos indivíduos e grupos, nos diferentes âmbitos da existência humana. 
A religiosidade tem a função precípua de dar sentido aos 
acontecimentos da vida, transversalizando as grandes questões humanas, 
desde o nascimento até a morte. Porém, diante da enorme diversidade 
religiosa existente no Brasil o educador terá que desenvolver um espírito 
investigativo e um desejo de conhecer, compreender, valorizar e interagir 
com formas não apenas distintas, mas até opostas de compreensão de mundo, 
influenciadas e normatizadas pelas diferentes religiões. 
 
 
 
7.1 Diversidade e universalidade religiosa 
Falar de religiosidade é falar de um dos elementos antropológicos 
mais básicos da humanidade. Diferentes de outras expressões que são comuns 
aos diversos seres vivos, como a expressão sociorelacional, afetiva, volitiva e 
lúdica, a dimensão ou expressão religiosa parece ser uma exclusividade da 
espécie humana. O homo religiosus busca sentido para seu viver, sofrer e 
morrer em crenças religiosas, inserindo uma alcunha transcendente e sagrada 
para compreender e dar significado a muitas das coisas que lhe acontecem. 
De modo geral, indivíduos e grupos elegem uma divindade ou alguma forma de 
ser superior com o qual passam a relacionar-se, de diferentes maneiras, senda 
essa uma das principais marcas da religião, que busca re-ligar o ser humano 
com um centro transcendente de poder. Os estudos em antropologia afirmam 
que o ser humano “desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira 
aparição na cena da história e que todas as tribos e todas as populações de 
qualquer nível cultural cultivaram alguma forma de religião”.1 
Segundo os teólogos Reblin e von Sinner, a religião e a sociedade 
estão profundamente imbricadas, no sentido de que “não é possível entender 
a experiência religiosa distante da vida social, como se esta independesse 
daquela, assim como não é possível conceber uma sociedade sem uma vida 
religiosa. Religião e sociedade se interconectam, se emaranham e, por vezes, 
se fundem e se confundem na própria amálgama que é a vida humana”.2 
No dizer dos mesmos autores, as diferentes religiões ao redor do 
mundo, bem como as instituições religiosas mais recentes escrevem e 
inscrevem-se na história da humanidade. Elas desempenham um papel 
relevante no desenvolvimento dos acontecimentos, não apenas no sentido de 
moldar pensamentos e ideologias, ditar comportamentos e práticas, mas 
também atuando contra ou a favor do poder político estatal.3 
A título de exemplificação, podemos citar religiões da antiguidade e 
da modernidade, que sofreram ou impuseram influências nas respectivas 
culturas e sociedades onde estavam inseridas: a religião egípcia e sua íntima 
relação com os reinos dos faraós, a cultura grega inscrita na mitologia dos 
 
1 MONDIN, Battista. O homem, quem é ele?: elementos de antropologia filosófica. São Paulo: 
Edições Paulinas, 1980., p 218. 
2 REBLIN, Iuri A.; SINNER, Rudolf von. Religião e sociedade: desafios contemporâneos. São 
Leopoldo: Sinodal/EST, 2012. Prefácio. 
3 REBLIN; SINNER, 2012, Prefácio. 
deuses do Olimpo, o Império Romano e seus imperadores divinizados, as 
civilizações incas, maias e astecas, dizimadas pelos colonizadores por serem 
“pagãs”, o Cristianismo e a tomada crescente dopoder no mundo Ocidental 
desde a baixa Idade Média, as Cruzadas - guerras religiosas fomentadas por 
poder e riquezas, as Reformas Protestantes que redistribuíram o poder geo-
político-religioso na Europa, as colonizações portuguesas e espanholas na 
América e a imposição do catolicismo como religião oficial, as colonizações 
anglo-saxãs na América do Norte e sua relação com o espírito protestante do 
capitalismo, o Islamismo e sua relação com algumas teocracias no Oriente 
Médio, os grupos evangélicos pentecostais e neopentecostais e sua inserção no 
campo da política brasileira, o espiritismo kardecista e suas pesquisas no 
campo da espiritualidade e saúde, a forte religiosidade popular de influência 
africana e indígena, as inúmeras superstições existentes no imaginário social, 
entre tantos outros acontecimentos históricos e culturais que aqui poderiam 
ser citados. 
O fato de muitas religiões tradicionais e históricas estarem vivendo 
hoje uma crise, no sentido da perda crescente de sua credibilidade gerando, 
consequentemente, um menor impacto social, não exclui ou elimina a sua 
influência cultural. Como vai dizer Mondin, a religião “se impõe como uma 
constante do ser humano, mesmo se não é cultivada por todos os indivíduos 
da espécie”.4 
Souza e Martino, sociólogos da religião, apontam para esse relativo 
paradoxo da modernidade, demonstrando as complexas relações entre os 
fenômenos religiosos, as religiões, a modernidade e as mudanças sociais. Se 
por um lado os índices recentes apontam para o declínio da religião, com a 
perda de espaço dentro da sociedade, por outro lado percebe-se um aumento 
no número de igrejas, templos, centros e “espaços místicos”.5 Desse modo, 
podemos afirmar que a religiosidade não está desaparecendo, mas está 
apenas tomando diferentes formas na sua expressão individual e social. É 
 
4 MONDIN, 1980, p. 218. 
5 SOUZA, Beatriz Muniz de; MARTINO, Luís Mauro Sá. (orgs). Sociologia da Religião e 
Mudança Social: católicos, protestantes e novos movimentos religiosos no Brasil. São Paulo: Paulus, 
2004., p.7. 
dessa diversidade que o educador precisa dar-se conta na análise desse 
fenômeno. 
 
7.2 Diversidade e hermenêutica do fenômeno 
religioso/religiões 
Para que um educador possa ter elementos para compreender o 
fenômeno religioso ou as diferentes religiões os pesquisadores da área 
afirmam que é necessário circunscrever o objeto “religião” em três aspectos: 
a) ver o objeto religião como uma totalidade; b) reconhecer que essa 
totalidade apresenta-se de maneira quádrupla; c) observar que a totalidade 
está viva e que não para de se transformar.6 
Olhar para a religião como uma totalidade significa perceber as suas 
múltiplas nuances, ou seja, saber que existem diferentes abordagens para sua 
compreensão, tais como a Antropologia da Religião, Sociologia da Religião, 
Psicologia da Religião, História das Religiões, Filosofia da Religião, 
Fenomenologia das Religiões, Arte e Religião etc.Todas essas áreas têm algo 
a contribuir para uma compreensão mais correta e profunda do fenômeno 
religioso, porém, analisadas individualmente, elas ainda não contemplam toda 
a complexidade desse fenômeno, até porque, como afirma o terceiro aspecto, 
as religiões nunca param de se transformar, adaptando-se e moldando-se às 
diferentes épocas e contextos culturais. 
Com relação à maneira quádrupla como se apresenta essa totalidade, 
ela consiste em quatro perspectivas. A primeira é que as religiões possuem 
uma clara manifestação comunitária, reunindo-se em comunidades. Dessa 
forma há uma distinção entre os que estão “dentro” da religião daqueles que 
estão “fora” dela. A segunda perspectiva trata do sistema de atos religiosos, 
ou seja, uma religião liga-se a ritos, a práticas, a costumes, a 
comportamentos, que são cheios de simbolismos e significados. A terceira 
perspectiva é a compreensão do sistema doutrinário de cada religião. 
Preceitos, princípios, verdades, dogmas fazem parte de cada religião, sendo 
decisivos para normatizar os atos de fé e dar a cada indivíduo/comunidade 
religiosa uma cosmovisão específica. A última perspectiva é a mais complexa, 
 
6 GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005., p.24. 
e está vinculada à experiência religiosa. Essa experiência é a força vital que 
anima as religiões, alimentando seus ensinamentos e fortalecendo os ritos. É a 
vivência da fé, propriamente dita, sendo o que há de mais genuíno e subjetivo 
no fenômeno religioso.7 
Percebe-se, aqui, o quanto o conceito de diversidade religiosa se 
justifica e assume um lugar de destaque, não só para o reconhecimento da 
sua própria religião, quanto da religião do outro. Porém, com o crescente 
aumento do secularismo da sociedade, é preciso levar em conta também o 
respeito à ausência ou negação da religiosidade, nos casos de posições 
ateístas e agnósticas. O ateísmo, que nega a existência de Deus - ou de 
alguma forma transcendente de poder - , além do agnosticismo, que afirma 
que aquilo que não se pode provar empiricamente pelo método científico 
deve ser ignorado, são duas ideologias crescentes na contemporaneidade, que 
também precisam ser consideradas dentro do contexto da diversidade 
religiosa e a-religiosa. 
O fato é que a enorme diversidade religiosa na qual estamos inseridos 
exige de cada indivíduo, quanto mais de um educador, o exercício constante 
da alteridade. A alteridade nos leva a respeitar os pensamentos do outro e a 
reconhecer aquilo que é diferente de si mesmo. Além disso, a alteridade nos 
ensina a dar um passo a mais, no sentido validar, empaticamente, as crenças 
dos outros, mesmo que estas se oponham ao próprio conjunto de crenças do 
indivíduo. 
 
7.3 Diversidade e Verdade religiosa 
Uma das grandes questões quando se estuda as religiões está no 
estabelecimento do que é a verdade. Diferentemente da ciência, que procura 
estabelecer verdades a partir de métodos científicos, que podem ser 
comprovados e mensurados estatisticamente, a religião trabalha num outro 
nível de verdade, quase sempre considerada como absoluta e inequívoca pelos 
membros de cada religião. Há um alto grau de subjetividade naquilo que 
chamamos de verdade religiosa, porque o que é verdade para um grupo 
religioso poderá ser o extremo da falsidade para outro grupo. 
 
7 GRESCHAT, 2005, p.24-27. 
Por esse motivo é que trabalhar num contexto de diversidade religiosa 
é sempre desafiante. Cabe ao profissional que se ocupa do tema religião 
desenvolver uma postura não valorativa, ou seja, buscar a idealizada 
neutralidade científica, sem perder a criticidade na sua reflexão, ação e 
interação. 
Quanto à questão do julgamento que se é comum fazer sobre as 
religiões, Wiebe, citando Smith, afirma que é improvável que uma pessoa 
possa dominar totalmente qualquer tradição religiosa a ponto de afirmar que 
ela seja “verdadeira” ou “falsa”. Também não há elementos suficientes para 
se afirmar que esta ou aquela religião apresenta uma compreensão adequada 
ou inadequada da realidade. Porém, é preciso ser capaz de discernir se as 
afirmativas e pretensões de diferentes tradições conflitam entre si e 
apresentam compreensões conflitantes ou mesmo complementares.8 
É importante, porém, estar atento a questões de coerência e de 
autocontradição nas religiões, além de verificar se elas são capazes de 
satisfazer necessidades psicológicas, sociais, intelectuais e morais do ser 
humano,9 além das espirituais. Nesse ponto podemos encontrar um sério 
problema de ordem prática, que pode ser exemplificado pelo fanatismo 
religioso. A amplitude do conceito fé permite que indivíduos se considerem 
supridos nas necessidades supracitadas, apesar de que, numa análise externa 
e isenta, se perceba que estão num processo de alienação social, intelectual 
ou de outra ordem. A história demonstra, em diversos casos, que 
determinadas seitas ou comunidades religiosas tiveram o poder de alienar as 
pessoas em torno de “verdades” profundamente questionáveis, levando-as a 
sentir, pensar e agir de forma não saudável e até destrutiva, prejudicando a si 
mesmos e a terceiros. 
Como educadores, cabe desenvolver habilidades e atitudes que 
permitam aos indivíduos refletirem sobre suas crenças, ideologias e práticas 
religiosas, não de forma autoritária, valorativa ou preconceituosa, mas de 
forma sempre dialógica e crítica. 
 
 
8 WIEBE, Donald. Religião e verdade: rumo a um paradigma alternativo para o estudo da 
religião. São Leopoldo: Sinodal. 1998., p. 125. 
9 WIEBE, 1998, p. 125-6. 
 
7.4 Diversidade, liberdade e tolerância religiosa 
 
O tema da diversidade tem relação direta com os conceitos de 
liberdade e tolerância religiosa. Conforme afirma Souza, a noção de 
tolerância surge primeiramente como um valor de cunho religioso, surgida no 
período da Reforma Protestante no século XVI, e que depois passou a ser 
assimilado por toda a sociedade liberal burguesa. Para o autor, o conceito de 
tolerância foi sendo construído dentro do espírito do Iluminismo, como uma 
resposta a situações de conflito provocados por diferenças de pertença 
religiosa e de liberdade de consciência, ganhando solidez como ideário 
político na Declaração do Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, onde é 
expressado, no artigo X, o seguinte: “Ninguém pode ser incomodado por causa 
das suas opiniões, mesmo religiosas, contanto que não perturbem a ordem 
pública estabelecida na lei”. 10 
Outra decorrência positiva da institucionalização social e política da 
tolerância religiosa é que “tornou-se possível a emergência e o 
desenvolvimento do conceito e prática da laicidade do Estado, o que permitiu 
cessar o vínculo entre crença religiosa e pertencimento político no contexto 
das repúblicas modernas”.11 
No contexto brasileiro, vivemos num país onde goza-se de plena 
liberdade religiosa. Com a Proclamação da República, em 1889, estabeleceu-
se a separação entre Igreja e Estado, com a extinção do Direito de Padroado, 
que retirou da Igreja Católica o posto de religião oficial do Brasil. Como 
afirma Souza, “a liberdade de culto é constitucionalmente estabelecida a 
todo e qualquer grupo religioso através do Decreto 119-A, de 17 de janeiro de 
1890, instaurando a separação entre Igreja e Estado. Na constituição 
republicana de 1891 é estabelecida oficialmente a liberdade de culto”.12 
 
10 SOUZA, Mailson Fernandes Cabral. Laicidade e Liberdade Religiosa no Brasil: situando a 
discussão entre religião e política. RevistaInterações, Belo Horizonte, Brasil, v12, n.21, p. 77-93. 
Jan/Jul.2017., p.78. 
11 SOUZA, 2017, p. 80. 
12 SOUZA, 2017, p. 85-6. 
Obviamente que o decreto constitucional não eliminou a forte 
influência da religião majoritária, que era o catolicismo, sobre a política 
brasileira, especialmente nas décadas de 1920-30, onde tentou-se novamente 
estabelecer a união entre Igreja-Estado, na tentativa de fazer do Brasil uma 
Nação Católica. Também em outros períodos da República a aliança política 
entre a Igreja Católica e o governo permaneceram, com privilégios que foram 
suprimidos na Carta Magna, mas que permaneciam vigendo na prática. 
Finalmente, a diversidade religiosa encontra seu amparo de plena 
liberdade de direito na Constituição de 1988, descritas no artigo 5º, incisos VI 
a VIII. 
VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo 
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na 
forma da lei, a proteção aos locais de cultos e suas liturgias. 
VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência 
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; 
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa 
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para 
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir 
a prestação alternativa, fixada na lei.13 
 
O debate sobre liberdade e tolerância também se colocam numa 
decorrência quase natural da discussão acerca da verdade religiosa. Quando 
indivíduos e grupos se acham “donos” da verdade e se instituem socialmente 
de algum poder/autoridade, invariavelmente isso acaba gerando formas 
impositivas, cerceadoras da liberdade e de intolerância para com aqueles que 
não compartilham dessas mesmas crenças. 
Alguns países teocráticos, normalmente ligados a grupos religiosos de 
maioria islâmica, são exemplos clássicos da falta de liberdade religiosa e de 
uma consequente intolerância. Porém, a intolerância não foi nem é 
“privilégio” de uma única religião. A Santa Inquisição, na Idade Média, foi 
dura e cruel com os indivíduos que ousavam questionar a autoridade da igreja 
cristã na época. 
No cenário brasileiro, em que se vive plena liberdade religiosa, 
garantida por lei, também temos, esporadicamente, exemplos clássicos de 
intolerância. O caso do pastor evangélico que chutou a estátua de Nossa 
Senhora de Aparecida, veiculado no ano de 1995 por um programa religioso de 
 
13 Constituição Federal de 1988. In: SOUZA, 2017, p. 88. 
TV, foi paradigmático, gerando muito desconforto, pois colocou duas facções 
cristãs uma contra a outra. Os ataques recorrentes a membros de religiões 
afro-brasileiras também têm gerado muita celeuma, desvelando a intolerância 
religiosa mesmo num país que defende a liberdade religiosa. Lembramos que, 
no ano de 2017, segundo dados da Revista Carta Capital, só no estado do Rio 
de Janeiro foram contabilizados 79 ataques a templos ou seguidores de 
religiões de matriz africana. Já no estado de São Paulo foram registrados 27 
atos de violência do mesmo tipo.14 
Reiteramos que a intolerância está intimamente ligada com aquilo que 
cada grupo religioso considera como verdade ou falsidade, gerando uma 
postura dicotômica e maniqueísta, onde se estabelece uma batalha entre o 
que se considera o bem e o mal. Porém, essa questão precisa ser 
urgentemente superada pelos indivíduos que convivem numa realidade social 
marcada pela diversidade. Com relação a esse tema, da tolerância às 
diferentes verdades, Wiebe afirma: 
 
O encontro de duas pretensões absolutas de Verdade [...] não 
termina com um abandono da pretensão de Verdade absoluta de um 
dos lados ou dos dois lados; ele também não termina em querelas a 
fim de estabelecer uma pretensão de verdade contra a outra, nem 
na atitude de polidamente manter silêncio a fim de não ofender o/a 
outro/a parceiro/a, bem sabendo que ele/a tem de estar errado/a. 
Um princípio básico do diálogo é que a tensão existente entre as 
diferentes religiões não precisa, não deveria e não pode ser 
resolvida: ela configura uma dialética real surgida do fato de que a 
própria vida possui aspectos e dimensões contraditórios que se 
refletem nas principais tradições. O diálogo não visa ao monólogo, e 
sim a manter a continuidade do diálogo, manter a identidade de 
ambos os parceiros e pressupor bases comuns suficientes para 
continuar a exploração. O diálogo [...] continua e leva ambos os 
parceiros a aperceber-se dos limites e valor de suas próprias 
“verdades” em suas tradições ...15 
 
 
Tolerância e diálogo inter-religioso precisam sair do mundo ideal das 
ideias e se tornarem práticas cotidianas, ensinadas desde muito cedo por 
todas as instituições, desde a família, escola, organizações e pelo próprio 
 
14 https://www.cartacapital.com.br/sociedade/em-tres-semanas-sao-paulo-tem-oito-
ataques-a-religioes-de-matriz-africana 
 
15 WIEBE, 1998, p. 129. 
Estado, com políticas afirmativas que garantam plena liberdade de 
pensamento e vivência religiosa. 
 
7.5 Diversidade, sincretismo e trânsito religioso 
Um outro elemento importante a ser considerado na análise da 
diversidade religiosa é o fenômeno conhecido como trânsito religioso, que 
acaba dando margem para um segundo fenômeno, conhecido por sincretismo. 
Trânsito religioso é um fenômeno que define a circulação de pessoas 
pelas novas e diferentes alternativas religiosas, num processo de adesão a 
novos credos, em substituição a um credo anterior. Esse trânsito pode ser 
contínuo, num movimento que prevê idas e vindas. Esse cenário é favorecido 
pela fragmentação institucional de muitas denominações religiosas que 
acabam dando origem a novos grupos. Por vezes, as religiões são tão 
semelhantes que a consciência religiosa não acusa incongruências cognitivas, 
facilitando essa mobilidade religiosa, adjetivada por sociólogos como sendo 
característica de uma religiosidade fluida, híbrida, sincrética e contínua, 
típica do nosso país, onde as fronteiras de muitas religiões não são mais tão 
claras e nítidas.16 
Para Almeida e Montero, uma das explicações mais aceitas pela 
sociologia da religião é de que o trânsito religioso está ligado diretamente ao 
chamado ‘mercado religioso’, ou seja, ao processo de mercantilização dos 
bens de salvação. Dizem os autores: 
Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo a ideia de 
que a racionalização do sagrado no mundo moderno realizar-se-ia 
pela transformação das crenças em mercadorias a serem consumidas 
pelos adeptos que, volúveis, escolheriam os produtos segundo as 
suas necessidades imediatas.17 
 
Mesmo que haja uma constatação científica de que indivíduos buscam 
cura, prosperidade, sucesso, felicidade e salvação em diferentes espaços 
religiosos e sagrados, na satisfação de suas próprias necessidades, numa 
relação quase clientelista com as religiões, não é apenas isso que explica o 
fenômeno do trânsito religioso. Uma outra explicação está ligada justamente 
 
16 ALMEIDA, Ronaldo de; MONTERO, Paula. Trânsito Religioso no Brasil., 2001, p. 92. 
17 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 92. 
ao cenário plural e eclético no qual foi sendo construído o atual panorama 
religioso brasileiro. Dizem Almeida e Montero a esse respeito: 
 
Desse ponto de vista, a circulação entre os diferentes códigos seria 
estimulado pela existência de um substrato cognitivo e/ou cultural 
comum às religiões populares brasileiras, fundado seja em uma ideia 
abstrata de deus que incorpora todas as variantes, seja em uma 
representação ambígua e não dicotômica da ideia de mal. Umexemplo disto é a Igreja Universal do Reino de Deus, que pode ser 
entendida como resultante da interação entre uma tradição 
evangélica-pentecostal e um catolicismo afro-kardecista, articulada 
em torno da figura do diabo. [...] Outros estudos apontam na mesma 
direção ao demonstrarem que, entre a “malineza” dos encantados 
da cultura amazônica, dos demônios do catolicismo popular e dos 
evangélicos e os “exus” das religiões afro-brasileiras, haveria a 
permanência de uma concepção ética particular às camadas 
populares.18 
 
Essa estrutura análoga ou similar entre as diferentes religiões 
brasileiras, mesmo que passe quase desapercebida pela maioria dos fiéis, é 
que leva ou facilita a transição tão fluida de uma religião para a outra, pois 
parece não ferir a essência da identidade religiosa dos indivíduos, que logo 
encontram, mesmo que inconscientemente, um sentimento de pertença 
cognitivo-espiritual. 
Por outro lado, um pouco diferente do trânsito religioso é o fenômeno 
do sincretismo, palavra que significa mescla ou mistura harmonizada. No 
contexto religioso, essa mescla implica num indivíduo que mantém 
simultaneamente religiosidades diferentes, mas funde filosofias, princípios e 
práticas. Diz Araújo, que “o sincretismo ocorre quando dois ou mais sistemas 
religiosos se combinam, de modo que ambos deixam de existir como tais e 
produzem um sistema religioso original”.19 O exemplo mais clássico de 
sincretismo brasileiro encontramos na Umbanda, que combina elementos de 
diferentes religiões, incluindo religiões afro-brasileiras, elementos do 
espiritismo kardecista, catolicismo popular e também de religiões indígenas. 
Porém, há formas mais sutis de sincretismo. Um católico que vai 
eventualmente a missas, frequenta esporadicamente um centro espírita, 
busca tomar um passe num centro de umbanda, consulta uma cartomante, faz 
 
18 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 92-3. 
19 ARAÚJO, João Dias. Sincretismo. In: Dicionário Brasileiro de Teologia. (Fernando Bortolleto 
Filho – Org.). São Paulo, ASTE, 2008, p.930-1, p. 930. 
uma terapia de Reiki etc, também poderia ser considerado como exemplo de 
sincretismo. Finalmente, um outro tipo de sincretismo acontece quando há 
uma apropriação de determinadas crenças ou ritos de uma outra religião, que 
passam a ser apenas ressignificadas, no que alguns autores chamam de 
transferência simbólica. Isso fica claro com o exemplo dado por Almeida e 
Montero, a partir de uma das mais conhecidas igrejas brasileiras: 
 
A Igreja Universal construiu uma religiosidade que condenou – e ao 
mesmo tempo validou – os conteúdos de outras religiões, contudo, 
paradoxalmente, incorporou as formas de apresentação e certos 
mecanismos de funcionamento de uma prática encontrada 
particularmente na umbanda. Ela ficou mais parecida com a 
religiosidade inimiga ao elaborar um sincretismo às avessas, que 
associou as entidades da umbanda e orixás do candomblé ao pólo 
negativo do cristianismo: o diabo. Se originalmente os universos 
foram formados em contextos diferentes, a interação (produto do 
trânsito de pessoas e ideias) gerou uma religiosidade que mistura 
exus com glossolalia, exorcismo com transe; de tal maneira que se 
estabeleceu uma continuidade pela qual as entidades conseguiram 
transitar e esses universos puderam, pelo transe, se comunicar. Os 
pares negação/inversão e assimilação/continuidade são os 
mecanismos fundamentais pelos quais se processaram essa 
antropofagia religiosa. Graças a esses binômios, a Universal pôde 
manter o proselitismo de fiéis e, ao mesmo tempo, ser sincrética 
com outras crenças, que, juntamente com os infortúnios vividos pela 
população brasileira, formam o alimento constitutivo do seu 
simbolismo religioso (Almeida, 1996).20 
 
 
Sabemos que a interpretação sociológica acima proposta não precisa 
ser aceita por todos e pode gerar até certo desconforto, mas ela é feita a 
partir de métodos científicos de análise, podendo ser replicada em outros 
contextos da diversidade religiosa brasileira. 
 
7.6 O Brasil como exemplo de diversidade religiosa 
Quando falamos de diversidade religiosa precisamos admitir que há 
uma multiplicidade de religiões ao redor do mundo. Num primeiro grupo 
precisamos colocar os grandes “ismos”, ou seja, as grandes religiões 
universais, como Judaísmo, Cristianismo, Islamismo, Budismo, Hinduísmo, 
Taoísmo, Xintoísmo. São elas que contemplam a maior parte dos fiéis 
religiosos da população mundial. Porém, mesmo dentro dessas grandes e 
 
20 ALMEIDA; MONTERO, 2001, p. 99. 
históricas tradições religiosas, percebe-se uma diversidade de tendências, 
correntes e subdivisões, com diferenças, por vezes, significativas em termos 
de doutrinas e práticas. 
O Brasil é um país rico na diversidade religiosa, contemplando em 
maior ou menor quantidade, fiéis de todas as religiões acima citadas, em 
diferentes correntes e tradições. A história da religiosidade brasileira começa 
a ser contada com a conquista e colonização portuguesa em 1500, que foi 
acompanhada da catequização das populações indígenas pelos missionários da 
ordem católica jesuíta. A religiosidade indígena foi sendo, então, 
sistematicamente cerceada, por ser considerada de cunho pagã, o que hoje 
seria considerado uma grande violência a sua cultura e tradição. A íntima 
relação entre Estado e Igreja, desde a época do descobrimento, transformou o 
Brasil num país oficialmente católico por quase quatro séculos. Como relata 
Gaarder, “cabia ao rei de Portugal conquistar, junto com as novas terras, 
novas almas. Devia construir templos e mosteiros, dotá-los de padres e 
religiosos e, principalmente, nomear os bispos”.21 Já vimos que, com a 
Proclamação da República ao final do século XIX, o Brasil se tornou um país 
laico. 
A pluralidade religiosa brasileira começa a ser forjada de muitas 
formas. As religiões de matriz africana vieram junto com o comércio 
escravocrata, porém foram muito reprimidas pelos senhores de engenho e 
pela própria Igreja e Estado. A organização das religiões conhecidas hoje 
como afro-brasileiras só começou a acontecer ao final do século XIX, quando 
os africanos trazidos em levas para o Brasil foram assentados nas cidades. Essa 
fixação urbana dos escravos “forneceu as condições favoráveis à sobrevivência 
de algumas tradições religiosas africanas, com o aparecimento de grupos de 
culto organizados”.22 Há uma enorme diversidade de cultos afro-brasileiros, 
que não possuem uma forma rígida ou muito sistematizada de crenças e 
práticas. Alguns dos principais cultos afro-brasileiro são conhecidos como 
candomblé, xangô, tambor de mina, batuque, macumba, umbanda, nação 
entre outros diferentes nomes. 
 
21 GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: 
Companhia das Letras, 2000., p. 282. 
22 GAARDER, 2000, p. 292. 
Um outro grupo que alterou o panorama religioso brasileiro foi a vinda 
dos religiosos protestantes. O protestantismo no Brasil possui duas vertentes. 
O protestantismo de imigração chegou com os imigrantes estrangeiros, 
especialmente os alemães, que trouxeram o luteranismo, primeiramente para 
o sul do Brasil, a partir de 1824. Também anglicanos e parte dos metodistas, 
nessa mesma época, compõem esse tipo de protestantismo, que se 
preocupou, primeiramente, e, atender os imigrantes, constituindo-se em 
“enclaves culturais, desinteressados em se abrir para os brasileiros e sem afã 
proselitista, retardando sobremaneira o processo de ‘nacionalização’ dessas 
igrejas”.23 
O segundo tipo de protestantismo é o de conversão, representados 
pelos presbiterianos,maior parte dos metodistas, os batistas e os episcopais. 
A dinâmica desse tipo de protestantismo era o de “nacionalizar” os seguidores 
e as lideranças, bem como de converter o maior número de brasileiros para 
suas religiões, no que ficou conhecido como missões evangélicas.24 
Já no início do século XX chegaram no Brasil as igrejas pentecostais, 
sendo criadas as igrejas Congregação Cristã do Brasil e a Assembleia de Deus, 
sendo, ainda hoje, as duas maiores alas do pentecostalismo no Brasil. Já por 
volta de 1960 um novo grupo começa a tomar forma, denominado de 
neopentecostalismo. Esse movimento, que é o que mais cresce ainda hoje no 
país, oferece uma forma de religiosidade que é pouco exigente em termos 
éticos e doutrinariamente descomplicada. Porém, mantiveram características 
do pentecostalismo, como cultos com forte apelo emocional, com destaque 
para dons do Espírito Santo como a glossolalia, práticas de cura, libertação e 
exorcismo.25 Grupos neopentecostais também se tornaram conhecidos pela 
Teologia da Prosperidade. Essa teologia faz parte de um “movimento 
carismático interconfessional que enfatiza a saúde física e a prosperidade 
financeira como evidências básicas das bênçãos divinas na vida cristã”.26 
Um outro grupo que encontrou um grande acolhimento no Brasil foi o 
espiritismo kardecista. Diferente dos grupos supracitados, todos de vertente 
 
23 GAARDER, 2000, p. 286. 
24 GAARDER, 2000, p. 286. 
25 GAARDER, 2000, p. 288. 
26 TIMM, Alberto R. Teologia da Prosperidade. In: Dicionário Brasileiro de Teologia, 2008, p. 
966-968, p. 966. 
cristã, o kardecismo bebe nas fontes do hinduísmo ao colocar como uma de 
suas bases filosófico-religiosas a crença no carma e na reencarnação. Porém, 
também o sincretismo é encontrado no kardecismo, quando Jesus Cristo é 
visto como a maior entidade já encarnada e a ética da caridade/amor é a 
virtude suprema a ser buscada pelos seus adeptos, aproximando-a 
visceralmente dos preceitos da ética cristã. 
Importa ainda referir que o Brasil possui inúmeras outras igrejas 
minoritárias, mas cuja influência se fazem sentir em regiões específicas. Nas 
cidades de fronteira, como Foz do Iguaçu, por exemplo, temos grandes 
número de islâmicos. Em São Paulo e Porto Alegre encontramos fortes núcleos 
do judaísmo. Templos budistas de diferentes vertentes são encontrados em 
inúmeras cidades pelo país. Religiões e Movimentos como Seicho-No-Iê, Hare 
Krishna, Soka Gakkai, Igreja Messiânica, Exército da Salvação, Testemunhas 
de Jeová, Adventistas do Sétimo Dia, Mormonismo entre tantas outras 
denominações encontram terreno livre e fértil para disseminar suas crenças. 
Como já dissemos antes, Gaarder conclui que 
Hoje, a situação do quadro religiosos brasileiro é de competição 
pluralista entre religiosidades as mais diversas. O quadro é de 
pluralismo religioso, energizado por um processo de conversão e 
reconversão muito complexo e dinâmico, com os mais diferentes 
movimentos de reavivamento das religiões tradicionais, além da 
incorporação de novas formas de religiosidade, a criação de novas 
igrejas e até mesmo de algumas novas religiões, não raro com a 
passagem do converso por várias possibilidades de adesão religiosa. 
Nunca houve tanta liberdade religiosa no Brasil como agora. Nunca 
antes as religiões foram tão livres para se estabelecer, competir 
entre si e se propagar como agora.27 
 
Recapitulando 
Vimos, nesse capítulo, que a religiosidade é uma característica humana 
universal, presente em todas as civilizações ao longo da história. No Brasil 
essa religiosidade encontrou um terreno com ampla liberdade para ser 
expressada nas mais diferentes formas, gerando um panorama de enorme 
diversidade religiosa. Marcada por um trânsito religioso muito acentuado, 
além de práticas sincréticas, a religiosidade brasileira é um desafio para ser 
compreendida, por sua enorme fluidez e hibridismo, em constante dinamismo 
de transformação. 
 
27 GAARDER, 2000, p. 283. 
 
REFERÊNCIAS 
 
ALMEIDA, RONALDO DE; MONTEIRO, PAULA. Trânsito religioso no Brasil. São Paulo 
Perspec., São Paulo , v. 15, n. 3, p. 92-100, July 2001 . Disponível em: 
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392001000300012&lng=en&nrm=iso>. 
Acessado em 27 Jun. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-88392001000300012